You are on page 1of 62

FACULDADE CÁSPER LÍBERO

A essência do herói
Análise da Jornada do herói de Batman, na HQ O cavaleiro das
trevas, e Capitão Nascimento, no filme Tropa de elite

Rafael Potenza Fernandes

São Paulo
2008

1
FACULDADE CÁSPER LÍBERO

A essência do herói
Análise da Jornada do herói de Batman, na HQ O cavaleiro das
trevas, e Capitão Nascimento, no filme Tropa de elite

Rafael Potenza Fernandes

Monografia apresentada à Faculdade Cásper


Líbero como resultado de pesquisa de Iniciação
Científica desenvolvida no Centro Interdisciplinar
de Pesquisa, sob a orientação do Professor
Irineu Guerrini Jr.

São Paulo
2008
2
Para L.F.

3
AGRADECIMENTOS

Ao CIP – Centro Interdisciplinar de Pesquisa da Faculdade Cásper Líbero – pelo


apoio, que permitiu o desenvolvimento desta pesquisa de Iniciação Científica.

Ao Prof. Irineu Guerrini, pela orientação do trabalho, sem a qual não seria possível a
realização. E ao Prof. Dr. José Eugenio de O. Menezes, que com grande competência e
profissionalismo dirigiu o CIP – Centro Interdisciplinar de Pesquisa da Faculdade Cásper
Líbero.

Em especial, gostaria de agradecer a meus pais, pela paciência e incentivo em tudo que
realizei durante a vida; a meus irmãos Gabriel, pelos incentivos e “puxões de orelha”, e Pedro
Henrique, que torceu para que eu terminasse logo e pudesse jogar bola ou brincar de massinha
com ele. A minha grande amiga Maíra, presente no momento em que decidia iniciar a
pesquisa, que com dedicação incentivou mais esse passo e torceu para que fosse bem dado.

Diretamente envolvida com a elaboração desta pesquisa, esteve minha grande amiga e
competentíssima revisora de textos Mayara Alves, injetando ânimo e vírgulas a este trabalho.

Obrigado a todos.

4
A essência do herói
Análise da Jornada do herói de Batman, na HQ O cavaleiro
das trevas, e Capitão Nascimento, no filme Tropa de elite

RESUMO

Batman, criado por Frank Miller, no gibi Batman - o cavaleiro das trevas, de 1987, e o
personagem central Capitão Nascimento, do filme Tropa de elite, de José Padilha, 2007,
trazem certas semelhanças no que diz respeito às suas construções como heróis em suas
respectivas histórias. O jeito de agir, as justificativas para os atos, seus discursos, a
repercussão de suas ações e as consequências do heroísmo na sociedade, são, para eles
mesmos, pontos que convergem entre os dois e levam a crer na existência de apenas um herói
legítimo. Um modelo que, fora a roupagem contemporânea e uma ou outra modificação,
atravessa a mesma jornada heróica que tantos outros heróis atravessaram. A análise dos dois
objetos e o encontro com a Jornada do herói, elaborada nos estudos de Joseph Campbell e
posteriormente adaptada para o cinema por Christopher Vogler, revelam o porquê da
semelhança e apontam uma universalidade que pode ser identificada em qualquer história, não
importando a linguagem na qual é apresentada.

Palavras-chave: jornada do herói, herói, Batman, Capitão Nascimento, O cavaleiro das


trevas, Tropa de elite.

5
SUMÁRIO

Introdução .............................................................................................. 08

1. A jornada em O cavaleiro das trevas ..................................................... 15


1.1. História............................................................................................ 15
1.2. Herói ............................................................................................... 19
1.3. Jornada do herói............................................................................. 24

2. A jornada em Tropa de elite ..................................................................... 39


2.1. História............................................................................................ 39
2.2. Herói ............................................................................................... 41
2.3. Jornada do herói............................................................................. 44

3. Comparações ............................................................................................ 52
3.1. Cinema e história em quadrinhos ................................................... 52
3.2. Batman e Cap. Nascimento ............................................................ 53

Considerações finais ..................................................................................... 57

Referências bibliográficas............................................................................. 59

6
“Porque existe uma certa sequência de ações heróicas
típica, que pode ser detectada em histórias
provenientes de todas as partes do mundo, de vários
períodos da história. Na essência, pode se até afirmar
que não existe senão um herói mítico, arquetípico, cuja
vida se multiplicou em réplicas, em muitas terras, por
muitos, muitos povos.”

CAMPBELL, Joseph. O poder do mito, p.145.

7
Introdução

Ao ler o gibi O cavaleiro das trevas, em 2005, fiquei espantado com a maneira em que
as ações de Batman contra os criminosos eram interpretadas pela sociedade e pela mídia
retratada na história. No lugar de ser considerado um herói, Batman era acusado de atuar de
maneira criminosa contra os bandidos.

Em 2007, estreou o filme brasileiro Tropa de elite, com muita atenção da mídia devido
ao seu caráter de crítica à maneira como a polícia denominada BOPE (Batalhão de Operações
Especiais), subdivisão da Polícia Militar do Rio de Janeiro, atua em suas incursões nos morros
cariocas, com o objetivo de alcançar a paz e fazer a lei vigorar. Capitão do batalhão,
Nascimento, personagem principal da trama, representa bem o estilo de pensamento e ação do
BOPE: discurso autoritário e repreensivo, culminando em meios de ação violentos.

Com um discurso reacionário, meios de ação anticriminosos agressivos e traços


psicológicos parecidos, Batman e Capitão Nascimento são dois personagens que, cada um na
sua história ficcional, são acusados pela mídia e pela sociedade de serem criminosos. Essa
primeira semelhança despertou em mim um raciocínio comparativo entre os dois e apontou
mais tantos outros laços de união.

Minha hipótese é que Batman e Capitão Nascimento são heróis, e, como tal, foram
construídos com inúmeras semelhanças, apontando para a existência de um arquétipo do herói
como Campbell afirma existir.

O jeito de agir, as justificativas para os atos, seus discursos, a repercussão de suas


ações e as consequências do heroísmo na sociedade, são para eles pontos que convergem entre
os dois, e levam a crer na existência de apenas um herói legítimo. Um modelo que, fora a
roupagem contemporânea e uma ou outra modificação, atravessa a mesma jornada heróica
que tantos outros heróis atravessaram.

(...) Porque existe uma certa sequência de ações heróicas típica, que pode
ser detectada em histórias provenientes de todas as partes do mundo, de
vários períodos da história. Na essência, pode se até afirmar que não existe

8
senão um herói mítico, arquetípico, cuja vida se multiplicou em réplicas, em
1
muitas terras, por muitos, muitos povos.

Escritor norte-americano nascido em 1904, Joseph Campbell é considerado uma das


maiores autoridades em mitologia comparada. Quando preparava sua tese de mestrado,
Campbell percebeu que muitos dos elementos contidos na lenda do rei Artur e os cavaleiros
da Távola Redonda faziam parte das antigas tradições dos índios norte-americanos. Essa
primeira semelhança, aliada a estudos posteriores sobre sânscrito, filologia indo-européia,
Freud, Jung e pelo hinduísmo, deu ao autor a cadeira de Mitologia do departamento de
literatura do Sarah Lawrence College, e permitiu longos estudos sobre os mais variados mitos.
Da sua pesquisa e conhecimento surgiu o livro O herói de mil faces, que relaciona mitos de
inúmeras culturas espalhadas pelo mundo e apresenta um padrão nos heróis e nas suas
aventuras, denominado A jornada do herói.

