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tempo
Figura 2.
Alguns tipos de
incongruência
lingüística
~ DIANTE DE
REACAO Mas Pedro queria brincar com Maria. Embora
fazem o ´ lidasse com a pressão do tempo da comunicação,
interlocutor ^
UMA INCONGRUENCIA ele conseguiu, na seqüência do diálogo, encaixar
levar um ‘susto’, um complemento incongruente, ‘sandália’, que cau-
que provoca Há também estratégias estruturais para processar sou esse ‘susto semântico’ em Maria. O susto foi
aumento da
atividade as palavras dentro das frases. Estas tentam ante- especialmente grande porque Maria tinha acabado
elétrica no cipar a fala do interlocutor, para que a interação de suprimir ‘sandália’ de sua mente, junto com as
cérebro lingüística possa ocorrer ininterruptamente. Ob- outras representações de coisas não comestíveis.
serve o diálogo reproduzido na figura 2 e suas di- Já se sabe que a exposição a uma incongruência
mensões simultâneas. semântica na concatenação verbo-complemento
O ‘susto’ que Maria levou decorreu de sua pre- (comer-sandália) causa um aumento na atividade
visão quanto à resposta de Pedro. A partir do elétrica no cérebro, que pode ser percebido no
momento em que ouviu ‘comer’, Maria tinha o córtex 400 ms (milissegundos) após o estímulo
objetivo de juntar esse verbo ao seu complemento auditivo ou visual.
o mais rápido possível, para completar o sentido Se a atividade elétrica no cérebro de Maria esti-
da proposição de Pedro. Assim, antes mesmo de vesse sendo monitorada por um eletroencefaló-
ouvir o complemento, ela se preparou para re- grafo (EEG), seu susto poderia ser visualizado em
conhecê-lo, já sabendo que este teria de ser comes- um traçado como o da figura 3. Também veríamos
tível. Isso já diminuiu na mente de Maria o núme- uma onda se monitorássemos a atividade elétrica
ro de candidatos a complemento, pois houve uma no cérebro de alguém que ouve “Vou comer san-
pré-ativação de palavras que se referem a comes- duíche”, mas com amplitude (altura do pico) bem
tíveis e uma supressão de outras, entre estas ‘san- menor. Então, é possível reconhecer a onda da
dália’. Depois, à medida que ouve os primeiros incongruência por sua grande amplitude, que che-
sons (fonemas) do complemento, Maria pareia es- ga ao máximo em torno dos 400 ms. Na verdade,
ses sons com aqueles das palavras pré-ativadas na essa onda ficou muito famosa na literatura de
sua mente. No ponto ‘sand’ (/sãd/), ela encontra em neurociência e é conhecida como ‘N400’ (N de ne-
sua mente um perfeito candidato a complemento: gativo e 400 de 400 ms) – é a ‘assinatura elétrica
‘sanduíche’. Mesmo antes de ouvir os fonemas fi- da incongruência semântica’.
nais, ela ativa a representação desse complemen- Se estivéssemos monitorando as variações na
to. Nesse ponto, talvez ela até se atividade do cérebro de Maria por tomografia de
adiante e pense sobre o recheio: emissão de pósitrons (PET, em inglês) ou ressonân-
“Sanduíche de queijo?” cia magnética funcional (fMRI, em inglês), vería-
mos quais áreas se tornam menos ou mais ativas
metabolicamente a cada momento, já que esses
aparelhos rastreiam as variações na circulação
sangüínea cerebral e as representam em imagens
Figura 3. O gráfico da atividade ‘construídas’ do cérebro em atividade. Quando
elétrica no cérebro, em uma situação Maria ouvisse a incongruência semântica, observa-
lingüística como a do diálogo ríamos um aumento localizado da circulação
da figura 2, mostra um pico de
sangüínea nas áreas frontais e temporais do seu
aumento nessa atividade em torno
de 400 milissegundos após cérebro, representado por cores cada vez mais ver-
a pessoa ouvir a ‘incongruência’ melhas nas imagens geradas.
