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NEUROLINGÜÍSTICA

O que acontece no cérebro


quando falamos? Nas últimas
décadas, pesquisas sobre
os mecanismos
neurofisiológicos
responsáveis pela aquisição
e uso da linguagem vêm
sendo realizadas em vários
países e já se mostram
como uma das áreas mais
produtivas da neurociência.
Registros da atividade
bioelétrica no córtex
e dos padrões do fluxo
sangüíneo no interior do
cérebro, aferidos por técnicas
como a eletroencefalografia,
a ressonância magnética
funcional e outras, permitem
identificar o modo e a
“Lingüística.” É o que geralmente respondo quando
localização da ativação me perguntam sobre minha área de pesquisa. A
cerebral enquanto ouvimos resposta mais precisa seria “neurolingüística”, mas
esta suscita a maior confusão. Isso porque nos últi-
e produzimos a linguagem.
mos 20 anos essa palavra tem sido usada para defi-
No Brasil, os estudos nessa nir dois campos de atuação radicalmente diferentes.
área altamente Um deles tem objetivos terapêuticos e propõe es-
tratégias de programação do inconsciente para fa-
interdisciplinar estão
vorecer o bem-estar físico e psicológico do indiví-
começando agora, e os duo: é a ‘programação neurolingüística’ (ou PNL).
primeiros resultados Essa subárea da psicologia foi fundada nos Estados
Unidos nos anos 70 por John Grinder e seu aluno
confirmam descobertas
Robert Bandler e entrou no Brasil especialmente
já clássicas da com os cursos, palestras e livros do médico Lair
neurolingüística e apontam Ribeiro. As pessoas procuram a PNL para conhe-
cer e dominar a ‘engenharia da autopersuasão’. De-
rumos para a investigação de
sejam reforçar a autoconfiança, melhorar a memó-
outros aspectos da faculdade ria, fazer emergir sua verdadeira vocação, suprimir
da linguagem ainda não medos, desprogramar padrões perturbadores auto-
impostos e programar padrões promotores de saú-
testados por essas técnicas.
de e equilíbrio emocional. Enfim, a PNL se propõe
a atuar na solução de problemas existenciais do
ser humano.
A neurolingüística que eu faço é uma área da
neurociência que pesquisa os mecanismos neu-
Aniela Improta França rofisiológicos responsáveis pela aquisição e uso da
ILUSTRAÇÕES MARIO BAG

Projeto Concatenações Lingüísticas: linguagem. Ou seja, nesse campo do saber, temos


Psicolingüística e Neurofisiologia (Clipsen), de ser capazes de problematizar algo que funciona
Departamento de Lingüística, tão automaticamente que tomamos como trivial: a
Universidade Federal do Rio de Janeiro linguagem humana.

