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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LIME

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoríam)
APRESENTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanca a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanca e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
W_ vista cristáo a fim de que as dúvidas se
. • dissipem e a vivencia católica se fortalega
"*" no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabal no assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publ¡cacao.

A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaga


depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
ANO III

33
S E T E M B R <

1 9 6
ÍNDICE

I. CIENCIA E RELIGIAO

1) "Que dizer don famosos casos de 'ressurreigño' obtida


por vwio da Medicina? Já acontecen que defimtos comegassem
a viver após intervengño do médico!
Essas experiencias nao demonstran que nao existe alma no
homem, mas que a vida é mero produto das reacoes da materia?" .755

2) "Que diferenga há entre inteligencia e instinto?


Diz-se que os animáis inferiores ao homem nao possuem
inteligencia, mas apenas instinto. Porque?" S62

n. DOGMÁTICA

3) "Que é a Mística?

Será possivel haver vida mística fora do Cristianismo?" S71

í) "Que pensar dos faquires?


Nao estarna munidos de especial assisténcia divina para fazer
os prodigios que fwcm?"

ni. SAGRADA ESCRITORA

5) "Como .se explica o texto de Silo Mateus 27,52s, que


refere a ressurreigño de deftintos no dia da vwrte do Senlwr?
Quem eram ésses ressnscitados? Morreram novamente? TerSo
mbido ao céu cm corno e alma com Jesús?" 55.7

IV. HISTORIA DAS RELIGIOES

6) "Em que consiste própriamente o credo do Islamismo?


Parece haver afinidade nao desprezível entre a religiüo da
Maomé e o Evangelho. Como se entende isso?" 3Sr,

CORRESPONDENCIA MIÚDA (Maritain) ,;5;

COM APROVACAO ECLESIÁSTICA


«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

Ano III — N« 33 — Selembro de 1960

I. CIENCIA E RELIGIaO

ESTUDANTE (Rio de Janeiro):


1) «Que dizer dos famosos casos de 'ressurreicáo' obtida
por meio da Medicina? Já aconteceu que defuntos recomecassem
a viver após intervencáo do médico!
Essas experiencias nao demonstram que nao existe alma
no homem, mas que a vida é mero produto das reacoes da
materia?»

Em resposta, comegaremos por lembrar um dos casos mais


recentes que ilustram o problema: em 1959 o médico Dr. Pedro
Meinberg foi vítima de um enfarto do miocardio no Hospital
dos Comerciarlos do Rio de Janeiro, vindo a «morrer» sem
demora; ¡mediatamente, porém, sobreveio um conjunto de
médicos especialistas, que recorreram principalmente a mas-
sagens no coracáo da vítima; em conseqüéncia, oito minutos
após a «morte» o Dr. Meinberg tinha recuperado a vida!
Para elucidar o alcance filosófico-religioso désse e de se-
melhantes episodios, os parágrafos que se seguem explanaráo
algumas nocóes referentes á alma e á morte do homem.

1. Algo sobre a alma humana

O tema «alma humana» já ioi mais de urna vez abordado em


«Pergunte e Responderemos»; tenham-se em vista os fascículos
«P. R.» 5/1958, qu. 1 (distincáo entre espirito e materia);
«P. R.» 7/1958, qu. 1 (origem da vida);
«P. R.» 4/1957, qu. 3 (origem da alma humana);
«P. R.» 2/1957, qu. 5 (imortalidade da alma).
Na presente resposta, deter-nos-emos apenas na consideracao de
alguns aspectos de Psicología que interessam aos apregoados casos
de «ressurreicáo».

1. Todo ser vivo (planta, animal irracional, homem)


possui um principio vital, isto é, um principio imánente que, sob
a agao de Deus, dá vida ao respectivo vívente.
A existencia désse principio vital se depreende da consi
deracao das fungóes características de todo e qualquer ser
vivo. — Se bem que ninguém até hoje possa dizer qua'l a
esséncia ou a estrutura íntima da vida, certo é que esta se
distingue por duas manifestagóes inconfundiveis:

— 355 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 33/1960, qu. 1

a) Auto-regula?ao. O organismo de qualquer vívente


compóe-se de muitos elementos químicos (hidrogénio, oxigénio,
calcio, carbono, ferro, etc.). Ésses diversos elementos, porém,
nao se comportam independentemente uns dos outros, mas
suas reagóes específicas sao coordenadas e dirigidas para a
conservagáo do conjunto (do organismo) a que pertencem.
As fungóes parciais (de célula, de tecido, de órgáo...) num
ser vivo, por múltiplas que sejam, sao devidamente concate
nadas entre si, de modo a realizar urna única grande fungáo e
a servir a um único sujeito.
Deve-se mesmo dizer que urna das notas mais típicas do
ser vivo é a unmade. — Haja vista um ser náo-vivenie como,
por exempio, urna rocha: quebrada e pulverizada, a peora
guardará sua estrutura característica em cada um dos irag-
mentos resultantes do bloco; cada qual déstes aínda será pedra.
Ao contrario, quando se corta urna rá ao meio, nao se pode
dizer que ficaráo duas metades de rá ou urna rá em auas
metades; em breve cada urna das partes separadas irá perden-
do o seu funcionamento e a sua realidade de rá; entrará em
decomposigáo, e finalmente tornar-se-á poeira. Donde se vé
que o ser vivo nao existe senáo em sua unidade característica
ou em sua organizagáo típica. Isto quer dizer que no vívente
cada parte só tem razáo de ser em vista do todo e dentro do
todo.

Ainda para avaliar o que é a unidade do vívente, note-se que,


no tocante á alimentagáo, o ser vivo nao ingere qualquer outro ser;
antes, escolhe no seu ambiente o que lhe convém e elimina o que
nao lhe serve: nutre-se, por exempio, de verduras, frutas, laticinios,
carne..., de tal modo, porém, que apás a digestáo ésses alimentos
estejam convertidos na estrutura do ser vivo; o que nao possa ser
assimilado, o que quebraría a unidade do organismo, é simplesmente
langado íora, segundo sabio processo de metabolismo.
Mais ainda: veriíica-se que qualquer lesáo infligida a um ser
vivo afeta em certo grau o organismo inteiro; cada urna das funcSes
déste é de algum modo mobilizada para reparar o daño sofrido por
um só órgáo que seja.

Tais fatos levam a concluir que em todo ser vivo há um


principio de auto-regulacao, isto é, um principio que dirige
as fungóes particulares dos respectivos componentes, impri-
mindo finalidade superior a cada urna délas; é ésse principio
que torna possivel a existencia, de um grande todo, que nao
é simplesmente a soma dos seus ingredientes (nao é mero
agregado de oxigénio, hidrogénio, ferro, calcio...), mas é
realidade nova: roseira, cao, corpo humano, etc.
b) Proliferagao. Outra propriedade dos seres vivos é a
reproducáo de si mesmos. Com efeito; o vívente nao se limita

— 356 —
MEDICINA E RESSURREICÁO

apenas a existir; tende também a se expandir e a se multiplicar,


produzindo rebentos da mesma natureza que os genitores. Em
urna palavra: todo ser vivo desprende de si células germináis
capazes de perpetuar a especie á qual ele pertence. Já que
o mineral nao realiza tal fungáo, diz-se que é característica dos
viventes; supóe um principio intrínseco de atividade capaz de
coordenar e subordinar as atividades dos minerais que compóem
o organismo vivo.

2. Estabelecida a existencia de um principio vital em


cada vívente, faz-se mister frisar que nos irracionais (plantas
e animáis inferiores ao homem) ésse principio é material, pois
suas funcóes (vegetativas, na planta; vegetativas e sensitivas,
no animal) estao estritamente ligadas a órgáos corpóreos e
a objetos concretos; a planta, por exemplo, se nutre «déste»
conjunto de minerais, «aqui e agora» existentes; o cao vé «éste»
ou «aquéle» objeto determinado que se tornará sua presa
ouve «tal» ruido concreto que o estimula, etc. Ora a atividade
de um ser é a expressáo da sua estrutura ou da sua esséncia.
Por conseguirte, atividade limitada pela corporeidade implica
esséncia limitada pela corporeidade, ou seja, esséncia corpórea
E o eme nos leva a afirmar que o principio vital (principio de
atividade) da planta e do animal irracional é material ou
corpóreo.
No homem, ao contrario, o principio vital nao é material,
mas imatenal ou, como se diz, espiritual. Com efeito; a vida
no homem tem afirmacóes que transcendem os limites da
materia, do concreto: o homem pode nao sómente adquirir o
conhecimento «déste» ou «daquele» objeto bom, belo, forte,
justo, sabio, mas por sua inteligencia chega a conceber a
nogáo universal da Bondade, da Beleza, da Fortaleza, da Jurtiga,
da Sabedoria. Conseqüentemente, conclui-se que dentro do
homem o princ'pio de atividade transcende a materia; é ima-
terial ou espiritual.

nrOnÉT Prínc'DRio vital espiritual (também dito «aTma humana»)


preenche simultáneamente as fune&es da vida intelectiva, da vida
fn£a ertatlVa; "^ M dU té *
3. De quanto foi dito seguem-se proposigóes importantes
concernentes á origem e á duragáo da alma.
a) O principio vital das plantas e dos animáis irracionais,
sendo material, é oriundo da materia mesma. Desde que os
genitores deem origem a um embriáo suficientemente orga
nizado para ser sede da vida vegetativa ou sensitiva, a própria
materia produz de si o respectivo principio de auto-regulagáo

_ 357 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 33/1960. qu. 1

ou de vida vegetativa e sensitiva. Ésse principio vital passa


a atuar no respectivo organismo, e ai permanece enquanto
o organismo conserva sua estrutura característica, ou seja,
enquanto nao sofre desgaste ou lesáo tais que tornem impos-
síveis as fungóes da vida.

É conhecido o fato de que a vida em seus graus de perfeicSo


ascendentes requer um organismo cada vez mais complexo por isto
cada vez mais tenue ou delicado. Pode acontecer que urna parte
relativamente pequeña de um verme, amputada do seu conjunto con
serve a vida e restaure a figura completa de tal verme; o mesmo,
porém, nao se da com urna parte relativamente pequeña de um cao.

Desde que o organismo da planta ou do animal irracional


sofra avaria tal que nao seja possível continuar-se ai o exer-
cício das fungóes da vida, o respectivo principio vital é reabsor-
vido pela materia da qual ele procedeu. Tal principio vital
deixa simplesmente de existir; a materia produz em seu lugar
outros principios de atividade (já nao atividade vital), como
sejam os principios de atividade do oxigénio, do hidrogénio,
do calcio, do ferro (o organismo morto, perde, sim, sua unidade,
e decompóe-se nos múltiplos elementos que o constituianv
torna-se gas e pó...).
b) No homem, ao invés, a alma, nao sendo material, nao
pode originar-se da materia, nem ser reabsorvida por esta.
Ela é criada diretamente pelo Autor mesmo da materia ou
por Deus; permanece no corpo enquanto éste lhe oferece as
condicóes necessárias para o exercício da vida própria do
homem (que é vida simultáneamente intelectiva, sensitiva e
vegetativa). Separa-se, porém, do organismo desde que éste
se ache danificado a ponto de nao poder mais desempenhar
as funcóes da vida. Quando o organismo comega a se dissolver,
a alma humana nao é destruida, mas volta ao seu Criador, ao
qual ela presta contas de sua conduta na térra.

Tais nocaes já tendo sido desenvolvidas pelos artigos de «P R»


citados no Inicio desta resposta, limitamo-nos aqui a frisar o segu'inté'
a permanencia da alma humana no respectivo corpo depende sempre
da conservacüo da estrutura característica de tal organismo Desde
que esta venha a ser aletada em algo de essenclal fsejaTpor lente
molestia, seja por golpe violento), lnlcia-se o processo de separaclo
dt«íí?í,annert¿OMCOrpo: °^Sr?0' em conseqüéncla, perde a sua unidade.
decompondo-se nos múltiplos elementos que o constltuem e aue a
alma presente subordina a urna flnalidade superior. Tal processo
SfnS? FfiSV; P?de t**}™*0 ou rápido, nunca, porém" Instan
neo. Ora é justamente a malor ou menor morosidade da separacáo
ete nJ» """'i0 q-Ue dá Jugar aos lenomenos enunciados no cabécalho
fX Sen°S T>a™ °S qU&iS devemos aS°ra diretamente
— 358 —
MEDICINA E RESSURREICAO

2. Morte aparente e morte real

1. A alma se acha no corpo humano nao como um


pnsioneiro em seu cárcere (o que nao seria natural) nem
como um piloto em sua nave (tipo de uniáo demasiado vaga)
mas como o carimbo na respectiva cera ou, segundo a lingua-
gem precisa de Aristóteles, como a forma na materia- corpo e
alma sao duas substancias incompletas que se completam em
uniao mutua, constituindo um único principio de atividade.
Visto que táo íntima é a uniáo de alma e corpo compre-
ende-se que a respectiva separacáo nunca se dé instantánea-
m!.nlf' N\base de observacóes cada vez mais precisas, os
estudiosos hoje em dia afirmam que, entre a exalagáo do último
suspiro e a total extincáo da vida de um ser humano, se registra
um intervalo, ora mais, ora menos demorado, em que a vida
permanece em estado latente, podendo mesmo em alguns casos
ser reativada.

T siI?P!es-
?P! dir-se-á: ninguém
nguém morre no momento geral-
acttlm°S °U «deílnltlvo»- ™* *»• »PÓs um intJrvalo
Tractotlm°S
Mais precisamente, o Dr. D'Halluin, na obra «La mort
cette inconnue» (París, 1940), distingue as seguintes modal¿
dadcs no desaparecimento da vida de um organismo:
a) Estado de morte aparente. A respiracáo e as Dulsaeoes car
diacas tornam-sc miase imperceptiveis, emboía aindf s^ veriflauem
Medíanle ratamonl,, que em nossos días nao erare Trespiracao'
nía
maisí ™LL7CW%^q,Ua,daS>HPOdem *r «stabe.ecidas
normal. — Nao e tal estado que suscita emTorma
questóes filosófico reli
glosas, ou seja. questóes de «ressurreicáo» ou regr/sso da alma
TP^¿TVe qUe " "á0 há P^Prleá oessa.áo £\
I» Kslaili. do morli- relativa. A siluagüo é muito mais grave
GCOr;TÜ dcíxa <l0 wtCr (lima aKU'ha <lue ° tot1uc- n^« P™clu¿
alguma); os eletrocardiogramas emudecem Das tres fun-
rT.WVTT™*"1 a Vida - a resP¡raCüo. a circulacao do sangue
Lr
I <>i ?í.m Id° rfii-amlo.
«omploto Si .PmaomneVVOSO
alguns -• as duas
casos, Prlmelras
no paciente podom
certa cessar
conocencia
ilo que so da em lórn,, déle. O estado de rnorlo relativa se ve'rSfca
M^arnrtCm cVnse(lü^f¡a de sincope, asfixia, destacas de narcoset
atrolia de recem-nascidos. etc. — Ésse estado de coisas se n5o é
dcvidamente remediado, leva por si ao *."«■««.. se nao e

n,-i:,C> íSiiI?!10 J1*" 7>arte al)sohlta °" real. ou seja, á separacáo pró-
horaT Sil-, I&m h"13 eH° COrp°'.oralmente alistado, após algumas
Ceaa;a« i'lir^8 1f/° ^adaver- Pel° aparecimento de manchas violá
ceas ñas extremidades do mesmo, pela intumescencia de certas partes
do corpo dev.da a formacáo de gases ou á putrefacto da carne, etc!
— 359 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 33/1960 qu. 1

Ora é o estado de morte relativa que interessa ao nosso


estudo. Em tal situacáo, deve-se dizer que a alma humana se
acha no corpo toda presente (a alma nao se decompóe em
partes), apenas nao se manifesta porque o organismo já nao
Ine oferece as posibilidades para o exercício da mais simples
das fungóes vitáis perceptíveis. O individuo, embora pareca
morto, na verdade está vivo; sua alma se encontra no corpo
respectivo. Éste, porém, se acha na iminéncia de perder o
mínimo de organizacáo necessária para ser sede da vida
humana (isto é, para que a alma néle permanega) Em tais
circunstancias, um tratamento médico aplicado com habilidade
(injegoes intra-cardíacas de substancias excitantes, principal
mente de adrenalina ou de atropina, massagens do coracáo
por abertura do tórax ou do diafragma, injecóes intra-arteriais
dadas no sentido inverso da circulacáo, transfusáo de «serum»
de plasma fresco ou conservado...) pode impedir a total
destruicao do conjunto ameagado, ocasionando a ulterior per
manencia e novas manifestacóes da alma existente em tal
organismo.