O herói de mil faces é seu trabalho sobre o tema mais persistente da


tradição oral e da literatura escrita: o mito do herói. Em seu estudo sobre os
mitos mundiais do herói, Campbell descobriu que todos eles, basicamente,
são a mesma história, contada e recontada infinitas vezes, em infinitas
2
variações.

Com elementos estruturais universalmente comuns em mitos, sonhos, contos de fadas,


filmes, histórias em quadrinhos, literatura, novelas, etc, enfim, sob qualquer linguagem em
que uma história for contada, é possível identificar a Jornada e uma das razões para os mitos
ou sonhos apresentarem características tão semelhantes, por mais distantes culturalmente ou
historicamente que estejam. É a idéia do inconsciente coletivo, desenvolvida por Jung. Como
um “imenso arquivo de material simbólico3”, a idéia de uma tradição milenar, de
antepassados que já viveram a aventura e desenvolveram atitudes e idéias que se repetiram até
serem absorvidas pela mente, como instintivas e então passadas geração após geração, já
incutida no inconsciente de cada um, explica a universalidade de figuras, representações,
entendimento de fenômenos e até questões a serem respondidas como “pra onde vamos
depois de morrer?”.

1
CAMPBELL, Joseph. O poder do mito, p.145.
2
VOGLER, Christopher. A jornada do escritor, p.24.
3
GOLDBRUNNER, Josef. Individuação, p.105.

9
Jung descobriu o inconsciente coletivo, que era uma idéia totalmente nova.
Freud, como devemos lembrar, concebeu a mente inconsciente como sendo
formada pela repressão de experiências perturbadoras ocorridas na
infância. As provas obtidas pela análise de sonhos de pacientes e pelo
estudo de mitos, simbolismo e religião convenceram Jung de que parte da
mente inconsciente está pré-determinada ao nascer e que é igual para
todos. Assim, passou a denominá-la inconsciente coletivo.

O inconsciente coletivo compõe-se de predisposições inatas para reagir ao


ambiente de certas maneiras. Essas predisposições chamam-se arquétipos.
Por exemplo, pelas crianças sempre terem tido mães, o cérebro evoluiu de
tal modo que, o recém-nascido, se encontra em sintonia para responder a
mãe como uma pessoa particular em seu ambiente. Isso se chama
4
arquétipo maternal.

Com o inconsciente coletivo, Jung passou a apontar condutas padrões e a diferenciá-


las por nomes. Seriam como comportamentos padrões que se ativam ou são refletidos em
determinadas situações pelo homem. Seriam esses os arquétipos, sendo o herói um dos mais
representativos e base para os estudos de Campbell e, consequentemente, de Vogler.

Todas as experiências do mundo de todos os tempos foram precipitadas


nos arquétipos. São a condensação do que é a média e o caso normal na
história, formas típicas de concepção humana. Aqui, se conservam os
sentimentos e pensamentos mais antigos da humanidade. Os arquétipos
são a formulação da resultante de inúmeras experiências típicas da série de
ancestrais, são um corte transversal de milhões de experiências.

Quando trazemos a luz e traduzimos os arquétipos para a linguagem da


consciência, experimentamo-los como as dominantes, como aquelas
figuras, imagens e símbolos arcaicos, que foram a razão porque
enveredamos em procura deles. As imagens, figuras e símbolos arquétipos
estão sempre carregados de desejos e impulsos obscuros e finalísticos, os
instintos. Os arquétipos são as percepções ou os auto-retratos dos instintos
na consciência. São as manifestações dos instintos, isto é, impulsos
criadores provenientes do inconsciente. (...) A soma dos instintos e de seus

4
LINDZEY, Gardner; HALL, Calvin S. e THOMPSON, Richard F. Psicologia, p.308.

10
correlatos, os arquétipos, enchem a camada do inconsciente coletivo.
5
Constituem o fundo da alma.

Outra razão para universalização das histórias e seus heróis é a função de aprendizado
e revelação. A tradição oral é apresentada como forma de passar um ensinamento à próxima
geração e as histórias dos mitos passam a ser representações simbólicas dessa lição. São
maneiras de mostrar, por exemplo, ao jovem, que os problemas que ele irá enfrentar ao chegar
na fase adulta serão duros, mas devem ser encarados sem medo, pois alguém já passou por
isso, sobrevivendo à experiência, e voltou para contar essa história, que agora pode ser usada
como uma auxiliadora.

[...] quer se apresente nos termos das vastas imagens, quase abismais, do
Oriente, nas vigorosas narrativas dos gregos ou nas lendas majestosas da
Bíblia, a aventura do herói costuma seguir o padrão da unidade nuclear
acima descrita: um afastamento do mundo, uma penetração em alguma
6
fonte de poder e um retorno que enriquece a vida.

Os sonhos têm o caráter de revelação e, como são produzidos pelo inconsciente,


invocam figuras e representações ligadas ao inconsciente coletivo, na tentativa de expor à
consciência algo que deve ser revelado. Por se tratar de uma aventura também, os sonhos
podem muito bem ser traduzidos posteriormente como mitos.

7
Os arquétipos são as expressões psicológicas das verdades da vida

As histórias modernas de filmes e histórias em quadrinhos têm o mesmo aspecto dos


mitos – apesar de óbvios intuitos comerciais – pois ainda surgem de um fundo inconsciente e
têm a intenção de apresentar um conflito que será solucionado, que deve ser identificado pela
platéia como um problema que ela deve solucionar. A universalidade do tema e seus aspectos,
que remetem ao inconsciente coletivo de cada um, tornam a história algo verdadeiro, algo que
o público se identifica. Uma jornada que ele deve trilhar também, na qual o filme está lá pra

5
GOLDBRUNNER, Josef. Individuação, p.125.
6
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces, p.20.
7
GOLDBRUNNER, Josef. Individuação, p.127.

11
auxiliá-lo. Quanto mais universal, mais a história cativa a platéia e, assim, os filmes podem
ser denominados como os mitos modernos.

Numa sociedade como a contemporânea, onde mitos e lendas são repetidamente


atacados como falsos pela ciência e razão humana, que tanto se desenvolveu nos últimos anos,
o papel de contar histórias e criar imagens heróicas, servindo de modelos que devem ou não
ser seguidos, coube ao cinema e aos meios de comunicação. Que importância damos às
figuras heróicas?

MOYERS: Isso é que me intriga. Somos felizes quando os deuses e as


musas nos dão atenção, e a cada geração aparece sempre alguém
servindo de fonte inspiradora para a jornada que cada um de nós
empreende. No seu tempo, era Joyce, Thomas Mann. No nosso, muitas
vezes parece que é o cinema. Os filmes criam mitos heróicos? Você acha,
por exemplo, que um filme como Guerra nas estrelas corresponde a algo
daquela necessidade de um modelo de herói?

