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EnsaIO

legado
há mais de trÊs anos, o Fotojornalista
maUricio de Paiva acomPanha as PesqUisas
de arqUeÓloGos qUe Percorrem a amaZÔnia em
bUsca da “terra Preta de índio”, manchas de
solo disPersas sob a Floresta, ricas em Fertilidade
e em FraGmentos do Passado. com sUas câmeras e
lentes, Paiva também ajUda a desvendar as
inÚmeras camadas de histÓrias da reGião
texto mÔnIca trIndade caneJo

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vila teSSalÔnica, em aFuÁ,
ilHa de maraJó, pa
Curiosas, as crianças “colhem”
fragmentos de cerâmica
arqueológica na beira
do rio araramã

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Sítio HataHara,
município de
iranduba, am
sepultamentos em terra
preta são comuns, e
estudá-los ajuda a
compreender como
viviam os antigos

H
habitantes da região

abilidoso na arte de trabalhar a madeira,


o morador de Parintins, no amazonas, Geraldo França nos
mostra seu quintal cultivado, assentado sobre uma terra muito
escura. “a terra preta é boa pra tudo: macaxeira, mandioca,
banana, jerimum, milho, graviola, pupunha, abacate, manga...”,
explica o artesão.
Um dos principais objetos de estudo da arqueologia na amazônia é justamente
a presença desse tipo de solo, batizado de “terra preta de índio”. sua presença é
indicativa de locais onde havia habitações de grupos humanos sedentários, que a
deixaram lotada de sinais indispensáveis para se compreender os hábitos destas
populações. estas manchas de solo escuro – que podem ser de poucos metros ou
de até centenas de hectares, com profundidades de 30 centímetros a dois metros
– não eram propositais, mas fruto de anos de manejo que foram deixando suas
marcas. depois das densas ocupações, o acúmulo de dejetos orgânicos e restos de
carvão das fogueiras acabaram transformando o solo original. Fértil e com ph quase
neutro, ele atrai novos e novos moradores, que deixam mais material, tornando-o
ainda mais fértil, numa longa sucessão através dos séculos.

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Sítio Arqueológico
do lAguinho,
irAndubA, AM
“Mamoeiro é planta
exigente, precisa de muito
fósforo”, explica Wenceslau
Teixeira, da Embrapa. E, na
terra preta, este e outros
nutrientes não faltam

fértil e rica em matéria orgânica, a terra preta


tem ph neutro, que ajuda a conservar os ossos

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o estudo da terra preta é fundamental para se com- pesca, as viagens fluviais, a agricultura de subsistência
preender como surgiu e se estabeleceu a agricultura na e o consumo dos mesmos vegetais.
região. afinal, foi o aprendizado do plantar que permitiu como oásis de fertilidade no solo amazônico, estes
a grupos nômades que viviam do extrativismo se esta- locais são excelentes para a produção de diversas cul-
belecer por longos períodos em um só lugar à espera turas. isto atraiu os técnicos da embrapa, interessados
da colheita. saber a data da formação deste solo é res- em aproveitar seu potencial produtivo, sem depredação
ponder a idade da agricultura no local. “quem souber do patrimônio arqueológico. mas na maioria das vezes
esta resposta ganha o prêmio nobel de arqueologia na os atuais moradores se mantêm alheios a esta repeti-
amazônia!”, brinca o professor do museu de arqueo- ção incansável do passado. seu amâncio, por exemplo,
logia e etnologia da UsP – Universidade de são Paulo, morador próximo do sítio arqueológico de hatahara,
eduardo Góes neves. Por enquanto, o que se sabe é que no município de iranduba, am, vai entornando uma
esta data pode até passar dos quatro mil anos. curioso é dose domingueira de cachaça enquanto solta a voz:
notar que, onde teve gente morando ontem, tem gente “Gostaria que me contassem a história das coisas, fica
morando hoje, e que muito do que era hábito destes tudo no mistério. nós não vivemos só no presente, nós
povos extintos ainda faz parte do cotidiano, como a vivemos do passado também”.

comunidade de
democracia, reServa
extrativiSta do rio
unini, am
Rios amazonas, negro,
solimões, Tapajós, Unini,
além dos inúmeros igarapés,
furos e paranás, ajudam no
transporte e na comunicação,
ligando a amazônia pelos
caminhos de água

