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A RELEVÂNCIA DA BÍBLIA NA CULTURA PORTUGUÊSA

E UMA PROPOSIÇÃO FINAL SOBRE 3 ESCRITORES

Poeta João Tomaz Parreira

Palestra a ser realizada na Igreja Baptista de Moscavide, em 23/5/2009

Em Outubro de 1835 a Sociedade Bíblica de Londres envia a Lisboa George


Borrow – o dom Jorgito de las Bíblias como ficaria conhecido de Madrid a
Sevilha - com o propósito de difundir a Bíblia em Portugal. Sabe-se pouco
sobre esta estadia, conhece-se no entanto a finalidade da mesma, a
divulgação da Bíblia desde a perspectiva cristã evangélica.

Infelizmente muito pouco as autoridades de então deixaram fazer,


razão pela qual o enviado da Sociedade Bíblica Britânica e autor da
obra The Bible in Spain, de 1842, rumou para a dita Espanha a fim de
distribuir as Sagradas Escrituras. Este inglês que apreciava a arte da
catedral de Sevilha, Jorgito Borrow, quis encontrar antes a sociedade
espanhola da época, ciganos, toureiros, foragidos da justiça,
contrabandistas, flibusteiros, policias, camponêses, para edificar neles
a Cultura protestante.

Em relação a Portugal, a primeira ideia que nos ocorre é a de que a


relevância da Bíblia na história e na cultura portuguesas, se prima por
alguma coisa é pela ausência. Apesar de um século e meio pelo
menos de esforços evangélicos e de Sociedades Bíblicas. Tomando
mesmo em linha de conta iniciativas extraordinárias, de grandíssimo
alcance social e religioso, como a não muito distante mas até hoje
única Bíblia Manuscrita que transversalmente passou por todo o país
e que o Ministério da Cultura considerou de «superior interesse
cultural».

Contudo, a investigação das Escrituras Sagradas, de uma forma definitiva


designadas por Bíblia Sagrada, Velho e Novo Testamento, foi, é e continuará
a ser a melhor influência para tradições artísticas, filosóficas, históricas e da
própria narrativa literária de qualquer nação.

É usual afirmar-se que as duas grandes fontes do conhecimento moderno


do mundo e da humanidade se encontram nos velhos campos da Grécia e
de Roma, apesar de Fernando Pessoa afirmar sempre que a transição
cultural da Grécia para Roma se tenha exercido por meio da decadência.
Seja como for, acrescenta-se normalmente que o mundo judaico-cristão,
que as desafiou e absorveu, também bebeu dessas fontes.
E a provar esse entendimento, é costume falar-se em figuras fundadoras e
com obra fundacional como Homero, Sófocles, Dante e o póprio apóstolo
Paulo, entre outras.

Há, porém, um Livro que contém Civilização, que aborda as Ciências


Naturais, as Geografias, a Zoologia, a Biologia, que fala do Ritual religioso,
do Heroísmo, das Epicidades, da Poética, que aborda até a Filologia, que
esclarece sobre Humanidades e que revela a Divindade, afinal as origens da
fundação de tudo. É incontestável o nome desse Livro, Bíblia Sagrada, que
na diversidade unívoca dos seus 66 livros é a Palavra de Deus, traduzida
para as nossas línguas modernas e vivas por Lutero na Alemanha ou por
Wycliffe e William Tyndale e autorizada pelo Rei Jaime, na Inglaterra, ou
traduzida por J.N.Darby ou Louis Segond, na França, Casiodoro de Reina e
Cipriano de Valera, em Espanha, ou por João Ferreira de Almeida em
Portugal.

Um exemplo como simples indicador, embora a sua importância seja


incontornável, está no facto da Bíblia constar no currículo do Departamento
de Literatura do conceituado MIT (Massachusets Institute of Technology),
havendo também indicações de que constou como cátedra importante na
nossa Universidade de Coimbra.

Com efeito, a Bíblia integra o estudo dos denominados Períodos da


Literatura do Mundo, embora com um método discutível a seguir à
Literatura Clássica e antes da Literatura Medieval. De qualquer forma, no
consagradíssimo MIT a ênfase concedida à Bíblia reconhece-lhe lugar de
destaque, ainda que só cultural e pedagogicamente, como Texto fundador e
central do pensamento religioso, ético, político e cultural, e, sem dúvida,
antropológico, para além obviamente do Divino.

Na nossa Academia, a importância da Sagrada Escritura manifestou-se num


primeiro século que terá começado em 1537 até 1640, depois deste último
ano até 1910, havendo registo actual no acervo da UC de teses de
doutoramento sobre essa magnífica cátedra. Para além de outras presenças
influenciadoras, como foi, por exemplo, o caso da exegese judaica medieval
nos comentários bíblicos portugueses do Séc. XVI, designadamente o
comentário ao Cântico dos Cânticos, em 1599.

