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NASCIMENTO, N. (2007) A cidade (re)criada pelas crianças ‐muitas cidades possíveis na
cidade de São Paulo. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade
do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora
esconderijo como fazem as crianças. A criança com sua inventividade e ludicidade
próprias das culturas de infância nos mostra outras cidades possíveis num ato de
criação de inúmeras possibilidades de construir e desconstruir os espaços
urbanos.
Busca‐se descobrir como as crianças da cidade de São Paulo (re)criam e como se
relacionam no/com o espaço urbano.
De um lado temos o mundo adulto que se coloca como o detentor de um
conhecimento sobre quais devem ser os espaços destinados à infância,
configurados em um brincar na cidade, em locais fechados e institucionalizados,
enquanto que do outro lado temos a infância a mostrar que pode construir um
outro conhecimento possível sobre o espaço urbano em um brincar com a cidade.
Para que se possa compreender a criança como detentora de um conhecimento
e saber do espaço urbano é importante pontuar e clarificar a concepção de infância
com que se vai trabalhar. A perspectiva que se vai adotar é a da sociologia da
infância tendo a “infância como categoria social e as crianças como sujeitas de
direitos, com voz e ação nos seus cotidianos”. (SOARES, 2005, p: 3)
A SOCIOLOGIA DA INFÂNCIA
A sociologia da infância entende a criança como ator social produtora de
conhecimento e saber e reivindica que se considere a criança por si própria com
autonomia epistemológica de forma a romper com as adjetivações negativas
pautadas nos conceitos de incompetência, imaturidade, ainda não sabe, não pode,
não conhece, atribuídas a esta categoria geracional da infância. Propõem‐se revelar
a criança na sua positividade como ser ativo, participante e atuante da sociedade
em que está inserida, e não como mero objeto passivo de socialização imposta
pelos adultos.
As crianças não devem ser vistas como sujeitos passivos que apenas incorporam
a cultura adulta que lhes é imposta, mas como sujeitos que interagindo com este
mundo cria formas próprias de compreensão e ação a serem parte integrante da
sociedade.
O que vemos é uma infância colocada na “sala de espera” em espaços
institucionalizados e destinados à elas aonde só é sujeito, cidadão, integrante e
participante da sociedade ao se tornar adulto, daí a importância e a contribuição da
sociologia da infância de reconhecer a infância como grupo específico, mas não
isolado.
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NASCIMENTO, N. (2007) A cidade (re)criada pelas crianças ‐muitas cidades possíveis na
cidade de São Paulo. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade
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inacabado da condição humana (…) sujeitos de pouca idade sim, mas que
lutam através de seus desenhos, gestos, histórias, falas, imaginação e
outras tantas formas de ser e de se expressar pela emancipação da sua
condição de silêncio. (SARMENTO, CERISARA, 2004, p: 184185)
São estas múltiplas formas de expressão das crianças que à sua moda
compreendem o mundo que as cerca que se busca observar na relação destas com
o espaço urbano. Estas manifestações infantis presentes no cenário urbano são
provenientes de uma cultura própria das crianças que precisam ser
compreendidas e levadas em conta por aqueles que pensam os espaços da cidade.
AS CULTURAS DA INFÂNCIA
A flor
Pede‐se a uma criança: desenhe uma flor! Dá‐se‐lhe papel e
lápis. A criança vai sentar‐se no outro canto da sala onde não
há mais ninguém.
Outras eram tão delicadas que apenas o peso do lápis já era
demais.
Depois a criança vem mostrar essas linhas às pessoas: Uma
flor!
As pessoas não acham parecidas estas linhas com as de uma
flor!
José de Almada Negreiros
Este poema português deixa evidente que a criança tem uma cultura que lhe é
própria e precisa ser respeita na sua especificidade.