Sabe-se que numerosos sao os casos em que as funcóes


»n™¿ br¿SCamente orto
interr<»np¡das.
aparentemente morto,
»np¡das. casos portante^
nao soíreu o desgaste
det
|
que do or|anS
ou a desagregado
necessária para tornar impossível o exercício da vida. ^csa^°

É claro, porém, que, dada a rapidez do processo destrutivo,


a intervencáo dos médicos só será eficaz quando realizada
dentro de breve prazo após a extingáo dos síntomas de vida
(por vézes um intervalo maior do que o de cinco minutos já
e fatal). Caso tal agáo seja bem sucedida, o fenómeno deve
ser tido nao como «ressurreigáo» do corpo, nem como «reani-
magao» (o que suporia volta da alma ao corpo), mas apenas
como «reativacáo» (ou seja, recuperagáo das atividades vitáis).

Compreende-se que o éxito dos processos de reativagáo


nao é instantáneo, mas por vézes relativamente lento e tardío.
O Dr. d'Halluin conseguiu restaurar as funcóes cardiacas de
um paciente tres horas após os primeiros sinais de morte
Por conseguinte, em casos de asfixia, afogamento, aplicacáo de
corrente elétrica, os peritos recomendam a prolongagáo da
técnica de respiragáo artificial durante tres, quatro seis ou
mesmo oito horas, pois já se tém visto tratamentos bem
sucedidos a táo longo prazo (por tanto tempo a alma pode
permanecer no aparente cadáver!).

— 360 —
MEDICINA E RESSURREICÁO

A guisa de complemento, podem-se citar alguns dos resultados


mais importantes já obtidos neste setor.
Em 1891, Arnaud, injetando sangue defibrinado e oxigenado ñas
coronarias, conseguiu reaüvar um coracao parausado havia 25 minutos.
Em 1892, Hédon e Gilis, por ésse mesmo método, fizeram pulsar
de novo o coracao de um condenado á morte, tres quartos de hora
depois da sua execugáo.
Em 1903 Koubliabko obteve semelhantes resultados em coracóes
de mamíferos tres e até cinco dias após a sua paralisia. O mesmo
restaurou as funcSes normáis do coracao de criancas vítimas de
pneumonía trinta horas após a morte aparente.
Nos últimos anos, dois médicos soviéticos, V Negovisky e A
Makarycher, dedicaram-se especialmente aos feridos de guerra tidos
por mortos: injetando no coracao por via arterial sangue glicosado,
adrenalisado e oxigenado, puderam restabelecer as funcSes vitáis
perdidas, no intervalo, porém, de tres ou, no máximo, cinco minutos
após a morte aparente ou clínica.

2. Para ilustrar o estado de vida latente ou de morte


aparente que acabamos de focalizar, os autores costumam
referir-se aos chamados estados «de hibernagáo» ou «de vida
a ritmo reduzido».

Com efeito, sabe-se que há animáis, como a marmota, que passam


os vanos meses do invernó mergulhados no sonó; a respiracáo entáo
torna-se-lhes táo iraca que é quase imperceptível; as suas pulsacfies
difícilmente se deixam apreender; o organismo baixa not&velmente
de temperatura; nao comem nem bebem; dir-se-iam seres mortos.
Há também viventes microscópicos, como os tardígrados ou rotí
feros, que perdem tdda atividade vital desde que lhes venha a faltar
a necessária humidade. Ficam como que ressequidos e em completa
inercia durante meses ou mesmo anos. Contudo essa «morte» nao é
senao aparente, pois, urna vez recolocados nagua, maniiestam de novo
suas funcfies vitáis. Ésses animaizinhos podem mais de urna vez na
sua existencia passar pelas fases de morte aparente e reativagáo; mas
após certo número de experiencias, já nao é possível restaurá-los;
sobrevém a morte real, o que bem significa que a vida de tais seres
nao é funcáo da Jftumidade ou do ambiente apenas, mas se deve
antes do mais atribuir a um principio vital néles existente.
Pois bem; é fenómeno análogo que, em proporcOes reduzidas, se
verifica quando o homem passa pelos estados de morte aparente e
morte relativa.

3. Urna conseqüéncia pastoral

As observagóes de Medicina aqui referidas tém importante


repercussáo no setor da teología pastoral.
Já no séc. XVín um autor beneditino, Frei Bento Jeró
nimo Feijoo y Montenegro (f 1764), preconizava a oportunidade
de se administrarem bs sacramentos mesmo após o último
suspiro de um paciente. Eis os intervalos dentro dos quais ele
julgava ser plausível tal ministerio: «meia-hora em caso de
doenga; duas ou tres horas em caso de acídente que abrevie

— 361 —
5ggRGUNTE E RESPONDEREMOS» 33/1960, qu. 2_

urna enfermidade; dez, doze ou mais horas em caso de morte


ocorrente numa pessoa cheia de saúde».
O Pe. Ferreres S. J. no seu «Compendium theologiae mo-
rahs», 2a. ed. 1928, pág. 464, assinalava a obra de Feijoo com
o seguinte comentario:

«A nenhum pastor de almas será licito ignorar ésse opúsculo


como exorta o periódico 'Acta Apostolicae Sedis1; .. o Cardeal Gennari
por sua vez, no 'II Monitore' recomenda seja o dito opúsculo adotado
em todos os cursos de teología... Pió X também o qualificou como
hvro de grande utilidade para o género humano, para a ciencia e
para a religiao; e declarou desejar ardentemente que a sua doutrina
se torne bem conhecida principalmente entre os médicos e os
sacerdotes».

Hoje em día os teólogos ensinam ser certamente licito,


e mesmo muito recomendável, administrar sob condi"áo («se
estás vivo...») a absolvigáo sacramental e a Extrema-Uneáo
apos a morte aparente. Alguns assinalam, para éste ministerio,
o prazo de meia-hora nos casos de desenlace precedido de
longa doenca; duas horas, se se trata de morte imprevista (cf
A. Vermeersch, Theologia Moralis m 536; V. Heylen, De paeni-
tentia, Malines 1946, 319).

DESCONFIADO (Sao Paulo):


2) «Que diferenca há entre inteligencia e instinto?
Diz-se que os animáis inferiores ao homcm nao possuem
inteligencia, mas apenas instinto. Porque?»

A questáo ácima tem grande alcance. Visto que «inteli


gencia» designa urna faculdade ¡material ou espiritual, e «ins
tinto» urna faculdade material ou corpórea, trata-se, em última
análise, de saber se há ou nao diferenca entre materia e
espirito ou se existe espirito.
Em nossa resposta, proporemos primeramente as carac
terísticas respectivas do instinto e da inteligencia; a seguir
anaiisaremos alguns testes efetuados pelos psicólogos sqbre ó
comportamento do homem e do animal irracional. Dessas
premissas poderemos por fim deduzir significativas conclus5as.

1. Características resnectivas do
instinto e da inteligencia

1. Que se entende por «instinto?»


«Instinto» (do latim instinguere, impelir, estimular) vem
a ser ua modalidade de acáo ou de reacáo dos seres vivos
assim caracterizada:

— 362 —
DIFERENCA^NTRE_inteLIGÉNCIA E INSTINTO

vagao'dotSSa* ^"^ * necessidades vitáis de conser-


Assim por exemplo, visa a captura da

, nos quais certos animáis posm seus ovos)!

b) o instinto é capacidade de agir inata, anterior a

Distinga-se entre instintos primarios e secundarios- os nrimárine


°nosqUDÍnntiího: P°dem,aPeríeiCoar, como cI de apreender^om °o
nos pmtinhos ou o de mamar nos mamíferos Os secundarios
assim a^^modulacaoVrlaC5et
STa^modul^- VrtrlaC5et deV¡daS
do cantodeV¡daS áá exPeri«n«a
em certos i« ou ^áf
pássaros.

c) Justamente por ser inata, a atividade instintiva repe-


te-se em todos os individuos da mesma especie. Cada animal
possui caracteres morfológicos e fisiológicos próprios, que se
encontrara em seus genitores e se transmitem aos seus des
cendentes; ora entre ésses caracteres estáo os instintos.
Assim cada especie de aranha tece o mesmo tipo de teia- cada
especie de ave constrói o mesmo tipo de ninho, de sorte que com fac?
lidade se depreende, pela anáüse do ninho, qual o pássaro que o
m,ÍUv?t°^
que VirgilioAa abeÍhasñas
decantou de hoje trabalham eiatamente como aquilas
suas «Geórgicas». aquems

d) O animal nao tem consciéncia da finalidade a que


se destina a acáo instintiva. Em geral esta é muito complexa e
envolve vanas atividades pardais do individuo; contudo o ani
mal nao sabe que cada qual de tais atividades está subordinada
a consecugáo de um único grande objetivo.

A guisa de exemplo de como o instinto é cegó node-se notar o


seguinte: caso se substitua 0 casulo de urna aranha'por Ü
iS^T^^ 6 deíende é l
íLéSte'i aliá?" ° mi,stério que paira sobre a vida instintiva- de
lado, ela é inconsciente e cega; de outro lado, porémela tendí
— 363 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS> 33/1960, qu. 2

certeiramente, e com arte maravilhosa, á consecucáo de determinado


objetivo. Haja vista o modo como a abelha dispde o seu mel- constrói
favos em forma de hexágono de tal modo que possam conter o
máximo de mel, com o mínimo gasto de cera.
Leve-se em conta outrossim o proceder de certos insetos hime-
nopteros carnívoros: procuram assegurar a subsistencia da prole
antes que esta nasca; em vista disto, assaltam um grilo urna borbo-
leta ou urna aranha, que o himenóptero assaltante leva para seu
nmho a fim de por seus ovos no ventre do mesmo. Surge porém
um problema: é preciso que a presa nao seja captada morta, pois,
urna vez morta, entraría em decomposicáo e nao serviría mais de
nutrimento aos filhotes; doutro lado, é preciso que nao seja intro-
duzida simplesmente viva no ninho, pois com um golpe de suas
patas, debatendo-se, poderia matar o embriáo no ovo ou a larva
recem-nascida.
O problema, porém, resolve-se de modo estupendo. Ésses hime-
nopteros possuem um ferrao na extremidade do abdomen com o
qual desferem um ou cinco golpes nos centros nervosos motores
da vitima, imobilizando-a por completo; a morte só após longo inter
valo decorre désse ferimento. Ora, para atingir tais centros nervosos
requer-se minucioso conhecimento de anatomía e prectsáo extra
ordinaria no golpear, pois as vítimas sao «encouragadas», de modo
que o ferrao do agressor só pode penetrar através de pontos debéis
correspondentes ás articulacoes dos segmentos do tórax e do abdomen.
O mesmo agressor deve outrossim saber (ou agir como se soubesse)
que, assim ferindo. ele imobiliza a vitima sem a matar. Isto tudo
quer dizer:... deve ter a competencia que somonte alguns estudiosos
especialistas possuem. — Esta qualidade se torna particularmente noto
ria se se considera que, conforme experiencias efetuadas por Fabro, a
atividade dos referidos himenópteros é de todo inconsciente.
Destarte a vida instintiva vem a ser um testemunho continuo
da Inteligencia do Criador, que concebeu tais insetozinhos.
Assim caracterizada brevemente a atividade instintiva, pergunta-se:

2. E que se entende por «inteligencia?»


«Inteligencia» é a faculdade de conhecer típica dos seres
espirituais, ou, no caso que nos interessa,... da alma humana.
Urna de suas expressóes mais obvias é a de estabelecer rela-
góes entre os objetivos que ela conhece. A inteligencia tende,
sim, a abstrair das notas singulares que determinam tal indi
viduo concreto, formulando conceitos universais que se aplicam
a todos os individuos da mesma especie; ela apreende também
as proporgóes vigentes entre causa e efeito, entre meio e fim;
conseqüentemente é capaz de refletir sobre as suas próprias
acóes a fim de as tornar cada vez mais adaptadas á respectiva
finalidade.

O seguinte exemplo ilustra bem o comportamento típico da


Inteligencia: o homem, tendo por sua inteligencia o conceito abstrato
de habitacao ou mansfio, ao construir a sua casa, nao se limita a
determinado tipo de arquitetura nem a urna só especie de material
de construcáo (pedra. madeira, barro, etc.); ao contrario, o mesmo
arquiteto pode edificar as mais diversas habitac5es, desde o abrigo
de emergencia até o imponente arranha-céu; cada urna dessas man-

— 364 —
DIFERENCA ENTRE INTELIGENCIA E INSTINTO

s6es preenche a sua finalldade dentro das circunstancias em vista


das quais ela foi concebida. O animal irracional, ao contrario se
restringe a um único tipo de atividade construtora; cada especie e
as vézes cada sub-espécie, prové de maneira uniforme ao arranjo de
seu mnho ou de seu antro, sem avallar a aptidáo de tal procedimento
a luz da situacáo concreta em que o animal se encontra; donde se
depreende que o irracional carece da faculdade de perceber as pro-
porcSes vigentes entre os diversos objetos que o cercam.

Procuremos desenvolver estas breves nogóes de instinto e


inteligencia, analisando mais alguns exemplos fornecidos pela
Psicología Experimental.

2. Algumas experiencias significativas

Proporemos os casos que interessam ao nosso estudo classifican-


do-os como abaixo se vé:

1. Dependencia © independencia de circunstancias parti


culares. No animal irracional, a atividade dos sentidos influi
de maneira poderosa sobre o respectivo ritmo de vida; o animal
dirige a sua conduta em estreita dependencia das informacóes
que os órgáos dos sentidos, «aqui e agora», lhe comunicam; os
irracionais cujos sentidos tenham sido mutilados, experimentam
notável diminuigáo de sua vitalidade, chegando por vézes a
morrer sem demora. O mesmo nao se dá com o homem; éste
parece ter, além dos sentidos e dos instintos que a estes estáo
associados, um principio de atividade que transcende sentidos
e instintos. Em outros termos: o homem caracteriza os objetos
de seu conhecimento, de modo a reconhecé-los em qualquer
situagáo, independentemente do quadro em que os conheceu
pela primeira vez. É o que as seguintes observagóes ilustram:

Urna galinha que esteja a chocar cuidadosamente os ovos, caso


venha a quebrar um déles, come tranquilamente o seu conteúdo
como so nao lora o objeto quo ela anteriormente tanto acalentava.
O naturalista Volkelt refere que urna especie de aranha, a
«Zilla», além de construir a sua teia, fabrica também um ninho no
qual ela se oculta; logo que vé um inseto capturado pela teia, precipi-
ta-se sobre ele. Caso, porém, o mesmo inseto lhe seja oferecido
dentro do próprio ninho, tal aranha foge, como se nao o reconhecesse.
Bierens de Hann narra que os pólipos se mostram geralmente
muito atentos e rápidos na caga de pequeños caranguejos; desde,
porém, que tais animaizinhos lhes ocorram atados a um fio, íogem
assustados.