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NEUROLINGÜÍSTICA

Na realidade, a faculdade da linguagem nada


tem de trivial. O vocabulário médio de um adulto
em sua língua nativa, por exemplo, alcança em
torno de 50 mil palavras, codificadas por cerca de
40 unidades distintivas de som de fala (fonemas). vra-alvo. Para isso, usamos um complexo de estra- Figura 1.
Veja que tanto o vocabulário numeroso quanto o tégias de ativação, competição e supressão de con- O processamento
pequeno inventário de fonemas deveriam ser des- teúdos mentais. É que, ao tentarmos ativar a repre- da linguagem
no cérebro
favoráveis à existência da linguagem no homem: sentação da palavra-alvo, ativamos outras, que é quase
temos poucos códigos para distinguir muitos itens. competem entre si por reconhecimento. Ao final instantâneo
Apesar disso, após o curto período de aquisição de do processo, a palavra-alvo sobressai, pois atinge e feito sem
linguagem, entre dois e três anos de idade, nos in- o máximo nível de ativação e é então reconhecida. esforço.
tegramos a uma comunidade lingüística e, sem Esse processo de ativação múltipla acontece Ao contrário
do que é
nenhum esforço, usamos essa língua com mais na- porque a palavra-alvo sempre se relaciona a múl- mostrado
turalidade do que um estrangeiro que passou anos tiplos aspectos dos conteúdos mentais. As repre- na ilustração
tentando aprendê-la depois de adulto. sentações do som de uma palavra (fonologia), do
Além disso, enquanto processamos a fala, que seu significado (semântica) e dos pedaços que a
chega ao cérebro através dos ouvidos, pensamos e formam (morfologia) entram em jogo nesse proces-
produzimos outros conteúdos, observando crité- so. Por exemplo, ouvir a palavra ‘banana’ ativa
rios de qualidade de cunho estrutural, discursivo representações mentais de palavras como ‘batata’ e
e contextual. E fazemos tudo isso mantendo o flu- ‘nana’, por semelhança de som com a palavra
xo da comunicação ininterrupto, em uma veloci- ouvida. Mas também pode ativar ‘manga’ e ‘maçã’,
dade média de cinco sílabas por segundo! Ao con- por serem do mesmo campo semântico, e ‘banana-
trário da situação ilustrada na figura 1, sempre da’ e ‘embananada’, por pertencerem à família de
encontramos recursos cognitivos para vencer a palavras formadas a partir da mesma raiz ‘banan’.
enorme pressão do tempo imposta pelos padrões E ativa também, é claro, a representação da pala-
da comunicação oral. vra-alvo, ‘banana’, que acaba por ganhar a compe-
Para ‘dar conta do recado’ e entender uma pa- tição entre todas as representações de outras pala-
lavra que lemos ou que nos é dita, precisamos vras relacionadas. E nós nem nos damos conta de
acessar nossa representação mental daquela pala- que entender as palavras envolve tudo isso. 

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Maria fala Pedro, o que você vai querer lanchar?


Pedro escuta
Pedro pensa Opa, aí vem pergunta.
Pedro fala Vou comer sand
Maria escuta
Maria pensa sanduíche de queijo?
Pedro fala ália.
Maria escuta
Maria pensa O quê???!!!

tempo


Figura 2.
Alguns tipos de
incongruência
lingüística
~ DIANTE DE
REACAO Mas Pedro queria brincar com Maria. Embora
fazem o ´ lidasse com a pressão do tempo da comunicação,
interlocutor ^
UMA INCONGRUENCIA ele conseguiu, na seqüência do diálogo, encaixar
