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Um esquema teórico para o estudo da mercantilização da ciência

Marcos Barbosa de Oliveira


Universidade de São Paulo

Contribuição ao I Encuentro Internacional Culturas Científicas y Alternativas


Tecnológicas, Buenos Aires, 8-9 de outubro de 2009.

[Versão preliminar e muito parcial: são apresentadas apenas as duas primeiras seções
(versão em princípio final), e a primeira parte da seção 3 (versão preliminar).]

Sumário

1. Mercadoria, mercantilização e mercado; o neoliberalismo


2. A análise dimensional dos conceitos de mercadoria e de mercantilização
3. Primeira dimensão: rumos da pesquisa científica
4. Terceira dimensão: os Direitos de Propriedade Intelectual
5. Segunda dimensão: a taylorização do trabalho acadêmico

Introdução

Nas discussões preparatórias do I Fórum Mundial Ciência e Democracia


(FMCD), que veio a se realizar em Belém, em janeiro de 2009, foi posta a questão dos
lemas a serem adotados pelo empreendimento. Entre os lemas sugeridos, o que teve
aceitação mais ampla foi “A ciência não é uma mercadoria” – uma variação,
naturalmente, de “O mundo não é uma mercadoria”, do movimento altermundialista em
geral, e em particular do Fórum Social Mundial.
O lema “a ciência não é uma mercadoria” tem obviamente um sentido
normativo, apesar da forma gramatical descritiva da sentença que o expressa: ele
significa “ a ciência não deve ser uma mercadoria”, e pressupõe – ao contrário do que
afirma a sentença interpretada literalmente – que a ciência é, ou está se transformando
numa mercadoria. Mas em que consiste, para a ciência, ser, ou se transformar numa
mercadoria? Esta é a pergunta que o presente trabalho procura responder.
O esquema teórico em que se baseia a resposta a ser apresentada emergiu
lentamente de um projeto de investigação a que venho me dedicando há alguns anos a
respeito da mercantilização da Universidade. É exposto aqui como uma contribuição ao
FMCD, podendo ser entendido como uma fundamentação teórica (parcial) das posições
defendidas numa intervenção no debate sobre os lemas postada no site interativo do
Fórum em dezembro de 2008, e transcrita no apêndice.
2

1. Mercadoria, mercantilização e mercado; o neoliberalismo

Nesta primeira seção estabelecemos – num registro esquemático, como convém


ao objetivo de expor um esquema teórico – as bases conceituais de nosso
empreendimento.
O ponto de partida é a mercadoria, que, como conceito, constitui o cerne da
teoria do capitalismo; como parte da realidade social, o cerne do sistema capitalista.1
Numa primeira aproximação, o conceito de mercadoria pode ser definido assim: uma
mercadoria é um bem, isto é, algo que tem alguma utilidade, algum valor de uso,
produzido pelo trabalho humano, para ser trocado (sendo usado o dinheiro como meio
de troca, para ser vendido). Esta primeira definição pode ser extraída das páginas
iniciais d’O Capital, e corresponde essencialmente (como veremos a seguir) ao que
Polanyi chama de “definição empírica da mercadoria”, porém não contém nada que um
adepto do sistema capitalista precise rejeitar.
Outro atributo essencial da mercadoria é sua natureza quantitativa. Uma
mercadoria tem um valor de troca: uma quantidade numa escala unidimensional que,
quando a troca envolve o dinheiro, se expressa como preço. Nos casos mais
importantes, essa natureza quantitativa implica que para ser mercadoria um bem precisa
ser quantificável, isto é, deve ser mensurável em unidades de medida, que podem ser de
peso (quilos de arroz), de volume (barris de petróleo), etc., ou então unidades tout court
(uma bicicleta, cinco camisas).
Mercantilização é o processo pelo qual uma categoria de bens passa a funcionar
como mercadoria. Curiosamente, embora o conceito esteja presente nas obras de Marx,
de Polanyi, e de muitos outros autores, o termo “mercantilizar” e seus cognatos, tanto
em português quanto em inglês, francês, etc., constituem neologismos, que só
recentemente os dicionários passaram a registrar. Nota-se também certa oscilação no
uso, encontrando-se às vezes “mercadorização” no lugar de “mercantilização” e, em
inglês, “commoditisation” no lugar de “commodification”.
Na obra de Polanyi o conceito de mercantilização tem uma presença ainda mais
forte do que na de Marx. No clássico A grande transformação ele figura estreitamente
associado ao conceito de mercadoria fictícia. Para Polanyi, a “grande transformação” –
isto é, o processo histórico da transição do feudalismo ao capitalismo – teve em seu

1. Para uma exposição mais extensa, de cunho didático, sobre os conceitos introduzidos neste primeiro
segmento da introdução, v. “Mercadoria, mercantilização e mercado” (Oliveira, 2009).
3

cerne a mercantilização de três categorias de bens: o trabalho, a terra e o dinheiro. Uma


vez mercantilizadas, elas são mercadorias fictícias porque, apesar de funcionarem como
mercadorias, não são produzidas pelo trabalho humano para serem trocadas. Como diz
nosso autor,