Há autores na nossa história literária que são muito centrais, conducentes à


influência marcante e explícita da Bíblia Sagrada, embora tal nem sempre
seja reconhecido. Mesmo tendo em consideração aqueles que, como José
Saramago ou Vergílio Ferreira, a tenham usado no sentido da sua
desconstrução do divino.

Começaria, sem dúvidas, por Camões, valorizando aqui o texto poético


designado por redondilhas, o célebre Sôbolos rios, e o belíssimo soneto
Sete anos de pastor Jacob servia \ Labão, pai de Raquel, serrana bela \ Mas
não servia ao pai, servia a ela.

No que concerne ao primeiro, a pluralidade dos meios usados para


expressar aquela que é a dor do exilado, ou talvez a dolorosa experiência
por que passou na foz do Mekong - o naufrágio, a visão global que a sua
leitura permite - de acordo com um estudo já com mais de vinte anos da
profª catedrática da FLUL Maria Vitalina Leal Matos, publicado in Colóquio-
Letras - remete-nos para variados elementos da composição, sendo o de
maior importância, a nosso ver, o Salmo bíblico 137 quase integral, que
Camões transpõe ora em paráfrase, ora em aproximação da letra, ora quase
ipsis verbis do texto da Vulgata Latina, de S. Jerónimo, do Século IV d.C.

Mas Luís de Camões não recorre apenas aos salmos, também a inclusão da
metonímia da Pedra, como símbolo cristológico e eclesial, faz uma
referência ao texto do Evangelho Segundo Mateus, proveniente com certeza
da leitura do Novo Testamento ainda segundo a Vulgata: «Tu és Petrus et
super hanc petram aedificabo ecclesiam meam.»

A rapsódia que acaba por ser Babel e Sião (mais conhecido no vernáculo
actual por Sobre os rios) contém um conjunto de fragmentos em que por
detrás dos mesmos os temas bíblicos assumem preponderância, tornando-
se evidentes numa leitura conhecedora.

O conhecido camonista Vasco Graça Moura precisa mesmo que se detectam


em Camões vestígios vocabulares e temáticos dos salmos penitenciais e de
outros textos bíblicos.

Por fim, nessas mesmas redondilhas renascentistas, alguém considerou com


acerto que Camões quis «exprimir em Sôbolos Rios a síntese do seu
percurso interior por uma mudança de canto que era a metonímia do seu
reencontro com Sião, depois do caos da Babilónia.»

Quanto ao célebre soneto atrás referido, Sete anos de pastor Jacob servia,
o vestígio bíblico do Livro do Génesis é notório. É público para aqueles que
conhecem bem o trajecto atribulado do filho menor de Isaque, a
importância de Jacob na história profética da promessa do nascimento de
uma grande nação e da história profética da Redenção. Todavia a estrutura
do soneto, sendo respeitadora da história, não deixa de apresentar na sua
arquitectura o hino ao amor, na brevidade do tempo, que Camões quis
sobretudo entoar:

«Começa de servir outros sete anos, / Dizendo: - Mais servira, se não fora /
Pêra tão longo amor tão curta a vida!»

Esta paráfrase não se encontra, como é sabido, no texto bíblico, trata-se


apenas da conclusão camoniana, interpretando afinal o grande amor de
Jacob por Raquel.

Repassando a tempos mais modernos, ao século XX e ao crescimento das


igrejas evangélicas desde o início desse Século, por exemplo, no ambiente
lusófono, vamos encontrar em um poema do brasileiro João Cabral de Melo
Neto, uma periférica referência à Palavra de Deus, enquanto geradora de
novos carácteres, de novas pessoas, pelo poder do Evangelho. O poema
Claros Varones, que diz assim:

O administrador José Ferreira


Vestia a mais branca limpeza:

Rara, naquele meio

De bagaceira e eito.

(…) Tanto encandeia a roupa branca

que nem deixa ver a alma mansa,

que passa a simples peça

de roupa branca, interna.

Ele era crente (ou nova-seita):

sua casa servia de igreja,

ou templo (mais correto)

aos engenhos de perto.

De lá, muitas noites, chegavam

cantos compridos como os da água.

( In Antologia Poética, pág. 53)

Este poema brasileiro, por assim dizer etnográfico, mas da cultura da língua
lusófona, é paradigmático da influência da Bíblia nos costumes, na vida
quotidiana e no culto divino.

Na sua pré-textualidade, o poema marca uma espiritualidade e torna


evidente a diferença de uma pessoa que está na sociedade exemplarmente
e por intermédio, digamos assim, de uma cultura religiosa, ampla e
seguramente estruturada na Bíblia Sagrada.

