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A importância da cena final


Nildo Viana

A análise de um filme deve abarcar a totalidade das cenas que o compõe.


Porém, no interior desta totalidade, existem algumas cenas que adquirem
mais importância. A cena inicial em alguns filmes não possui grande
importância, mas em outros sim. Algumas cenas no decorrer do filme ...
assumem papel decisivo na narrativa e, por isso, assumem grande
importância. No conjunto de cenas que compõe o filme, a cena final é
geralmente uma das mais importantes para sua análise e compreensão.
Assim, a cena final é decisiva e, justamente por isso, ela é palco de
disputas no seu processo de produção. É neste sentido que iremos
analisar a cena final de alguns filmes e a importância atribuída a eles
pelos realizadores de um filme e também pelos intérpretes, bem como
para compreender determinados desdobramentos de alguns filmes.
A mensagem que é passada por um filme se realiza através do conjunto
de cenas que o compõe e, na maioria dos casos, a cena final de um filme
pode torná-la inteligível. Em The Machinist (O Maquinista ou O Operário,
na versão brasileira) o protagonista vive uma situação na qual duas "Cinemas Nacionais Contra Hollywood" de GUY
interpretações são possíveis: uma na qual ele está sendo vítima de HENNEBELLE
perseguição/conspiração e outra na qual ele estaria tendo alucinações. É
somente na cena final que o público tem a resposta. Foram filmados duas "Cinema Como Prática Social" de GRAEME TURNER
cenas finais, um mais explícito e outro menos explícito, mas em ambas as
cenas fica claro o que não ficou durante o filme inteiro, revelando a "Gabinete do Dr. Caligari, O" de DAVID ROBINSON
mensagem do filme, que é sobre o sentimento de culpa, o que gerava as
alucinações. A confusão metal do protagonista é passada para a tela e
como ele não tinha consciência disto, então o público só pode ter
consciência quando ele a adquire, na cena final.
Mas o filme não é produzido como uma obra literária ou uma pintura. Uma
das características do filme é o fato de ser uma produção coletiva e não
individual, o que pode proporcionar um resultado final bem diferente do
esperado pelo roteirista, diretor ou demais envolvidos no seu processo de
produção. É claro que alguns destes envolvidos irão ter maior ou menor
influência. O câmera-man e os atores, por exemplo, terão menos
influência no resultado final do que o produtor, o diretor e o roteirista,
mas possuem uma participação, mesmo que restrita, no produto final. É
claro que isto também varia de acordo com a equipe de produção e os
agentes concretos do processo de filmagem, pois existem diretores mais
detalhistas e dirigistas, atores mais famosos que conseguem se impor,
etc. Existem casos que as empresas de produção ou até mesmo
patrocinadores acabam influenciando no produto final. Mas do conjunto de
agentes do processo de produção de um filme, as figuras mais influentes
são as do diretor e do roteirista, embora possa haver contradições entre
ambos, ou, como em alguns casos em Hollywood, ingerência do produtor,
que provoca a produção de um roteiro bem flexível. É por isso que muitos
produtores são seus próprios roteiristas e estes acabam se destacando por
suas produções, tal como Charles Chaplin, que era bem mais que diretor e
roteirista, como também ator, compositor, etc.
Neste contexto, a cena final de um filme é palco de disputas. A luta em
torno da cena final é perpassada pelas concepções dos agentes no
processo de produção de um filme. Um roteirista pode passar um filme
com determinada cena final e, depois do filme pronto, aparecer outra cena
final, criando uma reviravolta na mensagem do filme. Este é o caso, por
exemplo, de um dos maiores clássicos do cinema, O Gabinete do Doutor
Caligari, de F. Murnau. Na época do cinema mudo, este clássico do
expressionismo alemão apresenta a história de um narrador que conta, a
um colega sentado ao lado, uma estranha aventura de um tal Doutor
Caligari. Segundo o narrador, este personagem utilizava a hipnose para
fazer com que um sonâmbulo matasse pessoas, de acordo com seus
interesses. O narrador acaba descobrindo isto e termina perseguindo-o e o
encontra num hospício e lá descobre que Caligari era o diretor do mesmo
e fazia estudos sobre hipnose e sonambulismo. Caligari acaba sendo
desmascarado e termina internado no próprio hospício. Porém, logo
depois aparece o contexto no qual o narrador está: no hospício. Caligari
aparece, sendo o diretor do hospício, e é atacado pelo narrador,
mostrando, no final das contas, que o louco não é Caligari e sim o
narrador, que teria inventado toda a história. Porém, para quem tem
informação sobre o roteiro original do filme, escrito por Hans Janowitz e
Carl Mayer, a cena inicial no qual aparece o narrador (que é o hospício, tal