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mercado ver-o-peSo,
belém, pa
O maior mercado da américa
Latina está em funcionamento
desde 1688. Mas, muito antes,
os moradores da região já
eram hábeis comerciantes,
fazendo intercâmbios de
excedentes agrícolas, objetos
de cerâmica e ferramentas,
como machadinhos e pontas
de flechas

vestíGios de Plantios mUdam o conceito de qUe


Grandes PoPUlações não se Fixaram na reGião
Água e trocas subir em árvores e se perder pelas trilhas sombreadas.
diz a Bíblia, no livro do Gênesis, que, em um dado nascidas e criadas próximas aos rios e às matas, aprovei-
momento, deus separou as águas da terra. na amazô- tam o espaço natural para se divertir. aos poucos, vão
nia, este processo parece estar ainda acontecendo. Para aprendendo a remar, navegar, pescar, caçar, plantar,
todo lado, água. amazonas, negro, solimões, tapa- colher. o que hoje é folia amanhã será o sustento destes
jós, Unini, além dos muitos cursos d’água secundários: meninos e meninas que nem sempre têm fácil acesso
os igarapés, furos e paranás. há milênios, o homem à escola, mas que aprendem com a natureza generosa
aproveita da abundância de seus recursos e constrói a se tornarem homens e mulheres do brasil.
suas habitações. sítios arqueológicos são encontrados
próximos às margens dos grandes rios. eles, como hoje, fragmentos
oferecem a água de beber, o peixe de comer, o caminho as frações de cerâmica são encontrados com abun-
para remar. a água vai traçando estradas líquidas que dância em várias partes da região norte. da ilha de
unem as localidades. era através delas que os índios marajó às beiras do rio negro, as comunidades cabo-
pré-históricos se deslocavam, trocando seu excedente clas vão vendo se desenterrar com a chuva e a força
agrícola por cerâmica, ferramentas de pedra e outros das marés objetos deixados por povos remotos. são
objetos. na bagagem, trocavam também saberes e há- urnas funerárias, vasos, utensílios do dia-a-dia, peças
bitos, aprendendo e ensinando enquanto realizavam cerimoniais. muitos trazem apliques em formas de ca-
seu comércio. beças de pessoas ou animais, as “caretinhas”. algumas
vezes, objetos inteiros são encontrados. outras, são os
Infantes fragmentos que se espalham. apesar da presença cada
alguns passos para trás para pegar impulso, uma vez maior de pesquisadores que tentam reescrever esta
rápida corrida e, lá vai. mais um menino na água! nadar história através dos objetos, para os moradores estes
é brinquedo para as crianças da amazônia, assim como achados ainda são um mistério. como nos diz o artesão

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comunidade de lago daS


pombaS, reServa extrativiSta
do rio unini, em barceloS, am
nadar, subir em árvores, se perder nas
trilhas sombreadas: o que hoje é folia
para as crianças, é o aprendizado de
seu sustento. Rituais de iniciação que
se repetem há séculos

nascidas jUnto aos rios e matas, as crianças ali a


Geraldo França, de Parintins, sobre estas peças: “é a cios inegáveis da presença humana em várias partes da
mão de deus? assim eu vejo estas cerâmicas, como a região. aterros artificiais, represamento de rios, sepulta-
mão de deus...” mentos, objetos de cerâmica, manchas de terra preta...
quanto maiores as áreas com vestígio de agricultura,
grandes grupos maior a densidade populacional. sinais de que muita
durante a década de 1940, as teorias arqueológi- gente não só passou como se estabeleceu por lá. quem
cas, especialmente as desenvolvidas pelo casal norte- eram? quantos eram? ainda não se sabe. mas aldeias e,
americano betty meggers e cliford evans, davam conta talvez, até cidades, com milhares de pessoas, deixaram
de que havia pouca gente na amazônia nos milênios seus rastros que hoje pesquisadores seguem em busca
passados. a explicação: o solo era muito pobre para que de respostas para este enigma.
a agricultura se desenvolvesse, e que não haveria caças
de grande porte. enfim, o alimento não seria suficiente mamoal
para a manutenção de grandes grupos. no local onde estão sendo feitas as escavações ar-
mas as pesquisas mais recentes apontam uma nova queológicas, no lago do limão, município de iranduba,
direção nesta história. sítios arqueológicos trazem indí- am, crescem os carregados pés de mamão. Wenceslau