Désses fatos parece poder-se concluir que, para a galinha, urna


coisa é o ovo inteiro, visto no conjunto dos demais ovos a ser
chocados; outra coisa é o ovo quebrado. Para a aranha, urna coisa
e a mosca na teia; outra coisa, a mosca no ninho. Para o pólipo,
urna coisa é o caranguejo que caminha livremente; outra coisa, o

— 365 —
«flERGUNTE E RESPONDEREMOS» 33/1960, qu. 2

caranguejo que aparece nagua pendurado a um fio. Dir-se-ia que


o animal irracional contempla cada quadro isoladamente, nao chegando
a relacionar urnas com as outras as situacoes em que se acha.
No ser humano, ao contrario, embora o uso dos sentidos seja
de grande valor, a ausencia de um ou mais déstes nSo impede intensa
atividade psíquica. Foi o que se deu, por exemplo, com Helena
Keller, a qual, cega, surda e muda, alcancou elevado grau de cultura,
chegando a redigir obras de íilosoíia. Outras pessoas, mutiladas em
sua vida sensitiva, puderam nao obstante, aprimorar sua formacáo
intelectual. — Note-se outrossim: o homem pode dizer «o ovo, a mosca,
o caranguejo», sem se referir a determinado ovo, a determinada
mosca ou a determinado caranguejo... A verificacáo déstes íatas
permite concluir, como já o fizemos, que a atividade psíquica do
homem emerge ácima dos sentidos e dos objetos sensíveis que o cercam.

2. Domesticacáo do animal c educagáo da crianza. Há


certos animáis domesticados que parecem táo espertes ou «in
teligentes» quanto um ser humano. Tal é o caso, por exemplo,
dos macaquinhos de circo, que executam exercícios em trapé-
zio, montam a cávalo, andam de bicicleta, tocam acordeáo,
fumam cigarro, comem á mesa com fidalgüia, etc. Dir-se-ia
que entre ésses animáis e um homem educado há mais afinidade
do que entre um indio das selvas e um cidadáo do séc. XX.
Observando de mais perto, porém, o estudioso verifica que,
aquilo que o macaco executa de estupendo, ele o faz únicamente
para imitar o comportamento do homem, sem perceber o signi
ficada intrínseco de seus atos (nao foi em váo que os antigos
deram ao macaco o nome de «simius», isto é, simulador ou
imitador). Em outros termos: a conduta do macaco se deve
a mera associagáo de imagens ou de impressoes; ele aprende
cegamente (isto é, sem saber porque) a realizar tal gesto ou
a efetuar tais e tais agóes desde que seja impressionado por
tal estímulo. Com efeito, o animal que aprendeu alguma «arte»,
nunca evolui nem se aperfeigoa na execucáo da mesma; jamáis
chega ao limite máximo de suas possibilidades; ele apenas
tolera a arte que lhe ensinaram, sem perceber a finalidade da
mesma. Desde que se veja emancipado do seu domesticador,
liberta-se dos costumes que aprendeu, ou emprega desproposi
tadamente os instrumentos que ele antes parecia manejar com
sabedoria.

Assim um macaco pode aprender a comer com a colher; desde,


porém, que o homem o deixe entregue a si mesmo, tal animal usará
da colher para brincar ou para qualquer outra atividade, nao, porém,
para comer. O macaco que toca acordeáo, assim que o pode, serve-se
déste instrumento como se fóra um trampolim, um projétil ou um
bastáo para atingir determinada fruta. O simio que veste trajes
humanos, nao consegue deixar de comer seus próprios excrementas,
apesar dos muttos castigos que lhe sao infligidos.

— 366 —
DIFERENCA ENTRE INTELIGENCIA E INSTINTO

Estes dados mais urna vez mostram que o irracional nao


possui a capacidade de apreender proporgóes ou de perceber
as relagóes vigentes entre meio e fim ou entre causa e efeito.
A crianga, ao contrario, após aprender a manejar deter
minado instrumento, tende a perscrutar as leis do seu funcio-
namento, chegando a desmontar tal objeto, a fim de se tornar
consciente das causas dos respectivos efeitos. Se possível, a
criatura humana, tendo percebido as relagóes que existem
entre as diversas partes do instrumento, ainda procura aperfei-
goar a éste, tomando-o mais adaptado á sua finalidade.
Em outros termos dir-se-á: o irracional vive exclusivamente
no presente; utiliza, sim, conhecimentos adquiridos no passado,
mas apenas na medida em que beneficiam a situagáo presente;
nao possui a capacidade de se emancipar das circunstancias
atuais para conceber de algum modo também o futuro; é
isto que comunica á conduta do animal a índole prática e
realista que por vézes suscita a nossa admirágáo. — O homem,
ao invés, tende a abarcar os acontecimentos passados e pre
sentes numa só visáo de conjunto, na qual o futuro já é previsto
e contemplado; ao desenrolar sucessivo dos acontecimentos o
homem costuma dar urna interpretacáo, procurando os fios
condutores ou as linhas mestras da historia; e é por essa inter-
pretagáo ou por essa «filosofía» que a pessoa humana costuma
primariamente guiar a sua conduta; a situagáo concreta de
determinado momento nao toma entáo senáo valor secundario.

A titulo de complemento, sejam aqui mencionados alguns animáis


famosos, que já íoram tidos como seres dotados de inteligencia:
o cávalo Hans. de Berlim, os cávalos de Elberferd, o cao de Mannheirri,
os macacos Maia de Viena e Basso de Francoforte...; movendo
tabuinhas portadoras de letras e números, ésses animáis pareciam
saber ler, entender urna língua, distinguir as pessoas pelos respecti
vos nomes, executar dlficéis operacSes matemáticas... Contudo a
atenta análise das circunstancias désses casos deu a ver que se
tratava de meros automatismos, dirigidos por movlmentos ou sinais
de pessoas presentes e, em particular, dos domesticadores. Na verdade,
quando se mudavam as circunstancias das experiencias, as agóes
aparentemente inteligentes já nao se veriíicavam ou só se proces-
savam de maneira assaz falha.
Cf. A. Gemelli, Bestie che pensano e íanno i conti... e uomini
che non ragionano, em «Religione e Scienza». Milano 1920, 51-108.

3. Som do animal e linguagem propriamento dita. Por


«linguagem» em sentido próprio entendem-se sons articulados
para designar certos objetos. Em toda linguagem há sempre
um aspecto puramente fonético ou sonoro (a articulagáo de
sons) e um aspecto psicológico (a atribuigáo de valor simbólico
ou de significado a cada som emitido).

— 367 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 33/1960, qu. 2_

Está comprovado que o animal irracional nao emite sons


dotados de valor simbólico ou significativo; os sons do irracional
nao sao senáo manifestacóes de sentimentos genéricos como a
fome, o médo, o atrativo sexual...; constituem a expressáo
de urna necessidade, nunca urna comunicagáo intencional; sao
o movimento reflexo excitado por tal ou tal situacáo concreta.
Verdade é que certos animáis, principalmente o papagaio, apren-
dem a emitir sons semelhantes aos do homem. Verifica-se, porém,
que o, animal irracional nao sabe fazer uso dos seus sons indepen-
dentemente da situacáo concreta em que ele os aprende pela primeira
vez; quando se repete (ou quando lhe parega repetir-se) esta mesma
situacáo, reproduz os mesmos sons, sem perceber o propósito do seu
brado. Assim acontece ás vézes que, íora de oportunidade e de
maneira ridicula, emitam sons outrora aprendidos e emitidos com
propósito. É o que se dá, por exemplo, com o papagaio que ao ser
provocado, repete mecánicamente («ininteligentemente») o que lhe
íói ensinado; é também o caso do cao que ladra automáticamente,
quando se lhe oferece o sinal convencional. A arte de domesticacáo
pouca coisa consegue no sentido de tornar mais plástica, menos
macica ou material a resposta do animal.

A crianga, ao contrario, com poucos anos de idade, coloca


as impressóes recebidas pelos sentidos (vista, ouvido, tato,
olfato,...) a servigo de urna faculdade de conhecimento supe
rior; esta percebe o significado intrínseco de cada situacáo,
sabe também concatenar os acontecimentos da vida, estabele-
cendo entre éles relacóes de causa e efeito, meio e fim. Em
conseqüéncia, emite sons concebidos bem a propósito, palavras
e frases que tém valor perene, universal.

Os estudiosos tém realizado experiencias muito significativas


neste setor. Assim, por exemplo, o casal Kellog permitiu que seu
filhinho Donald, dos dez aos dezenove meses de idade, íósse educado
ao lado de urna criazinha de macaco chamada «Gua», a qual, no inicio
da experiencia, contava sete meses de idade. Os observadores subme-
teram o filhote de macaco e a crianca exatamente ás mesmas provas
(necessidade de íazer um desvio ou um circuito para alcancar o seu
alimento, subir sobre um tamborete, manejar um objeto, obedecer
a urna ordem, etc.). Após minucioso confronto, veíificaram que
durante alguns meses Donald e Gua apresentavam semelhantes rea-
gOes aos estímulos extrínsecos; respondiam aos mesmos testes com
sucesso variável, mas geralmente obtendo empate final; apenas o
macaco se mostrava mais hábil e ligeiro nos seus movimentos físicos,
enquanto a crianca manifestava mais capacidade de prestar atencáo.
Após determinado prazo, porém, observaram que a crianca, por seus
progressos, se dlstanciava do concorrente, de sorte a tornar va qual-
quer ulterior comparacáo. A crianca comecou a falar própriamente;
transpós o limiar da linguagem, que a caracterizarla como ser humano.

A linguagem constituí um pequeño misterio para quem só


leve em conta os dados da materia ou a capacidade que o
corpo humano possui de emitir sons.

— 368 —
DIFERENCA ENTRE INTELIGENCIA E INSTINTO

Quem analisa um cránio humano e o de um macaco, nao


dina que a fungáo da linguagem existe no hornera, ao passo
que falta no chimpanzé; nem na fisiología nem na anatomía do
nomem ha sinais claros e suficientes da faculdade de falar.
Na verdade, a palavra nao procede de um órgáo próprio e
exclusivamente seu. O homem fala, sem dúvida, mediante as
cordas vocais, mas, ao mesmo tempo, póe em agáo a língua a
boca inteira, certas regióes do cerebro, os pulmóes, o aparelho
auditivo (pois o surdo de nascenca é necessáriamente mudo).
Ora todos estes agentes se encontram também no macaco evo-
luido, que déles se serve para emitir sons, nunca, porém, para
falar.
Déste fenómeno se pode deduzir que as fungóes orgánicas
corpóreas, no homem sao elevadas a um plano superior, ao
nivel de vida de um principio nao orgánico, mas espiritual,
que as coordena e faz servir a seu fim transcendente «Que
o chimpanzé tenha a,possibilidade fisiológica de falar, mas
na realidade nao fale, isto se explica por ser a palavrá em
ultima análise, urna funcáo da inteligencia ou do espirito»
(G. Gusdorf, La Parole. París 1953, 4).

mní.2. íat° de qUe <a c?nduta de criancinha nad se diferencia da do


macaco nos seus primeiros meses nao quer dizer que o bebé náoseia
cZ™%° Ser h^man°>desde ?s seus Primeiros dias mesmo desde a
concepcSo no seio materno. Apenas as suas facilidades intelectivas
permanecem latentes em grau maior ou menor, enquanto nao estáo
Plenamente desenvolvidos o cerebro e. em geral os sentidos oue
fornecem á inteligencia os elementos sobre os qúa°s ela racfocSia!
A medida que o desenvolvimento se dá, a crianca manifesta a pre-
senca e as qualidades do seu intelecto.
Experiencia semelhante a do casal Kellog foi empreendida pela
«M11. tta russa ?ra- Kohts' ^e confrontou o comportamento de seu
filhinho com o de um chimpanzé a partir de um ano e meio até os
quatro anos de idade. Observou que o chimpanzé aprendía, sim,
certas facanhas, mas de modo mecánico e rotineiro, sem manifestar
tendencia a se aperfeicoar; ao contrario, o menino demonstrava a
propensáo a realizar trabalho cada vez mais produtivo, ou seja, a
superar continuamente os dados que aprendía. Isto é mais urna vez
indicio de que a crianca estava consciente do significado ou das
proporcoes das artes que assimilava, ao passo que o macaco nao
percebia tais proporcSes.

Assim é com razáo que a faculdade de falar constituí o


sinal de demarcarlo colocado entre o reino dos irracionais e
o do animal racional ou homem; essa demarcacáo é inviolável,
mesmo ao mais perfeito dos viventes meramente sensitivos.

4. Instrumentos de trabalho...

«Instrumento de trabalho» vem a ser um objeto preparado 'lara a


execugáo fiel de certa tarefa; deve adequadamente corresponder as

— 369 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 33/1960, qu. 2

exigencias dessa tarefa; todo instrumento traz em si a marca do


emprégo que Ihe compete. Assim o balde é fabricado para carregar
SU, «* su.f, c°níie"racao exprime tal íinalidade; o balde p!d¡
também ser utilizado como instrumento de defesa ou de ataque;
contudp éste emprégo é evidentemente alheio á idéia que inspira!
a íabricagáo do balde.

Ora observa-se que o macaco se pode servir de um bastáo


para atingir determinado objeto, chegando por vézes a modi
ficar o pau para o utilizar. Tal uso, porém, nao pode ser consi
derado «uso de instrumento», pois de modo nenhum depende
do proposito de «proporcionar tal meio a tal fim»; o animal
visa apenas alargar, no momento presente,' o raio de acáo de
seu organismo, prolongando com um cajado a extensáo de
seu brago; nao tenciona produzir um instrumento para sempre
adaptado á consecugáo de tal ou tal objetivo. Em conseqüéncia,
o macaco, depois de haver usado urna vez o bastáo para resol
ver o «caso», abandona-o, ficando na emergencia de ter que
reconstituir o utensilio quando se vir diánte de problema seme-
Ihante. O homem, ao invés, além de talhar previamente o seu
instrumento, adaptando-o a urna finalidade bem concebida
conserva-o após o uso, tendendo a aperfeicoá-lo; o mesmo ins
trumento pode passar para o servigo de outras pessoas, as quais
por sua vez introduzem novos melhoramentos no utensilio-
assim um instrumento chega a ter existencia independente da
existencia de quem o usa.

multi"
3. Reflexao final

1. Já nao pode restar dúvida de que a faculdade de


connecer, no homem, possui a propriedade de se emancipar de
dados concretos para formular conceitos abstratos e universais
ao passo que o anima] inferior ao homem fica sempre presó
ao objeto singular que Ihe ocorre.
Ora a lógica ensina que a atividade de um ser é a expres-
sao da sua esséncia íntima Aplicando esta proposigáo ao nosso
tema, deduz-se que no homem o princ'pio de atividade ou o
principio vital nao pode ser material nem dimensional, mas há
de ser imateriál ou espiritual; é o que se chama «a alma inte
lectiva», a qual se manifesta típicamente pela inteligencia. No
animal inferior, ao contrario, o principio vital é imaterial- sua
manifestagao tpica é o conhecimento sensitivo, do qual faz
parte o instinto, faculdade cega pela qual um vívente prové
as exigencias primarias da sua conservacjío.
Tal é a diferenga entre inteligencia e instinto.