CAMPBELL: Ouvi jovenzinhos usando alguns dos termos de George Lucas:


“a Força” e “o lado negro”. Deve estar batendo com alguma coisa. E uma
8
boa maneira de ensinar, eu diria.

Todos esses estudos foram posteriormente dispostos por Christopher Vogler, avaliador
de roteiros para Hollywood, como uma teoria para a análise e escrita de histórias,
especialmente roteiros de cinema. Suas pesquisas tiveram forte impacto sobre Hollywood,
pois se assemelhavam a uma fórmula mágica: bastava seguir as 12 etapas e articulá-las em
seus devidos lugares, que a probabilidade de um filme encantar a platéia se tornaria maior.
Mesmo com esse uso comercial, Vogler não vê a Jornada do Herói como uma fórmula pronta,
e sim, como um auxiliador nos momentos de dúvida com relação à criação ou avaliação de
um roteiro.

A forma deve se adaptar ao conteúdo, e não o contrário. Com essa máxima, Vogler
adverte que, mesmo universal, o padrão não é absoluto e responsabiliza a criatividade do ser
humano pela excelência de qualquer história. As etapas não precisam ser claramente expostas
no filme, nem estar na ordem apresentada no livro. Não é necessário que o roteirista se atenha
a elas como 12 mandamentos, são apenas padrões por onde a história pode passar. Subverter

8
CAMPBELL, Joseph. O poder do mito, p.152.

12
as regras é uma maneira de contar sua história e pode se tornar algo interessante ao
espectador.

As estações no caminho da Jornada do Herói emergem naturalmente,


9
mesmo quando o escritor não está consciente delas.

A organização da Jornada do herói é disposta por ele em 12 etapas no livro A jornada


do escritor serve de base para esse trabalho, onde procuro identificar as etapas nos dois
objetos de estudo, compreendendo assim mais a fundo os dois heróis para depois compará-los
entre si.

A 12 etapas são: Mundo comum; Chamado à aventura; Recusa do chamado; Encontro


com o Mentor; Travessia do primeiro limiar; Testes, aliados, inimigos; Aproximação da
caverna oculta; Provação suprema; Recompensa; Caminho de volta; Ressurreição; e Retorno
do elixir.

É possível dividir a história em três partes ou, como é comum falar, em três atos. O
primeiro ato compreende a iluminação do herói, ou seja, a descoberta de que algo tem que
mudar e ele deve efetuar isso. No MUNDO COMUM é apresentado ao espectador a situação
do herói, antes de tomar parte da aventura. Já a apresentação de um problema que deve ser
resolvido, um objetivo alcançado, ou um desafio, ocorre no CHAMADO À AVENTURA.
Encarar a aventura significa ir para um mundo desconhecido e enfrentar forças poderosas. O
medo se instaura e é comum o herói, antes de embarcar na tarefa, RECUSAR O CHAMADO.
É necessário estabelecer uma influência poderosa para fazer o herói enfrentar esse medo e dar
sequência à história. É um dos temas mais comuns da mitologia e mais ricos em valores
simbólicos, devido à representação entre pais e filhos, criador e criatura, Deus e o ser humano.
O ENCONTRO COM O MENTOR é a etapa em que uma figura assume a função do Mentor,
um arquétipo poderoso, que prepara o herói para a aventura, aconselhando-o; dando objetos
que o auxiliarão na aventura; compartilhando a experiência de suas aventuras passadas,
muitas vezes o Mentor já foi herói da mesma aventura a qual passa o herói da história; ou
dando um empurrão para que a aventura se inicie. Quando o herói se compromete com a
aventura, ocorre a TRAVESSIA DO PRIMEIRO LIMIAR, onde o espectador e o herói
entram no Mundo especial.

9
VOGLER, Christopher. A jornada do escritor, p.29.

13
Após a travessia, tem inicio o segundo ato, que é a ação propriamente dita, na qual o
herói vai se empenhar para alcançar o objetivo. Em TESTES, ALIADOS E INIMIGOS, como
o nome dessa etapa já mostra, são apresentadas tanto ao herói quanto à platéia as regras do
Mundo especial, suas dificuldades, quem é amigo e quem não é. Nessa fase, é comum e
possível um desenvolvimento maior do personagem, mostrando sutilezas dele conforme se
relaciona com a aventura e, consequentemente, com seus medos. Lembrando que uma
aventura física revela muito do íntimo, como uma busca maior.

Depois dos testes, está na hora do herói buscar seu objetivo, enfrentando o inimigo
que guarda tal tesouro. Mas o herói não pode ser imprudente e deve planejar tudo. A
APROXIMAÇÃO DA CAVERNA OCULTA é a fronteira na qual o herói se prepara antes de
se lançar a um confronto de vida ou morte. O herói já se preparou e pode ir de confronto ao
seu maior medo. Esse é um momento chave da história, A PROVAÇÃO SUPREMA para o
herói, onde o público, que já se identificou com o herói, sofre junto com ele. As emoções
devem ser deprimidas, com uma quase morte do herói, para depois, com sua volta da morte e
vitória, causarem entusiasmo e euforia na platéia. Depois de vencer seu medo, enfrentar e
derrotar o mau, o herói pode celebrar e se apossar do seu objetivo. A RECOMPENSA. Nesse
ponto, é comum o herói solucionar algum conflito particular.

Alcançar seu objetivo é essencial, mas a aventura não acaba enquanto o herói não
voltar ao mundo comum. O terceiro ato explora as consequências de ter-se confrontado com
as forças obscuras da provação suprema. Ainda há perigos, tentações e testes à sua frente no
decorrer do CAMINHO DE VOLTA, além de um segundo encontro com a morte certa,
servindo como uma maneira de purificar o herói para o retorno ao mundo comum.
Funcionando como uma prova de final de ano, a RESSURREIÇÃO serve para ver se o herói
realmente aprendeu as lições da Provação suprema. Depois de ressurgir purificado, o herói
volta ao Mundo Comum e RETORNA COM UM ELIXIR, seja físico, como um tesouro, ou
abstrato, como uma lição ou uma experiência.

14
1. A jornada em O cavaleiro das trevas

1.1. Sobre a história

O cavaleiro das trevas (CDT) é um gibi norte-americano com argumento, roteiro e


desenhos de Frank Miller, cores de Lynn Varley e arte-final de Klaus Janson, e foi
originalmente publicado em quatro partes nos Estados Unidos, no ano de 1986, com o título
de The dark knight returns.

A publicação revitalizou a indústria dos gibis nos Estados Unidos nos anos 80 e
redefiniu o personagem Batman, criado por Bob Kane para a DC Comics. Além de ser
considerado por muitos como o primeiro Elseworld da história dos gibis, apresentou um
desvio da história normal de Batman, lançando um panorama alternativo: e se o Batman
estivesse a mais de 10 anos sem vigiar Gotham City?

Lançado no Brasil pela Editora Abril, em 1987, essa história, originalmente em


quadrinhos, vem ganhando novas edições de sua mini-série completa pelo Brasil e pelo resto
do mundo, sendo a mais recente em dezembro de 2006, pela Panini Comics. Considerada uma
obra-prima de Frank Miller, ao lado de 300 de Esparta e Sin City, também de sua autoria, O
CTD é um clássico da franquia Batman e do mundo das histórias em quadrinhos (HQ’s).