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NASCIMENTO, N. (2007) A cidade (re)criada pelas crianças ‐muitas cidades possíveis na
cidade de São Paulo. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade
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O que vemos nos espaços urbanos são vários desenhos desta flor, aonde as
crianças imprimem suas formas e dão novas atribuições e significados ao ambiente
que está a sua volta, onde os bancos da praça se transformam em barco e carro, os
postes de iluminação em árvores que podem ser escaladas. Mesmo que o mundo
adulto não consiga enxergar no banco um barco ou um carro, a criança o consegue
perfeitamente a revelar que existe culturas de infância.
Como aponta SARMENTO (2003) esta alteração da lógica formal não significa
que as crianças tenham um pensamento ilógico, pelo contrário há uma organização
lógica que possibilita que a criança transite entre o mundo real e o mundo
imaginário de forma a apropriar, reinventar e reproduzir o mundo que as rodeia.
“As crianças são capazes de inventar, em contextos criados pelos adultos,
os seus próprios subcontextos, que permanecem a maior das vezes
invisíveis para os adultos, mas que são bem visíveis e notórios para as
crianças”. (CORSARO, 1985 apud GRAUE, WASLH, 2003, p: 29)
O conceito de culturas da infância tem sido discutido no âmbito da sociologia da
infância. Por este conceito entende‐se “a capacidade das crianças em construírem
de forma sistematizada modos de significação do mundo que são distintos dos modos
de significação dos adultos”. (SARMENTO, 2003, p:54)
São os elementos constituintes das culturas de infância: a ludicidade, a fantasia
(transposição do imaginário do real) e a reiteração (princípio do qual as coisas
podem ser feitas várias vezes, ela não tem fim) que se busca detectar no ambiente
urbano.
Coloca‐se em questão as culturas de infância no espaço urbano da cidade de São
Paulo de forma a desvendar como a cidade participa do mundo das diversões das
crianças.
A experiência de viver na cidade pode ser muito diferenciada a constituir
culturas da infância no seu plural aonde fatores geográficos, sociais, econômicos
têm que ser levados em conta. Para uma criança que mora na periferia de uma
grande metrópole como São Paulo a busca de lazer e diversão implica deslocar‐se
enquanto que aquelas crianças que moram em bairros nobres têm mil formas de
divertimento a serem consumidos, ainda que confinados e pré‐estabelecidos.
De um lado ficam os parques, shoppings, clubes, cinemas, parques de diversão
erguidos sob uma noção de lazer criado para o consumo que é vendido. Do outro a
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casa, quintal, a rua com a noção do lazer gratuito sem infra‐estrutura. O que vemos
são culturas de infância que se constroem em situações e oportunidades
diferenciadas num mesmo espaço urbano.
Se por um lado há para classe média e alta um lazer em espaços segregados e
exclusivos aonde as crianças são confinadas em espaços planejados e
programados, por outro há uma institucionalização das crianças da periferia aonde
são oferecidos como lazer o seu próprio espaço escolar através do programa
recreio nas férias2, escola aberta3 e a construção dos CEUS.4 Isso porque o mundo
adulto tem uma visão protecionista da criança aonde a cidade oferece perigos para
ela, por isso o melhor é que fiquem seguras a brincar nestes espaços fechados.
Formas de confinamento da infância que negam a vertente lúdica da vida
urbana, mas as crianças nos mostram que não estão condenadas a este
confinamento como enuncia SARMENTO (2003) nos estudos das crianças de
guerra que aponta que é possível criar um outro mundo. As crianças “ganham” a
cidade que lhes foi interditada a brincar com os espaços de modo a ressignificá‐lo a
atribuir novas funções aos mesmos a criar seus mundos e culturas num ambiente
urbano construído por adultos e para adultos.
A CRIANÇA E A CIDADE
Ao contrário, as cem existem
A criança tem cem linguagens (e depois cem, cem, cem), mas
roubaram‐lhe noventa e nove. A escola e a cultura lhe
separam a cabeça do corpo. Dizem‐lhe: de pensar sem as
mãos, de fazer sem a cabeça de escutar e não falar, de
compreender sem alegrias, de amar e maravilhar‐se.
2
Recreio nas férias é um projeto que o governo criou para oferecer atividades recreativas, brincadeiras para as
crianças que estão em período de férias.