— 370 —
MÍSTICA-NAO CRISTA

2. Mas pergunta-se: nao será essa diferenga acidental e


superável, de sorte que o animal, hoje tído como irracional,
dentro de determinado período se possa tornar racional ou
inteligente como o homem?
Responder-se-á que nao. A diferenca nao é superável, pois
espirito e materia nao se distinguem um do outro apenas por
questóes de quantidade ou qualidade, mas, sim, por sua essén-
cia ou constituigáo intrínseca. Já Aristóteles (t322) ensinava
que toda e qualquer esséncia é necessária, eterna e imutável.
Donde se vé que, de um lado, a esséncia da materia nunca vira
a ser a do espirito; de outro lado, desde que o homem existe
sobre a térra, é portador do psiquismo que hoje o caracteriza,
embora nem sempre tenha manifestado toda a riqueza de sua
inteligencia (sabemos que a inteligencia, para se revelar, supóe,
além de educacáo e escola, certo desenvolvimento do corpo;
ora é inegável que o corpo do homem primitivo apresentava
tragos muito mais rudimentares do que o de época posterior,
enquanto educagáo e escola eram reduzidas á expressáo mí
nima).

n. DOGMÁTICA

ESCOLÁSTICA (Uberaba):

3) «Que é a Mística?
Será possível haver vida mística fora do Cristianismo?»
Após nos determos sobre os elementos essenciais da vida mística,
focalizaremos os fenómenos de tal tipo apregoados em comunidades
religiosas nao-cristas.

1. Em que consiste a vida mística

Nao é raro entender-se por «vida mística» urna vida caracterizada


por fenómenos extraordinarios, como visñes, éxtases, estigmas, etc.
Tal conceituacao é errónea; nao é nesses feitos extrínsecos, sensíveis,
que consiste a esséncia da Mística. Na verdade, a vida mística, longe
de ser algo de aparatoso e extraordinario, deve ser tida como urna
etapa muito normal na ordem de coisas em que vive o cristáo. Sim;
a vida mística é simplesmente a experiencia que o homem faz de
Dens presente no intimo de sua alma.
Para meltior entender esta caracterizacáo, tenha-se em vista o
seguinte.

Pode haver em toda criatura humana tres maneiras


distintas de conhecer a Deus:

— 371 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 33/1960, qu. 3

natural — na base da razáo apenas

na base da razáo e da
Modo de conhecer Revelacáo sobrenatu
ral
sobrenatural
na base dos dons do Es
pirito Santo e da Re-
velagáo sobrenatural

Vejamos de perto o significado désses termos.


1) O modo natural de conhecimento é o que depende da
aplicagáo da inteligencia; pelo raciocinio o homem é levado,
sim, aos conceitos de «Primeira Causa, Motor Imóvel do Uni
verso, Ser subsistente por si», etc.; foi por esta via que Aristó
teles, Platáo e os filósofos em geral chegaram a conhecer a
Deus;

2) O modo sobrenatural de conhecimento pode-se dar


segundo duas modalidades diversas:

a) pela grasa santificante e pelas virtudes infusas o


cristáo é levado a conhecer algo mais do que o que a razáo por
si só apreende; entra no conhecimento dos misterios da fé reve
lada: a vida intima de Deus (a Santíssima Trindade) e seus
designios referentes á salvagáo do homem (os dogmas da En-
carnagáo e da Redencáo). Note-se, porém, que a graca santi
ficante e as virtudes infusas nao dispensam o cristáo de se
mover ou de exercer seu esfórgo humano a fim de progredir
no conhecimento de Deus: meditando e discorrendo com sua
inteligencia a respeito das proposicóes reveladas, o cristáo vai
adquirindo um entendimento cada vez mais profundo dos mis
terios da fé. É o que se dá na Teología, a qual só pode ser
elaborada segundo o processo lento do raciocinio humano;
b) pelos dons do Espirito Santo (sabedoria, inteligencia,
ciencia, conselho, piedade, fortaleza, temor de Deus) o cristáo
sobe a novo e mais profundo grau de conhecimento. Os dons
do Espirito Santo sao, por assim dizer, pontos de apoio que
o Senhor coloca na alma do cristáo, a fim de que esta possa
receber a acáo de Deus e ser movida segundo um ritmo nao
mais natural, mas todo sobrenatural, em demanda do Altissimo.
Quando os dons do Espirito Santo entram em atividade, nao
é mais a criatura humana que se move á procura de Deus
segundo modo humano, mas é Deus ou o Espirito Santo quem
diretamente move a criatura, comunicando-lhe urna perspicacia
e urna seguranca que ultrapassam de muito a capacidade huma
na. A vista disto, os teólogos dizem que, sob o regime dos

— 372 —
MÍSTICA-NAO CHISTA

dons do Espirito Santo, a criatura «padece» a agáo divina


(«pati divina» é a expressáo técnica já ocorrente ñas obras do
Ps.-Dionísio Areopagita no séc. V e repetida por S. Tomaz,
na S. Teol. I/H 68,2).

Urna figura ilustra muito bem tal doutrina. Imagine-se um barco


sobre as aguas, dotado tanto de remos como de velas. Pode adiantar-se
por impulso dos remos, impulso estritamente dependente da acSo
humana dos remadores e, por isto mesmo, assaz lento. Suponha-se,
porém, que os remadores resolvam cessar sua acáo e desdobrar as
velas do barco para que captem o impeto de um vento que val
soprando favorávelmente; entáo a embarcacao se adianta com veloci-
dade nova, maravilhosa; os homens, porém, ficam, em tal caso, numa
atitude própriamente passiva, e nao atlva. Pote bem; nesta ímagem
as velas simbolizam os dons do Espirito Santo, enquanto o impulso do
vento significa a obra do mesmo Espirito, que comunica um modo de
agir divino a alma agraciada. — Na prática, verifica-se a acáo dos
dons do Espirito Santo em pessoas muito unidas a Deus, as quais,
por exemplo, colocadas na iminéncia de pecar, de repente, sem racio
cinio previo, concebem o que devem íazer ou dizer para evitar o
pecado.

Ora é éste terceiro modo de conhecer a Deus que cons


tituí a nota marcante da vida mística. Em urna palavra, pois:
o estado místico é, como dizíamos, o estado em que a criatura
humana, sujeita á acáo dd Espirito Santo, faz a experiencia
de Deus que lhe está intimamente presente na alma.

É principalmente por efeito do dom da sabedoria que se consegue


tal experiencia (dai o caráter saboroso ou deleitoso que caracteriza tal
experiencia; sabedoria e sabor vém da mesma raiz latina sapere).
Note-se outrossim que a experiencia mística constituí o termo
normal do desenvolvimento da vida interior do cristáo. Nao é reser
vada a almas privilegiadas, mas vem a ser simplesmente a vocacáo
de todo cristáo, desde o dia do seu batismo. Infelizmente, pode-se
crer que a maioria dos discípulos de Cristo nao chega a ésse desa
brochar normal da vida espiritual; iicam muitos a meio-caminho,
nao porque da parte do Senhor faltem os subsidios necessários ao
progresso, mas porque a lentidáo e a covardia da natureza entravam
a agáo désses subsidios. Que o cristáo tenha ao menos cónsciéncia
de tal problema, e nao se delxe ficar num pouco sadio conformismo
com a mediocridade!
Quanto a fenCmenos extraordinarios (éxtases, estigmas e ou-
tros...), podem ser concedidos por Deus ás almas como sinais da
íntima uniáo com o Divino Esposo; podem também faltar sem que
o estado místico soíra detrimento; em nao poucos casos, sao fenó
menos puramente naturais, explicáveis pela atuacáo de faculdades
subconscientes da própria alma humana.

Estes elementos elucidativos da vida mística já bastam


para podermos abordar o tema culminante do cabegalho déste
artigo, a saber:

— 373 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 33/1960. qu. 3

2. A Mística fora do Cristianismo

1. Admita-se o caso de urna pessoa que professe com


toda a boa fé um credo náo-cristáo (mugulmano, budista ou
mesmo pagáo) e pratique lealmente todos os preceitos decor-
rentes de tal ideología. Tal pessoa nao tem problema religioso:
nao conhece senáo a «teología» que seus pais lhe ensinaram
ou, se ouviu falar de outro credo (em particular, do Cristia
nismo), éste nao lhe foi apresentado de modo a lhe suscitar
dúvidas religiosas. — Pois bem; aderindo consciente e integral
mente a Deus em toda a extensáo do que ela vé e do que ela
pode, tal alma recebe de Deus a justificagáo sobrenatural: o
pecado original lhe é apagado; a graca santificante, com as
virtudes infusas e os dons do Espirito Santo, lhe sao infundidos,
á guisa do que se dá no auténtico cristáo (diz-se que essa
pessoa possui «o voto implícito do batismo»; o que quer dizer:
essa criatura é táo reta e sincera que, se ela tivesse conheci-
mento do significado exato do batismo, ela nao deixaria de
o pedir).
Suponha-se ulteriormente que ésse fiel durante anos a
fio persevere numa atitude de docilidade total aos ditames de
sua consciéncia, jamáis contradizendo, nem na teoría nem na
prática, ao que lhe parece ser auténtica mensagem de Deus.
Tal alma se vai encaminhando nao para o Deus Brama, des
crito pelo hinduísmo, nem para a Mente Cósmica, apregoada
por outro credo panteísta, nem para tal ou tal Divindade mito
lógica, mas para o Deus único, o qual se revelou por Jesús
Cristo: é ao •único Senhor, imperfetamente apreendido através
das fórmulas do hinduísmo ou do paganismo, que na verdade
ésse devoto se vai unindo. De etapa em etapa, sua alma poderá
entáo fazer a experiencia da presenca e da acáo do Altíssimo,
que nela habita; em outros termos: poderá chegar ao estado
místico.
Compreende-se, porém, que tais casos de fidelidade inte
gral náose verificam com freqüéncia fora do Cristianismo,
pois ao náo-cristáo faltam os cañáis mais ricos da graca sobre
natural, que sao os sacramentos, em particular a S. Eucaristía.
Se já ao cristáo é difícil vencer a lentidáo da natureza e sair
da mediocridade, embora seja continuamente revigorado pelos
mais valiosos dons de Deus, para quem nao participa de tais
dons a mesma tarefa há de ser mais ardua ainda.

Era todo caso, os historiadores apontam nomes de fervorosas


personalidades nao-crist§s as quais, pelo seu teor de vida e pelos
seus escritos, parecem ter desfrutado a experiencia mistica. Sobressai,
entre outros, Al-Hosayn-ibn-Mansur-al-Hallaj, muculmano martirizado
pelos seus correligionarios em Bagdad (Siria) no ano de 922; foi

— 374 —
MÍSTICA-NAO CRISTA

entregue á morte por estimar Jesús ácima de Maomé considerando-O


como o Santo por excelencia, o qual voltará á térra para instaurar
o juízo final por ocasiao da ressurreicáo dos corpos. Al-Hallaj levou
vida marcada por severa penitencia e, posslvelmente, numerosas
gracas mistticas; ao termo de muitos anos de preparacao, empreendeu
viagens de pregacáo através da india e do Turquestao a íim de difun
dir as riquezas de sua vida interior. Dentre os seus dizeres destaca-se
a seguinte prece:
«ó Guia dos que se perderam, sei que transcendes... todos os
conceitos daqueles que Te procuraran! conceber! ó meu Deus, sabes
que sou incapaz de Te oíerecer a agSo de gracas que Te corivém.
Deus, vem em mim, para agradeceres a Ti mesmo. Tal é o verdadeiro
agradecimento; nao há outro».
Deixamos aqui aberta a questáo: nao seria talvez o grande amor
tributado por Al-Hallaj a Cristo o segrédo e a raiz do elevado grau
de pureza e caridade a que chegou éste autor nao-cristáo?
Outro nome digno de nota, também pertencente á esplritualidade
musulmana, é o de Abubeker-Hohamed-ben-Ali ou, simplesmente,
Ibn-Arabi, nascido em Murcia (Andalúsia) no ano de 1164, e
falecido em Damasco (Siria) aos 6 de novembro de 1240. ínteres*
confrontar alguns dizeres déste autor com paralelos multo seme-
lhantes de Santa Teresa de Jesús, a grande mística crista:

Sta. Teresa assim cantava: Ibn-Arabi, por sua vez, orava:


«Dá riqueza ou pobreza, «Teu deleitável paraíso ou teu
Consoló ou pena, suplicio infernal sao para mim a
Dá-me o inferno ou dá-me o céu; mesma coisa, pois teu amor nfio
Pois que me entreguei a Ti, muda nem aumenta. Meu amor
Que queres seJa íeito de mim?» terá por objeto o que preferires
(Obras t. VI 81, ed. Silvério) a meu respeito».
(Fotuhat n 429)

«A alma deve tomar consciéncia «Adquire a conviccáo de que


de que so ela e Deus existem sobre no mundo só existem dois seres:
a térra» (Vida XIII). Ele (Deus) e tu» (Tadbirat 232).

Note-se semelhante frase de Sao


Joao da Cruz:

«Vive neste mundo como se exis-


tissem apenas Deus e tua alma».
(Máximas 345)

Estes paralelos, longe de significar dependencia da mística crista


em relacáo á mugulmana, exprimem a experiencia que toda alma
faz de Deus desde que seja plenamente sincera na sua adesáo ao
Todo-Poderoso. Já um escritor antigo. Tertuliano (tdepoisde220),
afirmava com muita sabedor¡a: «A alma humana é, por sua natureza,
crista»; o que quer dizer: a alma humana traz em si a aspiracáo
inata para Deus, para Deus que se revelou ao mundo através do
misterio da Encarnacao. ou seja, por Jesús Cristo.
Fora dos poucos casos em que houve genufna experiencia mística
entre os pagaos, a maioria dos episodios registrados entre estes Com
o aspecto de «mística» se refere, na verdade, a fenómenos na turáis'
ditos parapsicologías (a respeito de tais fenómenos, veja-se «P. R.>
11/1958, qu. 1). SSo, com efeito, casos em que a alma do paciente,
sob o efeito de um choque muito forte, é levada a se comportar de

— 375 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 33/1960 qu. 3

modo novo, estranho, como se estivesse padecendo a agao extraordinaria


de um espirito superior ou de Deus. — É o que se verificará de
modo particular na resposta n« 4 déste fascículo, onde se tratará
do «faquirismo».
Sobre a possibilidade de se darem auténticos milagres entre os
pagaos, veja-se «P. R.» 6/1958, qu. 1.

2. A distancia que separa a mística crista da maioria


dos casos de «mística náo-cristá» se evidencia bem mediante
um confronto das afirmacóes de autores cristáos e autores
náo-cristáos (hinduístas, gregos antigos, maometanos). Veri^
ficam-se entáo os dois seguintes tragos diferenciáis:
a) o místico náo-cristáo se orienta geralmente por con-
cepgóes panteístas; tende a se identificar totalmente com a
Divindade, substancia neutra impessoal, que vai tomando face
tas na natureza e no homem. O termo final da mística náo-cristá
é muitas vézes a despersonalizagáo do homem e sua fusáo total
com o Divino.

Ao invés, a Mística crista concebe um Deus pessoal, transcendente,


com o qual a criatura humana deve entrar em íntima uniáo, sem,
porém, se confundir ou identificar com Deus. Sto. Agostinho formulava
muito bem esta concepcáo, afirmando a respeito de Deus: «Superior
summo meo,. intimior intimo meo. — (Deus) está ácima do que o
que eu possa conceber de mais elevado, mas também é mais intimo
a mim do que o que eu possa ter de mais íntimo». Com efeito, Deus,
transcendente como é, se digna habitar a alma do justo mediante a
graca santificante, de modo a ser o maior tesouro do cristáo ou o
Bem que dá valor aos bens humanos.

b) Em conseqüéncia do seu panteísmo, o místico náo-


-cristáo nao pode conceber a idéia de «graga» ou de «auxilio
que Ihe venha da parte de Deus para que ele se eleve»; ele,
antes, está convicto de que a experiencia mística há de ser
o termo de seus esforgos pessoais ou de seu «atletismo espiri
tual»; é o homem quem por si chega a fazer a experiencia da
Divindade, purificando seus pensamentos e afetos, emancipan-
do-se da recordagáo de criaturas sensíveis, para dar expansáo
á centelha da Divindade que é a sua alma.