A mini-série O CTD, que já teve sua continuação lançada, O CTD 2, é uma história
dividida em três partes, também escritas por Miller, em dezembro de 2001. Cultuada no
mundo todo, em primeiro lugar pelo tratamento dispensado ao personagem Batman, a mini-
série apresenta o bilionário Bruce Wayne com 55 anos e afastado há 10 do uniforme de
justiceiro de Gotham. Miller cria um personagem que sofre com ansiedade, distúrbios
compulsivos e frustração. Resumindo: um neurótico.

[...] Precisava de um gênio obsessivo, hérculeo e razoavelmente maníaco


10
para pôr as coisas em ordem.

Essa imagem do homem-morcego passou a ser considerada por muitos como a melhor
caracterização do herói, e deveria ser seguida por todos que quisessem trabalhar com o
personagem posteriormente _ uma forma clara de crítica a outros seriados, como o estrelado

10
MILLER, Frank. O cavaleiro das trevas, introdução da Edição definitiva.

15
por Adam West, nos anos 60. Porém, não foi só pelo tom do personagem principal que a
mini-série foi aclamada. Em termos mercadológicos, ela foi uma revolução.

A indústria americana de quadrinhos, em suma DC Comics e a Marvel, buscava ainda


um jeito de se adaptar ao modelo europeu de publicação, um modelo mais autoral de
produção. Tentativas foram feitas pelas duas empresas, e apenas com a entrada de Frank
Miller na DC, com total liberdade criativa, e do lançamento de O CDT, o modelo autoral se
adequou às expectativas do mercado americano e, consequentemente, do brasileiro e do
mundial. A novela de Miller também foi fundamental, junto com o lançamento de Watchmen,
de Alan Moore, na viabilidade de edições mais requintadas das HQ’s no Brasil. O CDT foi
lançado no, até então inédito, modelo Prestige, com papel de alta qualidade e tamanho 17x26.

Mas o mais impressionante feito da revista, além de se sagrar como uma das melhores
HQ’s de todos os tempos, foi a descoberta de um novo público alvo para a indústria dos
quadrinhos: o adulto. Foi realizada uma pesquisa na época do lançamento de O CDT e
comprovado que universitários, profissionais liberais e leitores mais velhos do que os
habituais fãs de quadrinhos, haviam comprado, lido e gostado da publicação. O mercado
brasileiro, por exemplo, até o lançamento de O CDT, tratava em um mesmo departamento
tanto de gibis de super-heróis como de publicações infantis, dispensando para os dois
produtos um único tratamento e entendimento.

Para a Editora Abril daqueles tempos, qualquer gibi era tratado de uma
mesma maneira padronizada e homogênea. A filosofia vigente rezava que
era coisa de criança ou pré-adolescente. Super-Heróis, quaisquer que
fossem, deveriam ter o mesmo tratamento que a Turma da Mônica ou os
11
quadrinhos Disney.

Até certo ponto, pode ser compreensível essa confusão entre obra direcionada ao
público infantil e ao adulto. Batman, por exemplo, é um personagem encomendado pela DC
Comics, em 1939, a Bob Kane, na esperança de criar um herói que causasse o mesmo impacto
que o Superman causava na época, já que o homem de aço praticamente dobrou a tiragem dos
gibis ao conquistar as crianças logo que surgiu. O empreendimento da empresa deu certo, e o

11
MARTINS, Jotapê. Crônicas omeléticas: O Cavaleiro das Trevas e eu.
<http://www.omelete.com.br/quad/10000730/Cronicas_omeleticas__O_Cavaleiro_das_Trevas_e_eu.aspx>

16
fruto da imaginação de Kane está até hoje presente no imaginário infanto-juvenil, com os
inúmeros desenhos na TV, filmes, quadrinhos e acessórios de consumo.

A análise da origem do herói revela um tratamento muito maduro e obscuro para um


simples personagem infantil. Batman é uma criatura da noite, parecido com um vampiro, por
sua aparência aterrorizadora, e com uma determinação implacável. Ele inspira medo aos
criminosos mais insensíveis, tornando-se um justiceiro impiedoso. Seu motivo para lutar
contra o crime foi ter presenciado, aos 10 anos de idade, a morte de seus pais na mão de um
criminoso. Não conseguindo se recuperar nunca deste trauma, jurou vingança aos criminosos,
caçando-os impiedosamente.

Miller, conhecendo este lado maduro da origem do Batman, propôs a DC Comics um


projeto de HQs que retomasse as origens do herói, criando O CDT e Batman Ano Um. Ele
utilizou esse trauma pessoal como pano de fundo para uma história cheia de críticas, sátiras e
doses de realidade, em uma Gotham dominada pela violência e assustada com uma iminente
guerra nuclear. O Batman, de Miller, é o avesso de todo o discurso de igualdade e justiça
pregado pelo Superman, por exemplo. Sendo assim, é o avesso de todo conceito de estrutura
social.

A sátira com fundo crítico aparece em todos os momentos. Dois exemplos são: as
seqüências que mostram o “empurra-empurra” dos governos, tentando se eximir da culpa pelo
estado de caos em Gotham City, dominada por bandidos; e as justificativas para a Guerra
Fria, dadas pelo presidente dos Estados Unidos, que foi desenhado com uma fisionomia
abobalhada e canastrona.

No texto de introdução da edição definitiva de O CDT, lançado em 2006 pela Panini


Comics, Frank Miller disserta sobre as dificuldades em se produzir gibis após o lançamento
do livro Seduction of the Innocent. Esse livro, do psiquiatra Frederic Wertham, no início dos
anos 50, não chegou ao Brasil, e acusava os gibis de serem a principal razão da “delinqüência
infantil”, clamando por um órgão censor aos gibis. A opinião pública abraçou a causa do
psiquiatra e o congresso foi obrigado a colocar a questão em pauta, mas nada foi concluído.
Mesmo assim, a indústria dos quadrinhos, para não ser mercadologicamente prejudicada,
criou o Comic Code Authority, um selo que atestava que as publicações não eram ofensivas
“à moral e aos bons costumes”. Aos poucos, os próprios artistas e produtores foram mudando
esse cenário, retomando nos quadrinhos assuntos até então proibidos pelo selo de “qualidade”,
como violência, sátiras aos poderes governamentais e erotismo. E foi então que os anos 80

17
chegaram, e junto com ele um panorama muito bom para os quadrinhos. É nesse contexto que
O CDT se insere.

Criado nessa data, com as ameaças de ataque nuclear entre Estados Unidos e União
Soviética, e uma escalada da violência urbana e da mídia acompanhando todos esses eventos
como se fossem a transmissão de um espetáculo, Miller transportou todos esses fatos para a
HQ. Dando toques pessoais a algumas passagens, acontecimentos e motivações semelhantes à
censura dos gibis, ele escreveu sobre o caso das justificativas dadas pelo fictício psiquiatra
Bartholomew Wolper à prisão de Batman, por ser uma ameaça às crianças de Gotham e
principal responsável pelos crimes cometidos na cidade.