[O] trabalho, a terra e o dinheiro [...] de acordo com a definição


empírica de mercadoria, não são mercadorias. O trabalho é
apenas outro nome para uma atividade humana que é parte da
própria vida, a qual por sua vez não é produzida para a venda
mas por razões inteiramente diversas, e esta atividade não pode
ser destacada do resto da vida, ser armazenada ou mobilizada; a
terra é apenas um outro nome para a natureza, que não é
produzida pelo homem; o dinheiro real [actual money] por fim,
é apenas um símbolo de poder de compra que, de maneira geral,
simplesmente não é produzido, mas passa a existir através do
mecanismo dos bancos ou da finança estatal. Nenhum deles é
produzido para a venda. A descrição do trabalho, da terra e do
dinheiro como mercadorias é inteiramente fictícia. (Polanyi,
1980, p. 94) 2

Para entender a mercadoria como cerne do capitalismo, é imprescindível levar


em conta o mercado – mais precisamente, o mercado capitalista, em que vigora a lei da
oferta e da demanda. O mercado no sistema capitalista tem a função de organizar, ou
regular a vida econômica da sociedade, determinando que bens devem ser produzidos, e
em que quantidade, como esses bens devem ser distribuídos, etc. É a função que na
concepção clássica do socialismo é desempenhada, nas palavras de Marx, pelo “controle
consciente e planejado” (1983, p. 76); no socialismo real, pelo sistema de planejamento
central. A função reguladora do mercado figura com grande destaque nas concepções de
Polanyi sobre o capitalismo (que ele chama de economia, ou sociedade de mercado),
estando encapsulada em seu conceito de mercado auto-regulado (self regulating
market). A explicação da maneira como o mercado desempenha sua função reguladora é
bem sintetizada na seguinte passagem d’A grande transformação:

Uma economia de mercado é um sistema econômico controlado,


regulado e dirigido apenas por preços de mercado; a ordem na
produção e distribuição dos bens é confiada a esse mecanismo
auto-regulado. Uma economia deste tipo decorre da expectativa
de que os seres humanos se comportam de maneira a conseguir
o máximo de ganhos monetários. Ela pressupõe mercados nos

2. Nesta e nas demais citações de Polanyi a seguir, o número de página indicado refere-se à edição
brasileira (Polanyi, 1980); a tradução entretanto foi feita a partir do original (Polanyi, 2001).
4

quais o suprimento de bens (incluindo serviços) disponível a um


determinado preço será igual à demanda a esse preço. Pressupõe
a presença do dinheiro, que funciona como poder de compra nas
mãos dos possuidores. A produção será então controlada pelos
preços, pois os lucros daqueles que dirigem a produção
dependerá dos preços, uma vez que os preços formam rendas, e
é com a ajuda dessas rendas que os bens são produzidos e
distribuídos entre os membros da sociedade. Com esses
pressupostos, a ordem na produção e na distribuição de bens é
assegurada apenas pelos preços. (Ibid., p. 89-90)

O neoliberalismo é a fase de desenvolvimento do capitalismo em que o sistema


mais se aproxima do capitalismo como tipo ideal, ou, em outras palavras, a fase em que
a predominância do modo de produção capitalista se torna avassaladora. Esse
movimento é impulsionado pela exacerbação da tendência mercantilizadora universal
do capitalismo – a propensão a transformar tudo em mercadoria – e pela radicalização
da defesa do livre mercado. A partir desta caracterização é possível derivar o núcleo das
políticas neoliberais: o princípio do Estado mínimo, que compreende as privatizações e
a restrição dos gastos com os bens sociais (educação, saúde, previdência, etc.), a
desregulamentação dos mercados (financeiro, de trabalho, etc.), a eliminação das
medidas protecionistas no comércio internacional, e o fortalecimento e expansão dos
Direitos de Propriedade Intelectual (DPI), que constituem os dispositivos legais
responsáveis pela mercantilização da tecnologia (patentes) e da cultura (direitos
autorais). (cf. Harvey, 2007, especialmente p. 2-3 e 165-167; Paulani, 2008, p. 110,
Anderson, 1996, p. 10 ss.)
Historicamente, o neoliberalismo surge como ideário ao fim da Segunda Guerra,
sendo os marcos de seu aparecimento a publicação de O caminho da servidão, de
Hayek, em 1944, e a fundação da Sociedade Mont Pèlerin em 1947. Ao longo dos anos
de ouro do capitalismo o neoliberalismo permanece em estado latente, de incubação,
pode-se dizer: no plano teórico constituía uma vertente marginal, vista como irrelevante
pelo pensamento econômico dominante, de extração keynesiana; no plano do real, seu
peso político era praticamente nulo. A situação começa a mudar com a crise deflagrada
pelo aumento do preço do petróleo em 1973; cresce neste período o número de adeptos,
são criados think tanks, organizam-se conferências, e torna-se mais intenso o fluxo de
publicações. Mas é só na virada da década de 70 para a de 80 que se inicia de fato a
ascensão do neoliberalismo como força política, sendo os marcos desse ponto de
inflexão as eleições de Margareth Thatcher no Reino Unido em 1979 e de Ronald
5

Reagan nos Estados Unidos em 1980. Outro marco importante nessa história foi a queda
do comunismo em 1989, que muito contribuiu para que o neoliberalismo viesse a se
tornar hegemônico. (cf. Harvey, 2007, p. 19 ss., Anderson, 1995, p. 9 ss., Paulani, 2008,
p. 106 ss.)