3
Escola aberta é um projeto criado pelo governo com o intuito de promover atividades de lazer nas escolas nos
fins‐de‐semana para as crianças participarem.
4
CEUS são centros educacionais unificados. Foram construídos 21 ceus pelo governo de Marta Suplicy aonde
centraliza no espaço escolar os espaços de lazer das crianças: piscina, teatro, parque, pista de skate.
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que não estão juntas. Dizem‐lhe: que as cem coisas não
existem, a criança diz: ao contrário, as cem existem. (Loris
Malaguzzi, 1996)
A cada momento as crianças nos mostram que a cidade pode ser conhecida de
cem maneiras. Se hoje aquele banco pode ser uma casa, amanhã já pode ser um
carro e, assim elas vão imprimindo no espaço urbano seu caráter lúdico e
imaginativo através de cem modos de pensar, de jogar, de falar a dizer que as cem
existem, cem maneiras de ver e conhecer a cidade, mesmo que o mundo adulto
diga que não há por uma falta de compreensão da epistemologia, do sentimento e
da realidade infantil.
A infância persiste em seus modos de ser. O criar, o brincar, o sonhar esbarram
nos ideologismos dos adultos: “agora não pode”, “agora não é hora”, “este não é
lugar para isto”, no entanto elas persistem a tornar claro que a criança possui
inúmeras formas de expressão, de comunicação, de ser, existir e conhecer o
mundo.
Benjamin (1992, apud FORTUNA, 1999, p: 27) “assinalava que mais importante
do que conhecer uma cidade era saber perderse nela, sobreviver na ausência de
guias, sem orientações ou trajetos préestabelecidos”.
Nos tempos atuais foi negada a infância a possibilidade de perder‐se na cidade
porque esta é vista como local de perigo e risco, portanto, não é lugar onde as
crianças devam estar. Configura‐se o que denomino de territorialização da infância
aonde a escola e a família se constituem como território do cuidado, da proteção e
da educação e a cidade como território do risco e do perigo.
Na construção desta tríade criança‐escola‐família não há espaço para a cidade
como território que a criança possa conhecer, participar, aprender.
É importante recorrer a história para ver como a cidade vai definindo através de
fronteiras imaginárias o lugar de cada coisa e de cada uma das categorias
geracionais (adulto, criança e idoso).
Até o século XVIII as muralhas eram tidas como características das cidades. As
cidades eram todas cercadas por muralhas onde do lado de fora desta estava o
perigo, os animais selvagens, assaltantes nômades, exércitos invasores, e do lado
de dentro esta a segurança aonde se podia desfrutar da liberdade longe dos medos
e perigos. Hoje o que temos é uma insegurança dentro da própria cidade.
Nas cidades medievais não havia segregação entre os locais de moradia e
trabalho. A casa do artesão era simultaneamente uma unidade de consumo e
produção na qual se engajavam os adultos, jovens e crianças que compunham a
família. A vida cotidiana das crianças estava misturada com os adultos sendo
notável a abundância das crianças nas cenas da multidão no qual a vida privada se
passava mais na rua do que em casa.
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Na idade média, no início dos tempos modernos as crianças misturavam
se com os adultos assim que eram consideradas capazes de dispensar a
ajuda das mães ou das amas, aproximadamente aos sete anos. A partir
desse momento ingressavam imediatamente na grande comunidade dos
homens, participando com seus amigos, jovens ou velhos dos trabalhos e
dos jogos de todos os dias. (ARIES, 1981, p: 275)
As ruas neste período se configuravam como espaço coletivo, e as crianças
perambulavam com ou sem finalidade. Elas não eram segregadas ou separadas dos
demais porque a rua fazia parte do seu mundo.
Na sociedade medieval a atividade lúdica era um dos principais meios
disponíveis para estreitar laços coletivos, isso acontecia durante as festas quando
as crianças, jovens e adultos participavam dos folguedos de modo igual. Era o
espaço onde se dava o aprendizado da criança realizado a partir dos cuidados de
muitas pessoas sem distinção etária aonde a diversidade era encarada com
naturalidade e o espaço de brincar era o espaço público.