O CDT foi originalmente publicado em quatro partes, sendo elas, respectivamente: O


retorno do cavaleiro das trevas (lançada nos EUA em março de 1986), O triunfo do cavaleiro
das trevas (abril de 1986), A caçada ao cavaleiro das trevas (maio de 1986) e A queda do
cavaleiro das trevas (junho de 1986).

Com essas divisões, Miller adotou para cada parte da história uma batalha final
extrema com um vilão, seja ele novo na trama ou velho da franquia Batman. Na primeira
parte, vemos a volta de Batman para as suas ações de vigilantismo e a volta de Harvey Dent, o
Duas-caras, para o mundo do crime, culminando num confronto entre os dois no final desse
trecho. Na segunda parte, Batman emprega sua força contra a organização criminosa que toma
conta de Gotham, a gangue Mutante. A disputa com o líder da gangue é o grande confronto da
parte dois. Na terceira parte, o clássico arqui-inimigo de Batman, Coringa, volta a atacar e é
detido pelo homem-morcego. A quarta parte trás um confronto bem inusitado. Convocado
pelo governo norte-americano, Superman é designado para conter as investidas de Batman
contra o submundo de Gotham, pois suas ações eram consideradas criminosas por serem
violentas e sem aval institucional. O encontro de dois heróis, que teoricamente defendem o
mesmo ideal, mostra as seqüelas de decisões políticas do passado, que condenaram todos os
super-heróis ao exílio.

Logo na primeira página da história em quadrinho, Frank Miller nos dá um resumo da


história inteira de O CDT: Bruce Wayne (Batman) está no cockpit de um carro de corrida e a
linha de chegada está próxima. De repente os controles não respondem mais. Ele tenta mudar
para manual, mas o computador de bordo não aceita, fazendo com que Bruce tenha que à
força, ou seja, quebrando o computador, assumir os controles. Ele sabe que corre risco de
morrer, mas não se intimida. Tudo que ele quer é cruzar a linha de chegada. O carro todo

18
começa a recusar a andar, os pneus giram sozinhos, parte da carroceria se choca contra o
asfalto e o motor explode. Bruce descreve o carro agora como sendo “o centro de um sol”. O
carro vira um túmulo flamejante, e Bruce conclui que “esta seria uma boa morte, mas não o
bastante”. Ele cruza a linha de chegada e escapa nos últimos segundos, sofrendo apenas
queimaduras leves.

1.2. Sobre o herói

Uma característica fundamental para a análise, tanto da história como da figura de


Batman em O Cavaleiro das Trevas, é o fato do gibi ser um Elseworld, ou seja, uma história
que não pertence e não interfere na continuidade da saga original de Batman.

Com essa liberdade, Frank Miller inovou ao apresentar o bilionário Bruce Wayne com
55 anos e Gotham City há 10 anos sem sinal da existência de Batman, fato primordial na
análise da personalidade do homem-morcego nesta história. Outra característica em que
Miller inovou, foi na neurose da perda dos pais, que é acentuada e somada à “abstinência” do
Batman, gerando um herói frustrado e ansioso; agressivo e impulsivo; inicialmente dividido
entre duas personalidades; e constantemente temeroso de sua idade.

Ao presenciar o assassinato de seus pais por um assaltante, na saída de um cinema,


Bruce Wayne, com apenas oito anos de idade, desenvolveu uma aversão por bandidos e atos
criminosos em geral. Provavelmente o fato proporcionou outras consequências para a
juventude de Bruce, mas o gibi não deixa isso claro, e apenas foca a aversão à criminalidade e
a busca por vingança desenvolvida pelo jovem.

A solução encontrada para superar a morte dos pais foi adotar como suporte uma
identidade alternativa, funcionando como uma segunda personalidade, para assim dar vazão à
agressividade e à frustração que o acontecimento traumático lhe trouxe. Essa seria uma
simplificação da função de Batman como catalisador do trauma de Bruce. Porém, Miller
deixa bem claro na dinâmica de sua história e em certo momento da trama que na realidade
não houve o desenvolvimento de uma segunda personalidade, mas sim uma descoberta de
características primitivas e inconscientes de sua própria personalidade. Essa descoberta
ocorreu dois anos antes do assassinato de seus pais, quando Bruce, então com seis anos, ao
tentar apanhar uma lebre, caiu dentro de uma caverna e se assustou com inúmeros morcegos,
em especial por um deles, ao qual segue a descrição:

19
[...] então... algo se move. Oculto... algo que suga o ar viciado... e sibila.
Planando com graça milenar... ele não se afasta como seus outros irmãos.
De olhos radiantes, intocados pela alegria ou tristeza... seu hálito é quente e
tem o sabor de inimigos vencidos... o odor de coisas mortas, coisas
condenadas. Com certeza ele é o mais feroz sobrevivente... o mais puro
12
guerreiro.. brilhando, odiando... tomando o meu ser.

De acordo com o profundo estudo dos mitos, realizado por Joseph Campbell, o uso do
tema “descida à caverna” representa uma submersão ao inconsciente da mente. O fato de
Bruce ter caído na caverna, e descoberto “o mais puro guerreiro” que “toma o seu ser”,
representa a descoberta de muitas características de sua personalidade, até então desprezadas
pelo consciente. Características como agressividade, instinto, ódio e superioridade, que
surgiriam em Bruce sem a consciência da maioria das pessoas, serão retomadas após o
assassinato de seus pais, sendo configuradas como uma segunda personalidade, na tentativa
de, agora sim, dar vazão à sua frustração e raiva. Batman é a institucionalização de emoções,
sentimentos, motivações e lógicas de uma mente que sofre perturbações ainda infantis.

Mesmo Miller dando essa origem para Batman, ainda o trata com uma personalidade
diferente da personalidade de Bruce Wayne, afinal, o próprio Bruce parece acreditar que
Batman é uma entidade separada da dele. Para traduzir ao leitor que um é parte integrante do
outro, sem acabar com a dupla-personalidade logo de cara, ele mantém em todo momento
uma diferença entre “pensamentos do Batman” e “pensamentos do Bruce” _ os “pensamentos
de Batman” aparecem em box acinzentado e os “pensamentos de Bruce” em box branco. Com
essa distinção, ficam claros os diálogos entre os dois, além da nítida e total dominação de uma
personalidade sobre a outra em dado momento da história. Ao mesmo tempo em que brinca
com esse jogo, colocando falas que poderiam muito bem ser do Batman em boxes brancos e
vice-versa. há também narrações que dão a entender tanto a existência de duas personalidade,
como a combinação das duas. Um exemplo disso acontece na passagem em que Bruce volta a
atuar como Batman, numa sequência na qual ele relembra a cena da morte de seus pais e
Batman começa a falar (importante ressaltar que toda esta narração foi feita em boxes
brancos):

12
MILLER, Frank. O cavaleiro das trevas.

20
O momento chegou. Em sua alma você sabe... pois EU sou sua alma. Não
há como escapar de mim. Você é FRÁGIL... você é PEQUENO. Você é
menos do que NADA... uma carcaça vazia... um trapo que não pode me
conter. Ardentemente, eu o queimo... E queimando-o eu brilho, em chamas,
belo e feroz. Você não pode me deter... não com vinho, nem com
juramentos, nem com o peso da IDADE. Você não tem como me deter... e,
mesmo assim, ainda TENTA... ainda FOGE. Você tenta me ABAFAR... mas
13
sua voz é DÉBIL.