2. A análise dimensional dos conceitos de mercadoria e de mercantilização

O esquema teórico anunciado assenta-se num refinamento dos conceitos de


mercadoria e de mercantilização, na forma de uma análise dimensional. O ponto de
partida agora é um princípio, apresentado na tradição ortodoxa neoclássica como um
dos fundamentos da Economia, segundo o qual, para organizar sua vida econômica,
qualquer sociedade deve ter instituições capazes dar resposta a três questões: o que
produzir?, como produzir?, e como distribuir os bens produzidos? Ele é formulado, por
exemplo, num dos manuais mais amplamente adotados em cursos introdutórios – o
Economia, de Samuelson e Nordhaus –, nos seguintes termos:

Qualquer sociedade humana – seja um país industrial avançado,


uma economia de planejamento central ou uma sociedade tribal
isolada – tem de se confrontar com e resolver três problemas
econômicos fundamentais. Qualquer sociedade tem de ter um
modo para determinar que bens são produzidos, como são
produzidos esses bens e para quem são produzidos.3

No sistema capitalista, as três questões são respondidas – e, de acordo com seus


adeptos, respondidas eficientemente, e da melhor maneira possível – pelo mercado, em
sua função reguladora da vida econômica.4
A tese em que se assenta a análise dimensional é a de que a cada uma das três
questões corresponde uma dimensão da vida econômica, de maneira tal que uma
categoria de bens pode ou não ser mercadoria em cada uma das dimensões, de maneira
independente.

3. Samuelson e Nordhaus, 1999, p. 8. Cf. também Heilbroner, 1971, p. 19: “Assim, o que produzir, como
produzir e a quem entregar o produto constituem os problemas básicos da Economia, que toda ordem
social deve enfrentar de uma maneira ou de outra”. Embora (por razões que não precisam ser aqui
discutidas) este princípio seja posto como fundamento de maneira tão explícita apenas na tradição
ortodoxa, ele nada tem de contraditório com o pensamento de Marx e de Polanyi, podendo mesmo ser
dito que está implícito em suas concepções.
4. Cf. Samuelson e Nordhaus: “Uma economia de mercado é aquela em que os indivíduos e as empresas
privadas tomam as decisões mais importantes acerca da produção e do consumo. Um sistema de preços,
de mercados, de lucros e prejuízos, de incentivos e recompensas determina o quê, como e para quem”.
(Ibid., p. 8-9).
6

A questão “o que produzir?” corresponde ao problema da alocação social de


recursos; dizemos que uma categoria de bens é mercadoria na primeira dimensão
quando a decisão de produzir os bens, e em que quantidade, é ditada pelo mercado. Uma
categoria de bens é mercadoria na segunda dimensão, do “como produzir?” quando o
trabalho humano envolvido em sua produção é trabalho assalariado. E na terceira
dimensão, uma categoria de bens é mercadoria quando os bens são distribuídos por
meio da venda.
A análise dimensional fornece um quadro onde se encaixam os diferentes modos
de produção. No modo de produção capitalista, os bens são mercadoria nas três
dimensões: a decisão de produzi-los é tomada em função do mercado, são produzidos
por trabalho assalariado, e distribuídos por meio da venda; são mercadorias genuínas,
na terminologia de Polanyi. No outro extremo, em que os bens não são mercadoria em
nenhuma das dimensões, encontram-se o modo de produção doméstico (produção para
consumo próprio – individual, familiar ou coletivo), de maneira geral os vários modos
de produção anteriores ao capitalismo, bem como, enquanto conceito, o modo de
produção socialista.
A combinação em que os bens são mercadoria na primeira e na terceira
dimensões, mas não na segunda, corresponde ao modo de produção simples de
mercadorias, postulado por Marx no primeiro capítulo d’O Capital, em que os bens são
produzidos para serem vendidos por trabalhadores – artesãos ou camponeses – donos de
seus meios de produção (o trabalho, portanto, não é assalariado). A combinação que é o
reverso desta, ou seja, em que os bens são mercadoria apenas na segunda dimensão,
corresponde à produção pública – definida como a produção, por parte do Estado, dos
bens sociais, isto é, os bens necessários para fazer valer os direitos sociais – à educação,
saúde, habitação, previdência, segurança, etc. (cf. Singer, 1998, p. 138). São portanto
bens cuja produção não é ditada pelo mercado, cuja distribuição não é feita por meio da
venda – já que devem ser fornecidos gratuitamente aos cidadãos –, mas que são
produzidos pelo trabalho assalariado dos servidores públicos.
Outra combinação significativa é aquela em que os bens são mercadoria apenas
na terceira dimensão; ela corresponde não propriamente a um modo de produção, mas
às mercadorias fictícias de Polanyi, que não são produzidas para ser trocadas (a terra
sequer é produzida), mas são objeto de operações de compra e venda. A análise permite
que se defina a diferença entre ser mercadoria (genuína), e funcionar como mercadoria
– isto é, ser mercadoria apenas na terceira dimensão. Outras combinações são possíveis
7

(num total de oito, como é fácil calcular), mas carentes de significado econômico
relevante.
Como se percebe, com a análise dimensional o conceito de mercadoria se
transforma de um conceito simples – no sentido de que a pergunta feita a respeito de
uma categoria X de bens “X é uma mercadoria?” admite como resposta um “sim” ou
um “não” –, em um conceito complexo – no sentido de que a pergunta deve ser
respondida com um “sim” ou um “não” para cada uma das três dimensões.
Se uma categoria de bens pode ou não ser mercadoria em cada uma das três
dimensões de forma independente (tese em que se baseia a análise dimensional do
conceito de mercadoria), isto significa que os processos de mercantilização também
devem atuar da mesma forma, ou seja, que cada um dos processos de mercantilização
que afeta uma determinada categoria de bens localiza-se em uma das três dimensões da
vida econômica (corolário em que se baseia a análise dimensional do conceito de
mercantilização).

