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PASSAIC:

o museu desordenado de Robert Smithson

Raphael Fonseca
A fotografia torna a natureza obsoleta. O meu pensamento
em termos de site e de non-site me faz sentir que não
há mais necessidade de se referir à natureza. Estou
completamente absorvido em fazer arte e isso é
principalmente um ato de observação, uma atividade
mental que aponta diretamente para sites distintos. 1

Como o próprio título indica nas entrelinhas, “Um passeio


pelos monumentos de Passaic”, escrito pelo artista americano Robert
Smithson, trata-se de um relato de experiência. Publicado na Artforum
em dezembro de 1967, o texto está baseado num retorno do artista à sua
cidade natal. Sua narrativa é construída por intermédio de duas mídias.
Pela linguagem literária o autor recodifica sua experiência de percorrer
um espaço urbano abandonado e transformado em subúrbio. Através da
fotografia os monumentos citados em seu título ganham visualidade.
Duas são as citações que antecedem sua escrita. A segunda é de Vladmir
Nabokov. Creio que, a partir desta frase, podemos iniciar as possíveis
leituras deste dispositivo centrífugo2 : “Hoje em dia nossas câmeras
pouco sofisticadas gravam a seu modo o nosso mundo agrupado e pintado
com pressa”3. Além da referência óbvia à sua própria utilização da
reprodutibilidade técnica, podemos entender esta frase sob uma segunda
perspectiva, substituindo “nossas câmeras” por “nossos indivíduos”;
tomando-nos como igualmente pouco sofisticados, podemos pensar a
utilização desta frase por Robert Smithson como uma auto-reflexão. De
certa forma, ao inseri-la antes da construção de seu texto (por mais que
estes fragmentos já façam parte de sua teia literária), o autor já dá sinais
de que compreende as experiências muito intensas para as limitações
intrínsecas à opção pelo uso de qualquer linguagem.
Trata-se dum embate entre experiência e técnica, fenômeno
e número. O texto de Smithson é uma tentativa de inserir dentro duma
outra espaço-temporalidade (recodificar) sua experiência pessoal com a
paisagem de Passaic. Ele não é composto com o intuito de transcrever
objetivamente o experimentado fisicamente; não se trata dum manual
para leitura de suas obras visuais4 . O artista deseja experimentar a
escrita assim como ele pôde explorar os fragmentos de Passaic. Logo,
o texto é erguido de forma densa, ao mesmo tempo em que consegue
criar uma coerência levemente aristotélica na narrativa. Inicia-se com a
compra de um New York Times e do livro “Earthworks”. Ele percorre
os olhos pelas notícias da área de artes visuais, captando fragmentos de
frases, criando novas orações a partir da colagem destes trechos. Seus
“olhos foram tropeçando pela folha de jornal”5 , da mesma que seu
contato para com Passaic dá-se através de fricções.
Uma reprodução chama a sua atenção. Esse estado de
simulacro, ou seja, as qualidades visuais que denunciam “Paisagem
alegórica” (imagem 1), de Samuel Morse como uma tosca reprodução
de jornal, sensibilizam o olhar de Robert Smithson. O que interessa aqui
não é o estado de ruínas representado através da pintura por Morse, mas
sim a materialidade frágil das páginas do jornal, seu aspecto destrutivo.
Perguntado em entrevista sobre as relações possíveis entre destruição e
seu trabalho como artista, Smithson responde categoricamente que “O
mundo está se destruindo lentamente. A catástrofe vem subitamente,
mas lentamente”6.
Esta frase implica uma outra interpretação de seus textos e
fotografias. Poderíamos afirmar que, ao percorrer a paisagem de Passaic,
as registrando incessantemente através de sua Instamatic 400, o artista
estaria propondo uma reconciliação entre homem e natureza – como na
pintura estilisticamente tida como “romântica”. Um bom artista para
confrontarmos com o americano é Caspar David Friedrich. Nos detendo
sobre “As ruínas de Eldena” (imagem 2) percebemos qualidades visuais
também presentes em Morse: os detritos das construções antigas e uma
população arbórea que disputa espaço na pintura com estes prédios
construídos pelos homens. Num momento historicamente peculiar a
Friedrich e Morse, ou seja, pré-revolução industrial, quando as luzes