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comunidade de paricatuba, entre iranduba e manacapuru, am
Entre as peças arqueológicas encontradas, são comuns as “caretinhas”, apliques de
vasos e urnas que representam entes mitológicos

comunidade Sampaio, na beira do rio madeira, altazeS, am

i aPrendem seUs oFícios


O caboclo mostra a urna funerária encontrada no quintal de casa, remanescente dos
últimos habitantes da região antes da colonização do país

teixeira, agrônomo da embrapa, explica a Pedro Go- carregando seus frutos de canoa, pelo rio solimões.
mes dias, proprietário do terreno: “mamoeiro é planta era preciso sair cedinho, cedinho, noite ainda para
exigente, precisa de muito fósforo”. nutriente que não chegar em manaus a tempo de comercializá-los. hoje,
falta à terra preta. Portanto, não há necessidade de se já existe o ramal, a estrada que substitui o caminho
corrigir o solo com muita adubação, correndo-se o risco pelo rio. mas, bastam chegar as chuvas do inverno
de fazer o feitiço virar contra o feiticeiro. o produtor para ele ser interditado.
afirma que já percebeu que o uso de fertilizantes do
tipo nPK, por exemplo, que contêm fósforo, acaba sepultamentos
prejudicando a floração. em outras palavras, é como além de férteis e ricas em matéria orgânica, as ter-
se este campo já tivesse sido preparado para o plantio. ras pretas possuem ph próximo a neutro, o que ajuda
e foi, há milênios. na conservação de ossos, muitas vezes encontrados
“a solo fértil é muito. o que atrapalha a produção é dentro de exuberantes urnas funerárias de cerâmica.
a condição de comercialização na amazônia”, lembra em sítios arqueológicos, com elas é possível associar
Wenceslau. Pedro sabe bem do que ele está falan- fatores naturais – o próprio solo – a fatores cultu-
do. em sua memória, os muitos anos em que passou rais – fragmentos de cerâmicas, refugos orgânicos

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comunidade de FloreSta, am
Importante fonte de amido, fácil
de armazenar, a mandioca foi um
dos primeiros vegetais a ser
domesticado na amazônia. seu
cultivo milenar acompanha a
história do homem brasileiro

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porto de Santarém, pa
nas localidades que fazem das águas seus
caminhos, os portos são mais do que locais
de embarque e desembarque. são as
referências culturais e sociais, como o desta
cidade, onde viviam os tapajós, que faziam
bem-elaborados objetos de cerâmica

as áGUas traçam estradas líqUidas qUe


Unem localidades e dão o qUe beber e comer
e carvão de fogueira (que lhe confere a cor escura), atuais... o conjunto destas informações pode trazer
ossos de animais e peixe, cascas de frutas e raízes. “as luz sobre um passado que fez a história antes do que
terras pretas talvez sejam o melhor indicador de que conhecemos como história.
os ambientes amazônicos foram modificados pelas
populações indígenas que ocupavam e reocupavam a mandIoca
área antes da conquista e, há dois mil anos, junto de seu caule é fino e desinteressante. suas folhas,
um denso padrão de assentamento”, diz eduardo Góes também não são lá muito atraentes. Frutas, não tem.
neves, professor-doutor do museu de arqueologia e mas suas raízes se tornaram uma das mais importantes
etnologia da UsP. fontes de alimento de norte a sul do país. a preferência
nacional pela mandioca começou há cerca de cinco
escavação: pac mil anos, quando a planta passou a receber especial
muitas noites dormidas em redes, travessias de ca- atenção por parte do homem. escolhidos os melhores
noas e picadas de animais peçonhentos fazem parte da espécimes, plantadas com cuidado, replantadas, algu-
história do Projeto amazônia central, o Pac. criado mas se tornaram dependentes do homem a ponto de
em 1995 pelos arqueólogos norte-americanos michael não conseguirem mais se reproduzir sozinhas. a este
heckenberger e james Petersen, morto há dois anos processo chamamos domesticação. sim, uma versão
num assalto, e pelo brasileiro eduardo Góes neves, bastante antiga do atual melhoramento genético.
o Pac trouxe, finalmente, intensidade nas pesquisas Por ser uma cultura de longo prazo, podendo ficar
arqueológicas na amazônia. anualmente, um sítio- até dois anos na terra crescendo, e de fácil armaze-
escola é realizado, dando oportunidade a estudantes namento depois de beneficiada, a mandioca ganhou
de várias partes do mundo treinarem em escavação e muita importância no clima úmido da amazônia e é,
a equipes multidisciplinares desenvolverem estudos ao até hoje, indispensável nos cardápios. seja acompa-
longo destes 12 anos. estão na mira aspectos específicos nhando o açaí, o peixe ou a carne-seca de alguma caça,
como química de solo, vestígios botânicos, estilos de a farinha de mandioca é, literalmente, um saboroso e
arte cerâmica, ossadas humanas, analogias com tribos nutritivo hábito milenar. .

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