Nas três seções a seguir veremos como a análise se aplica ao caso da ciência –
como prática social, isto é, com seus aspectos econômicos e sociológicos, além dos
epistemológicos – considerando em sequência os processos de mercantilização situados
em cada uma das três dimensões, bem como as articulações entre eles. O objetivo
principal é mostrar – adaptando metáfora de Platão – que a análise dimensional
efetivamente trincha pelas juntas o processo de mercantilização da ciência como um
todo.
A época crucial na história da ciência do ponto de vista da mercantilização é a
que vai do fim da Segunda Guerra até os dias de hoje. Na literatura relevante, há uma
concordância generalizada a respeito de uma visão que identifica no desenvolvimento
da ciência nessa época duas fases principais, com uma fase de transição entre elas,
situada na década de 70. Dois livros importantes em que tal periodização figura com
clareza, como elemento estruturador das idéias expostas, são Prometheus bound:
science in a dynamic steady state , de John Ziman (1994) e Pasteur’s quadrant: basic
science and technological innovation , de Donald Stokes (1997). Cada um deles
entretanto usa um termo bem definido apenas para uma das fases: Stokes refere-se à
8

primeira como a fase do paradigma do pós-guerra; Ziman à segunda como a fase da


ciência de estado estacionário (steady state science).5
Esse é o pano de fundo do estudo da mercantilização da ciência a ser exposto. O
que se acrescenta à visão consensual são as teses de que: 1) a ciência da primeira fase
não era mercantilizada; 2) as transformações que se iniciam na fase de transição
constituem processos de mercantilização, distribuídos entre as três dimensões; e 3) tais
processos são parte integrante do movimento histórico de ascensão e hegemonização do
neoliberalismo. Aproveitando os termos usados na periodização da história do
neoliberalismo ao fim da seção 1, no lugar das expressões de Stokes e Ziman, vamos
usar ciência dos anos de ouro (c.a.o.) e ciência neoliberal para designar as duas grandes
fases.
Levando em conta a complexidade do objeto de estudo – as diferenças existentes
entre os vários ramos das práticas científicas, as diferenças entre os países, etc. – a
demonstração das teses enunciadas demandaria um levantamento histórico situado
muito além dos limites deste trabalho. Mantendo o registro esquemático adotado até
aqui, pretendemos mostrar apenas a plausibilidade das teses, lembrando que nosso
objetivo principal é evidenciar a adequação e a utilidade da análise dimensional da
mercantilização, aplicada ao caso da ciência.

3. Primeira dimensão: rumos da pesquisa científica

Com relação à ciência, o que se produz é o conhecimento científico, e essa


produção é feita por meio da pesquisa científica. A pergunta “o que produzir?” se
manifesta aí então como “o que pesquisar?”, ou, em outras palavras, “entre os possíveis
projetos de pesquisa, quais devem ser levados a cabo, quais devem ser descartados?”
Trata-se portanto de uma pergunta sobre os rumos da pesquisa científica. Na primeira
dimensão, os processos de mercantilização da ciência são os que têm o sentido de
aumentar o peso do mercado entre os fatores que determinam os rumos da pesquisa
científica; no limite, ciência mercantilizada é aquela em que os rumos da pesquisa são
ditados pelo mercado.

5. Comentando a transição para a fase da ciência do estado estacionário, diz Ziman: “Em menos de uma
geração testemunhamos uma transformação radical, irreversível e de alcance mundial na maneira como a
ciência é organizada e praticada.” (Ziman, 1994, p. 7) Em Real science: what it is, and what it means
Ziman (2000) muda a designação para “ciência pós-acadêmica”.
9

Uma estratégia bem adequada para simplificar a tarefa de demonstrar a


plausibilidade da primeira tese, na primeira dimensão, é a que consiste em tomar como
base para a caracterização da c.a.o. o famoso relatório elaborado por Vannevar Bush a
pedido do presidente Roosevelt, entregue a seu sucessor, Truman, em julho de 1945, e
publicado com o título Science, the endless frontier (Bush, 1990). Atendendo à
solicitação de Roosevelt, o relatório delineava as políticas científicas e tecnológicas a
serem adotadas no país uma vez terminada a guerra. Embora, como observa Stokes, os
arranjos institucionais propostos no relatório não tivessem sido implementados, sua
concepção de ciência, em suas relações com a tecnologia, tornou-se hegemônica, tendo
um papel determinante na conformação das políticas científicas e tecnológicas, não
apenas nos Estados Unidos, mas em muitos outros países, centrais e periféricos, no
período que vai do fim da Segunda Guerra ao início da década de 70.6
Aceita a premissa de que o relatório Bush transmite um retrato fiel, ainda que
estilizado, da c.a.o., a tese em pauta, com referência à primeira dimensão, segue-se de
maneira bem direta e inequívoca. De acordo com as concepções do relatório, cabe ao
Estado o financiamento da pesquisa científica (nos termos do documento, a pesquisa
básica). A pesquisa científica é realizada por cientistas motivados apenas pela pura
curiosidade, pelo conhecimento como um fim em si mesmo, ou seja, pelo valor
intrínseco da ciência. Estatisticamente, uma parte significativa do conhecimento gerado
pela pesquisa científica dá origem a aplicações tecnológicas, sendo a pesquisa
tecnológica (idem, pesquisa aplicada) responsável pelo desenvolvimento dessas
aplicações. Não são previsíveis entretanto nem quais pesquisas científicas de fato vêm a
dar origem a aplicações, e nem o tipo de problemas práticos que as aplicações
contribuem para resolver. Vamos denominar essa proposição o “princípio fecundidade
tecnológica imprevisível da ciência”, ou, simplificadamente, princípio da fecundidade
imprevisível da ciência. Há na história da ciência uma abundância de casos que o
exemplificam, como o do estudo dos fenômenos elétricos e magnéticos, depois
unificados na teoria eletromagnética, com suas incontáveis aplicações tecnológicas, nem