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como se vê na cena final) e a cena final onde ele reaparece como


narrador, simplesmente inexistiam (Robinson, 2000). Isto altera
drasticamente a mensagem do filme, que era uma crítica ao hospício, à
psiquiatria e ao autoritarismo, inclusive do Estado alemão, e se
transforma em uma história de um louco.
Outro caso em que a cena final tem grande importância é o que ocorre em
outro filme clássico do expressionismo alemão, Metrópolis, de Fritz Lang.
O filme mostra a luta de classes entre trabalhadores e capitalistas e o final
apresenta a figura do mediador, o filho do capitalista que representa o
coração e acaba unindo a cabeça (o capitalista) e o braço (o operário)
promovendo um aperto de mão que expressa a conciliação de classes.
Este final, não tão feliz assim, possibilitou algumas interpretações
problemáticas deste filme. Turner (1997), por exemplo, irá analisar este
filme como sendo uma obra fascista e cita o fato de Hitler ter convidado
Fritz Lang para ser o grande dirigente do cinema alemão. Claro que tal
interpretação é bastante problemática, pois abstrai toda a história do
expressionismo alemão, o contexto histórico da época e que o convite de
Hitler foi recusado por Lang, que no mesmo dia, devido a isto, foi embora
da Alemanha. O final do filme foi reconhecido pelo próprio Lang como
sendo um "sonho irrealizável", ou seja, a harmonia entre as classes é
impossível. Um final ambíguo permite interpretações contraditórias.
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Um outro exemplo que mostra a luta em torno da cena final pode ser visto
no filme Os Esquecidos, de Luis Buñuel. O filme oficial apresenta o final
infeliz marcado por duas mortes. A primeira foi o assassinato da criança
que poderia se recuperar e seguir um caminho socialmente aceitável, e a
segunda foi a do jovem criminoso, responsável pela primeira morte, que é
baleado pela polícia, dois "esquecidos" pela sociedade. Posteriormente,
quando se pesquisava para preparar uma mostra sobre Buñuel, foi
encontrada uma outra cena final, na qual apenas o jovem criminoso morre
e a outra criança se "recupera", sendo um "final feliz". Isto deixa claro que
foram filmados dois finais. O final que foi para as telas de cinema é o final
infeliz, certamente por decisão de Buñuel, de acordo com sua idéia geral
do filme, com forte caráter de crítica social. Não existe nenhuma
explicação para a existência dos dois finais, a não ser hipóteses, tal como
a de que o produtor teria pedido a Buñuel fazer um final alternativo caso
houvesse censura ou então a de que o próprio produtor tenha produzido,
independentemente do diretor, tal cena final.
Outro clássico do cinema, Tempos Modernos, de Charles Chaplin, também
teve dois finais filmados. O final conhecido é aquele no qual os
protagonistas, após fugirem da polícia, pegam a estrada e na qual Chaplin
diz que é preciso continuar lutando. O final alternativo, filmado pelo
próprio Chaplin, é o final infeliz, no qual a sua amada se torna freira e ele
termina pegando a estrada solitariamente. Todos os dois mostram a
derrota do protagonista e a estrada no qual se vê a esperança, mas no
final que predominou, foi possível a frase de Chaplin, tornando mais
explícita a necessidade da luta e da esperança.
Os filmes geralmente seguem a receita de promover finais felizes. O
cinema holywoodiano tem esta como uma de suas características mais
famosas, embora existam exceções. O happy end é quase sempre
presente no love story, a história de amor onde o casal termina junto. Mas
não é apenas no gênero love story que predomina o final feliz
holywoodiano. Isto está presente em outros gêneros, tal como o noir
(negro) e o western (faroeste):
"A grande vitalidade e riqueza dos dois gêneros está em mostrar a
incerteza das fronteiras entre o mundo da civilização e o da selvageria,
embora as regras do gênero e o moralismo codificado imponham sempre
um final positivo e edificante" (Costa, 1989, p. 101).
Os filmes hollywoodianos são produzidos, em geral, sob a forma de filme-
modelo (Geada, 1978). Uma dos aspectos mais repetitivos nestes filmes é
o final feliz:
"Os filmes hollywoodianos estão cheios de situações arbitrárias e intrigas
simplistas. Geralmente, a psicologia dos personagens é fantasiosa. Os
símbolos são superficiais. Os roteiros freqüentemente incluem idílios
ridículos, artificialmente pespegados numa narrativa que só pode terminar
no inevitável happy end" (Hennebelle, 1978, p. 46).
É claro que o cinema hollywoodiano se enquadra perfeitamente na análise
acima citada, mas também é necessário dizer que este é o filme-modelo
hollywoodiano mas não abarca todas as produções cinematográficas de
hollywood, pois existem as exceções. O final feliz na luta do bem contra o
mal, por exemplo, era uma constante nos filmes de terror, desde a
primeira versão norte-americana de Drácula, mas isto foi alterado nos
últimos tempos, no qual houve a inversão, com o mal derrotando o bem
(Viana, 2002).
O cinema europeu, ao contrário, já apresenta um número muito grande de
finais infelizes. Este é o caso do já citado O Maquinista, mas também em
Viver a Vida, de Godard e inúmeros outros. Isto ocorre mais
freqüentemente nos filmes do chamado neo-realismo italiano. Este, devido
seu humanismo abstrato, não ultrapassa "o tema do caminho sem
saída" (Kogan, apud. Hennebelle, 1978, p. 70).
Herbert Marcuse, se referindo não ao cinema mas à arte em geral,
apresentou a seguinte análise do happy end:
"Se a arte fosse prometer que, no fim, o bem triunfaria sobre o mal, tal
promessa seria refutada pela verdade histórica. Na realidade, é o mal que
triunfa, e apenas existem ilhas de bem onde nos podemos refugiar
durante algum tempo. As verdadeiras obras de arte têm disso
consciência; rejeitam as promessas fáceis; recusam o aliviante final feliz.
Devem rejeitá-lo, pois o reino da liberdade fica para lá da mimese. O final
feliz é 'o contrário' da arte" (Marcuse, 1977, p. 55).
Esta posição de Marcuse, que ele exemplifica com várias obras literárias,
mostra uma visão demasiada normativa. Desta forma, ele define não o
que é a arte efetivamente, mas sim o que ele considera que ela deve ser.