O cristáo, ao contrario, concebendo Deus como Ser distinto do


homem e do mundo, professa que a experiencia mística é gratuito
favor do Senhor, que atrai o homem a Si. O cristáo sabe de um lado,
que deve ser um atleta heroico na luta contra si mes'mo, mas, de
outro lado, nao. ignora que ésse seu heroísmo é antecipado por
benévolo auxilio de Deus, de sorte que tudo que o homem faca de
belo na procura do Senhor deve ser primariamente atribuido á graca
sobrenatural. «Nao Me procurarías, se já nao Me tivesses encontrado»,
sao palavras que Pascal atribuí ao Senhor Deus, e que completaríamos
dizendo: «Nao Me procurarías, se já nSo estivesses sendo atraído
por Mim».

— 376 —
O FAQUIRISMO

3. Eis sumariamente indicados os pontos de contato e


de divergencia que marcam as relagóes da mística crista com
a náo-cristá.
O reconhecimento de que fora do Cristianismo pode haver
— embora em casos raros e difíceis —■- auténtica experiencia
mística ou experiencia da presenca de Deus na alma do justo,
está longe de sugerir relativismo religioso. A única via para
que a criatura chegue ao íntimo contato com Deus fica sendo
a via do Cristo e da Redencáo pela Cruz. Acontece, porém,
que nem todos os homens tomam conhecimento explícito de
Cristo e do Evangelho; nem por isto a Providencia os excluí
da sua obra de santificas,áo; podem chegar a grande uniáo
com Deus desde que preencham as condigóes descritas atrás.
Note-se que entáo as gragas outorgadas a náo-cristáos ainda
sao dadas em vista de Cristo ou por aplicagáo dos méritos do
Redentor, de sorte que Jesús permanece como Único Mediador
entre o Pai e os homens; é destarte que os náo-cristáos, sem
o saber, recebem gragas da plenitude de Cristo.

Convém, por fim, observar que foram condenadas pela autoridade


da Igreja as seguintes proposites dos jansenistas:
«Os pagaos, os judeus, os herejes e outras criaturas humanas
que se Ihes assemelhem, nao recebem influxo algum da parte de
Jesús Cristo» (Denzinger, Enchiridion 1295; condenacáo proferida em
1690 pelo Papa Alexandre VIII).
«Fora da Igreja nao é concedida graca alguma» (Denzinger 1379;
condenacao proferida em 1713 pelo Papa Clemente XI).

Em conclusáo destas consideragOes teológicas, o leltor será levado


a admirar a multiforme graca de Deus, que sabe tocar o coracao
dos homens de acordó com o grau de capacldade de cada qual, a fim
de levar a todos para a visáo face a face do Senhor Deus.

INICIADO (Bclo Horizonte):

4) «Que pensar dos faquires?


Nao estarció munidos de especial assistencia divina para
fazer os prodigios que fazem?»

Analisaremos abaixo em que consiste própriamente o faquirismo,


a fim de poder proferir um juizo adequado sobre o mesmo.

1. O regirae de vida e a atuacáo dos faquires

O yocábulo «faquir» provém do árabe faquir, pobre, men


digo (sinónimo do persa derwiche, mendigo), e designa homens
religiosos, geralmente hindus, que, mediante vida muito pobre
e austera, tentam dominar os sentidos e prbcuram alcancar
a perfeigáo espiritual. O credo religioso désses devotos pode
variar do hinduísmo (bramanismo, budismo...) ao islamismo,

— 377 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 33/1960, qu. 4

apresentando nao poucas modalidades de sincretismo. Muitos


faquires (principalmente maometanos) vivem filiados a deter
minada sociedade religiosa, seguindo regras e ritual comuns;
outros, ao contrario, sao independentes de qualquer corporagáo
religiosa.

Entre as Insignias características de varios dos tipos de faquires,


mencionam-se: urna capa de leltro negro ou branco, as vézes a pele
de um animal; pequeño bordüo de madeira ou de metal, um saco de
pele de cordeiro, um prato para recolher esmolas, um rosario de 33,
66 ou 99 contas, correspondentes ao número de atributos de Deus,
além de cabeleira e barba longas.

O «Baghavata Pourana» (HE 7, 13), código de espiritua-


lidade hindú, inculca aos faquires algumas normas de conduta,
que se podem resumir ñas tres seguintes:

1) enquanto goza de saúde, o faquir deve adotar a vida errante;


possuindo únicamente o seu corpo, detenha-se apenas urna noite em
cada lugar habitado e percorra a térra sem se comprometer com
pessoa alguma;
2) tenha como vestuario sómente um pedaco de paño; entre os
seus utensilios, nao possua mais do que um cajado e as outras poucas
insignias de peregrino religioso;
3) embora seja mendigo, o faquir nutra júbilo íntimo, seja
amigo de todos os seres, calmo, insensivel tanto á dor quanto aos
prazeres da natureza, procurando unir o seu espirito individual a
alma universal (proposicáo panteista).

Modalidade própria de faquirismo é a dos chamados «syn-


niassis», os quais declinam para o plano do irrazoável e faná
tico; alguns vivem enterrados até a cintura ou sentados em
estrados de pregos; outros dilaceram o corpo a golpes de chicote;
mais outros conservam erguido um de seus bracos, deixando
crescer urna planta em sua máo semi-cerrada, cheia de térra
e terminada em dedos anquilosados; há também os que cerrem
perpetuamente os punhos, de modo que as unhas váo penetrando
na carne meio-putrefata. O suicidio religioso é praticado entre
éles por meio do karivat, meia-lua cortante de cujas extremi
dades pendem correntes, rematadas cada qual por um estribo;
o faquir coloca a meia-lua sobre a sua nuca, os pés dentro dos
estribos e, mediante forte impulso dos pés, amputa violenta
mente a própria cabega.
As narrativas de viagens feitas ao Oriente referem quali-
dades e feitos prodigiosos verificados entre os faquires, tais
como

insensibilidade e invulnerabilidade: os faquires podem-se


deitar sobre pontas agudas, caminhar sobre o fogo, etc., sem
experimentar dores nem chagas; levitagáo ou arrebatamento

— 378 —
O FAQUIRISMO

ácima do solo; sruspensáo da vida ou morte aparente; acelera-


Cao de crescimento de vegetáis e animáis; clarividencia; mocáo
de corpos á distancia.
Ésses apregoados fenómenos solicitam a atengáo do estu
dioso, o qual nao se pode furtar á pergunta:

2. Como explicar os portentos do faquirismo?

A resposta se desenvolverá em quatro etapas:


1) Será preciso nao exagerar o alcance religioso nem o
aspecto portentoso dos fenómenos faquíricos. Os faquires háo
de ser considerados, antes do mais, como homens religiosos
que, pelo dominio de sua natureza, procuram viver conforme
o espirito mais do que conforme a materia; se a sua conduta
toma nao raro um caráter teatral ou espetacular (caráter que
os palcos e circos do Ocidente exploram quase únicamente),
isto nao deve ser focalizado em primeiro lugar nem descrito
em termos exagerados. É o que nos inculca um auténtico
brámane hindú, Rex Hohini Mohán Chaterje, a quem o escritor
francés Paúl Heuzé relatou quanto de portentoso se diz a
respeito dos faquires no Ocidente; o oriental respondeu:

«É motivo de surprésa para nos, hindus, ler os leitos prodigiosos


que os viajantes descrevem ao se referirem á nossa térra. Nossos
faquires sSo simples mendigos ou urna pobre gente que, na medida
do possivel, procura ganhar a vida, desenvolvendo eom habilidade
algumas artimanhas» (P. Heuzé, Fakirs, Fumistes et Cíe., citado
por M. Colinon, Faux prophétes et'sectes d'aujourd'hul. Paris 1953, 24).

Na base déste e de semelhantes depoimentos, vé-se que


náo^se devem com facilidade supor intervengóes de Deus nem
fenómenos própriamente milagrosos ou sobrenaturais no faqui
rismo. A atuagáo dos faquires tem, via de regra, explicacüo
natural, como abaixo se dirá.
2) Bom número de fenómenos faquíricos é produto de
reagóes paranormais da alma humana.

N. b.: paranormal é o que fica ao lado do normal, sem por isto


ser anormal ou contrario ao normal. As reagSes paranormais vém a ser
as que nao se registram nos estados habituáis da alma humana, pois
sao projegóes do cabedal de íaculdades e conhecimentos que toda
criatura humana traz latente em sua subconsciencia.
As reagoes paranormais, o faquir as provoca submetendo-se a
urna rígida disciplina (dominio de seus pensamentos e afetos, regime
de alimentacáo, consumo de certas drogas naturais, etc.), que jhe
permite aproveitar ao máximo as potencialidades de seu organismo.

Assim é que no faquirismo se apontam, entre outros, os


seguintes fenómenos paranormais:

— 379 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 33/1960, qu. 4

A rigidez de corpo faquírica corresponde a um dos graus


do sonó letárgico, ou seja, ao estado de catalepsia. Nessa fase
letárgica (que é provocada pelos estudiosos sem apelo para a
religiáo), o paciente pode realmente repousar sobre dois supor
tes apenas (um debaixo da nuca, outro debaixo dos calcanhsres)
sem perder o equilibrio; com um pouco de treino, o mesmo pa
ciente chega a sustentar o peso de outra pessoa sentada sobre
o seu abdomen.
A insensibilidade ou a capacidade de ser alguém perfurodo
por estiletes pontiagudos sem experimentar dor é outro estado
letárgico, que se produz por meios meramente naturais.

Merece particular atengao o «prodigio» do faquir que se deita


tranquilamente sobre urna prancha crivada de pontas de pregos vol-
tadas para cima. Analisando-se de perto o fenómeno, verifica-se que
o corpo do individuo, em tal caso, repousa sobre urna media de
duzentos pregos distribuidos de modo mais ou menos uniforme (para
comprovar isto, coloque-se urna tenue íólha de papel de seda sobre
os pregos e examine-se no papel tanto o número como a colocacáo
das pontas dos pregos). Por conseguinte, cada prego suporta o peso
de 350 gr aproximadamente, quando o faquir está deitado a sos, ou
de 700/800 gr, dado que outra pessoa se ponha s6bre ele. Ora essas
pressóes uniformemente distribuidas nao sSo tais que provoquem
ferimento do corpo humano.

Digno de nota é também o fenómeno da insensibilidade


á temperatura; os faquires, como os magos em geral, sao
considerados «senhores do fogo»: engolem brasas, tocam ferro
incandescente, caminham sobre o f°E°> sem se ferir. Sao tam
bém portadores de um «calor mágico» característico; com
efeito, o processo de iniciagáo no faquirismo e na magia implica
muitas vézes a prova da resistencia ao frió: na Mandchúria,
por exemplo, os mestres cavam, em pleno invernó, nove buracos
no gélo de um lago ou do mar, e exigem do candidato apareja
sucessivamente em cada um désses orificios nadando por debaixo
do gélo. Entre os esquimos do Labrador semelhante prova á
realizada; já se registrou ai o caso de um candidato que passou
cinco dias e cinco noites no mar gelado, demonstrando final
mente que nem sequer estava molhado. Na india e no Tibe
verifica-se a que gr'au de preparo chegou um discípulo do
faquirismo, medindo-se a sua capacidade de fazer enxugar
panos e lengos molhados pelo simples contato com o seu corpo
desnudo em urna noite de invernó e de nevé: os jovens conse-
guem por essa via fazer secar grande número de panos no
decorrer de urna so noite.
Como se explicam tais fenómenos?
Eis a solugáo: o estado místico é muitas vézes comparado
a um estado de fervor ou ardor; o maometano ainda hoje na

— 380 —
O FAQUIRISMO

India julga que o homem que entra em comunicagáo com Deus,


se torna ardente ou fervente. Excitados por esta imagem, os
faquires e magos orientáis provocam em si, mediante um pro-
cesso parapsicológico ou mediante o transe, um calor interior
que os imuniza tanto contra o frió extremo das geleiras e
nevadas como contra a temperatura abrasadora do fogo e dos
corpos incandescentes. Note-se bem que nisso tudo se trata
exclusivamente de fenómenos naturais ou de dominio e apro-
veitamento requintados das energías latentes no organismo,
sem que haja intervengáo de fórgas sobrenaturais.

Quanto aos fenómenos de clarividencia, telequinesia e telestesía,


sao evidentemente expressSes de faculdades latentes na alma humana
que, sob a acfio de determinados estímulos, se manifestam, acarretando
grande surprésa para os espectadores.
O estado de morte aparente, por sua vez, pode ser induzido por
via de letargía; assemelha-se ao estado de vida latente, que os biólogos
tém reconhecido em animáis vertebrados e invertebrados.

•3) Outra categoría, nao desprezível, de fenómenos faquí-


ricos se explica pelo emprégo de artificios (ou traques). Dizem
os estudiosos que ñas térras de faquires, principalmente na
India, o público nao se preocupa com a averiguagáo de hones-
tidade ou fraudulencia dos faquires. Estatísticas empreendidas
na India entre pessoas interessadas no assunto deram a saber
que 81% do público eré que realmente os faquires sao «super-
-homens» a quem ninguém pode resistir. Ora a opiniáo pública
táo fortemente formada nao sómente sugestiona inconscien
temente o faquir, mas também obriga-o a corresponder cons
cientemente á expectativa e aos dizeres do povo; o faquir se
vé constrangido a se comportar como taumaturgo, como filho
dos deuses, ainda que para isto deva recorrer a artificios e
truques.

Narra-se mesmo que Scarha Bey, egipcio sincero dado ao faqui-


rismo, certa vez após urna serie de experiencias resolveu declarar
lealmente a seus espectadores: «Nao fago milagres. Tudo que acabo
de realizar, é mero resultado de longo treino. Qualquer de vos pode
fazer as mesmas coisas». O público entáo pds-se a protestar violenta
mente. Alguns dos espectadores subiram ao palco com a intencao de
provar ao faquir que ele era. sem o saber, um inspirado, um curan-
deiro, um adivinho! Apesar de suas renovadas declaragóes, Scarha
Bey nao conseguiu desfazer a ilusao de seus «clientes». — O público
quer deleitar-se com a sensacáo do maravilhoso, e difícilmente tolera
ser desiludido de suas crendices! (Noticia colhida na obra citada de
M. Colinon, pág. 29).
Alguns dos truques faquLricos tornaram-se de conhecimento geral.
Basta mencionar os que ocorrem no «sepultamento» de um faquir.
Na India, pode acontecer que um «iniciado» permanece enterrado
durante tres ou seis meses e saia vivo do túmulo... Como suporta
tal situagao? — É simples, respondem os peritos: o interessado toma

— 381 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS> 33/1960, qu. 4

providencias para que o pretenso túmulo esteja em comunicacao


subterránea com o poráo de um Imóvel qualquer, para onde o faquir
se retira oportunamente a íim de se reabastecer; está claro que a
situagáo é muito incómoda, faz emagrecer, exige heroísmo..., mas
nada tem de sobrenatural. Na Franca, dizem, os faquires costumam
ficar apenas urna ou duas horas no túmulo (o que certamente já
é extraordinario); em tais casos, a única cautela a tomar é a de
assegurar que dentro do sepulcro haja o volume de ar necessário
para que o faquir respire (muito incómodamente, alias) durante o
tempo da provacjio.