levar um ‘susto’, um complemento incongruente, ‘sandália’, que cau-
que provoca Há também estratégias estruturais para processar sou esse ‘susto semântico’ em Maria. O susto foi
aumento da
atividade as palavras dentro das frases. Estas tentam ante- especialmente grande porque Maria tinha acabado
elétrica no cipar a fala do interlocutor, para que a interação de suprimir ‘sandália’ de sua mente, junto com as
cérebro lingüística possa ocorrer ininterruptamente. Ob- outras representações de coisas não comestíveis.
serve o diálogo reproduzido na figura 2 e suas di- Já se sabe que a exposição a uma incongruência
mensões simultâneas. semântica na concatenação verbo-complemento
O ‘susto’ que Maria levou decorreu de sua pre- (comer-sandália) causa um aumento na atividade
visão quanto à resposta de Pedro. A partir do elétrica no cérebro, que pode ser percebido no
momento em que ouviu ‘comer’, Maria tinha o córtex 400 ms (milissegundos) após o estímulo
objetivo de juntar esse verbo ao seu complemento auditivo ou visual.
o mais rápido possível, para completar o sentido Se a atividade elétrica no cérebro de Maria esti-
da proposição de Pedro. Assim, antes mesmo de vesse sendo monitorada por um eletroencefaló-
ouvir o complemento, ela se preparou para re- grafo (EEG), seu susto poderia ser visualizado em
conhecê-lo, já sabendo que este teria de ser comes- um traçado como o da figura 3. Também veríamos
tível. Isso já diminuiu na mente de Maria o núme- uma onda se monitorássemos a atividade elétrica
ro de candidatos a complemento, pois houve uma no cérebro de alguém que ouve “Vou comer san-
pré-ativação de palavras que se referem a comes- duíche”, mas com amplitude (altura do pico) bem
tíveis e uma supressão de outras, entre estas ‘san- menor. Então, é possível reconhecer a onda da
dália’. Depois, à medida que ouve os primeiros incongruência por sua grande amplitude, que che-
sons (fonemas) do complemento, Maria pareia es- ga ao máximo em torno dos 400 ms. Na verdade,
ses sons com aqueles das palavras pré-ativadas na essa onda ficou muito famosa na literatura de
sua mente. No ponto ‘sand’ (/sãd/), ela encontra em neurociência e é conhecida como ‘N400’ (N de ne-
sua mente um perfeito candidato a complemento: gativo e 400 de 400 ms) – é a ‘assinatura elétrica
‘sanduíche’. Mesmo antes de ouvir os fonemas fi- da incongruência semântica’.
nais, ela ativa a representação desse complemen- Se estivéssemos monitorando as variações na
to. Nesse ponto, talvez ela até se atividade do cérebro de Maria por tomografia de
adiante e pense sobre o recheio: emissão de pósitrons (PET, em inglês) ou ressonân-
“Sanduíche de queijo?” cia magnética funcional (fMRI, em inglês), vería-
mos quais áreas se tornam menos ou mais ativas
metabolicamente a cada momento, já que esses
aparelhos rastreiam as variações na circulação
sangüínea cerebral e as representam em imagens
Figura 3. O gráfico da atividade ‘construídas’ do cérebro em atividade. Quando
elétrica no cérebro, em uma situação Maria ouvisse a incongruência semântica, observa-
lingüística como a do diálogo ríamos um aumento localizado da circulação
da figura 2, mostra um pico de
sangüínea nas áreas frontais e temporais do seu
aumento nessa atividade em torno
de 400 milissegundos após cérebro, representado por cores cada vez mais ver-
a pessoa ouvir a ‘incongruência’ melhas nas imagens geradas.