A sutileza e respeito de Miller com o leitor, na maneira como vai moldando Batman à
sua vontade e à primitividade, beirando o limite a que submete seus atos e motivações, tornou
essa personalidade de Bruce/Batman um arquétipo do justiceiro de Gotham para toda e
qualquer obra da franquia de Bob Kane.

Reinterpretando a origem e inventando um final, Miller acentua ainda mais as


consequências do trauma de Bruce ao aposentar Batman há 10 anos. O motivo inventado por
Miller para a aposentadoria, foi uma manobra política que impediu os heróis de praticarem o
vigilantismo, depois que seus meios de atuação foram interpretados pela sociedade e governo
como criminosos.

Como um ex-alcoólatra, Bruce está sem uma válvula de escape para sua neurose, e a
abstinência se revela insustentável. A comparação com a bebida está presente no próprio gibi.
Bruce, no inicio da história, aparece inúmeras vezes bebendo e seu mordomo Alfred chega a
comentar: “a próxima geração herdará uma adega vazia”.

A bebida se torna um substituto ao justiceiro, mas não é suficiente, levando em conta o


trauma e o atual estado de caos em que Gotham se encontra. Dominada pela criminalidade e
enfrentando uma onda de calor insuportável, a cidade se deixou vencer pelo medo, e isso
incomoda Bruce: talvez Batman pudesse fazer alguma coisa.

Essa combinação – lembrança do trauma infantil e escalada da criminalidade –


fertiliza o ressurgimento de Batman, que, “como a fúria de Deus, investe contra a cidade de
forma implacável”, volta a defender Gotham dos crimes. Com seu usual uniforme, colante
cinza; máscara que cobre os olhos e simula as orelhas pontiagudas do morcego; capa longa e
preta; cinto de utilidades; e o símbolo de um morcego no peito, o justiceiro é “implacável”,
destacando o seu modo de agir como: violento, vingativo, autoritário e superior. Sem

13
Idem 12.

21
considerar os direitos humanos, bate antes de perguntar e é cruel. A seguinte narração aparece
no momento em que Batman vai atacar um bandido.

Há sete tipos de defesa nesta posição. Três delas desarmam com o mínimo
14
contato. Outras três matam. A restante... aleija.

O box escrito “...aleija” é exatamente o box que mostra a aplicação de um chute


certeiro no quadril do bandido, dando a entender qual foi sua escolha.

Uma das primeiras coisas que os psicólogos aprenderam a respeito da


agressão e do conflito é que estas manifestações encontram-se
15
freqüentemente associadas a frustração.

O papel da mídia na história como “narradora” já foi apresentado, mas as acusações de


que Batman é tão criminoso quanto os bandidos que caça ganha força, resultando em tais
visões graças à escolhas como essas, feitas pelo justiceiro.

Vários criminosos espancados e feridos estão sendo encontrados pela


polícia, enquanto as descrições das testemunhas são confusas e
conflitantes. A maioria dos relatos parece coincidir com os métodos e com a
aparência do Batman, ou pelo menos com a impressão que ele costumava
16
causar...

Acusando-o de criminoso, a mídia, a polícia e a sociedade serão os maiores inimigos


de Batman durante a trama de Miller. Sem que isso altere a maneira do mascarado enfrentar o
crime, o fato gera problema para a conclusão de algumas de suas missões. Batman tem
consciência de suas atitudes e ele mesmo se considera um criminoso.

14
Idem 12.
15
LINDZEY, Gardner; HALL, Calvin S. e THOMPSON, Richard F. Psicologia, p.380.
16
Idem 12.

22
Quando os grupos de pais começaram a se queixar e a comissão do
congresso nos convocou pra depor... foi você quem deu risada... aquela sua
gargalhada assustadora. “Claro que somos crimonosos”, você disse. “Nós
17
sempre fomos.” “Nós temos que ser.”

Mesmo com as acusações, seu grande aliado, e muitas vezes mentor no combate ao
crime, é o comissário James Gordon, que se aposenta na terceira parte do gibi. Nas duas
primeiras partes, auxilia e aconselha Batman, oferecendo ao leitor, numa conversa com Ellen
Yindel, sua substituta no cargo e contrária às atuações do vigilante, uma descrição de todo o
poder que a figura de Batman invoca: espírito de luta, senso de justiça e coragem desmedida.

GORDON - Tenho certeza de que já ouviu fósseis como eu falarem de Pearl


Harbor. Só que nós sempre mentimos. A gente faz parecer que ficamos de
prontidão e logo atacamos o eixo. Que nada. Todo mundo estava
apavorado. A gente pensou que os japoneses tinham invadido a Califórnia.
Nem mesmo tinhamos um exército. Nossa vontade era ficar na cama,
cobrindo a cabeça com um lençol. Foi então que Roosevelt falou no rádio
com firmeza, transformando nosso medo em espírito de luta. Resultado da
guerra... nós vencemos. (...) Alguns anos atrás eu estava lendo, numa
revista de notícias, muitas pessoas com um monte de evidências afirmarem
que Roosevelt sabia que Pearl Harbor ia ser atacada... e que deixou isso
acontecer. Nada foi provado... coisa dessse tipo nunca é... mas eu comecei
a imaginar como seria horrível se fosse verdade... e como Pearl Harbor
despertou o país pra derrotar o eixo. Muitos inocentes morreram... mas nós
vencemos a guerra. Essa idéia ficou na minha cabeça até eu perceber que
não podia julgar esses fatos. Eles eram grandes demais. Ele era... grande
demais.

YINDEL – Não vejo o que isso tem a ver com o vigilante.


18
GORDON – Um dia você verá.

Yindel comprovou as palavras de Gordon quando, na quarta parte do gibi, em meio ao


caos do pulso eletromagnético, Batman recrutou os bandidos que fugiam da cadeia para o

17
Idem 12.
18
Idem 12.

23
auxiliar a colocar a cidade em ordem. Ela assistiu ao discurso do vigilante e não emitiu voz de
prisão, como até então vinha fazendo. Apenas olhou e disse “ele é grande demais”.

Assim como Gordon, há outros aliados de Batman que o admiram, cada um a seu jeito,
seja a garota Carrie, adotada como nova Robin, símbolo da juventude que Batman é acusado
de corromper, seja o seu mordomo Alfred, que relata acontecimentos reveladores da infância
de Bruce e de suas futuras convicções de justiça e punição, ou o incentivo de seu colega
Oliver, o Arqueiro-verde. Com relação à disputa contra o Superman, os aliados funcionam
como uma contra-parte às acusações da opinião pública e do governo, ora representado pela
mídia, ora por Yindel, ora por Superman.

O choque entre as acusações e as defesas mostra que o julgamento de Batman não


pode ser feito. Ele está acima do bem e do mal, mesmo sendo um mortal. Quando Bruce
inventou Batman e passou a dialogar com ele, já denunciava que apenas ele mesmo podia ser
seu sensor. Ele é grande demais e sabe disso.