No fim do século XIX as crianças começam a ser separadas do mundo dos
adultos e sua aprendizagem que antes era tida na rua com o contato com os outros
que ali circulavam passa a ser substituída pela escola.
A criança foi separada dos adultos e mantida a distância numa espécie de
quarentena, antes de ser solta ao mundo. Essa quarentena foi a escola, o
colégio. Começou então um longo processo de enclausuramento das
crianças que se estenderia até nossos dias, e ao qual se dá o nome de
escolarização. (ÀRIES, 1981, p: 11)
As crianças começam neste momento a perder o espaço da rua, o direito à
cidade, seus novos espaços passam a ser a escola e a família.
“A família e a escola retiraram juntas a criança da sociedade dos adultos.
A escola confinou uma infância outrora livre num regime disciplinar cada
vez mais rigoroso”. (ÁRIES, 1981, p: 277)
Segundo PRIORE (2006) a modernidade passa a ver a criança como um futuro
adulto em construção que precisa ser educado e a família passa a valorizar o foro
íntimo e a vida privada.
Para a burguesia o espaço público deixa de ser a rua e passa a ser a sala de
visitas da sua casa. Do ponto de vista do modelo burguês de morar casa e rua são
dois termos em oposição: a rua é terra de ninguém, perigosa que mistura classes,
sexos, idades, posições na hierarquia, e a casa é o território íntimo e preservado.
As crianças que até então viviam desde pequenas no mundo dos adultos a
aprenderem na prática o que necessitariam para sobreviver passam a ser
separadas por grupos de idade e mandadas a escola. O espaço público vai
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perdendo seu uso multifuncional, a deixar de ser local de encontro, de prazer, de
lazer, de festa, de espetáculo aonde a vida privada emerge marcada cada vez mais
pelo medo e enclausuramento.
Podemos estabelecer uma relação entre casa e rua com família e cidade
respectivamente. É impossível pensar em cidade sem imaginar de imediato um
aglomerado de casas e ruas que surgem como espaços distintos quer do ponto de
vista físico quer do ponto de vista sociológico.
A rua é o espaço aberto, público, onde se desenvolve a vida coletiva, é o lugar do
movimento, das novidades, dos deslocamentos, do desconhecido, das descobertas,
mas é também lugar dos riscos e perigos. A casa é o contrário de tudo isso, abriga
uma coletividade muito mais restrita, organizada pelo parentesco, pelos laços de
sangue, um espaço protegido separado da rua onde não há lugar para o estranho.
Enquanto a casa é o lugar da família, é o espaço íntimo, privado e de proteção, a
rua é o lugar do perigo, do anonimato. Casa e rua se encontram, portanto, num jogo
de oposições entre risco e proteção.
À infância foram designados dois espaços: casa e escola, aonde lhe foi atribuída
o ofício de aluno e de filho, estou a procurar o ofício de criança a revelar o sujeito
criança que está no filho e no aluno. “Casa e escola são os novos espaços que se
erguem em oposição ao espaço externo, e as crianças são encerradas nesses novos
locais onde ocorrerá sua preparação para entrada no mundo adulto”.
(VASCONCELLOS; MOREIRA, 2005, p: 29)
A cidade se constitui como lugar de passagem das crianças que estão a transitar
entre as suas duas instituições socializadoras: família e escola, a cidade se
transforma no elo de ligação, metaforicamente uma ponte entre a casa e a escola a
colocar a infância na “sala de espera” de sua condição de cidadão com direito a
cidade. Se durante os dias da semana não vemos as crianças na cidade porque
estão nos espaços que lhes foram designados pela divisão do trabalho: casa e
escola, durante os fins de semanas encontramos as crianças nos parques,
playgrounds, shoppings, outras formas de confinamento da infância.