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Entre o ser e o dever-ser não se trata de tomar o primeiro pelo segundo e


sim reconhecer o primeiro e pensar o segundo como critério para se
encontrar a arte de qualidade ou a "boa arte". Mas mesmo no sentido do
dever-ser da arte, a solução de Marcuse é problemática. No entanto, ele
mesmo oferece uma saída para a limitação de sua colocação anterior:
"Na realidade, a questão não está no final feliz; o que importa é a obra
como um todo. Ela preserva a lembrança de coisas passadas. Estas
podem ser superadas na resolução do conflito trágico, na realização
conseguida. Mas, mesmo superada, continuam presentes na ansiedade
em relação ao futuro" (Marcuse, 1977, p. 56).
Na verdade, o mérito de Marcuse neste trecho foi o de colocar que o que
importa é "a obra como um todo". O final é o fechamento de uma
mensagem, de uma totalidade e seu significado só pode ser entendido
neste contexto. Assim, o final feliz pode ser um bom desfecho, mas pode
também pode ser péssimo e o mesmo vale para o seu contrário, o final
infeliz. No caso do filme, o final feliz, na maioria das vezes, é expressão
do filme evasivo, e, portanto, é criticável. Porém, isto nem sempre ocorre
e dependendo da história, o final feliz pode ser necessário. O final infeliz,
por sua vez, pode ser tão apologético quanto o feliz, pois pode levar ao
derrotismo e conformismo.
É o contexto e a mensagem que se quer passar que coloca que tipo de fim
é necessário. A cena final é o fechamento do filme e daí sua importância e
a luta ao seu respeito, pois embora a primazia seja da totalidade do filme,
a cena final pode ser aquela que fornece a inteligibilidade dele. Neste
caso, sua importância é ainda maior, já que definirá o significado e a
posição do filme. Alguns filmes, mesmo tendo finais infelizes, deixam a
esperança se manifestar, tal como Tempos Modernos, no qual a luta
continua, ou A Sociedade dos Poetas Mortos, no qual a vitória do
autoritarismo e conservadorismo é sustentada ao lado da permanência da
resistência e da luta. Assim, a importância da cena final é evidente, bem
como o que ela expressa.

Referências Bibliográficas:
COSTA, Antonio. Compreender o Cinema. 2ª edição, São Paulo, Globo, 1989.
GEADA, Eduardo. Cinema e Transfiguração. Lisboa, Horizonte, 1978.
HENNEBELLE, Guy. Os Cinemas Nacionais Contra Hollywood. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1978.
MARCUSE, Herbert. A Dimensão Estética. Lisboa, Edições 70, 1977.
ROBINSON, David. O Gabinete do Doutor Caligari. Rio de Janeiro, Rocco, 2000.
TURNER, Graeme. Cinema como Prática Social. São Paulo, Summus, 1997.
VIANA, Nildo. Psicanálise dos Filmes de Terror. In: VIANA, N. (org.). Psicanálise,
Capitalismo e Cotidiano. Goiânia, Edições Germinal, 2002.

Nildo Viana é Professor da UEG - Universidade Estadual de Goiás; Doutor


em Sociologia/UnB; autor de diversos livros, entre os quais Heróis e
Super-Heróis no Mundo dos Quadrinhos (Rio de Janeiro, Achiamé, 2005);
Introdução à Sociologia (Belo Horizonte, Autêntica, 2006); Estado,
Democracia e Cidadania (Achiamé, 2003); A Dinâmica da Violência Juvenil
(Rio de Janeiro, Booklink, 2004) e O Que São Partidos Políticos (Goiânia,
Edições Germinal, 2003) e Introdução à Sociologia do Cinema (no prelo).

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