1.3. A jornada do herói

Traçar a jornada heróica de O cavaleiro das trevas, usando como suporte a estrutura
de jornada exposta no livro A jornada do escritor, de Christopher Vogler, não foi tarefa fácil.
O fato de ter sido lançado em quatro partes, culminando na narração de quatro confrontos de
vida ou morte para Batman, fez com que a jornada desta história completa parecesse mais
complexa do que realmente é.

Analisando em termos mercadológicos, e mesmo de tradição nas histórias em


quadrinhos de super-heróis, a ação heróica e o confronto com situações de vida ou morte são
obrigatórios. Frank Miller desejava claramente penetrar nos aspectos psicológicos e
sociológicos que transformaram Bruce Wayne no justiceiro Batman, nas conseqüências para a
sociedade de atos heróicos e solitários de mascarados, e em como a mídia e as autoridades
encararam tanto a violência quanto a justiça. Como ferramenta para tratar desses assuntos,
criou um panorama político-social violento para Gotham, resgatando e inventando vilões e
situações que conseguissem refletir os aspectos pretendidos, para assim juntar as necessidades
do meio a que se destinava a história e seus objetivos enquanto autor e artista.

Abaixo, temos etapa por etapa detalhada: a jornada heróica de Batman e uma
interpretação das intenções de Frank Miller ao narrar O cavaleiro das trevas.

24
MUNDO COMUM

Gotham City está nas mãos dos marginais. Assolada por uma avalanche de crimes
hediondos, atribuídos a uma organização criminosa, denominada Mutantes, e sofrendo uma
onda de calor, a cidade está às voltas com a aposentadoria do comissário de polícia James
Gordon, que está há 26 anos no cargo, e relembra o aniversário de dez anos da última aparição
de Batman.

Bruce Wayne, com 55 anos, dedica-se apenas à administração da bilionária fortuna


Wayne e de ações filantrópicas. Há dez anos, ele combatia o crime como o justiceiro Batman,
fazendo justiça e tentando vingar a morte precoce de seus pais em um assalto, uma tragédia a
qual ele presenciou quando tinha apenas 8 anos. O hiato nas ações do vigilante não aparece
claro no gibi, mas tudo indica que algo de ruim aconteceu a seu parceiro Robin em alguma
missão do passado, traumatizando o herói.

Na noite de aniversário do sumiço do homem-morcego, Bruce brinda com Gordon


com dedicatória a Batman. O diálogo a seguir evidencia como as porções Batman e Bruce
estão bem divididas na mente do bilionário.

BRUCE: Bom ele ter se aposentado, não?

GORDON: E sobrevivido ao afastamento.


19
BRUCE: Ele não sobreviveu, mas Bruce Wayne está... vivo e bem.

Quando Bruce está retornando a pé para sua casa, lemos em seus pensamentos que
uma criatura, em suas entranhas, rosna e se contorce, e que ele, Bruce, não passa de um
zumbi, um cadáver morto há dez anos. No meio do caminho, Bruce chega ao local exato onde
seus pais foram assassinados e sua sina de justiceiro fora declarada. O nome do local é Beco
do crime. Ele confessa ainda sentir vontade de assumir a identidade de Batman quando ouve
sirenes da polícia, mas conclui que se era vingança o que Batman queria, ele a encontrou. O
assassino de seus pais, o homem que roubou todo o sentido de sua vida, poderia estar bem ali,
naquele beco... Perdido em pensamentos, Bruce não percebe que dois delinqüentes da gangue
Mutante se aprontam para assaltá-lo.

19
Idem 12.

25
CHAMADO À AVENTURA E RECUSA DO CHAMADO

Quando Bruce percebe a presença dos dois assaltantes, eles já se fazem ouvir pedindo
sua carteira. Nessa hora, um recurso gráfico é usado para evidenciar a primeira aparição
concreta de Batman na história. Um balão de pensamento na cor cinza aparece, dando voz a
Batman, dialogando com o balão branco dos pensamentos de Bruce. Batman afirma que o
homem que tirou a vida de seus pais é um desses delinqüentes, e, que hoje, ele e Bruce
conhecem muitas maneiras de puní-lo, incitando Bruce à briga no primeiro CHAMADO À
AVENTURA da história.

Bruce se contem e conclui que nenhum desses jovens é similar ao homem que matou
seus pais, pois este sentiu remorso e queria apenas dinheiro, diferentes daqueles, que são
crianças e se consideram os atuais donos do mundo.

Os dois criminosos desistem do roubo, pois Bruce senta na sarjeta e aparenta, como
descreveu um dos assaltantes, estar “doidão”. A voz de Batman foi silenciada, e os bandidos
saíram impunes. Com isso, há a evidência da RECUSA DO CHAMADO, mas não como
única e principal, pois pode-se considerar todo o ambiente do MUNDO COMUM de Bruce
como uma recusa ao chamado, que já dura dez anos. Para acabar com uma recusa tão grande e
intensa, serão necessários muitos chamados à aventura.

Outro momento com essa função de chamado, mas que também trás uma recusa, é
uma sequência onde Bruce sonha com o dia em que encontrou a caverna, depois usada pelo
Batman, e com os morcegos que nela habitavam. No sonho, ele corre atrás de um coelho e,
quando entra em sua toca para agarrá-lo, o chão se abre, fazendo com que Bruce, de apenas 6
anos, caísse no fundo da caverna. “Então... algo se move. Oculto... algo que suga o ar
viciado... e sibila. Planando com graça milenar... ele não se afasta como seus outros irmãos.
De olhos radiantes, intocados pela alegria ou tristeza... seu hálito é quente e tem o sabor de
inimigos vencidos... o odor de coisas mortas, coisas condenadas. Com certeza ele é o mais
feroz sobrevivente... o mais puro guerreiro... brilhando, odiando... tomando o meu ser”. Esta é
descrição dos morcegos que viu na caverna e que se tornaram o símbolo de sua busca por
vingança.

Quando Bruce acorda, ele está de pé frente à caverna, que hoje tem todos os objetos
antes usados pelo Batman cobertos por lençóis brancos. Bruce fala em pensamento que,
dentro dele, a criatura se debate tentando libertar-se, mas que ele não irá permitir. Nunca.

26
Alfred, o mordomo de Bruce, acorda, devido à insônia de seu patrão, e vai até a caverna para
acompanhá-lo de volta à cama, e observa que o bigode, que antes dava um ar envelhecido a
Bruce, fora raspado, para espanto do bilionário.

Na noite do dia seguinte, Bruce assiste a televisão, a qual transmitirá o filme A marca
do Zorro, justamente o filme que ele e seus pais assistiram antes da tragédia que mudaria suas
vidas por completo. Bruce pensa em mudar de canal, mas diz a si mesmo que aquilo era só
um filme e que mal nenhum poderia fazer. “Você gostou tanto que pulava e dançava como um
bobo, lembra?” Depois dessa pergunta, uma outra mais inquietante aparece: “Lembra daquela
noite?”. A expressão que Frank Miller conferiu a Bruce ao som dessa pergunta é indescritível
com palavras. A exibição do filme, a pergunta, as feridas... todos os elementos fundamentais
para uma seqüência de flashback da noite de assassinato dos pais de Bruce e uma tentativa
pífia dele em trocar de canal, tentando afastar seus demônios. A cada troca de canal, uma
notícia de jornal mostra a violência da cidade. A cada troca uma nova notícia. A cada notícia
uma nova chance de Batman se mostrar útil. É inútil tentar se esconder. Batman vem à tona.
E, junto com ele, uma tempestade assola Gotham, acabando com a onda de calor, que, de tão
intensa, chegou a ser acusada de incitar a violência urbana. A chuva veio para resolver o
problema.