Mas regressando a referências com relação à nossa cultura, observaremos


um daqueles poemas do heterónimo pessoano Álvaro de Campos que foi
eclipsado pelas grandes odes (Marítima, Triunfal) e pelos grandes poemas
como Tabacaria. Mas que sem dúvida é dos mais emblemáticos do
heterónimo futurista por desvendar o Eu poético do autor. Trata-se do Ali
não havia electricidade, na qual o apóstolo Paulo e a Carta aos Coríntios não
é rispidamente usada e parodiada como acontece em outros escritores da
época. (vd.James Joyce, «Retrato do Artista Quando Jovem» e no
«Finnegans Wake» ). (pág. 120, do 1º citado, e no FW The term
`glossolalia' originally belongs to religious vocabulary where it refers to a
specific gift in languages, a `speaking in tongues' which produces religious
trances that have been associated with `lunacy')
Datado de 20-12-1934, o heterónimo engenheiro do poeta Fernando
Pessoa, deixa entrever, através da sua cultura anglo-saxónica ( estudara em
Glasgow ), um evidente conhecimento das origens da divulgação da Bíblia
em português (a Bíblia ao alcance popular, as Sociedades Bíblicas
Britânicas, o conhecimento dos Gideões Internacionais(1899), etc.),
escrevendo assim a sua poesia:

Ali não havia electricidade.

Por isso foi à luz de uma vela mortiça

Que li, inserto na cama,

O que estava à mão para ler –

A Bíblia, em português, porque (coisa curiosa) eram protestantes.

E reli a Primeira Epístola aos Coríntios.

Em torno de mim o sossego excessivo das noites de província

Fazia um grande barulho ao contrário,

Dava-me uma tendência do choro para a desolação.

A Primeira Epístola aos Coríntios…

E a importância dessa releitura é de tal dimensão, na arquitectura


espiritual, moral e intelectual do poeta, que este repete não só o momento
quase criador e único, a metonímica luz do fogo ancestral, mas também a
grande revolução interior que sua alma experimenta:

Reli-a à luz de uma vela subitamente antiquíssima,

E um grande mar de emoção chorava dentro de mim…

(In Poemas de Álvaro de Campos, pág 261, edição de Cleonice Berardinelli

para a INCM)

Com efeito, na vastíssima obra ortónima e heterónima de Pessoa, outras


intertextualidades encontramos que nos transportam mesmo através das
diferenças a uma busca da Verdade, ou uma busca de Deus( porque cada
alma é uma escada para Deus- escrevia Campos), mas aquela simples e
peregrina citação à Bíblia, representa sobretudo o modo como Pessoa se viu
nela e à sua falta de caridade como a um espelho. Foi assim pois que o
coitado do Álvaro de Campos fez uma releitura da Bíblia, na sua época,
apesar ou isso mesmo, da sua angústia de viver e náusea do mundo.

Comemorou-se em 2005 o 4º centenário da publicação do Quixote, de


Cervantes, e questionou-se nos meios literários de Espanha e do mundo
hispano-americano, sobretudo no de exclusiva língua castelhana, qual foi a
época que melhor leu esta grande novela.

Utilizando esta intertextualidade, questiono-me também qual haja sido a


época cultural que, no nosso país, melhor tenha lido a Bíblia Sagrada.
Poderíamos começar por D.Dinis e se o seu século XIII leu bem as
Escrituras, ou se os séculos XIX-XX das Sociedades Bíblicas e da
colportagem que espalhou por vilas e aldeias as Escrituras Sagradas do
Cristianismo e da Cultura judeo-cristã.

A verdade é que El-Rei D.Dinis, sem o poder saber, tentou salvar a liberdade
de se conhecer, popularmente, a Bíblia no nosso idioma galaico-português,
séculos antes da Reforma de Lutero. E fê-lo não poderemos saber bem se
de uma forma meramente literária ou, pelo contrário, de um modo
devocional. O plantador de naus a haver que Pessoa olha na Mensagem com
o distanciamento do passado histórico, com um olhar colocado no passado
mas projectado no futuro, iria ser em Portugal, entre 1279-1325, o
precursor dessa tarefa que é a tradução da Bíblia em português. Ao mandar
plantar o Pinhal de Leiria, que lhe daria o cognome de Lavrador, que mais
tarde terá proporcionado as madeiras para as caravelas dos
descobrimentos, logrou também D.Dinis plantar no Reino vinte capítulos do
Génesis, embora tanto quanto se sabe, a posteridade os não tenha
preservado, e a História de Portugal no capítulo das acções religiosas do rei-
poeta não dê relevo a tal empresa.