do Iluminismo iniciam a cessar, estas obras podem ser lidas como um
último suspiro do indivíduo para com a possibilidade de harmonia com
a Natureza (no sentido mais autoritário do termo).
Porém, ao lermos alguns textos de Robert Smithson,
percebemos que o autor não propõe este reencontro pretensamente
harmonioso entre os pólos. Este já não é mais possível. O que deve
ser fruído é o dejeto duma modernidade que já nasceu fracassada.
Este é o caso de Passaic. Cidade natal de Smithson, seu território foi
permeado por grandes construções, com seus materiais detalhadamente
descritos em seu texto: aço, madeira, ferro e concreto – proto-esculturas
construtivistas. Mas ao serem abandonados pelos homens, tornando-se
centro de lugar nenhum, estes cenários construídos rumo a um tempo
dominado pela dimensão técnica, ficam enferrujados, indo para um
porão e recebendo o título de sub-úrbio. É sobre esta ferrugem que
a fruição de Robert Smithson se debruça. Justamente por isso ele irá
afirmar que as paisagens de Passaic parecem fotografias; assemelham-
se a vestígios de um tempo longínquo, inclusive já ganhando o status de
monumento. São “futuros abandonados”7.
Quando monta essas paisagens fílmicas, ele cria um
distanciamento cada vez maior com a paisagem em si. A fotografia
aqui não é mero documento. Nela é valorizado é o vestígio do vestígio,
o cinza do cinza encontrado em sua experiência direta nesse espaço.
Suas fotografias (imagens 3 a 5) dialogariam, no lugar dos “paisagistas
românticos”, com outro artista americano, Edward Hopper. Em suas
pinturas (imagem 6), este sempre enquadra a natureza hominídea em
primeiro plano. O espaço para a Natureza é praticamente inexistente;
os homens triunfaram. Mas este triunfo é construído de forma
melancólica. Se todas as condições físicas para a manutenção de uma
auto-realização estão aparentemente à disposição das figuras humanas
representadas, por outro lado, espiritualmente e sentimentalmente elas
são vazias. Nenhum espaço para a sensibilização através da experiência
da concretude é visível. A cidade está tranqüila, mas é uma prisão.
A construção da imagem fotográfica de Robert Smithson
também tem um quê de oxidação. A assimetria é visível, como se a
paisagem de Passaic tivesse controle sobre a Instamatic 400, e se
espalhasse aleatoriamente pelo material sensível à luz. A caixa de areia
não está posicionada no centro do quadro, assim como as sombras da
ponte que ele percorreu dão a impressão desta ser maior e um tanto
quanto obscura. O fato de estas imagens serem preto e branco realça esse
aspecto fantasmático da fotografia, além da potência estética dos grãos,
tão caros à utilização deste tipo de filme. Como ele mesmo escreve,
“era isso que estava lá”8 ; as imagens não são construídas a partir dum
longo processo de disegno interno. Smithson estaria mais ligado a uma
tradição do colore, do impulso da construção da imagem através de seu
instinto sensível – ele “tirava um instantâneo após instantâneo”9.
Para o artista, é necessário que haja um desprendimento com
a experiência de ateliê e com a finitude do objeto de arte. Trabalhando
com a terra, criando a denominada land art, o homem amplia seu espaço
de experiência da estesia, reabilitando seus sentidos. Como afirma Leila
Danziger, a poética de Robert Smithson pode ser relacionada à entropia,
“... a idéia de que a desordem não é mais decorrente da ordem, não
se trata mais de uma degradação no sentido platônico e sim de uma
desordem constitucional. Assim a desorganização – de degradação e
morte num sistema – passa a acaso criador”.10
Nossa única saída é aceitarmos a efemeridade à qual estamos (e sempre
estivemos e sempre estaremos) sujeitos. Do pó viemos, ao pó iremos.
Por mais que a fotografia tenha a pretensão de solidificar um momento,
ela também possui uma materialidade e, assim como estes objetos de um
“passado futuro”, ela também deteriorará. A iconoclastia será inevitável.
Ele diz, sobre o cinema: “... mais cedo ou mais tarde, o próprio filme
iria estragar ou se perder e entrar no estado de irreversibilidade (...) A
falsa imortalidade do filme dá ao espectador a ilusão de controle sobre
a eternidade...”. 11
Fim das utopias modernistas: “... o mundo é um museu”12 , que
está em desordem.