Não queremos ver as crianças na cidade porque esta é tida como perigosa e
violenta, uma vez que o sentimento da nova urbanidade se sustenta no medo e na
desconfiança aonde a “sociedade se organizou em torno de uma procura infinita de
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proteção e insaciável aspiração à segurança”. (BAUMAN, 2005, p: 11). Temos medo
das crianças circularem sozinhas pela cidade, medo de se machucarem, medo da
violência, isso porque temos uma visão protecionista acerca da infância o que
resulta cada vez mais no seu confinamento em espaços institucionalizados.
A todo o momento escutamos “expressões corriqueiras como “lugar de criança é
na escola” ou “a rua não é lugar de criança” e outras do gênero delimitam
espacialmente o que os adultos definem por territórios destinados ou vedados para
as crianças”. (VASCONCELLOS, MOREIRA, 2005, p: 41)
Crianças e jovens permanecem como atores invisíveis a não ser quando se
viabiliza de forma negativizada: quando muros e prédios da cidade
aparecem pichadas elas, então, aparecem como personificações do caos e
da desordem citadina, ou quando se inicia o ano letivo escolar, e as ruas
aparecem congestionadas de carros, então crianças aparecem como
problema do trânsito. (CASTRO, 2001, p: 38)
A espacialidade complexa que é a cidade não contempla os desejos e interesses
das crianças, já que a visão adultocêntrica vê a criança somente no ambiente
escolar e familiar, não havendo sentido levar em conta suas opiniões já que a
cidade não é o espaço que lhe foi designado.
“Distanciados de participarem da construção e da ocupação do espaço da
cidade, às crianças fica destinado o espaço da casa, do play, da escola e,
cada vezes menos freqüentemente, de rua. Espaços que são construídos
para ela e não por ela”. (CASTRO, 2004, p: 74)
Se antes as crianças podiam circular e brincar livremente pelos diversos
espaços da cidade como mostra Florestan Fernandes (1979) nas “Trocinhas do
Bom Retiro” com o rápido processo de urbanização os espaços públicos de
socialização foram cedendo terreno para os espaços privados. A infância passa a
ser confinada em espaços institucionalizados aonde é o adulto que organiza o
tempo e o espaço da criança, “os adultos que decidem e dispõe sobre as formas
geográficas e físicas, sentimentais e sociais de viver na cidade”. (CASTRO, 2004, p:
19). Os adultos configuram na cidade quais espaços destinados as crianças e como
estes devem ser a constituir um brincar na cidade, enquanto que a criança quer
brincar com a cidade.
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mundo adulto constrói com a finalidade única de ser um estacionamento
neste momento é recriado e resignificado pelas crianças que dão a este
espaço outra função e sentido. As linhas brancas impressas no asfalto
estão ali para demarcar o espaço reservado para cada carro agora se
transforma em delimitações do tamanho do gol e do campo do jogo de
futebol.” (notas de campo – 18 de Fevereiro de 2007 – Braga)
“Ando pelas ruas da Avenida Central a acompanhar as crianças que estão
a ir para o encontro de fantasias, é Carnaval. Caminho junto à elas até a
Câmera Municipal e observo que as crianças fazem de sua diversão e
brincadeira a vala, o bueiro que o mundo adulto designa para ter a
função de escoar a água. As crianças transformam os buracos da vala a
sua diversão de jogar os confetes de Carnaval, e vêlos cair naquele
buraco escuro, imenso e sem fim é o que estimula a imaginação das
crianças.” (notas de campo – 16 de Fevereiro de 2007 – Braga)
As crianças buscam fazer da cidade, dos pequenos espaços, dos becos, dos
trajetos, dos espaços uma obra também sua, já que a cidade especialmente seus
espaços públicos foi planejada, organizada e implantada por adultos.