6. “A recepção de Science, the endless frontier teve muito de irônico, pois o plano organizacional de Bush
foi derrotado, enquanto sua ideologia triunfou.” (Stokes, 1997, p. 50). “Meia década depois [a partir da
publicação do relatório], a concepção de ciência básica e sua relação com a inovação tecnológica
apresentadas no relatório Bush tornou-se o fundamento da política científica do país nas décadas do pós-
guerra.” (Ibid., p. 2) “Os cânones de Bush deixaram uma impressão profunda e forneceram o paradigma
dominante para o entendimento da ciência e sua relação com a tecnologia na segunda metade do século
XX. Essas ideias ainda podem ser ouvidas nas comunidades da ciência e da política científica, nos meios
de comunicação, e no público informado. E a liderança dos Estados Unidos na ciência do pós-guerra lhes
deu ampla circulação na comunidade internacional.” (Ibid, p. 4)
10

de longe previstas pelos pioneiros; o estudo da estrutura atômica e nuclear da matéria,


do qual resultaram a utilização pacífica da energia nuclear, a bomba atômica e a de
hidrogênio; e vários outros.
A justificativa para a alocação de recursos para a pesquisa científica consiste em
que as aplicações tecnológicas a que elas dão origem constituem benefícios para toda a
sociedade. O Estado, como financiador da pesquisa, diferentemente dos cientistas, é
motivado pelo valor instrumental da ciência, isto é, por sua capacidade de gerar
aplicações tecnológicas.7 Em virtude do princípio da fecundidade imprevisível da
ciência, o financiamento da pesquisa se dá em bloco. Admitindo-se que o ritmo em que
se desenvolve a pesquisa científica como um todo depende do montante global de
recursos a ela destinados, pode-se dizer que ele é determinado pelo Estado, em função
do valor instrumental da ciência.
Os rumos da pesquisa científica, por sua vez, dependem da distribuição dos
recursos provenientes do Estado entre os projetos de pesquisa propostos pelo cientistas,
sendo a própria comunidade científica responsável por essa distribuição. No que se
refere à distribuição, a ciência deve gozar o que se pode chamar de autonomia
intrínseca – a prerrogativa de decidir a distribuição de recursos a ela concedida em
função unicamente do valor intrínseco da ciência.
Portanto, se por um lado o ritmo da pesquisa é determinado pelo Estado, em
função do valor instrumental, por outro seus rumos são determinados pela comunidade
científica, em função de seu valor intrínseco, e não pelo mercado. Admitida a premissa
referente ao papel do relatório Bush, fica demonstrada a tese do caráter não
mercantilizado da c.a.o. na primeira dimensão.
Seguem-se três passagens do relatório que abonam a interpretação proposta. A
primeira estabelece a distinção entre a ciência básica e a ciência aplicada, e enuncia o
princípio da fecundidade imprevisível da ciência numa formulação geral.

7. A carta de encaminhamento do relatório faz referência ao “progresso cultural” (Bush, 1990, p. 2) e no


Apêndice 3 (Relatório do Comitê de Ciência e Bem-Estar Público) diz-se que “é parte de nossas
convicções democráticas a afirmação do valor cultural e estético intrínseco, da tentativa do homem de
fazer avançar as fronteiras do conhecimento e do entendimento” (Ibid., p. 79). Entretanto, o que
predomina com larga margem como justificativa para a alocação de recursos para a ciência é o valor
instrumental, decorrente das aplicações. “...Vannevar Bush julgava o recurso ao conhecimento como um
fim em si mesmo tão insuficiente para a tarefa de sustentar o fluxo de apoio público para a ciência básica
em tempos de paz que quase não o mencionou em seu relatório de quarenta páginas, um documento
excelentemente afinado ao ouvido de sua audiência no pós-guerra. Em vez disso, Bush centrou sua
argumentação no que se tornou a razão primordial para o apoio à pesquisa pura – a crença de que os
avanços no entendimento obtidos pela pesquisa pura irão depois aperfeiçoar a condição humana.”
(Stokes, 1997, p. 100)
11

A pesquisa básica é realizada sem levar em conta fins práticos.


Ela resulta em conhecimento geral e entendimento da natureza e
suas leis. Esse conhecimento geral fornece os meios de
responder a um grande número de problemas práticos
importantes, embora possa não dar uma resposta completa e
específica a qualquer um deles. A função da pesquisa aplicada é
fornecer tais respostas completas. [...]

Uma das peculiaridades da ciência básica é a variedade de


caminhos que levam ao avanço produtivo. Muitas das
descobertas mais importantes resultaram de experimentos
levados a cabo em função de propósitos muito diferentes.
Estatisticamente, é certo que descobertas importantes e
extremamente úteis resultarão de alguma fração dos
empreendimentos na ciência básica [ciência]; porém os
resultados de qualquer investigação em particular não podem ser
acuradamente previstos. (p. 18-19)

A segunda passagem expõe o princípio da fecundidade imprevisível no campo


da medicina.
Descobertas relevantes para o progresso da medicina vieram
frequentemente de fontes remotas e inesperadas, e é certo que
isso continuará a ser assim no futuro. É inteiramente provável
que o progresso no tratamento das moléstias cardiovasculares e
renais, do câncer e de moléstias refratárias semelhantes, será
obtido como resultado de descobertas fundamentais em temas
não relacionados a tais moléstias, e talvez totalmente
inesperadas pelo pesquisador. (Ibid., p. 14)

Na terceira encontra-se a defesa da autonomia intrínseca da ciência.