Raphael do Sacramento Fonseca

Bacharel em Artes, com habilitação em História da Arte, pela UERJ. Mestrando


em História da Arte pela UNICAMP. Tem experiência na área de História da
Arte, Fundamentos e Crítica das Artes e Cinema. É um dos curadores da Mostra
do Filme Livre e do Festival Brasileiro de Cinema Universitário. Redator da
RUA (Revista Universitária do Audiovisual) e parecerista da Contemporâneos
- Revista de Artes e Humanidades.

Notas bibliográficas:

1 SMITHSON, Robert. “Discussões com Heizer, Oppenheim, Smithson” in:


COTRIM, Cecília e FERREIRA, Glória (Org.) Escritos de artistas anos 60/70.
Rio de Janeiro: Zahar, 2006, pág. 280.
2 Definição proposta por Jean-Pierre Criqui: “C´est un dispositif centrifuge qui
met l´accent sur le non-visible – présent dès le titre générique de ces oeuvres,
rappelons-le, par l´homophonie em anglais entre site et sight, entre ‘site’ et
‘regard’ – et brouille lês limites du musée et du monde...”. “Ruines à l´envers”
in: Cahiers du Musée national d´art moderne. Paris: 1993, pág. 12.
3 SMITHSON, Robert. “Um passeio pelos monumentos de Passaic”. In: Jornal
de metafísica, literatura e artes. Rio de Janeiro: 2001, pág. 45.
4 “J´ai davantage pensé à l´écriture comme um matériau à assembler que
comme une sorte de guide pour l´analyse. (...) J´étais intéressé par lê langage
em tant qu´entité matérielle (...) en tant que ‘matière imprimée’ de l´information
douée d´une certaine présence physique. J´ai contruit mes articles de la même
manière que j´ai construit mês oeuvres”. SMITHSON, Robert apud CRIQUI,
Jean-Pierre, idem, pág. 7.
5 SMITHSON, Robert. “Um passeio pelos monumentos de Passaic”, idem,
pág. 46.
6 SMITHSON, Robert. “Discussões com Heizer, Oppenheim,
Smithson”,idem, pág. 286.
7 “Passaic parece cheia de ‘buracos’, comparada com a cidade de Nova
Iorque, que parece compacta e sólida, e esses buracos em certo sentido são
os vazios monumentais que definem, sem tentar, os traços de memória de
uma série de futuros abandonados”. SMITHSON, Robert, “Um passeio pelos
monumentos de Passaic”, idem.
8 Idem.
9 Idem.
10 DANZIGER, Leila. Corpos de ausências: Berlim e os monumentos a
Auschwitz. Tese de doutorado do Programa de Pós-Graduação em História
Social da Cultura. Rio de Janeiro: PUC-RJ, 2003, pág. 94.
11 SMITHSON, Robert. “Um passeio pelos monumentos de Passaic”, idem,
pág. 47.
12 SMITHSON, Robert. “Discussões com Heizer, Oppenheim, Smithson”,
idem, pág. 280.

Imagens:

Imagem 1 - “Paisagem alegórica”, de Samuel Morse.


30 de setembro de 1967, no New York Times.
Imagem 2 - “Ruínas de Eldena” (1825), por Caspar David Friedrich.
Imagem 3 – Monumento de Passaic: Ponte (1967)
Imagem 4 – Monumento de Passaic: Fonte (1967)
Imagem 5 – Monumento de Passaic: Caixa de areia (1967)
Imagem 6 - “Anoitecer em Cape Cod” (1939), por Edward Hopper.

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