Estamos diante de uma cidade pensada, projetada e construída por adultos e
para adultos que adota como “parâmetro o cidadão adulto, abandonando os
cidadãos não adultos”.(TONUCCI, 1997, p: 181) onde as crianças buscam o seu
espaço porque não gostam dos espaços rigidamente definidos, separados,
dedicados a elas. Preferem os espaços utilizados de formas diferentes de acordo
com as exigências da brincadeira, isso porque “os espaços para as crianças
brincarem separados e especializados não é para satisfazer as exigências do brincar
das crianças, mas sim responder as preocupações dos adultos”. (TONUCCI, 1997, p:
95)
Instala‐se aí uma tensão na (re)criação da cidade entre “territórios de criança” e
os “territórios pensados para elas”, de um lado o mundo adulto a dizer que as
crianças devem brincar na cidade em espaços fechados e monitorizado, do outro as
crianças a mostrar que pode brincar com a cidade reinventando‐a e adotando
outras maneiras de imaginá‐la e conferir‐lhe sentido a questionar o “status quo”.
Isso evidencia que o espaço vivido e percebido da criança se opõe ao espaço
concedido do desenhador das cidades e do político.
É na cidade, fora de casa, que as crianças buscam uma certa independência e
autonomia em relação aos adultos de forma a construir sua identidade social e
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cidade de São Paulo. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade
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cultural a atiçar o imaginário, daí a importância de ver as crianças “movimentando
se atuando exatamente no mesmo mundo em que as outras pessoas o fazem, e não
somente dentro desses limitados mundos de brincadeira, do cuidado e da
aprendizagem que tem sido indicados para eles”. (CASTRO, 2001, p: 76)
A cidade deve ser, portanto, o lugar onde crianças e adultos possam viver juntas,
mas é evidente a incompreensão da infância como ator social com direito a cidade.
Isso porque ainda consideramos as crianças como seres imaturos e incompletos
com direitos de provisão5 e proteção6 somente, sem a concessão ao direito a
participação7.
As práticas sociais dos adultos face à infância são dominadas pelo paradigma da
propriedade (meu filho, meu aluno, sei o que é melhor para ele), paradigma da
proteção e do controle que considera a criança um ser frágil sem autonomia, ainda
incapaz que precisa ser protegido e paradigma da periculosidade onde a criança se
desloca pela cidade com bastante restrição.
Quando falamos das crianças na cidade é importante deixar claro de que cidade
estamos a falar. A cidade de que falo é a cidade de São Paulo, uma grande
metrópole do Brasil que assistiu um crescimento populacional sem precedentes na
sua história acompanhado de um crescente medo, insegurança perante a violência.
O espaço da rua antes tido como lugar para brincadeira das crianças se
transforma em via de passagem para carros e, as crianças passam a ser confinadas
nos playgrounds, condomínios, praças e parques onde “jogam jogos em clubes
esportivos melhor que nas ruas, escalam o playground melhor que as árvores”.
(CHRISTENSEN, 2002, p: 66)
São Paulo, hoje em dia é uma cidade de muralhas. Levantase por toda a
parte barreiras materiais. Uma nova estética de segurança preside a todo
o tipo de construções e impõe uma lógica sem precedentes baseado na
vigilância e no isolamento. (BAUMAN, 2005, p: 35)
“Para cada criança do local existe também um lugar de criança, um lugar
social designado pelo mundo adulto e que configura os limites de sua
vivência”. (VASCONCELLOS, 2005, p: 39)
5
Direitos de provisão estão relacionados aos direitos sociais: saúde, educação, segurança.
6
Direitos de proteção contra abuso físico, exploração, injustiça.
7
Direito de falar, ser consultada e ouvida.
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As crianças de classe média e alta vivem isoladas da cidade por meio dos vidros
das automóveis, janelas de suas casas, muros dos condomínios, paredes do
shopping, grades dos clubes, parques e escolas, espaços limitados que se
constituem como ilhas infantis em meio à cidade onde as crianças vão de um
espaço privado a outro espaço privado.
O brincar ao ar livre foi sendo substituído pelo brincar em espaços interiores
cobertos, de menor dimensão no qual dinheiro e lazer apresentam uma
incompatibilidade que opõe os interesses do mundo adulto aos anseios infantis.