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NEUROLINGÜÍSTICA
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NEUROLINGÜÍSTICA
bém no eletrodo P4 (na área parietal, à direita). como ‘frase QU-’, têm um comportamento bastante
Depois de testarmos estímulos clássicos para o peculiar nas línguas naturais. Por exemplo, ‘que blu-
N400 na série 1, onde verbo e complemento apa- sa’ completa o sentido do verbo ‘vestiu’ e, portanto, é
recem lado a lado (“guiar carro” e “comer pedra”), interpretado ao lado desse verbo: “Paula vestiu que
incluímos outras séries de estímulos que altera- blusa?” Mas reparem que, nesse tipo de construção
vam de maneira sutil o contexto das incongruên- em português, a ‘frase QU-’ geralmente aparece no
cias (e que têm sido testados com freqüência muito início da sentença, deslocada de seu local de inter-
menor). Queríamos saber se a ‘assinatura elétrica pretação. Esse é um recurso discursivo, autorizado
da incongruência’ seria afetada por essas condi- pela sintaxe do português, para avisar ao interlocutor Sugestões
ções especiais dos estímulos. que virá uma pergunta. para leitura
Na série 2, por exemplo, tínhamos sentenças
DEHAENE-
como “Lúcia vai limpar a cadeira e vai guardá-la” LAMBERTZ,
Onde se Onde se interpreta
e “João está segurando o bife e quer lê-lo”. Note que G. & DEHAENE,
pronuncia (posição vazia) S. ‘Speed and
os verbos ‘guardar’ e ‘ler’ estão concatenados apro- cerebral
priadamente aos respectivos complementos, atra- Que blusa Paula vestiu(que blusa)? correlates
of syllable
vés de formas pronominais ‘la’ e ‘lo’. Entretanto, discrimination
como ‘la’ e ‘lo’ não têm conteúdos semânticos in infants’,
próprios, precisamos, para saber se a concatenação Os ERPs relacionados a essa série mostraram in Nature,
v. 370 (5),
deu certo, transferir para eles as características maior ativação que nas outras séries e a maior dife- p. 292, 1994.
semânticas dos antecedentes ‘cadeira’ e ‘bife’. rença entre as sentenças congruentes e incon- FRANÇA, A.I.
Concatenações
gruentes, como mostra a figura 9. Como já é conhe- lingüísticas :
cido, a presença da expressão QU- no início da sen- estudo de
“Lúcia vai limpar a cadeira e vai guardá-la.” tença é como uma bandeira de aviso de que vai ha- diferentes
módulos
ver uma pergunta e de que a concatenação será à cognitivos
distância. Isso funciona como uma preparação cog- na aquisição
e no córtex
“João está segurando o bife e quer lê-lo.” nitiva que aciona mecanismos de atenção e memó- (tese de
ria, salientando que os conteúdos semânticos só serão doutorado).
Rio de Janeiro,
“Guardar a cadeira” faz sentido, mas “ler o bife” integrados quando o verbo aparecer – nesse ca-
Universidade
não! Será que essa incongruência resultaria tam- so, 400 milissegundos depois. Por isso, quando sur- Federal do
bém em um N400? Na verdade, achamos um N400 ge a incongruência, a reação a ela é mais vigorosa. Rio de Janeiro,
2002.
para a série 2, mas seu formato é marcadamente Os resultados desses experimentos indicam que FRANÇA, A.I.;
diferente do observado na série anterior, como se a concatenação verbo-complemento não é uma LEMLE, M.;
CAGY, M.;
vê na figura 8. O ERP exibe um ‘platô’, que relacio- operação única. Dependendo da configuração sin- CONSTANT, P.D.
namos com a complexidade da tarefa de transferir tática, ela envolve diferentes subtarefas cognitivas & INFANTOSI,
propriedades semânticas do complemento da pri- que se manifestam eletricamente em formas diver- A.F.C.
‘Discriminating
meira oração para o pronome da segunda oração. sas de ERP. Tais achados permitem ressaltar tam- among different
Por último, testamos, na série 3, sentenças do tipo bém que a natureza da neurolingüística é desven- types of verb-
complement
“Que blusa Paula vestiu?” e “Que histórias Denise dar aspectos diminutos da cognição: uma ciência merge in
refogou?”. As palavras interrogativas ‘quem’, ‘como’, do detalhe, da microdiferença. Brazilian
‘quando’, ‘quanto’ e ‘que’, conhecidas em lingüística Assim, a partir desta e de mais pesquisas – no Portuguese:
an ERP study
exterior ou no Brasil, inclusive algumas of morpho-
já em andamento no recém-inaugurado syntactic
sub-processes’,
Laboratório de Concatenações Lingüísti- in Journal of
cas: Psicolingüística e Neurofisiologia (La- Neurolinguistics,
boratório Clipsen), na Universidade Fe- v. 17, issue 6
(nov.), p. 425,
deral do Rio de Janeiro –, estabelecere- 2004.
mos pouco a pouco a interface entre as HICKOK, G. &
POEPPEL, D.
representações abstratas propostas pela ‘Dorsal and
teoria lingüística e os registros hemodi- ventral streams:
a framework for
nâmicos e elétricos da atividade cere-
understanding
bral. Ao empreender essa complexa ta- aspects of the
refa, a neurolingüística vem mexendo nas functional
anatomy
fronteiras científicas, causando esforços of language’,
Figura 9. Gráficos dos ERPs registrados (em seis dos 20 pontos
interdisciplinares que, entre outras re- in Cognition ,
do crânio) na terceira série de experimentos de neurolingüística v. 92, p. 67,
com sentenças congruentes (em azul) e incongruentes voluções, efetivamente situam a lingüís- 2004.
(em vermelho) tica entre as ciências naturais. ■