Observe-se mais o seguinte: narram-se alguns fenómenos


de faquirismo que os taumaturgos nunca reproduziram em
presenga de estudiosos e que, por isto mesmo, nao podem
merecer sería atengáo. Tal é o caso do ropetrick: urna corda
atirada ao ar ai parece permanecer suspensa, como que presa
as nuvens apenas; urna crianca que suba por essa corda,
desaparece; de repente, o seu sangue salpica a multidáo que
sobre a térra contempla, pasma, o fenómeno; em breve, porém,
o acrobatazinho é restituido ao solo!
Pois bem; a respeito déste fenómeno realmente intrigante
duas observagóes devem ser feitas: 1) conforme as narrativas,
só pode ser «realizado» na India; 2) nunca se encontrou um
testemunha ocular de tal prodigio: todas as comissóes de inqué-
rito que foram á India para estudar o caso, voltaram sem o
ter presenciado; o jornal «Times of India» chegou a oferecer
10.000 rupias (quantia nao desprezivel) a quem efetuassc tal
experiencia á vista de peritos em Bombay; em váo, porém,
pois ninguém se rendeu ao apelo. — Ora estes fatos sao sufi
cientes para que num estudo ponderado nao se leve em conta
o ropetrick. t
Outros prodigios faquíricos sao referidos em narrativas
táo imprecisas e contraditórias que já nao podem ser subme-
tidos a urna investigagáo científica. Para se dizer a última
palavra na análise das diversas manifestagóes do faquirismo,
requer-se um elemento que ainda falta, isto é, um catálogo de
fatos que realmente tenham ocorrido e que venham descritos
com exatidáo.

4) Para ilustrar como pode alguém ser vitima de ilusáo ao


apreciar fenómenos extraordinarios, tachando-os de fenómenos reli
giosos e místicos, vai aquí citado um caso, entre muitos, famoso.
Na India, Mirin Dajo era um asceta holandés, convicto de gozar
do dom da invulnerabilidade. Era mesmo cognominado «o homem
invulnerável», pois mandava, par exemplo, que lhe atravessassem
de ponta a ponta com urna espada aguda a parte superior do tórax, sem
que com isto sofresse daño algum. Numerosos professóres europeus
examinaram o caso, nao encontrando explicagáo para o fenómeno,
que certamente nao se devia a fraude ou truque. Mirin Dajo afirmou
entáo ser imortal; agregaram-se-lhe alguns discípulos, venerando-o
como Deus; em conseqüéncia, o mestre holandés fundou urna nova

— 382 —
RESSURREICAO DOS MORTOS

religiáo... Um belo dia toda a ilusáo se desfez, porque na verdade


o «deus» veio a morrer; mor.reu, sim, por ter engulido urna agülha
que lhe perfurou o estómago...
A vista disso, os médicos e estudiosos verificaran! que, embora
os pulmoes de Mirin Dajo tivessem sido varias vézes traspassados,
o coracáo havia ficado intato. Tentaram entáo semelhantes experien
cias com animáis, aos quais vararam o íígado, os rins, os pulmSes,
em condicóes semelhantes ás de Mirin Dajo, sem que algum tenha
morrido nem apresentado graves perturbacdes... Tendo averiguado
isto, os médicos descobriram processos de autodefesa do organismo
até época recente ignorados (tratava-se principalmente de processos
de cicatrizacáo, que foram sendo mais e mais explorados). Assim se
concluiu que Mirin Dajp nao era nem <super-homem» nem «deus»;
aquiparava-se aos demais homens; apenas tinha em seu favor, para
realizar grandes faganhas, a consciéncia ilusoria de ser um «iluminado»;
era esta que o movia a fazer o que muitos outros homens poderiam
eíetuar, mas nao efetuam, porque carecem de tal intuicáo ousada.
Mirin Dajo nao contradizia ás leis da natureza; no dia em que tentou
derrogar-lhes, colocando no estómago urna longa agulha, veio simples-
mente a morrer. «O faquirismo que faz viver tanta gente, matou o único
homem que néle tenha realmente acreditado» (M. Colinon, ob. cit. 31).

III. SAGRADA ESCRITURA

P. S. S. (Curitiba):

5) «Gomo se explica o texto de Sao Mateus 27,52s, que


refere a ressurreicáo de defuntos no dia da morte do Senhor?
Quem eram esses ressuscitados? Morreram novamente?
Tcrao subido ao céu em corpo e alma com Jesús?»

A fim de facilitar a compreensáo do texto, transcrevemo-lo dentro


do respectivo contexto:
«No mesmo instante (em que Jesús morreu)... a térra tremeu,
as rochas se partiram, abriram-se os sepulcros e muitos corpos de
santos que tinham morrido ressuscitaram; saindo dos túmulos depois
da ressurreicáo de Jesús, entraram na Cidade Santa, e apareceram
a muitas pessoas» (Mt 27,51-53).
O sentido desta passagem deve ser elucidado por etapas.

1) Em primeiro lugar, impóe-se a pergunta: quando se


deu a ressurreigáo dos mortos de que fala o Evangelista?
— Após uma prímeira leitura, dir-se-ia: ... na sexta-feira
santa mesma, logo depois do terremoto. Acontece, porém, que
ésses defuntos só saíram dos sepulcros dois días mais tarde,
isto ó, no domingo após a ressurreicáo de Cristo. Donde a
dúvida: teráo entáo ficado vivos nos seus túmulos durante
quarenta ou mais horas?
Isso seria pouco ■provável; a Sabedoria Divina nao terá
ressuscitado mortos em váo, deixando-os vivos e latentes du
rante dois dias no sepulcro. Por tal motivo os exegetas em geral
julgam que tanto a ressurreicáo dos justos como a sua saída

— 383 —
<-PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 33/1960, qu. 5

dos sepulcros e seu aparecimento na Cidade Santa se deram


no domingo após a ressurreigáo do Senhor Jesús. Éste fica
sendo, como Sao Paulo assevera, «o Primogénito dos mortos»
(Col 1,18) ou «as primicias dentre os mortos» (1 Cor 15,20);
o que quer dizer:... o Primeiro dos ressuscitados na ordem
de coisas nova, crista; a ressurreigáo de Jesús, Cabega do Corpo
Místico, deve ter precedido a de qualquer dos homens que
¡mediatamente déla se beneficiaram.

É possivel, porém, que já na sexta-feira santa os sepulcros tenham


sido abertos: o terremoto entáo registrado haverá removido as respec
tivas pedras de ingresso.
Assim sendo, verifica-se que Sao Mateus, conforme a sua índole
muito sistemática, a0 referir os prodigios ocasionados pela morte
de Cristo, quis logo mencionar a ressurreigáo dos mortos que se deu
no domingo. Trata-se de um proceder estilístico que o leitor atento
sabe descobnr e interpretar auténticamente, como acabamos de fazer.

2) O Evangelista visa inculcar verdadeira ressurreicáo


dos mortos; em caso contrario, nao teria falado de abertura
dos sepulcros, mas apenas de aparicoes dos defuntos na Cidade
Santa. Remova-se, portante, a idéia de que as almas désses
justos se manifestaran! por meio de figuras corpóreas mera
mente artificiáis.

3) E porque teráo realmente ressuscitado tais defuntos?


— Para dar aos vivos um testemunho muito evidente da
Vitoria de Jesús sobre a morte; constituiam como que o cortejo
solene do Triunfador da morte. Contribuiram assim para realcar
a dignidade e a gloria de Cristo perante os habitantes de Jeru-
salém. — Desta observagáo se seguem mais algumas impor
tantes conclusóes:

4) Os ressuscitados deviam ser justos recém-falecidos (nao


eram pessoas de épocas remotas que os contemporáneos de
Jesús nao pudessem reconhecer). Com efeito; para qué a res
surreigáo désses justos tivesse significado, era preciso que seus
concidadáos os houvessem conhecido em vida e pudessem atestar
que de fato tinham estado mortos.

5) A qualidade dos corpos désses ressuscitados devia ser


gloriosa, correspondente á que Sao Paulo descreve em 1 Cor
15,35-44. Nao ressuscitaram, portanto, como Lázaro, num
corpo mortal; era, sim, consentáneo que tais justos, consti-
tuindo o cortejo do Divino Salvador, tivessem corpo seme-
lhante ao do Senhor ressuscitado. É isto, alias, o que insinúa
a expressáo «apareceram a muitos na Cidade Santa» utilizada
pelo S. Evangelista: o verbo «aparecer» sugere um modo de

— 384 —
O ISLAMISMO

se tornar presente diverso do modo como habitualmente a


materia se nos torna visível.

6) Por conseguinte, é lógico dizer que os justos ressus-


citados de Mt 27, 52 nao voltaram ao sepulcro, mas com
Cristo subiram diretamente aos céus, em corpo e alma.
_ É verdade que S. Agostinho (ep. 164,9) e exegetas posteriores
julgam haverem tais justos morrido de novo. Esta opiniao, porém
nao prevaleceu entre os comentadores, sejam antigos sejam recentes'
os quais ponderam as seguintes razóes: os justos de Mt 27,52, tendó
ressuscitado para dar testemunho da ressurreicáo do Senhor deviam
e?*taI Pinamente conligurados a Cristo; ora Jesús, urna vez ressus-
citado, já nao morre. Ademáis, se a Providencia os tivesse chamado
f ♦ f «»e -!30V0 para mais uma vez ^ fazer morrer, ter-lhes-ia com
isto infligido uma pena, e nSo um beneficio — o que seria pouco
condizente com a Perfeicao Divina. p
S. Agostinho apoiava sua tese de «condenacáo á marte» na
proposicao de Hebr 11,40, segundo a qual os justos da Antiga Lei
nao devem atingir a sua consumagáo sem nos, povo da Nova Lei
(nao se entendería, portanto, que a ressurreigáo gloriosa e definitiva
ja tivesse sido dada a santos do Antigo Testamento). A esta dificul-
dade, porém, replicar-se-á que a afirmacao de Hebr 11 nao excluí
?«p<£, . idade de alSumas poucas excec5es, como teráo sido as que
Mt 27 insinúa.

7) Fica aberta a questáo: onde estáo localizados os


corpos désses justos, dado que com Cristo tenham subido aos
céus no dia da Ascensáo solene do Senhor? — Nada de preciso
nos diz a Revelagáo sobre o assunto, como já observamos em
«P. R.» 27/1960, qu. 3. As conjeturas seriam mais ou menos vas.

IV. HISTORIA DAS RELIGIÓES

AMIGA DA ARTE (Uberaba):


6) «Em que consiste própriamente o credo do Islamismo?
Parece haver afínidade nao desnrezível entre a religiáo
de Maomé e o Evangelho. Como se éhtende isso?»
Para entendermos o significado do Islamismo, torna-se oportuno
propor primeiramente breve esbdco biográfico do seu fundador Muham-

^SS^g^SSSí^SSS^':após °que> consideraremos


1. Esbdco biográfico de Maoiné

Maomé nasceu em Meca, na Arabia Central, provávelmente em


580 (e nao 570, data geralmente indicada), vindo a morrer com pouco
tSSÜ'i Si* a«?°S .dl?aidi?de' em 632. Era filho da nobre tribo dos
Koraischitas. Sua infancia acha-se envolvida em muitas lendas
«p,, Arh°T^Vra **?**' Maomé haverá sido educado por um tío
seu, Abu-Talib. Éste, sendo comerciante, levava o sobrinho em viagens

— 385 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS* 33/1960, qu. 6

de caravanas pela Arabia, a Assiria c a Mcsopotámia, o que propor-


cíonou a Maomé o contato com núcleos de judeus e cristáos os quais
nao deixaram de exercer influencia sobre a sua alma profundamente
religiosa.
Aos 25 anos, Maomé, como guia de caravanas comerciáis entrou
a servico de rica viúva, Kadija, já quadragenária, com a qual acabou
contramdo matrimonio. Em conseqüéncia, o futuro profeta que se
impunha a todos pela sua seriedade e o seu bom senso passou a ser
prestigiado também pelos seus haveres materiais.
Por volla de 610/611. Maomé efetuou a sua «conversáo» que
consistiu essencialmente em aderir ao monoteísmo e ao dogma da
ressurreicáo (artigos estes que pertencem ao patrimonio da fé judaica
e cnstá). J
Difícil seria reconstituir as circunstancias desta conversao
— Parece que, por volta dos 30 anos. Maomé, profundamente impressio-
nado pela incompreensáo e a desuniáo dos homens entre si, se tornou
cada vez mais meditativo; entregava-se a severas práticas de morti-
ficacáo, e retirava-se para a montanha a fim de rezar a sás De
urna feita, na «Noite do Destino» ou na «Noite bendita do Corao»
tera tido urna visáo: em sonho, estranho personagem lhe apareceu
trazendo ñas máos um rolo de paño coberto de sinais e mandando-lhe
que lesse; após relutar contra essa ordem no sonho, Maomé acordou,
consciente de que finalmente um liv.ro descera em seu coracáo;
percebera outrossim urna voz que em nome de Deus lhe atribuía
a missSo de reformar as crengas, por termo á idolatría e ás disputas
religiosas de seu povo, indicando a todos o caminho do céu. Multo
perturbado e trémulo, contou o ocorrido a sua esposa Kadija, a qual
foi consultar um primo seu, Varaka, homem sensato e culto, que
exclamou: «Deus escolhe-o para ser profeta de nova fé!». Após
repetidas visSes, ignorando quem era o misterioso personagem que
lhe aparecía, Maomé julgava-se perseguido por espíritos, e pensava
em suicidar-se, quando certa vez a estranha voz lhe declarou: -*Sou
o anjo Gabriel e tu serás o apostólo do Senhor».
Doravante, o Iluminado pós-se a pregar nova forma de religiáo:
o «Islam» ou, em árabe, a Submissáo, Dedicagáo á Vontade de Deus.
Maomé apoiava-se na fé em um só Deus, Allah, criticando os cultos
pagaos, predizendo ¡mínente catástrofe e apresentando reivindicayóes
sociais era favor dos pobres. Tais proposicñes só fizeram irritar a
aristocracia de Meca, de sorte que, ao lado de poucos adeptos (sua
esposa, seu primo Ali, seus parentes Abu-Bakr e Otman), o profeta
granjeou para si adversarios cada vez mais infensos, temerosos pela
sorte de seus ídolos e de suas rendas comerciáis. A situagáo para
Maomé se ia tornando insustentável em Meca, quando um grupo de
habitantes da cidade de Medina resolveu mostrar-se benévolo para
com o Profeta; tal gente sotrera a influencia de judeus, que haviam
disseminado em Medina a erenga num Messias israelita; assim prepa
rados, os medinenses julgaram ver em Maomé as qualidades auténticas
de um Redentor árabe. Pelo que, convidaran» Maomé e sua pequeña
sociedade para se domiciliarem em Medina. Tendo aceito, o Iluminado
de Meca se transferiu para a cidade acolhedora na noite de 16 de
julho de 622. Tal acontecimento tomou o nome de Hidjra ou Hegira
Fuga, e assinala o inicio da era maometana.
Senhor de Medina, Maomé, com inteligencia e astucia consolidou
sua pqsicao e foi revelando dotes de hábil cheíe político e legislador
civil. Visando unir numa só populagáo coesa e forte seus compatriotas
árabes, comecou a estender o ssu dominio por meio de expedigoes
de ataque a caravanas comerciáis. Os sucessos obtidos lhe iam assegu-

— 386
O ISLAMISMO

rando crescente número de adeptos, até que finalmente em 629,


aproveitando-se de um litigio entre tribos árabes, Maomé, sem desíerir
golpe algum, eni.rou em Meca e tomou posse do famoso santuario
desta cidade dito «a Caaba», donde removeu os Ídolos. Nos anos
seguintes, foi dilatando o seu poder mediante guerras, e o envió
de legagóes a tribos estrangeiras. Finalmente aos 8 de junho de 632,
já cansado, veio a morrer quase repentinamente nos bracos de Ayscha,
sua esposa predileta. A obra de Maomé, embora tivesse que passar
por vicissitudes varias, estava suficientemente adiantada para desper
tar a consciéncia religiosa e nacional dos árabes e lancá-los, coesos,
á conquista de numerosas nagdes estrangeiras mediante a prática
da «guerra santa».
As fontes doutrinárias do Islamismo sao o código sagrado do
Corao (em árabe, recitacSo, declamacao, pois o texto devia ser recitado
no culto) e a tradicáo oral dita Sunna.
Para os maometanos, o Coráo representa a palavra incriada de
Deus; há. sim. junto a Alá um livro posto sobre u'a mesa, no qual
se acha contida toda a revelado. Ao profeta foi manifestada apenas
urna parte desta, servindo-lhe de mediador o anjo Gabriel; tal parte,
porém, mesmo redigida em árabe, é idéntica e coeterna ao original
celeste!
Nao se pode atribuir a redacáo do Coráo ao próprio Maomé.
Éste pronunciava seus ensinamentos geralmente em estado de transe;
seus discípulos entáo os recolhiam ou na memoria apenas ou por
escrito em peles de animáis, palmas, omoplatas de carneiro, tabuinhas
de barro... As proposicOes de Maomé, oráis e escritas, foram, sob
Otman (644-655), o tercei.ro califa ou representante de Maomé, colecio-
nadas em um so código de 114 suratas ou capítulos, compreendendo
um total de versículos cuja extensáo equivale a dois tercos do Novo
Testamento. Os críticos modernos admitem que por essa via o pensa-
mento de Maomé haja sido em algumas passagens imperfeitamente
transmitido e até mesmo interpolado.
Procuremos agora analisar as doutrinas e a mentalidade religiosa
que emanam do movimento maometano.