Os colleges, universidades, e institutos de pesquisa, financiados
com recursos públicos ou privados, são os centros de pesquisa
básica. São as fontes do conhecimento e do entendimento.
Enquanto forem vigorosos e saudáveis e seus cientistas livres
para buscar a verdade aonde quer que ela conduza, haverá um
fluxo de conhecimento científico novo para aqueles que podem
aplicá-lo a problemas práticos no governo, na indústria ou em
outro campo. [...]
O progresso científico num extenso campo resulta da livre
atuação de intelectos livres, trabalhando em temas de sua
própria escolha, ditados por sua curiosidade pela exploração do
desconhecido. A liberdade de investigação precisa ser
preservada em qualquer plano de apoio governamental à ciência.
(Ibid., p. 12)

A posição adotada por Stokes em seu livro já citado é a de um defensor de


mudanças nas políticas científicas e tecnológicas a seu ver necessárias como reação à
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crise do paradigma do pós-guerra. A defesa das mudanças é desenvolvida por Stokes a


partir de críticas à concepção de ciência do relatório Bush. A principal crítica – que
julgamos procedente – é a de que a concepção é indevidamente restritiva, não
contemplando certo tipo de pesquisa. A deficiência pode ser vista como decorrente de
um exagero na formulação do princípio da fecundidade imprevisível da ciência: a
formulação é exagerada porque nega a proposição de que em muitos casos estimativas
razoáveis podem ser feitas a respeito da probabilidade de que uma pesquisa científica
venha a dar origem a aplicações, e do problema, ou tipo de problema prático que as
aplicações podem contribuir para resolver. A proposição abre a possibilidade de
existirem pesquisas empreendidas tendo em vista determinadas aplicações, tendo assim
valor instrumental, mas não sendo desprovidas de valor intrínseco. Stokes menciona
vários exemplos na história da ciência que comprovam essa possibilidade, dando
especial relevo às pesquisas de Pasteur feitas com os objetivos de aperfeiçoar os
métodos de produção de vinagre, vinho e cerveja, de desenvolver métodos de prevenção
de várias doenças, etc., mas que também resultaram em avanços teóricos importantes
para o conhecimento a respeito do papel dos micro-organismos nos processos de
fermentação e na etiologia das doenças infecciosas, valiosos independentemente de
qualquer aplicação.
A motivação associada ao valor instrumental pode ou não ser significativa para o
pesquisador. Quando isso acontece, como no caso de Pasteur, tem-se uma pesquisa que
– por assim dizer – une o útil ao “agradável” num mesmo sujeito, o pesquisador, e não,
como no caso da pesquisa básica contemplada no relatório Bush – unindo o útil para o
Estado ao “agradável” para o pesquisador.
A existência de pesquisas que têm como paradigma as de Pasteur abre a
possibilidade de que o Estado, em seu papel de financiador da pesquisa científica, leve
em conta não apenas o potencial genérico de suas aplicações, mas em muitos casos
também o potencial específico de cada pesquisa, ou linha de pesquisa, associado a
aplicações determinadas, previstas de antemão, à luz de estimativas sobre as
necessidades sociais. Para designar as pesquisas deste tipo, Stokes emprega o termo
“pesquisa básica inspirada pelo uso” (use inspired basic research); em seu lugar,
adotaremos o termo mais simples “pesquisa direcionada”. Para o outro tipo de
pesquisa, o termo escolhido por Stokes é ou “pesquisa pura” – que a nosso ver é
misleading, uma vez que deixa na sombra o fato de que tais pesquisas são puras apenas
para o pesquisador; para o Estado, em sua função de financiador, os dois tipos são
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aplicados no sentido de que visam aplicações; o que os distingue é apenas o caráter,


genérico ou específico, das aplicações potenciais. No contexto tanto da concepção
original de ciência do relatório Bush, quando de sua versão ampliada, não existe ciência
completamente pura, como era o conhecimento teórico para Aristóteles. Por esse
motivo, usamos “pesquisa não direcionada” no lugar de “pesquisa pura”, ou “pesquisa
básica”.
Do ponto de vista da mercantilização, o importante é observar que o
direcionamento de uma pesquisa não implica ou pressupõe sua mercantilização. Se a
mercantilização ocorre ou não depende do processo de decisão sobre o direcionamento.
Considere-se por exemplo, sendo o Estado o financiador, a decisão de apoiar uma
pesquisa, feita por uma instituição pública, com o objetivo de desenvolver e produzir
uma vacina a ser aplicada gratuitamente à população. Tal pesquisa não é mercantilizada
uma vez que o mercado não tem influência na decisão sobre seu financiamento.
A instrumentalização, ou tecnologização da ciência – cujo limite é a concepção
em que a ciência tem unicamente valor instrumental – é uma condição necessária mas
não suficiente para sua mercantilização. A mercantilização só ocorre na medida em que
os parâmetros do mercado passam a pesar – direta ou indiretamente – no processo de
direcionamento, ou seja, na decisão de quais projetos devem e quais não devem ser
apoiados. Quando isso ocorre, pode-se dizer que o valor instrumental que se atribui à
ciência sofre uma metamorfose. Se a decisão de apoiar uma pesquisa é tomada (como
no exemplo da vacina) em função de um benefício para toda a população do país, ou
para toda a humanidade, o valor instrumental é o valor de utilidade. Quando o mercado
determina as escolhas, o que importa é a rentabilidade prevista para as aplicações dos
resultados da pesquisa – ou seja, no processo de mercantilização, o valor instrumental
da ciência passa a ser o valor da rentabilidade.
Passando agora à consideração da ciência neoliberal, pode-se começar
apontando um conceito-chave no processo de sua instauração, o que melhor simboliza a
metamorfose do valor instrumental, a saber, o conceito de inovação. Um dos autores
que mais contribuiu para o papel que o conceito de inovação veio a desempenhar no
campo das políticas científicas e tecnológicas, foi Christopher Freeman, um economista
inglês muito influenciado por Schumpeter, figura de grande destaque no campo de
economia do desenvolvimento, fundador e diretor por muito tempo da influente Science
Policy Research Unit, da Universidade de Sussex (Fagerberg, Mowery e Nelson, 2005,
p. 3). Em The economics of industrial innovation, de 1974, Freeman expressa o núcleo
14