O autor de Ai flores, ai flores do verde pino não foi o único rei-tradutor,


porquanto sabe-se que D.João I terá traduzido em português o Livro de
Salmos. Parece, no entanto, que nenhum desses registos passou à
posteridade. De igual modo, sem outro sucesso que o de rezar em crónicas
do Séc. Renascentista(XVI), Damião de Góis traduziu o Eclesiastes, um dos
poucos textos bíblicos publicados em português no período humanista.

Mas, por outro lado, passaram, através dos historiadores da época, registos
de deturpações não só do Texto Sagrado, como dos seus conceitos
teológicos.

Fernão Lopes, que foi o cronista de serviço da corte de D.João I, no Séc.XIV,


na chamada Crónica de D.João I transmite uma expressão que é conhecida
como o «evangelho português», metáfora que deturpa o conceito do
Evangelho, e o torna em uma mera questão religiosa, no dizer de António
José Saraiva, para além de comparar Nun’Álvares com o apóstolo Pedro e os
chefes militares que aderiram à causa de Avis com os outros Apóstolos do
Senhor. E de insinuar uma identificação do rei D. João I com Jesus Cristo.

Mas, o evangelho português, referindo-se a uma questão religiosa, reveste-


se de um carácter instrumental, como declaração de fidelidade ao papa de
então (Urbano VI) e de defesa do Reino.

«Porque, assim como o filho de Deus, depois da morte que tomou por
salvar a humanal linhagem, mandou pelo mundo os seus apóstolos pregar o
Evangelho a toda a criatura…assim o mestre( de Avis), despois que se
dispôs a morrer, se cumprisse, por salvação da terra que seus avós
ganharam, mandou Num’Álvares e seus companheiros pregar pelo Reino o
evangelho português. O evangelho português, o qual era que todos
cressem e tivessem firme o papa Urbano ser o verdadeiro pastor da Igreja
fora de cuja obediência nenhum salvar-se podia (…)»

Fernão Lopes usou referências do Novo Testamento ao insinuar


identificações com figuras simbólicas do universo bíblico.

Não é pois por aqui que se pode medir a espiritualidade portuguesa e se a


Bíblia, que ainda era proibida aos leitores da «arraia miúda» e de baixa ou
alta extracção social até meados do Século XX, deixou as suas marcas de
transformação da sociedade lusíada de forma indelével e redentora.
Infelizmente a sua influência não fez carreira na consciência portuguesa,
embora os testemunhos da presença da Palavra de Deus estejam presentes
nos muitos artefactos culturais da pátria, sobretudo na sua Literatura, no
testemunho da Cultura de uma forma objectiva, na formação de valores da
democracia (?), bem mais na óbvia marca genética da tradição judaico-
cristã, do que nos corações, submetidos estes à dinâmica divina do
Evangelho.

Sabe-se que o Concílio de Trento (1545-1563) viria a influenciar


contrariamente a livre circulação da Bíblia, que Lutero acabava de tornar
popular. Em 1559, o papa Paulo IV elaborou a primeira listagem de livros
que alegadamente atentavam contra a fé e a moral, seria o Índex Librorum
Prohibitorum, cuja lista contém todas as Bíblias Autorizadas por Martinho
Lutero, todas as Bíblias Similares, todas as Bíblias em vernáculo Alemão,
Francês, Espanhol, Italiano, Inglês, Holandês, etc., cuja versão não fosse
autorizada, para além de um rol de Novos Testamentos proibidos, cujas
datas de edição variam entre 1541 e 1556. No Índex figura também o nome
do grande tradutor e influenciador de futuros modernos tradutores da Bíblia
Sagrada, Gulielmus Tindalus ( William Tyndale) e também o de John
Wycliffe ( citado como Iannes Vuiclephus).

O espírito inquisitorial, não obstante a Inquisição ter sido abolida em 1821


depois de ter vitimado um número estimado de pessoas em quarenta mil,
entrou inevitavelmente pelos séculos XIX e XX dentro, e em plena década
de 60, nas Terras do Bouro, quando o colportor João Viera vendia Bíblias, o
sacerdote local dizia a quem as comprava «rasguem, que isso é falso» (In
Jornal Público, de 14.11.2004).

Mas em plena vigência da tenebrosa Inquisição e do seu malévolo e


misterioso Tribunal do Santo Ofício, a cultura portuguesa e os seus agentes
fundadores, em pleno Renascimento, seriam vítimas também de imposições
e proibições de toda a ordem inter-disciplinar, que tocariam de perto a
atitude intelectual, pelo menos, de escritores como Sá de Miranda e Luís de
Camões. É em muitos dos seus escritos, embora já muito influenciados pelo
espírito da Renascença, que vamos encontrar a espiritualidade e a procura
do sublime.

Atribui-se com frequência ao introdutor do soneto petrarquiano em


Portugal, Sá de Miranda, ligações de espírito a Erasmo, porquanto se julga
poder detectar em alguns versos do poeta aquilo que alguém já designou de
erasmismo. Na verdade, Sá de Miranda refutou um dia aqueles que
abordavam Deus com sofismas e não com a Fé:

Sofistas me são defesos

com seus bandos, suas cismas.