2. As grandes propositóos do Islamismo

A. O Monoteísmo

Urna das características mais importantes do Islamismo é


a de constituir, ao lado do Judaismo e do Cristianismo, urna das
tres grandes religióes monoteístas atualmente existentes no
mundo. Fora destas tres denominagóes religiosas, só se encon-
tram concepgóes ilógicas referentes á Divindade: o politeísmo
(fetichismo, idolatría), sistema que supóe, possa Deus ou o
Absoluto ser esfacelado e multiplicado; e o panteísmo (hinduís-
mo, confucionismo, chintoísmo...), ideología que concebe Deus
como substancia neutra, impessoal, identificada com a natureza
e o homem (ideología incoerente, porque supóe, possa haver
transigáo do Absoluto para o relativo e do relativo para o
Absoluto).
O Islamismo, portanto, professando um Deus único, distin
to do mundo e do homem, situa-se no plano das mais elevadas

— 387 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 33/1960, qu. 6

confissóes religiosas da humanidade. É sómente entre os credos


monoteístas que se pode pretender encontrar a verdadeira
religiáo.

Verifica-se, porém, que o monoteísmo islamítico nao é


originario da Arabia mesma, mas derivado do monoteísmo
judaico-cristáo. Maomé mesmo nunca se apresentou como fun
dador de urna religiáo nova; a dogmática e a moral que ele
ensinou, nao constituem senáo um amalgama de tres blocos
religiosos anteriormente existentes, como reconhecem em geral
os orientalistas; ésses tres blocos seriam

a) a antiga religiáo árabe, de Índole animista e politeísta; carac-


terizava-se pelo culto das pedras «divinas», consideradas como man-
sóes de seres superiores, cujas gracas os homens procuravam atrair
a si. Tenha-se era vista a «Pedra Negra», que nao é mais do que um
aerolito situado na Caaba, santuario principal de Meca, e objeto da
grande veneracáo dos mugulmanos até hoje.

b) a religiáo israelita, professada por judeus domiciliados na


Arabia, onde se entregavam ao comercio, a industria e á agricultura.
Tal Judaismo, porém, já nao era própriamente o da Lei de Moisés,
mas trazia um anexo de observancias e normas, por vézes esteréis,
derivadas dos rabinos posteriores (também chamados «Talmudistas»).
Foi certamente désse patrimonio judaico que Maomé derivou as
grandes linhas da sua orientacáo religiosa: existe um só Deus, o qual
se íoi revelando sucessivamente aos profetas da humanidade — Adáo,
Abraáo, Moisés, Jesús Cristo — e, por íim, consumou sua revelagáo
por meio de Maomé, o maior de todos os profetas. O fato de que
Maomé se inseriu na linha do Judaismo, explica o íreqüente uso da
Biblia no ensinamento islamítico, assim como alguns dos costumes
mugulmanos (as purificac5es legáis, a observancia do taliáo, da
poligamia, etc.).

Contudo Maomé nao se podia identificar plenamente com o pensa-


mento judaico, porque, embora nao visse em Jesús Cristo o Filho
de Deus feito homem, atribuía a Cristo um lugar eminente entre os
enviados de Alá. Sim; o profeta voltou sua atencáo também para

c) a rcligiilo dos cristilos. Maomé a conheceu principalmente cm


suas viagens, cstabelecendo contato com os monges da fronteira da
Siria. Tais cristáos, porém, nao eram ortodoxos, mas herejes nesto-
rianos e monofisitas, que lhe apresentaram um Cristianismo depaupe
rado; o profeta nunca chegou a ler os Evangelhos. Como quer que
seja, pode ele dizer: «Os judeus sao infiéis... Nao creram (em Jesús)
e inventaram contra Maria urna abominável mentira».

Sem se comprometer nem com o Judaismo nem com o Cristia


nismo, Maomé deflniu sua posicao religiosa apresentando-se como
continuador da religiáo de Abraáo e de seu filho imediato Ismael,
personagens muito mais antigos do que Moisés e Cristo na historia
sagrada (na verdade, o povo árabe é descendente de Ismael, filho
de AbraSo e Agar). Para justificar sua independencia religiosa, Maomé
atribuiu a judeus e eristaos «o grande erro de terem falsificado os
livros sagrados e o monoteísmo de Abraáo e Ismael».

— 388 —
O ISLAMISMO

B. A dogmática islamítica

A teología de Maomé é relativamente simples, resumindo-


-se em tres solenes proposigóes:

a) Ha um só Deas, invisível, também considerado como


o Deus vivo, poderoso, criador, glorioso. O Profeta, porém,
nunca O chama «justo», porque na realidade Deus faz tudo
que quer e a ninguém presta contas. Em suas relagóes com os
homens. Ele é, por excelencia, misericordioso e amável; aos
seus fiéis servidores Ele dispensa, neste mundo mesmo, pros-
peridade e riquezas materiais (para Maomé e o mugulmano
em geral, a abundancia de haveres materiais vem a ser sinal
da béngáo divina).
O conceito do poder ilimitado de Deus levou o Profeta a
admitir a imutável predestinagáo: «Alá faz perecer a quem
Ele quer, e, a quem Ele quer, conduz pelo caminho reto»; é
Deus quem endurece os coragóes dos incrédulos, impedindo-os
de chegar á luz da verdade. Foi ésse fatalismo que inspirou
muitas das realizagóes fanáticas da historia mugulmana, pro
vocando de maneira cega o entusiasmo de uns e o desánimo
de outros dos discípulos do Profeta.

Em conseqüéncia de tais idéias, o Islamismo oficial (nao falamos


de seitas dissidentes) nao estima a Deus como Pai, a quem o fiel
possa ou deva amar, mas, sim, como Senhor, a quem se deve o
temor. Assim no «Pai Nosso» dos mugulmanos, inspirado dos Evan-
gelhos, foi substituida a interpelacáo inicial «Pai Nosso» por «Rei
Nosso».

b) Existem anjos bons e maus. Os anjos sao espíritos


criados por Deus antes de Adáo. Quando éste apareceu, Alá
mandou-lhes que se prostrassem diante de Adáo; todos obede-
ceram, exceto Iblis (forma derivada da palavra grega diábolos)
ou Chaytan (nome proveniente do hebraico Sata). Em conse
qüéncia, Alá amaldiQOOU o anjo rebelde, o qual, porém, obteve
a licenga de tentar os homens sobre a térra até o dia do juízo
final. Na consumagáo dos tempos, será precipitado no inferno
com os outros maus espiritos que o seguirám.

Além dos anjos própriamente ditos, o mugulmano admite a exis


tencia de genios (djinn), seres corpóreos, formados de vapor ou de
chama, dotados de inteligencia e imperceptiveis aos sentidos humanos.
O desejo de atrair ou afastar tais entes justifica a magia e a supers-
tiá vigentes entre os maometanos ignorantes.

c) Existe urna vida postuma, na qual se distinguen! o


paraíso, sorte dos bons, e o inferno, castigo dos maus (no qual
antigos documentos mugulmanos enumeram seis andares, desti-

— 389 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 33/1960, qu. 6

nados respectivamente aos árabes idólatras, aos brámanes da


india, aos judeus, aos cristáos, aos magcs da Pérsia e aos
hipócritas de todas as religióes).

Logo após a morte de um fiel, ensina o credo maometano, o seu


cadáver é colocado no sepulcro; a alma fica doravante a vaguear
em torno déste. Entáo dois anjos. Mountar e Nakir, apresentam-se
ao deíunto, que se levanta no túmulo; interrogam-no sobre as suas
obras na térra. O deíunto fiel, após responder, se deita de novo em
sonó pacato; quanto aos maus, sao espancados severamente pelo
tempo que. Alá determine.
No fim dos séculos haverá grande luta, pois um «Anticristo» e
Jesús compareceráo sobre a térra, tocando a Cristo a Vitoria decisiva.
Dar-se-áo entáo a ressurreicáo dos carpos e o juizo universal. Os
bons entraráo finalmente no paraíso, que Maomé concebía como
parque fértil e ameno, onde, na companhia de mulheres e virgens,
os justos se deleitarlo: «No paraíso há cór.regos, cuja agua jamáis se
deteriora; córregos de leite, cujo gosto nao se alterará; córregos de
vinho. que faráo as delicias de quem déles beber; córregos de mel
puro; toda especie de frutas e o perdáo dos pecados» (Corao XLVII
16s); «os eleitos repousarSo sobre tapetes...; estaráo ao seu dtspor
jovens virgens de olhar modesto, que nem homem nem genio algum
haverá jamáis tocado» (LV 46-78).
" Aos maus cabera a geena, lugar de tormentos; os teólogos mugul-
manos atuais tendem a afirmar que estes nao seráo eternos, a nao
ser para os homens idólatras.

G. A Moral maometana

Os principáis deveres do mugulmano, tidos como «pilastras


da Religiáo», sao os cinco seguintes:

1) professar a fé, 2) orar cinco vézes por dia (ao alvo-


recer, ao meio-dia, pelas 3/4 hs da tarde, ao por do sol, no
primeiro quarto da noite), cumprindo-se de cada vez as abluqóes
legáis prescritas, 3) jejuar durante o mes inteiro de Ramada,
4) dar esmola aos pobres (o que compreende também a obri-
gagáo de dar hospedagem momentánea seja a quem fór e a
qualquer hora), 5) peregrinar a Meca urna vez na vida.

A respeito do jejum muculmano, observe-se que dura do nascer


ao por do sol, í¡cando proibido neste. intervalo ingerir qualquer subs
tancia terrestre, nao sómente alimentos, mas também fumo de tabaco,
perfumes, remedias, etc. A noite, sao suspensas todas essas restrigóes.
— O mes de jejum ou o Ramada pode fácilmente tornar-se urna época
de reivindicagSes da carne; acontece nao raro que durante a noite
o árabe se desforre das privag5es sofridas durante o dia; assim as
noites de Ramada podem ser fases de orgia; e, se a estacáo do ano
é quente, o mugulmano entrega-se á inercia ou ao repouso durante
o dia, passando a trabalhar e a comer ñas horas noturnas.
Os preceitos da lei natural sao menos valorizados na Moral
mugulmana. Práticamente o único pecado imputado entre os maome-
tanos é o de apostasia da íé, ou seja, a adesáo á idolatría ou ao
paganismo. Na opiniao de bor.s comentadores, a moral isb.mítica

— 390 —
O ISLAMISMO

contribuiu para dar foros de IegitJmidade aos impulsos da cobica


humana e, em particular, da cobica árabe; o próprio Maomé teria
procurado, mediante cláusulas e leis do Coráo, justificar os desmandos
de seus amares, ou seja, a poligamia que ele praticou em alta escala
(o Corao autoriza todo varao a ter quatro esposas legitimas e tantas
concubinas escravas quantas seus recursos financeiros lhe permitam).
O instinto belicoso ou a sede de se apoderar de térras e bens dos
povos estrangeiros foi legitimado e até agucado, nos discípulos de
Maomé, pelo conceito de «guerra santa»: morrer em batalha armada
torna o maometano «mártir», ou seja, herói religioso; de resto, o
conceito de «predestinacao», que inelutávelmente assinala a cada
individuo a hora de sua marte, muito concorreu para precipitar
destemidamente os discípulos de Maomé na tareía de assaltar...
Portadores do código de doutrina e moral que acaba de ser
delineado, os árabes se expandiram através do Velho Mundo, íazendo
do maometanismo um importante ator da historia universal. Interes-
sa-nos conseqüentemente averiguar qual seria

3. A mensagem do Islamismo aos nossos dias

1. Considerada em seus principios doutrinários, a reli


giáo de Maomé tende a desenvolver nos seus adeptos a estima
de certas observancias exteriores tidas como legáis, ficando
em plano muito obscuro o que diz respeito á vida interior.
Note-se outrossim — o que é de importancia capital — que
o Isláo ignora o pecado original e a conseqüente decadencia
da natureza humana; por isto pouco avalia a necessidade de
luta interior e de purificacáo da alma solicitada por páixóes
desregradas. Estas as vézes vém a ser mesmo legitimadas por
alguns itens do Coráo, como vimos a propósito da poligamia,
dos instintos de guerra e de rapiña... A legislacáo religiosa
muculmana, para promover a honestidade de seus discípulos,
nao pode deixar de impor a seus fiéis um mínimo de mortifi-
cacáo interior; está longe, porém, de acentuar o valor desta,
como o acentuam, por exemplo, as religióes da India, o orfísmo
da Grecia, e, num espirito totalmente diverso, o Cristianismo.
Lé-se mesmo no Coráo: .«Alá quer tornar mais suave para vos
a prática da religiáo; quer desafogar-vos, e nao estreitar-vos.
Ele nada vos mandou de difícil em vossa religiáo» (XXII 77).
As concepcóes de béngáo e recompensa divina estavam. muito
associadas, na mente do árabe antigo, as expectativas de bens
terrestres: riqueza, posteridade numerosa, pleno sucesso nos
empreendimentos temporais, vitória sobre os inimigos, etc. A
bem-aventuranca futura é no Islamismo prometida nao pro-
priamente aos pacíficos, mas, sim, aos belicosos, mormente
aos homens que morram na «guerra santa».

rin B?£te¿Í5?Ime."tea pa*rtir *? califas ©"aladas (segunda metade


do séc. VII) o ideal da teocracia ou de um imperio terrestre regido
pelo poder religioso impregnou a mentalidade do muculmano, levan-

— 391 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 33/1960, qu. 6

do-o a assodar aínda mais estreitamente os conceitos de béncjio divina


e de posse dos bens terrestres; sob os Omaiadas, difundiram-se
narrativas segundo as quais Maomé teria condenado nao sómente
a ascese excessiva, mas até mesmo a conduta daqueles que negligen-
ciam seus interésses temporais para se dedicar a urna piedade absor-
vente. Nesse quadro de idéias, entende-se que o celibato voluntario
venha a ser condenado.
Assim o Isláo se apresenta como um sistema religioso que, com
pilado do paganismo, do Judaismo e do Cristianismo, exprime típica
mente a mentalidade de sen fundador e de seus imediatos discípulos,
os árabes do deserto, homens de tempera ardente, profundamente
religiosos, mas assaz rudes em sua manéira de pensar e de agir.
Segundo alguns historiadores contemporáneos, Maomé representa
o tipo da religiosidade semita antiga. O semita, dizem tais estudiosos,
tende naturalmente a se sujeitar sem hesitacao ao Governador da
historia (Deus), como o escravo ao seu senhor; nada faz sem Deus.
e nao se julga chamado a corrigir a Providencia Divina; «plantará
árvores onde o AUIssimo nao as faz crescer? Ou poupará a sua vida
na guerra, se a seta que o deve matar o atingirá até na cama?».
O semita acha natural que Deus exija déle servigos extrínsecos,
como oracdes, locóes, jejuns, esmolas, peregrinacóes...; .realiza isto
tudo com seriedade e exatidáo; mas a tempera ardente de seu ánimo
nao se debca dominar pelo senso da responsabllldade ou pela voz
da consciéncia: conseqüentemente mentira, cobica, crueldade e volúpia
vém a ser, para Maomé e seus fiéis seguidores, coisas que pertencem
a vida humana e que nesta nada tém que ver com a religiáo...