do significado com que o conceito veio a ser usado, que o distingue o conceito de
invenção, na seguinte passagem:
Devemos a Schumpeter a distinção extremamente importante
entre invenções e inovações, que foi desde então em geral
incorporada à teoria econômica. Um invenção é uma ideia , um
esboço ou um modelo para um novo ou aperfeiçoado
dispositivo, produto, processo ou sistema. Tais invenções podem
frequentemente (não sempre) ser patenteadas porém não
conduzem necessariamente a inovações técnicas. Na verdade a
maioria não faz isso. Uma inovação no sentido econômico é
conseguida apenas com a primeira transação comercial
envolvendo o novo produto, processo, sistema ou dispositivo,
embora a palavra seja usada também para descrever o processo
todo. (Freeman, 1974, p. 22; itálicos no original.)

.........
[Desculpem o encerramento tão abrupto da exposição, mas foi até aqui que consegui
chegar. Pensei em escrever um resumo da parte não escrita, mas devido à pressa e a
necessidade de ser muito conciso, temi que o resultado ficasse ininteligível, poderia
atrapalhar em vez de ajudar.]

4. Terceira dimensão: os Direitos de Propriedade Intelectual

(A inversão da ordem deve-se a razões de secundárias, que não precisam ser


explicitadas uma vez que a inversão em nada afeta a substância da argumentação.)

5. Segunda dimensão: a taylorização do trabalho acadêmico

(Tratei dos temas desta seção em dois trabalhos recentes, “A avaliação neoliberal na
Universidade e a responsabilidade social dos pesquisadores”
(http://www.scientiaestudia.org.br/revista/PDF/v6n3a06.pdf), e “A estratégia dos bônus:
três pressupostos e uma consequência”.)
15

Apêndice

“A ciência não é uma mercadoria” e “Uma outra ciência é possível” como lemas
para o FMCD; mercantilização como seu conceito unificador

(Intervenção divulgada (em inglês) no site interativo do FMCD em 12/12/2008)

Tendo tomado conhecimento de uma proposta de Prabir Purkayastha a respeito


de um lema para o FMCD, tenho uma sugestão a fazer. É uma sugestão para dois lemas,
não apenas um, e pode ser considerada fraca por ser talvez óbvia demais; seja como for,
o objetivo desta nota é defendê-la. Considerando a relação estabelecida desde o início
entre o FMCD e o Fórum Social Mundial (FSM), e admitindo que os dois lemas – “O
mundo não é uma mercadoria” e “Um outro mundo é possível” – expressam
adequadamente o espírito que o anima, obtêm-se imediatamente os lemas para o
FMCD: “A ciência não é uma mercadoria” e “Uma outra ciência é possível”.
“Uma outra ciência é possível” é o princípio norteador do lado afirmativo das
posições do FMCD, a importância atribuída à formulação de alternativas viáveis, indo
além de denúncias e críticas que não apontam o caminho a seguir. Vou me concentrar
entretanto no outro lema, uma vez que a justificativa para sua adoção serve também
como argumento para uma outra idéia que gostaria de sugerir, da mercantilização como
conceito unificador do FMCD.
Começo voltando à primeira convocatória do FMCD, lançada em setembro do
ano passado. A convocatória tem em seu cerne cinco pontos, e o que vou procurar
mostrar é que por trás de cada um deles há um problema criado pela mercantilização da
ciência, da tecnologia, e da educação. A visão geral é a de que os processos de
mercantilização nesses domínios da vida social se intensificaram drasticamente com a
ascensão do neoliberalismo; eles são, na verdade, um dos principais componentes do
processo de globalização neoliberal. Os cinco pontos são:
1) Promover e desenvolver o estatuto de bens comuns dos conhecimentos da
humanidade.
O que está em jogo aqui são os direitos de propriedade intelectual (DPI), que
envolvem, no campo da ciência e da tecnologia, toda a questão do acesso aberto para o
conhecimento científico, do software livre, e a das patentes – cujo setor mais crítico é o
das patentes de medicamentos. E que são os DPI senão o aparato jurídico responsável
pela mercantilização dos bens intelectuais (no que se refere à sua distribuição)?
16