Ei-los soltos, ei-los presos:

de fé, que não de sofismas,

quer Deus os peitos acesos.

O mesmo não se pode afirmar de Camões, que parecia ter uma querela
medieval, catolicíssima, com a Reforma. Na sua espiritualidade ou
religiosidade detectável nas éclogas, como já vimos nas redondilhas, nos
sonetos e mormente nos Lusíadas, não há erasmismo nem luteranismo.
Existe, sim, o politicamente correcto de uma cedência ao contra-
reformismo.

A Inquisição não o molestaria, porquanto os Lusíadas não simpatizam com


Lutero e com o protestantismo, embora estes, tal como a Epopeia, fizessem
parte do espírito da Renascença.

Vede’los Alemães, soberbo gado,

Que por tão largos campos se apascenta,

Do sucessor de Pedro rebelado,

Novo pastor e nova seita inventa.

Vede’lo em feias guerras ocupado,

Que inda c’o cego error se não contenta,

Não contra o superbíssimo Otomano,

Mas por sair do jugo soberano.

(In Canto Sétimo, IV)

Terá este aspecto fechado os olhos inquisitoriais para o episódio da Ilha dos
Amores?

A verdade é que em 1571, Camões obteve da Inquisição a incontornável


licença para publicar os Lusíadas. Submetida a obra épica aos censores do
Santo Ofício, no Mosteiro de S.Domingos, teve Camões que discuti-la verso
a verso, a fim de obter a aprovação. O imprimatur e-lhe concedido pelo Frei
Bartolomeu Ferreira, o qual faz «uma limpeza de certos indícios de
impiedade.» No entanto, já depois da morte do Poeta, a edição de 1584,
conhecida como «Dos Piscos» (1), apresentou um texto ainda mais
mutilado pela Censura.

A censura do Santo Ofício mutilaria homens e livros, da mesma maneira


que os dogmas marianos influenciaram a espiritualidade de muitos autores,
desde a Idade Média, mutilando o seu pensamento cristão. A poesia
religiosa na Literatura Portuguesa é, quanto a esse aspecto, exemplar,
cantando mais a Virgem que o Seu Filho Jesus.

Alguém escreveu que «a exaltação mística aparece sempre, em todas as


épocas, a influir nos poetas de maior renome», e a ardente fé religiosa
serviu sobretudo o catolicismo romano e não o cristianismo bíblico.

Por fim, basta um exemplo. Um verso de um autor de maior renome no


início do Renascimento, o já citado Sá de Miranda, é exemplar dos estreitos
laços com a mariolatria portuguesa, que não encontra respaldo algum nas
Sagradas Escrituras.

Numa Canção à Virgem já se antecipava o dogma, que só em 1854 Pio IX


decretaria da Imaculada Conceição, tomando esse futuro dogma uma forma
poética e, do mesmo modo, o poeta atribuiria à Virgem o estatuto de
mediadora, entre Deus e os homens.

Virgem tôda sem mágua, inteira e pura,

sem sombra nem daquela culpa herdada

por todos nós (…)

Hei medo a quanto fiz, sei que mereço,

dos meus erros me espanto

(…) mas lembra-me porém que vós fizestes

paz entre Deus e nós

(In Canção a Nossa Senhora, uma réplica à Virgine Bella, de Petrarca,


reconhecidamente uma imitação, segundo reconhece a escritora Carolina
Michaelis.)

Creio que fica suficientemente estabelecido que a Bíblia Sagrada influiu,


umas vezes abertamente, outras como Livro apócrifo, escondido da
Censura, na Cultura portuguesa.

Poderia ter influído mais, se tivesse havido muitos Erasmos (embora Erasmo
de Roterdão fosse autor de bagagem de esposas de reis e dos professores
da Universidade). O grande humanista holandês – embora salientando-se o
seu afastamento de Lutero – fez questão de afirmar a sua divergência
contra todos que entendiam que os iletrados não deveriam conhecer as
Escrituras Sagradas, segundo ele o ideal seria até que as pobres mulheres
pudessem ler o Evangelho e as epístolas paulinas.

Se assim fosse, séculos depois o historiador Oliveira Martins não teria


afirmado que em Portugal não houve Reforma. Com efeito, nem sequer o
Dicionário da História de Portugal, da sua douta autoria, refere o termo,
pelo que os perigos do desvio do Catolicismo não ocorreram- segundo o
historiador.

Da mesma maneira podemos também afirmar que a relevância da Bíblia


Sagrada na sociedade portuguesa, desde a Formação do reino, a
consolidação da nossa Identidade, a expansão nos Descobrimentos, até
hoje, não foi, nem é de molde a ser dominante, infelizmente. E se algo
releva da sua influência, será o ter sido proibida aos fiéis durante séculos.