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NEUROLINGÜÍSTICA

O mapa da atividade do cérebro de Maria, rela- Figura 4.


cionado com a tarefa de tentar concatenar o verbo Imagens
da mobilização
‘comer’ com o complemento incongruente ‘sandália’,
do sangue
seria como o da figura 4. É como se tirássemos uma no cérebro,
fotografia de alta resolução da atividade cerebral. depois que uma
A foto, porém, só mostra o efeito depois que a ati- pessoa ouve uma
vidade lingüística termina, tendo em vista que a incongruência
semântica como
concatenação acontece em milésimos de segundos,
a do diálogo
enquanto a chegada de sangue às áreas recrutadas experimento (‘comer sandália’ + ‘vestir prego’ + da figura 2,
para a tarefa leva de 1 a 10 segundos. Isso quer dizer ‘limpar medo’ etc.). Se houver sinais incidentais, mostram onde
que as técnicas hemodinâmicas não têm boa resolu- eles também entrarão nessa soma, mas, como são ocorre aumento
ção temporal, ou seja, mostram imagens do desloca- aleatórios, tenderão a sumir, enquanto os sinais do fluxo
sangüíneo
mento do sangue, que só ocorre após a ativação elé- que sempre exibem o mesmo padrão no tempo
(áreas mais
trica que lhe dá origem. Essa característica das téc- permanecerão. Por exemplo: a onda dos trechos vermelhas)
nicas hemodinâmicas representa um sério obstáculo ‘comer sandália’, ‘vestir prego’ e ‘limpar medo’ co-
para a avaliação do processamento lingüístico. meça a se elevar por volta dos 390 ms, e um sinal
relacionado a um bocejo aparece aos 300 ms. Ao
efetuarmos a média desses quatro sinais, mais o
¨´
EVENTOS LINGUISTICOS sinal incidental, o sinal do bocejo vai tender a zero,
à medida que forem somados a ele muitos sinais
E ATIVIDADE CEREBRAL exibindo um mesmo padrão. Ao final da operação
de promediação, a onda resultante é a ‘verdadeira’,
As técnicas eletromagnéticas são poderosos instru- conhecida como ‘potencial relacionado a evento’,
mentos para monitorar a ativação elétrica relacio- ou ERP (do inglês event-related brain potential):
nada a estímulos lingüísticos exatamente porque uma onda positiva (representada no traçado com o
oferecem grande precisão temporal: os impulsos pico para baixo) ou negativa (com o pico para cima). Figura 5.
Sistema
elétricos no cérebro podem ser detectados quase O N400, que você já conhece, é um ERP. Alguns usado para
instantaneamente no couro cabeludo, através do outros ERPs relacionados a fenômenos lingüísticos a investigação
osso craniano. Enquanto o voluntário executa uma são o ELAN (do inglês early left anterior negativity, da atividade
tarefa lingüística – decidir, por exemplo, se a frase ou seja, ‘negatividade anterior esquerda precoce’), que elétrica no
que ele está lendo na tela do computador é con- acusa muito cedo, entre 125 e 180 ms, um erro na cérebro associada
a estímulos
gruente –, a atividade elétrica de seu cérebro é escolha de classe de palavras (por exemplo, “João com- lingüísticos,
monitorada por eletrodos fixados no couro cabelu- prou sorriu” – verbo-verbo em vez de verbo-comple- com eletrodos
do, como mostra a figura 5. mento); o P600, relacionado à má-formação sintática fixados nas áreas
Os eletrodos são ligados, pela outra extremida- (por exemplo, “João corremos”) e o LPC, do inglês late pré-frontal (FP),
de, a um eletroencefalógrafo, que recebe e ampli- positive component (‘componente positivo tardio’), frontal (F),
temporal (T),
fica os fracos sinais elétricos captados. Tais sinais uma onda positiva entre 500 e 800 ms, que acusa central (C),
são sincronizados ao evento lingüístico-alvo, ou seja, anomalias na formação de palavras morfologica- parietal (P)
é possível saber exatamente quando um estímulo mente irregulares (exemplos, “imprimido”, “fazi”).  e occipital (O)
foi mostrado ao voluntário e que onda é resultante
da reação a esse estímulo.
Entretanto, a onda relativa à incongruência
testada não é perceptível a partir de apenas uma
ocorrência de evento lingüístico do tipo “João co-
meu sandália”. O sinal gerado pela transição entre
‘comer’ e ‘sandália’ é muito reduzido. Além disso,
durante a captação dos sinais de EEG também são
captados involuntariamente outros sinais (relacio-
nados a fatos incidentais, como bocejos, espasmos
motores, piscar de olhos), e ruídos de interferência
cruzada com outras fontes elétricas.
Para separar o sinal do evento experimental dos
demais e identificar somente a onda que se quer
estudar, usa-se uma técnica chamada de ‘prome-
diação’. Somam-se todos os sinais relativos ao pon-
to que se quer estudar em todos os estímulos do