Questionar os DPI, promover o estatuto de bens públicos do conhecimento da


humanidade, é o mesmo que lutar pela desmercantilização dos bens intelectuais.
2) Debater os desafios e os meios para a ciência e os cientistas exercitarem sua
responsabilidade social.
Como uma faceta da reforma neoliberal da Universidade, um regime de trabalho
foi imposto aos cientistas de viés claramente taylorista, caracterizado pelo produtivismo,
pela avaliação quantitativa da produtividade, e pela competitividade exacerbada, o qual
pode ser interpretado como um avanço no processo de mercantilização da ciência, no
que se refere a como o conhecimento científico é produzido. A tese é a de que essa
taylorização do trabalho de pesquisa deixa ao cientista nem o tempo nem o espaço
institucional necessários para uma reflexão sobre o significado social de seu trabalho,
imprescindível para o exercício da responsabilidade social.
3) [a] Reforçar a autonomia da pesquisa, [b] defender as missões de serviço público da
pesquisa, e [c] melhorar as condições nas quais as atividades científicas são
realizadas pelos estudantes, pesquisadores e engenheiros.
a) Uma das características mais importantes das políticas de ciência e tecnologia
explicitamente adotadas em todo o mundo da globalização neoliberal é a subordinação
dos rumos da pesquisa aos interesses do mercado – que constitui mais uma faceta do
complexo processo de mercantilização desses domínios. Pesquisa boa é a que gera
aplicações rentáveis. Essa diretriz naturalmente subverte a autonomia da ciência.
b) Tanto a taylorização do trabalho de pesquisa quanto a subordinação de seus
rumos ao mercado tendem a dificultar o engajamento dos cientistas em missões de
serviço público. Além de razões políticas, o que cria o obstáculo é essencialmente o fato
de que tais missões não podem, por sua própria natureza, ter fins lucrativos.
c) Outra conseqüência nefasta do taylorismo na Universidade é a degradação da
qualidade de vida dos pesquisadores – que afeta mais intensamente as pesquisadoras –
permanentemente estressados pela pressão produtivista e a competitividade exacerbada
que a acompanha. Talvez essa seja uma maneira de mobilizar os cientistas, envolvê-los
numa luta por uma ciência mais humana. Há muitas indicações de que os sistemas
quantitativos de avaliação impostos pela administração das universidades e institutos de
pesquisa, e pelas agências de fomento, são uma fonte de insatisfação muito difundida na
comunidade acadêmica, que não encontrou ainda um canal político de expressão.
4) Reforçar a capacidade dos movimentos cidadãos de produzir conhecimento e de ser
parceiros das instituições científicas.
17

A subordinação da pesquisa aos interesses do mercado promovida pelas políticas


científicas e tecnológicas é claramente um obstáculo para a colaboração entre
instituições científicas e movimentos sociais.
5) Reforçar a capacidade das nossas sociedades, ao Norte como ao Sul, de tomar
decisões democráticas no campo das ciências e das tecnologias.
A tomada de decisões democrática neste campo pressupõe um nível adequado de
formação nos cidadãos, e em particular certo nível de conhecimento sobre a ciência e a
tecnologia, e seus papéis na sociedade ao longo da história. Tal formação é
precisamente o que a educação mercantilizada dos dias de hoje não proporciona, tendo
sido reduzida ao treinamento profissional, à valorização econômica dos indivíduos no
mercado de trabalho.
Acredito que análises deste tipo podem ser formuladas para muitos outros pontos
listados nos programas propostos para as plenárias, alguns dos quais repetem ou
desenvolvem os cinco pontos da primeira convocatória. Porém mesmo os novos, e
importantes, como o da plenária sobre “Um mundo finito”, podem ser interpretados em
termos de mercantilização mostrando-se, neste caso, por meio de um desenvolvimento
teórico, que a contenção ou redução dos níveis globais de consumo, necessária para a
superação do problemas ecológicos, requer a desmercantilização do consumo; a
publicidade com o dispositivo que mercantiliza o desejo humano – isto é, que o molda a
serviço dos interesses do mercado – fornecendo assim a base motivacional da
mercantilização do consumo.
Associada ao primeiro lema, esta interpretação também fornece a base teórica
para uma alternativa ampla, uma visão de um outro mundo possível em que tanto a
esfera cultural das criações da mente humana quanto o meio ambiente – a atmosfera, os
oceanos, os recursos naturais, etc. – constituem a esfera dos bens comuns, o commons
da humanidade.
Além de compreender a maioria das preocupações do FMCD, a mercantilização,
adotada como um conceito unificador, gera fortes conexões, num nível, com o FSM
como um todo, em outro, com os inúmeros movimentos sociais, organizações e
campanhas dirigidas contra a mercantilização em domínios específicos (muitos deles
adotando como lema “x não é uma mercadoria”, sendo x a educação, a água, as
sementes, a cultura, etc.; digite-se “não é uma mercadoria” no Google para ver o
resultado).
18

Indo um pouco além, pode-se até articular os movimentos anti-mercantilização


com o socialismo, tomando como elo a proposta de Wallerstein: “... a discussão básica é
a desmercantilização dos processos econômicos mundiais. ... O capitalismo tem sido um
programa para a mercantilização de tudo. Os capitalistas ainda não o implementaram
completamente, mas já caminharam bastante nessa direção, com todas as conseqüências
negativas que conhecemos. O socialismo deve ser um programa para a
desmercantilização de tudo.”8
Mas isso talvez seja ir um pouco longe demais.

8
. Wallerstein, “Uma política de esquerda para o século XXI? ou teoria e práxis novamente” (In
LOUREIRO, I., CEVASCO, M. E. e LEITE, J. C. (orgs.) O espírito de Porto Alegre. São Paulo: Paz e Terra,
2002), p. 36.
19

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neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. São Paulo:
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