Houve, no entanto, modernamente, autores contemporâneos do Século XX,


que usaram senão a Bíblia Sagrada, pelo menos o conhecimento geral da
mesma, no que concerne à Teologia, ao discurso sobre Deus e Sua
existência, para estruturar parte do seu pensamento enquanto autores de
tese ou de romances-problema.

Refiro-me, para finalizar não sendo exaustivo, a três Ruy Belo, Vergílio
Ferreira e José Saramago. Um poeta e dois romancistas. Permitam-me,
assim, três notas finais sobre ambos, no âmbito do recurso ao
conhecimento bíblico, à influência da Biblia sobre a ficcionalidade da
literatura de ambos. Todos interpelaram a Bíblia, de um modo ou de outro.

Da mesma maneira que os teólogos, sobretudo protestantes, do século XX


acharam normal interrogar a literatura para nela encontrarem um
testemunho sobre a fé e sobre a descrença, sobre o significado da
existência do Homem e de Deus.

.......................................................

Vergílio Ferreira

Começando pela relação criador/narrador, Vergílio Ferreira faz invocar ao


protagonista de Aparição, o professor Alberto, que Deus está morto porque
sim, no entanto esta alegada constatação não radica em nenhum nihilismo
nietzcheano.

O «porque sim» parece-nos falar de algo que se constituía como necessário,


que era uma inevitabilidade produzida de dentro, não de dentro da própria
entidade divina, mas do interior da própria personagem que ao afirmar-se
como não sendo crente (Ferreira:2002:39), tocou no entanto em
algumas verdades – Deus, a imortalidade, o sagrado, a palavra religiosa,
que se foram gastando pelo mau uso.

Assim, é outro o tipo de morte do divino que o autor tematiza, é a morte


pelo uso, uso religioso, uso reflexivo, proclama a mesma personagem do
romance, que Deus se lhe gastou. (Ferreira:2002:46)
«Deus gasto» ou a Sua ausência, é a religiosidade presente na obra A, a
qual vai no mesmo sentido de M S, sendo este romance, no entanto, mais
uma descrição de uma certa religiosidade institucional, do que uma
manifestação de religiosidade do próprio autor.

Em A, a busca da religiosidade é filosófica, diria que é um exercício de


analogia entis, um regresso ao mais profundo dos anseios do Ser, o anseio
espiritual, sobretudo. Já no romance M S, tal busca é meramente formal e,
por assim dizer, funcional e eclesiástica.

Em M S, a religião tradicional do nosso país tem aí uma responsabilidade


moral no conduzir à rejeição do divino por parte do herói, ou dadas as
circunstâncias, do anti-herói do livro. António Borralho, a personagem
condutora do enredo, ou da intriga do romance, é «forçado», diria que
social e economicamente, a aceitar uma vocação de sacerdócio que afinal
não tem.

«-Cuidado com o que vais dizer. Reflecte um momento. Pede a Deus que te
ilumine.» - instava com o António a sua tutora, a beata D. Estefânia.

«-Eu não tenho vocação», disse o António com voz


segura.(Ferreira:1983:94)

E tudo se desmoronou aí, a personagem que estava a ser construída para


servir a igreja foi destruída pela verdade interior, tratava-se de uma
personagem inventada para dar orgulho religioso a D. Estefânia.

A relação de VF com a religião, e depois com a divindade que a religião


supostamente deve identificar, terá sofrido este equívoco.

À personagem António, de M S, descreve-se-lhe o mar enquanto ele se


afoga ou se debate nas ondas - isto é, estrutura-se-lhe a religião
organizada em Catolicismo Romano tradicional enquanto se debate com a
vocação que não possui e que o leva a afogar-se, a mutilar-se para lhe
fugir.

Ao protagonista e narrador de A, gasta-se-lhe Deus.

A religiosidade de Vergílio Ferreira está presente, porém encarcerada entre


estes essas duas experiências. Penso que a fuga acaba por se realizar,
quando o autor busca outro tipo de religiosidade, aquele que se manifesta
através da criação estética da Arte, a salvação pela Arte, que julgamos
descortinar noutro romance, o Cântico Final.

José Saramago

Acerca do nosso Prémio Nobel da Literatura não se pode dizer o mesmo,


porque não é um filósofo que escreve romances. Saramago é um
surrealista, isto é, surrealiza mais do que filosofa.
Sobre o romance O Evangelho segundo Jesus Cristo», o mínimo que se
pode afirmar é que existe, de facto, alguma «fidelidade» aos factos da vida
de Jesus, que compõem a parte histórica de qualquer um dos Evangelhos
sinópticos e do Evangelho segundo João, dos quais Saramago ter-se-á
socorrido para estruturar o «seu» próprio evangelho. É «natural», pois, que
neste «seu» evangelho, Saramago coloque o leitor perante um Jesus que
passa quarenta dias no mar e não no deserto (Págs. 394), envolto em
denso nevoeiro, com o que se pretenderá ligar Jesus ao mito sebástico e
mesmo caracterizá-lo como personagem em confusão, à deriva no meio do
cinzento.