2. Fixados estes pontos, é preciso observar que nao seria justo


determos nossa atencáo apenas sobre tal aspecto do Islamismo.
Através da historia, a religiáo de Maomé, implantando-se em térras
nao árabes, tomou facetas assaz diversas da que acabamos de delinear,
facetas que deixaram forte marca na literatura musulmana assim
como no panorama do Islamismo moderno.
Analisemos de mais perto éste outro aspecto do maometanismo.

Entre os dizeres mesmos do Profeta, nao faltam os que


inculcam a religiáo interior ou o predominio dos bens do espi
rito sobre os da carne. Maomé chegou a falar de purificagáo da
alma, apresentou a vida presente como «agua que passa e erva
que fenece» (Sur. X 25; XIII 18); afirmou a prevaléncia da
devocáo interior sobre os sacrificios rituais (Sur. XXII 28).
Assim o Coráo era capaz de inspirar nao sómente urna religiáo
formalista, mas também urna piedade muito intensa e profunda.
Foi o que se deu nos círculos árabes que entraram em contato
com sistemas religiosos dos povos vizinhos, em particular com
o Cristianismo; criou-se destarte urna auténtica mística musul
mana, da qual dois grandes expoentes sao Al-Hallaj (i 922)
e AJ-Ghazali (tllll). Especialmente a corrénte dita «sufita»
(nome derivado de souf, veste de lá branca que os ascetas
mugulmanos já no séc. VII usavam á semelhanga dos peni
tentes cristáos) dedicou-se ao cultivo da vida interior e da
experiencia mística. Infelizmente, porém, a mística mugulmana,
em muitos de seus representantes, se associou a conceitos

— 392 —
O ISLAMISMO

filosóficos erróneos, ou seja, ao panteísmo e ao monismo: alguns


sufitas professaram tal uniáo da alma com Deus que significava
identíficagáo dos dois termos; o místico Bistami (f874), por
exemplo, em lugar do tradicional brado Sobhan Allah (= Lou-
vor a Deus!), exclamou Sobhani (=Louvor a mim!), porque
em si ele nao percebia mais o próprio «eu», mas apenas o «Eu»
divino.

3. Na era moderna, alguns círculos islamíticos, principalmente do


Egito e da Turquía, foram contaminados por tendencia oposta á mis-
tica, ou seja, pelo liberalismo e o racionalismo. A Turquía maome-
tana, ortodoxa até o inicio déste século, sofreu urna especie de
laicizacáo sob o poder de Mustaphá Kemal (1920-1938): proclamou
a separacao do Estado e da religiao, suprimindo o cargo de Califa
(ehefe religioso e Cheíe civil ao mesmo tempo); adotou o código
civil suico e o código penal italiano, proclamou a.igualdade de direitos
do varáo e da mulher e «desarabizou> o seu Isláo, traduzindo para o
turco o Corüo e as oracoes oficiáis.
O grande problema do Maometanismo atual é o da adaptadlo
de suas instituidles ao ritmo da vida moderna. Pergunta-se se lsto
será possivel sem que a religiao de Maomé se desvirtué por completo.
Em resposta nao se poderiam propor senáo prognósticos incertos;
sómente o tempo íará ver até que ponto o Islamismo é suscetível
de acomodacSes que nao sejam traigSes.
Entrementes a religiao maometana apresenta um panorama assaz
ampio: ao lado da forma ortodoxa ou conservadora (termo de signi
ficado talvez .relativo, pois nao há autoridade central que garanta a
unidade e a fidelidade do Islamismo a si mesmo), registram-se nume
rosas seitas consideradas heréticas (sunitas, chutas, karigitas, motazi-
litas, etc.). O conjunto islamftico abránge um total de 400 milhoes de
almas, dos quais 380 milhdes vivem na África (80 milhoes) e na
Asia (300 milhoes); neste continente o bloco mais denso se acha
situado na India e na Indonesia. — A populacáo árabe constituí um
grupo de'25 milhóes de almas apenas dentro da familia musulmana.
Embora as estatlstlcas constltuam Índice por vézes assaz precario
e deficiente, a titulo de curiosidade seguem-se abaixo algumas cifras
que indicam a porcentagem de muculmanos que praticam os diversos
ritos e preceitos de sua religiao em determinada aldeia do Egito
(note-se o ámbito restrito da estatística):

Clrcuncisáo 85%
OragSo pública da 6' feira 40%
Jejum 70%
Peregrinacáo a Meca 15%
«Shahada» ou rito dos agonizantes 90%

— 393 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 33/1960

CORRESPONDENCIA MIÜDA
SAINT-EXUPÉRY: 1.) 0 amigo pergunta se o pensador francés
Jacques Maritain é herético; em particular,... se é liliado aos erros
de l>amennais.
— Nos últimos anos, urna controversia em torno do nome de Jacques
Maritain empoJgou as escolas da Franja, dos Estados Unidos da
América, do Canadá e também do Brasil, tomando por vézes caráter
apaixonado. Os ánimos tendern a se acalmar, mas os rumores detxaram
dúvidas na mente de muitos. Vejamos de que se trata própriamente.
Jacques Maritain nasceu em J^aris aos 18 de novembio de 1062.
Féz-se primeiramente discípulo do filósofo judeu Henri Bergson (cf.
"P. K." 25/1960, qu. 1). Em 1906, porém, sob a influencia do escritor
Léon Bloy, converteu-se ao Catolicismo, comegando desde cedo urna pro-
du{áo Literaria até hoje muito fecunda. Maritain íiliou-se & Filosofía
Escolástica tal como íoi apresentada por Sao Tomaz de Aquino; tem
procurado torná-la viva e presente no mundQ moderno, focalizando, á
Juz dos principios aristotéiico-tomistas, as questoes suscitadas pelas
ciencias naturais e pelas correntea filosóficas contemporáneas.
Em 1914 íoi convidado para lecionar Historia da Filosofía moderna
no "Instituí Catholique" de París. Em 1916 tornou-se membro da Aca
demia Romana de Sao Tomaz de Aquino. Mais tarde transferiu-se para
a América do Norte, regendo cadeiras filosóficas no Instituto de Estudos
Medievais da Universidade de Toronto (Canadá) e na de Columbia
(U.S.A.). Após a segunda guerra mundial, exerceu por algum tempo
o cargo de Embaucador da Franca junto á Santa Sé (tato éste que do
seu modo atesta a ortodoxia de Jacques Maritain).
No tocante a questoes de Filosofía especulativa, o pensilmente de
Maritain nao tem sofrido contestado; deve-se mesmo admirar a clareza
e a precisáo com que ésse autor aborda as mais arduas questoes. Contudo
as opinióes dos comentadores se dividem quando consideram a doutrina
político-social do filósofo francés, que nao hesitou cm dcscer aos pontos
mais debatidos pelas escolas modernas, tomando posiQÓes aparentemente
extremistas.
Qual seria entáo a doutrina de Maritain?
Está claro que éste pensador rejeita a comunismo e o socialismo,
denunciando o vicio radical de tais sistemas, a saber: a falsa valorizacáo
do homem ou um humanismo antropocéntrico, leigo c ateu. Todavía o
ideal da futura sociedade crista que Maritain preconiza, apresenta estru-
tura comunitaria ou "societaria": na medida do possível, o regime do
salario deverá ceder ao da co-propriedade; o operario será chamado a
participar da gestáo e da directo da respectiva empresa... Tais idéias,
Maritain as enquadra dentro de urna perspectiva mais ampia, de índole
filosófico-teológica, dita "Humanismo integral". Conforme éste modo de
ver, o mundo presente se encaminha para um novo tipo de "Cidade
Crista", diverso do que se realizou na Idade Media.
Com efeito, diz o 'filósofo francés, a Idade Media conheceu urna
ordem de coisas "sacral", isto é, urna ordem na qual todas as afirmagóes
do cidadáo, mesmo as que chamamos "profanas", cstavam impregnadas
de caráter religioso ("aprender a ler", por exemplo, era entre os medie-
vais "psalmos discere — aprender os salmos", pois a crianca tomava
já como cartilha, para aprender a soletrar, o livro dos Salmos). Pois
bem; na sociedade futura as instituicóes profanas se rao realmente con
sideradas profanas, mas ao mesmo tempo estarlo subordinadas aos
valores sagrados; os valores temporais seráo tidos como finalidades
dignas do labor humano (nao como meros instrumentos dos valores
eternos), finalidades,, porcm, subalternas e totalmente orientadas em
demanda de um Fim último supremo (Deus e a vida eterna).

— 394 —
CORRESPONDENCIA MIÚDA

Eis/ era poucas palavras, aa conceptees de Maritain que tém pro


vocado atitudes de reserva da parte de bons católicos. ■
Diante das dúvidas apresentadas, interessa-nos aqui dizer, apei.as
a titulo de esclarecimento (e nao de apología), que o pensamento de
Maritain é plenamente compatível com a ortodoxia católica. A fórga
de urna ou outra expressáo do filósofo, ¡solada do seu contexto, talvez
sugira alguma tese errónea ou herética; contudo, desde que se consideren!
no seu respectivo quadro ou á luz de toda a ideología de Maritain, essas
expressóes perdem sua ambigüidade e evidenciam-se católicas. Por exom-
plo, hoje eni dia pode muito bem alguém crer que seria pouco consen-
táneo com as condigóes concretas da vida moderna querer dar como livro
didático para os mais diversos cursos um único livro — um livro de
historia sagrada. Hoje em dia a civilizagáo crista, para ser devidamente
eficaz no seu programa de levar os homens a Deus, nao cultiva sómente
Rcligiáo e temas religiosos, mas dá atengáo também aos fundamentos
da Religiáo que sao a natureza humana e os valores déste mundo; assim
se explica que na "Cidade de Deus" contemporánea se propugnem ativi-
dades e profissóes que estudam psicología, pedagogía, antropología, geo
logía...* sem querer dirimir todo e qualquer problema mediante a auto-
ridade da Revelagao sobrenatural (esta ficará sendo, sim, criterio nega
tivo impreterível, isto é, criterio que em muitos casos dirá apenas o
que nao é licito afirmar).
Em particular, com referencia ao regime de co-propriedade ou de
participado dos operarios na gestáo da empresa, deve-se observar que
a doutrina social da Igreja está longe de se lhe opor; ela, antes, o
favorece desde que corresponda as* conveniencias da populacáo á qual
deva ser aplicado. Eis como a respeito se pronunciava o Santo Padre
Pió XI na famosa encíclica "Quadragesimo anno":
"Julgamos que ñas presentes condigóes sociais é preferivel, onde
isto fdr possível, mitigar os contratos de trabalho, comhinando-os com
os de sociedade, como já se comegou a fazer de diversos modos, com nfio
pcquuna vantagom para os operarios e os pairóos. Dcste modo, os ope
rarios sao considerados socios no dominio ou na gestáo, ou compartílham
nos lucros".
Quanto ao receio de que Maritain seja um continuador das idéias
heréticas de Lamennais, é váo. Felicité de Lamennais (t 1854) tornou-se
no século passado o que se charnava "um católico liberal", propugnando
absoluta independencia das atividades políticas cm relagáo á Religiáo,
assim como a necessidade de separar Igreja e Estado; morreu como
socialista e livre-pensador, fora da comunháo da Igreja. Maritain, ao
contrario, professa explícitamente a subordinagáo da "Cidade dos homens"
á "Cidade de Deus".
Está claro que ninguém é obrigado a compartilhar as idéias polítieo-
-sociais désse filósofo. Quem, porcm, délas discorde, aínda pode, com
imensa vantagem, apreender as mais puras e sabias lie.oes da Verdade
ñas obras de Filosofía especulativa désse pensador. O que Maritain
escreveu nesse setor, é de valor incontestável.
2) A respeito do mal no mundo e da Bcndade Divina, veja "P. R."
5/1957, qu. 1; 32/1960, qu. 3.
ZÉ (Aparecida): O amigo interroga a respeito da condüta de
cidadáos magons em atos de Liturgia da Igreja.
Responderemos distinguindo.
É desejável que país magons mandem batizar seus filhos na Igreja,
desde que nao se oponham á educagáo católica dos mesmos. As crianzas
tém o direito á vida sobrenatural, independentemente do credo que pro-
fessem seus genitores. É evidente, porém, que um niagon nao pode ser
padrinho de Batismo, pois isto implica em compromisso de prever á

— 395 —
«P. R.» 33/1960 — CORRESPONDENCIA MIÚDA

educacáo católica do afilhado, compromisso que o macón coercntementc


nao pode assumir.
O macón que queira ir á igreja e assistir a Santa Missa, pode fazé-lo,
desde que nao perturbe os fiéis nem tenha intencáo malvada. É de
crer que quem vai a igreja, vai rezar (a menos que o contrario, eni tal
ou tal caso, seja evidente.); ora nao lícito impedir o próximo de procurar
tranquilamente a Deus na oragáo. A rigor, os macons também podem
mandar celebrar a Sta. Missa em favor de outrem ou de si mesmos (até
cm datas de bodas de prata ou de ouvo). A menos que conste do contrario,
presume-se que quem manda celebrar a Sta. Missa procura de certo modo
o favor ou a ben^áo de Deus. O sacerdote celebrante, porém, deverá
tomar todo o cuidado para que o ato religioso assim realizado nao insinué
de algum modo aprovagáo da ideología maconica ou da conduta pessoal
dos adeptos da magonaria. Nao há dúvida, será difícil evitar esta poasível
conseqüéncia, assim como os mal-entendidos e equívocos; dai recomen
darse toda a prudencia em tais casos. A Sta. Missa celebrada em favor
de macons visará pedir a conversáo dessas almas.
CURIOSO (Alegre, Espirito Santo): A uncáo dos docntes pode
ser reiterada no decurso da mesma molestia, caso o paciente, tendo
escapado de grave crise (com perigo de morte), recaia noutra; ou caso
sobrevenha aleuma complicarlo patológica derivada de outra origem
(urna pneumonía, por exemplo, juntando-se a urna crise cardíaca).
Nao dispondo de espaco na revista, sem demora responderíamos
por carta as sete outras perguntas de V. S. se soubéssemos o respectivo
enderégo.
KLE1NBERG (Porto Alegre): Assunto muito atual. Queira aguar
dar resposta no número de novembro de "P. R.".
FERREIRA (Pinhal): V. S. encontrará os devidos esclarecimentos
nos opúsculos de Frei Boaventura Kloppenburg (Ed. Vozes de Petrópolis,
Caixa postal 23, Petrópolis, R. J.), ou no livro de Palmes: Metapsfquica
c Espiritismo (mesma Editora).
MARIANO (Sao Paulo): Enquanto nao lhe podemos satisfazer de
outro modo, muito lhe recomendamos, no tocante aos mandamentos da
Lei de Deus, a leitura do "Catecismo Católico" (Ed. Herder, Sao Paulo),
págs. 189-246.
P. S.: Avisamos a nossos lcitores que saiu nova edicáo do "Plano
para ler a Sagrada Escritura": consta de fichas que distribuem os
diversos livros da Biblia (a razio de tres capítulos por día aproximada
mente) para a leitura cotidiana da Escritura Sagrada, de modo que
cm um ano esteja assegurada a leitura de toda a Biblia (excetuados
os Salmos e os Evangelhos, que sao de uso freqüente). Prego: Cr$ 30,00.
Os pedidos podem ser enviados a qualquer dos dois endereces abaixo.
indicados.
D. ESTÉVAO BETTENCOURT O. S. B.

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