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NEUROLINGÜÍSTICA

É assim que a neurolingüísti- junto do Departamento de Lingüística da UFRJ,


ca estuda atividades cognitivas através da lingüista Miriam Lemle, orientadora da
realizadas durante o processa- tese, e do Laboratório de Processamento de Sinais
mento da linguagem: avaliando (Programa de Engenharia Biomédica da Coppe/
alterações elétricas e hemodinâ- UFRJ), por meio da equipe do engenheiro biomédico
micas no cérebro, durante a rea- Antonio Fernando Catelli Infantosi.
lização de pequenas tarefas cog- O objetivo desse primeiro trabalho nessa área
nitivas estritamente lingüísticas era investigar a reação do córtex cerebral, medida
e também as não lingüísticas, pelo eletroencefalógrafo, à incongruência na con-
Figura 6. Sentenças congruentes mas ligadas de alguma forma ao catenação verbo-complemento em português. Por
e incongruentes foram processamento lingüístico. Essa isso, em uma primeira série, seguimos o protocolo
apresentadas aos voluntários ciência surgiu nos anos 80, a clássico de experimentos para extração de N400,
na tela do computador, enquanto partir de dois eventos principais. que consiste em apresentar ao voluntário, na tela
um eletroencefalógrafo captava
De um lado, os testes de ERP, já de um computador, sentenças congruentes (por
as alterações da atividade
elétrica no córtex empregados desde os anos 50 na exemplo: “A menina leu um livro”), misturadas
avaliação de doenças que afetam aleatoriamente a sentenças incongruentes (do tipo
as cognições de linguagem, visão e audição, passa- “O homem comeu uma sandália”). As sentenças
ram a ser usados também em pesquisa básica de eram mostradas palavra por palavra, e cada pala-
cognição de linguagem. De outro, surgiram as téc- vra ficava na tela por 200 ms (figura 6).
nicas não-invasivas (fMRI) ou minimamente Ao final de cada sentença, o voluntário era ins-
invasivas (PET) de aferição da atividade cerebral truído a apertar um entre dois botões no teclado,
por imagem. para indicar se a sentença era congruente ou in-
Assim, a partir desse panorama favorável à in- congruente. Antes de o voluntário pressionar o
vestigação, surgiram muitos laboratórios de neuro- botão, porém, o julgamento mais importante já tinha
lingüística nos Estados Unidos e na Europa, reu- acontecido, independentemente da sua consciên-
nindo lingüistas, médicos, biólogos e engenheiros, cia, na forma de ativação elétrica captada e regis-
em torno da caracterização neurofisiológica da lin- trada no traçado do eletroencefalógrafo.
guagem no indivíduo sadio. Nossos resultados, nessa série, foram compatíveis
com as características dos achados clássicos em
relação ao N400: por volta dos 200 ms, a onda ‘co-
¨´
TESTES NEUROLINGUISTICOS meça a exibir uma negatividade’ (vemos que ela
começa a subir), que atinge seu ponto máximo em
PIONEIROS NO BRASIL torno dos 400 ms, como se vê na figura 7. Obser-
vou-se ainda que os ERPs de sentenças incongruen-
No Brasil, esse tipo de pesquisa neurolingüística tes (linhas vermelhas) apresentam um ‘pico’ mais
com indivíduos sãos começou em 2002, quando elevado e que a amplitude do N400 é ligeiramente
realizei os experimentos relatados em minha tese maior no eletrodo C4 (na área central do crânio, à
de doutorado: Concatenações lingüísticas: estudo direita), como relatada em outros trabalhos sobre
de diferentes módulos cognitivos na aquisição e no esse ERP, embora essa tendência por uma ampli-
córtex. Essa pesquisa resultou de um esforço con- tude ligeiramente maior à direita não ocorra tam-

Figura 7. Gráficos dos ERPs registrados (em seis


Figura 8. Gráficos dos ERPs registrados (em seis
dos 20 pontos do crânio) na primeira série de experimentos
dos 20 pontos do crânio) na segunda série de experimentos
de neurolingüística com sentenças congruentes (em azul)
de neurolingüística com sentenças congruentes (em azul)
e incongruentes (em vermelho)
e incongruentes (em vermelho)