Lamentamos, a nosso ver, que a quase fidelidade aos factos, não seja
partilhada nos discursos, que são efabulados e, infelizmente, a maioria sem
canonicidade alguma.

Inicia-se a obra com recurso a uma epígrafe, que servirá de pórtico ao


romance, transcrita de Lucas, 1, 1-4 : «Já que muitos empreenderam
compor uma narração dos factos que entre nós se consumaram... resolvi eu
também, depois de tudo ter investigado cuidadosamente desde a origem,
expor-tos por escrito e pela ordem.»

José Saramago foi «vencido» pela tentação de reescrever outro evangelho,


não só sob o seu ponto de vista, mas sobretudo recriando o ponto de vista
de um Jesus irreconhecível, distante das Escrituras Sagradas, por ser
excessiva e definitivamente humano e absolutamente vulnerável. O seu
ponto de vista sobre Maria também se distância, neste caso, da teologia do
catolicismo: «Ela, uma fraca mulher, mas muito capaz, como se vê, de dar
filhos a Deus e a seu marido.» - Págs.96.

Os factos narrados não deixam de ser factos evangélicos, mas no seu


núcleo mais profundo são «outros», deturpados, e com outras motivações,
distanciar Deus dos homens e nublar o carácter divino de Jesus,
humanizando-O tanto que o faz perder-se entre o mundo.

«Clamou -Jesus- para o céu aberto onde Deus sorria, Homens, perdoai-lhe,
porque ele -Deus- não sabe o que fez. Depois, foi morrendo no meio do
sonho.» -Pág.444

Factos revisitados, revistos e comentados pelo escritor, que parte para este
polémico romance a-histórico, curiosa e explicitamente, com a frase de
Pilatos Quod scripsi, scripsi (O que escrevi, escrevi), com uma bagagem
romanesca tautológica: começa com a crucificação, embora o elemento
fundamental da Remissão da Humanidade - o sangue - só apareça lá para a
página 18, e termina com uma inútil perda desse mesmo sangue.

Não obstante as linguagens redondas possam aparentemente servir todos


os gostos e perspectivas, esta tautologia saramaguiana quer cumplicidade
com todo o leitor que, à maneira do teólogo exentencialista Rodolfo
Bultmann, deseja uma mera história de Jesus sem sobrenatural, sem
Divindade.
«Jesus morre, morre, e já o vai deixando a vida. (...) Já não chegou a ver,
posta no chão, a tigela negra para onde o seu sangue gotejava.» - Pág.445

O romance começa, no entanto, com menos violência e com um cenário


recriado da atmosfera dos pintores flamengos ou florentinos, desses para
quem a crucificação teve cores sóbrias, paisagens bucólicas ou
arquitecturas a apontar para o Renascimento e rostos emoldurados por
cabelos aos caracóis, com Van der Weyden, Fra Angelico ou Giotto a
comandarem a estética da crucificação. A estética do momento da
crucificação, para Saramago, é descritiva, é «papel e tinta, mais nada».

«O sol mostra-se num dos cantos superiores do rectângulo , o que se


encontra à esquerda de quem olha (...) Por baixo do sol vemos um homem
nu atado a um tronco de árvore, cingidos os rins por um pano que lhe cobre
as partes a que chamamos pudendas ou vergonhosas. (...) Pela expressão
da cara, que é de inspirado sofrimento, e pela direcção do olhar, erguido
para o alto, deve de ser o Bom Ladrão.»

Existe aqui uma certa atmosfera de tranquilidade neste princípio, onde


deveria haver tumulto por se tratar da crucificação, por se tratar de um Fim.

Todavia, o sofrimento resignado, curiosamente, não é de Cristo, mas de um


«homem nu atado a um tronco de árvore», o Bom Ladrão.

O autor inicia a sua elaboração ficcional estruturado, certamente nas


páginas iniciais do Novo Testamento, mas acima de tudo estruturado na
dúvida, e, pior, estruturando uma dúvida sobre a própria dúvida substantiva
e essencial, que percorre todo o romance.

José Saramago, no paradigmático discurso de aceitação do Prémio Nobel,


deixa tal aspecto muito claro. No que concerne ao romance «O Evangelho
segundo Jesus Cristo», na recta final do discurso, afirma:

«Ora, foi provavelmente esta aprendizagem da dúvida que o levou (ao


Autor como Aprendiz), dois anos mais tarde ( após a escrita de «História do
Cerco de Lisboa» ), a escrever «O Evangelho...»