Como o espaço urbano pode gerar renda e multiplicar capital, os adultos tendem a
apropriar‐se das áreas que devem ser das brincadeiras e transforma o
divertimento em atividade lucrativa aonde “as áreas de lazer não foram feitas para
jogar bola, brincar de mocinho e bandido, bater piqueesconde, soltar pipa, pular
amarelinha e exercitar o corpo e o movimento”. (VOGEL; LEITÃO, 1995, p: 125)
Enquanto que as crianças de classe média e alta possuem um leque de opções de
lazer, as crianças da periferia, ao contrário, são carentes destes equipamentos e a
falta de dinheiro manifesta nestas o poder criativo o que resulta numa grande
diversidade de brinquedos feitos com materiais nada convencionais: bonecas de
pedras, tijolos, barro, casca de melancia, etc. Para quem mora na periferia a busca
de lazer e diversão implica deslocar‐se o que demanda disposição, tempo e
dinheiro.
As políticas públicas buscam ofertar para estas crianças da periferia práticas
esportivas e de lazer com o intuito de retirá‐las da rua, ou seja, da proximidade
com a violência, drogas e marginalidade. As construções dos vinte e um CEUS
(centros educacionais unificados) nas áreas da periferia da cidade de São Paulo
que tem como objetivo ser um centro de lazer da comunidade com piscina,
quadras, teatro, pista de skate e os programas de governo Recreio nas Férias e
Escola Aberta são formas de institucionalização e confinamento das crianças no
seu espaço escolar diário para que não fiquem na rua onde há violência, perigo e
risco.
Para a classe média e alta o shopping se apresenta como um lugar seguro onde
os pais podem deixar suas crianças a brincar tranqüilamente no piso do lazer em
espaços cercados como uma ilha, enquanto fazem as suas compras.
Os espaços e elementos do cotidiano comuns nas cidades se contrapõem aos
equipamentos e dispositivos especializados para o lazer porque consideramos que
os parques de diversão, as áreas de lazer, as quadras de esporte, clubes cumprem
com mais eficiência e perfeição a função de recrear e divertir em relação às ruas,
praças, calçadas, o que é uma ilusão porque o lazer na rua se revela portador de
uma criatividade.
Não devemos, portanto, cair no simplismo de atribuir a rua um valor intrínseco
de inadequação às práticas do lazer e, em conseqüência, tirar as crianças de lá para
confiná‐las em espaços planejados, programados, segregados e repetitivos a negar
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a vertente lúdica da cidade. Podemos recorrer a ÁRIES (1981) para abordar a
relação histórica do adulto com o lúdico. O autor apresenta a espontaneidade que
os adultos tinham com os jogos e brincadeiras no início do século XVII aonde não
existia uma separação entre brincadeiras e jogos das crianças e adultos como
acontece hoje. Os jogos e festas eram o principal meio de socialização que
incentivava a coletividade das pessoas – era a época da valorização do lúdico, mas
com o advento do capitalismo o trabalho passou a ser obrigatório para os adultos e
o lúdico passou a não fazer mais parte de suas vidas a estar presente apenas no
mundo das crianças.
Temos que atribuir à rua seu valor instrutivo e educativo, por isso, é preciso
compreender como já foi enunciado na Carta das Cidades Educadoras de Barcelona
em 1990, que além das instituições sociais como a escola e a família, a educação
também deve ser competência da cidade uma vez que “viver na cidade implica
aprender com, na e a partir da cidade”. (CASTRO, 2004, p: 24) Adotar uma
perspectiva da cidade como espaço de aprendizagem.
“Sair de casa, recorrer às ruas, conhecer seu ambiente é uma exigência
importante para o crescimento não só social, mas também cognitivo da
criança”. (TONUCCI, 1997, p: 61)
Para além da cerca do quintal, do muro da casa, do portão do jardim e da
grade do parquinho, começa um universo de mil formas, possibilidades
espaços e acontecimentos. O espaço controlado e vigiado do lar cede
terreno à rua, à praça, ao bairro. Aí começa a cidade e com ela o
variadíssimo leque de contatos, relações, espetáculos e equipamentos que
podem satisfazer os mais ousados e fantasiosos sonhos de lazer e
diversão. (VOGEL; LEITÃO, 1995, p: 118)
As crianças buscam, portanto, apropriar‐se da cidade e transformar, resignificar
e recriar os espaços que os adultos constroem de forma a reconfigurarem seu
próprio espaço. Vemos os espaços urbanos serem (re)criados e resignificados
pelas crianças aonde os espaços construídos pelos adultos e para os adultos
ganham outro sentido e função.