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bém no eletrodo P4 (na área parietal, à direita). como ‘frase QU-’, têm um comportamento bastante
Depois de testarmos estímulos clássicos para o peculiar nas línguas naturais. Por exemplo, ‘que blu-
N400 na série 1, onde verbo e complemento apa- sa’ completa o sentido do verbo ‘vestiu’ e, portanto, é
recem lado a lado (“guiar carro” e “comer pedra”), interpretado ao lado desse verbo: “Paula vestiu que
incluímos outras séries de estímulos que altera- blusa?” Mas reparem que, nesse tipo de construção
vam de maneira sutil o contexto das incongruên- em português, a ‘frase QU-’ geralmente aparece no
cias (e que têm sido testados com freqüência muito início da sentença, deslocada de seu local de inter-
menor). Queríamos saber se a ‘assinatura elétrica pretação. Esse é um recurso discursivo, autorizado
da incongruência’ seria afetada por essas condi- pela sintaxe do português, para avisar ao interlocutor Sugestões
ções especiais dos estímulos. que virá uma pergunta. para leitura
Na série 2, por exemplo, tínhamos sentenças
DEHAENE-
como “Lúcia vai limpar a cadeira e vai guardá-la” LAMBERTZ,
Onde se Onde se interpreta
e “João está segurando o bife e quer lê-lo”. Note que G. & DEHAENE,
pronuncia (posição vazia) S. ‘Speed and
os verbos ‘guardar’ e ‘ler’ estão concatenados apro- cerebral
priadamente aos respectivos complementos, atra- Que blusa Paula vestiu(que blusa)? correlates
of syllable
vés de formas pronominais ‘la’ e ‘lo’. Entretanto, discrimination
como ‘la’ e ‘lo’ não têm conteúdos semânticos in infants’,
próprios, precisamos, para saber se a concatenação Os ERPs relacionados a essa série mostraram in Nature,
v. 370 (5),
deu certo, transferir para eles as características maior ativação que nas outras séries e a maior dife- p. 292, 1994.
semânticas dos antecedentes ‘cadeira’ e ‘bife’. rença entre as sentenças congruentes e incon- FRANÇA, A.I.
Concatenações
gruentes, como mostra a figura 9. Como já é conhe- lingüísticas :
cido, a presença da expressão QU- no início da sen- estudo de
“Lúcia vai limpar a cadeira e vai guardá-la.” tença é como uma bandeira de aviso de que vai ha- diferentes
módulos
ver uma pergunta e de que a concatenação será à cognitivos
distância. Isso funciona como uma preparação cog- na aquisição
e no córtex
“João está segurando o bife e quer lê-lo.” nitiva que aciona mecanismos de atenção e memó- (tese de
ria, salientando que os conteúdos semânticos só serão doutorado).
Rio de Janeiro,
“Guardar a cadeira” faz sentido, mas “ler o bife” integrados quando o verbo aparecer – nesse ca-
Universidade
não! Será que essa incongruência resultaria tam- so, 400 milissegundos depois. Por isso, quando sur- Federal do
bém em um N400? Na verdade, achamos um N400 ge a incongruência, a reação a ela é mais vigorosa. Rio de Janeiro,
2002.
para a série 2, mas seu formato é marcadamente Os resultados desses experimentos indicam que FRANÇA, A.I.;
diferente do observado na série anterior, como se a concatenação verbo-complemento não é uma LEMLE, M.;
CAGY, M.;
vê na figura 8. O ERP exibe um ‘platô’, que relacio- operação única. Dependendo da configuração sin- CONSTANT, P.D.
namos com a complexidade da tarefa de transferir tática, ela envolve diferentes subtarefas cognitivas & INFANTOSI,
propriedades semânticas do complemento da pri- que se manifestam eletricamente em formas diver- A.F.C.
‘Discriminating
meira oração para o pronome da segunda oração. sas de ERP. Tais achados permitem ressaltar tam- among different
Por último, testamos, na série 3, sentenças do tipo bém que a natureza da neurolingüística é desven- types of verb-
complement
“Que blusa Paula vestiu?” e “Que histórias Denise dar aspectos diminutos da cognição: uma ciência merge in
refogou?”. As palavras interrogativas ‘quem’, ‘como’, do detalhe, da microdiferença. Brazilian
‘quando’, ‘quanto’ e ‘que’, conhecidas em lingüística Assim, a partir desta e de mais pesquisas – no Portuguese:
an ERP study
exterior ou no Brasil, inclusive algumas of morpho-
já em andamento no recém-inaugurado syntactic
sub-processes’,
Laboratório de Concatenações Lingüísti- in Journal of
cas: Psicolingüística e Neurofisiologia (La- Neurolinguistics,
boratório Clipsen), na Universidade Fe- v. 17, issue 6
(nov.), p. 425,
deral do Rio de Janeiro –, estabelecere- 2004.
mos pouco a pouco a interface entre as HICKOK, G. &
POEPPEL, D.
representações abstratas propostas pela ‘Dorsal and
teoria lingüística e os registros hemodi- ventral streams:
a framework for
nâmicos e elétricos da atividade cere-
understanding
bral. Ao empreender essa complexa ta- aspects of the
refa, a neurolingüística vem mexendo nas functional
anatomy
fronteiras científicas, causando esforços of language’,
Figura 9. Gráficos dos ERPs registrados (em seis dos 20 pontos
interdisciplinares que, entre outras re- in Cognition ,
do crânio) na terceira série de experimentos de neurolingüística v. 92, p. 67,
com sentenças congruentes (em azul) e incongruentes voluções, efetivamente situam a lingüís- 2004.
(em vermelho) tica entre as ciências naturais. ■

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