Ruy Belo

Um poeta aparentemente sem dúvidas sistemáticas foi Ruy Belo.

Houve tempos já remotos na história da arte, nos quais esta foi repudiada,
por exemplo por Platão, porquanto, argumentava ele, «a arte é moralmente
condenável na medida em que atribui vícios a deuses e a heróis». Nota-se
na sua obra A República a preocupação pelas figuras simbólicas da religião,
no contexto mitológico, as divindades e os semi-deuses(os heróis).

Essa preocupação e a afirmação de que a arte desperta na alma paixões


inferiores não repassou para a nossa contemporaneidade, ou mesmo aquela
em que foram criadas peças admiráveis do lirismo e da cultura judaicas,
como os Salmos ou o Cântico dos Cânticos, obras fundacionais da Cultura
judeo-cristã.

O poeta português, Ruy Belo, desaparecido prematuramente, foi um dos


que soube procurar o valor da arte superior ao mundo transitório, em não
poucas referências bíblicas.

No referencial conjunto de poemas do livro Aquele Grande Rio Eufrates, de


1961, o poeta alude a influências, sendo uma delas primeira, a Bíblia. Desta
foi buscar a metafísica de muita da sua poesia e de algumas palavras que,
mesmo grafando-as em letra minúscula – como deus, senhor-, mantêm o
sentido profundo que lhes cabe na hierarquização do texto.

Um verso exemplar, em que perpassa ante nós a metaforização da criação


divina: «O senhor deus é espectador desse homem/ Encheu-lhe o regaço de
dias e soprou-lhe/nos olhos o tempo suave das árvores// O senhor olha
finitamente a sua obra.»

Ou este outro verso, carregado de sentidos soteriológicos: «O que deus terá


visto nele (no homem) para morrer por ele?»

E uma referência explícita ao Salmo 133: «Bem mais do que a harmonia


entre os irmãos/ o poeta em exercício é como azeite precioso derramado/
na cabeça e na barba de aarão.»

Ruy Belo não deixou escapar a função também escatológica da poesia,


isto é, a disponibilidade desta para dar sinais a fim de os mesmos serem
interpretados. No seu poema intitulado explicitamente Lucas, 21, 28,
escreveu uma paráfrase de todo o aviso escatolócigo de Jesus Cristo aos
judeus em geral e à cidade de Jerusalém em particular, ao que parece ser o
Fim da História:

Quando o último pássaro morrer


Na última oliveira a ocidente
Opõe o peito ao que acontecer
E levanta a cabeça dignamente
(...)
Não valem cinco pássaros apenas
Dois asses e deus não os reconhece
No meio das demais coisas terrenas?

Ao reflectir sobre o cuidado divino quanto às aves, reflecte sobre o cuidado


do olhar de Deus sobre o homem.
E poderíamos continuar neste poeta com imagens vindas da Bíblia.

.................................................................

Finalmente, sendo as Sagradas Escrituras a expressão comunicacional de


Deus à humanidade, se Portugal não se tivesse perdido pelos caminhos da
Contra-Reforma, ouvisse e cumprisse os conteúdos dessa comunicação, não
estaríamos hoje a falar, em pormenores históricos, literários ou dialéticos,
sobre a relevância da Bíblia na cultura e na sociedade portuguesas,
estaríamos a vivê-la integralmente, como nosso código genético divino,
convertendo a informação de morte em nós, hereditária por Adão, para a
vida transmitida por Jesus Cristo.

João Tomaz Parreira

Bibliografia

Biblia Sagrada, JFA, VRC

Actas da Universidade de Coimbra; Hist. de João Ferreira de Almeida:

Harold Bloom, Canone Ocidental (Sobre S.Paulo)

Idade Média, Antolog. Litera. Comentada

António Sérgio, Breve Interpretação História Portugal

Fernão Lopes, O Evangelho Português

Séc.Xiii e Xiv, Hist.e Antol. Litert.Portuguesa

Actas das Cátedras da UC, Publicações Académicas do acervo da UC

Influência do erasmismo em Sá de Miranda, Boletim da FCG História e Antologia da LP, século XVI

Sôbolos rios... a divina proporção em Camões, ibidem

Cátedra Pe.António Vieira de Estudos Portugueses, na PUC, Rio

Paraclesis, de Erasmo

(1) No CANTO III, estrofe 65, da versão que lançou o opróbrio sobre a Obra, o Poeta narra os
progressos das Campanhas contra os Mouros de D.Afonso Henriques e fala da subjugação de Palmela e
da « piscosa Cisimbra». Diz-se que por lá se juntar grande quantidade de piscos.

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