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NASCIMENTO, N. (2007) A cidade (re)criada pelas crianças ‐muitas cidades possíveis na
cidade de São Paulo. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade
do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora
“Os espaços, prédios, ruas são permanentemente reinventados pelo modo
como grupos, galeras se apropriam desses espaços impregnandolhes de
outras perspectivas de ser e viver na cidade”. (CASTRO, 2004, p: 163)
A presença da racionalidade infantil na cidade nos ensina que os espaços a todo
o momento podem ser (re)criados, (re)desenhados e transformados a tornar
evidente que os espaços e objetos podem ter múltiplas funções.
As crianças têm muito a contribuir na cidade e para a cidade, seja pela sua
interferência na construção dos espaços físicos, a dar suas opiniões que dão uma
outra perspectiva que o adulto não tem, a configurar um ambiente urbano mais
lúdico, a quebrar com as cenas repetitivas da cidade, seja pela sua espontaneidade
que rompe com o clima de silêncio e estranhamento instaurado entre os adultos da
modernidade urbana “que habitam um lugar cheio de desconhecidos que convivem
em estreita proximidade” (BAUMAN, 2005, p: 33) onde as pessoas passam umas
pelas outras sem se falar, se olhar, se tocar a deixar as relações sociais cada vez
mais distantes. As crianças descontraem o ambiente urbano, olham e falam com
aqueles que não conhecem, fazem rir os rostos sérios, tensos e sisudos dos adultos
a desfrutar da “pedagogia do olhar que a rua promove, olhase tudo e todos”.
(CASTRO, 2004, p: 61)
Essas atitudes das crianças são condenadas pelos adultos que dizem para não
falar com estranhos e não chamar a atenção em público, mas “para as crianças a
cidade apresentase como lugar de desfrute e diversão algo cheio de novidades e
atrações oferecidas sem cessar”. (CASTRO, 2004, p: 122)
A criança colabora para alterar a cidade seja nas relações sociais que nela se
constrói (contribuição de seu contato físico e social com os adultos e suas
reinvenções dos espaços) seja na participação do espaço físico da cidade a ajudar a
pensar os espaços que se erguem no espaço urbano.
A criança com sua inventividade e lúdico próprios das culturas de infância nos
mostra outras cidades possíveis num ato de criação de inúmeras possibilidades de
construir e desconstruir os espaços urbanos, a permitir “olhar o mundo através das
infinitas recomposições que a imaginação nos permite”. (CASTRO, 2004, p: 215)
Não é pelo fato das crianças falarem diferente do adulto, utilizar meios de
expressões e linguagens que lhes são próprias que devem ser consideradas inaptas
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NASCIMENTO, N. (2007) A cidade (re)criada pelas crianças ‐muitas cidades possíveis na
cidade de São Paulo. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade
do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora
a contribuir para a vida na cidade. Pelo contrário, por trazer sua diferença que
dialoga com adulto a colocar um outro ponto de vista, uma outra perspectiva de se
ver a cidade é que evidencia a importância da construção de um espaço público
que compreenda múltiplas perspectivas aonde a criança pode mostrar aquilo que
está oculto aos olhos dos adultos.
A criança nos ensina, portanto, que os espaços da cidade são multifuncionais e
podem ser utilizados e conhecidos de diversas formas onde a cada dia adotam uma
função diferente a tornar o conhecimento destes espaços sempre dinâmico, basta
você brincar com a cadeira e ficar de ponta cabeça invertendo a posição habitual
que um novo ponto de vista é conquistado.
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