ENCONTRO COM O MENTOR

Em seqüência à cena acima descrita, Batman toma as rédeas e começa a narrar a


história. “O momento chegou. Em sua alma, você sabe... pois eu sou sua alma. Não há como
escapar de mim. Você é frágil... você é pequeno. Você é menos do que nada... uma carcaça
vazia... um trapo que não pode me conter. Ardentemente, eu o queimo... E queimando-o eu
brilho, em chamas, belo e feroz. Você não pode me deter... não com vinho, nem juramentos,
nem com o peso da idade. Você não tem como me deter... e, mesmo assim, ainda tenta... ainda
foge. Você tenta me abafar... mas sua voz é débil...”.

Com estas palavras, Batman convence Bruce a deixá-lo emergir, funcionando como
Mentor, mesmo sendo o herói da história. Como evidenciei anteriormente, as duas
personalidades, Bruce e Batman, estavam bem separadas uma da outra: uma atuando
conscientemente e outra trancafiada no inconsciente. Mesmo com as duas atuando no
consciente a partir deste ponto da história, podemos observar que em alguns casos os quadros
apresentam balões de pensamento na cor cinza e na cor branca, ou indicações do tipo “uma

27
voz dizia tal coisa, mas eu não escutava”, expondo diálogos entre as duas personalidades,
como se uma funcionasse como mentor para a outra.

TRAVESSIA DO PRIMEIRO LIMIAR E TESTES, ALIADOS E INIMIGOS

A tempestade cai em Gotham e o jornal anuncia blecaute em todo o subúrbio da


cidade. “A tempestade é violenta e está se dirigindo para o centro de Gotham. Com a fúria de
Deus, ela investe contra a cidade de forma implacável...”.

Frank Miller inverte a ordem desta parte da jornada, mostrando primeiro os testes,
aliados e inimigos, e depois caracterizando graficamente a travessia do primeiro limiar, com a
intenção de esconder a figura de Batman o maior tempo possível, um recurso de estilo.

Batman começa a lutar contra o crime, impedindo um estupro, um cafetão de mutilar


uma prostituta – TESTES – e um assalto a duas garotas – umas delas é Carrie, a futura Robin,
ou seja, sua ALIADA. E, em paralelo, vemos os jornais fazendo a cobertura das ações do
Batman e apresentando-o como brutal – mídia essa que passa a ser sua principal INIMIGA
durante toda a história.

Todas as ações realizadas acima foram desenhadas com o justiceiro a sombra e com
apenas parte de seu corpo a mostra. A TRAVESSIA DO PRIMEIRO LIMIAR ou BATISMO
acontece na primeira vez em que Batman aparece de corpo inteiro no gibi. Batman está de
baixo da chuva e diz: “Onde está a dor? Eu deveria ser uma massa de músculos exaustos e
doloridos... fracos, desgastados, incapazes de se mover. Se eu fosse mais velho, com certeza
estaria assim... mas hoje eu sou um homem de trinta anos... não, vinte. A chuva em meu peito
é um batismo. Eu nasci outra vez.”.

APROXIMAÇÃO DA CAVERNA OCULTA

Não foi apenas Batman que ficou ausente por anos. Alguns de seus principais vilões
estão presos em hospícios e receberam tratamentos médicos, na tentativa de reabilitá-los ao
convívio com a sociedade. Um desses vilões é Harvey Dent, o Duas-Caras. Ex-promotor
público, tornou-se obcecado pelo número dois quando metade de seu rosto foi deformada por
um ácido, fazendo com que ele acreditasse que a desfiguração havia revelado um lado oculto
e maligno de sua natureza. Ele adotou como símbolo a moeda de um dólar, com um dos lados
riscados, para representar as parcelas em conflito de sua personalidade dividida. Foi capturado

28
há 12 anos por Batman, e desde então foi submetido a tratamento psicológico e a várias
cirurgias plásticas, custeados por Bruce Wayne na tentativa de curá-lo.

Enfim, seus médicos acreditam que ele pode se reintegrar à sociedade, agora com o
rosto refeito e o tratamento concluído. Sua soltura ocorreu quase que ao mesmo tempo em que
Bruce recebia as chamadas decisivas à aventura. Logo após ser solto, desapareceu e voltou ao
crime. Seu plano é pedir cinco milhões em troca de não explodir as torres gêmeas de Gotham.

Batman, ao empregar suas primeiras ações aos criminosos de Gotham, persegue


ladrões de banco e descobre que eles atuaram a mando de Dent. Mas algo põe em dúvida a
sua descoberta: a moeda de um dólar que encontrou no bolso do criminoso pode não ser a
moeda de Dent, pois seus dois lados estavam riscados, ao invés de um só. Batman sente que
tem que descobrir o que está acontecendo e passa a persegui-lo.

No dia em que Dent ataca as torres gêmeas, com duas bombas instaladas em dois
helicópteros, cada um parado sobre uma torre, Batman detém seus capangas e desativa a
primeira bomba. Quando vai atacar Dent, ele tenta fugir de helicóptero e Batman se
dependura nele, quase morrendo devido a um tiro e a um ataque cardíaco que o faz apagar por
alguns segundos. Dent, na tentativa de matar o justiceiro, pula em queda livre para tentar
alvejá-lo. Dent irá cair no chão e morrer, mas Batman tem que impedir, pois ele precisa saber
se realmente é Harvey Dent que está por trás de tudo, e aquela queda acabaria com qualquer
chance de identificação do corpo.

Batman pega Dent no ar e os dois caem dentro de uma sala escura. Depois de aplicar
golpes em Dent, as faixas que cobriam seu rosto caem e mostram um rosto perfeito, acabando
com qualquer dúvida quando ao causador dos estragos. Então, Dent pede que Batman olhe
para ele e veja que consertaram seu rosto. Agora as duas metades estavam iguais. Pede a
Batman que olhe e ria. Batman, em pensamento, diz que sem se iludir com a aparência, pode
enxergar os dois lados iguais. Frank Miller desenha o rosto de Dent ora perfeito e ora
inteiramente deformado. Em seguida, Batman diz que o que via era um reflexo, e Frank
Miller faz o mesmo, colocando entre os planos da face de Batman o rosto de um morcego.

Essa disputa está como APROXIMAÇÃO DA CAVERNA OCULTA, porque afirma


para Bruce que sua identidade é realmente uma só, não mais dividida com a do Batman.
Assim como o rosto de Dent, Bruce e Batman agora coexistem como um só. Foi necessário
enfrentar um inimigo com o mesmo problema para ver isso refletido, como o próprio Batman
observou, e Frank Miller fez tão claro ao colocar em justaposição, um plano que mostra quem

29
é o exterior e quem é o interior de cada um dos referidos. Agora, Batman pode seguir em
frente com sua guerra contra o submundo do crime, em especial os Mutantes, com a certeza
de que o retorno do mascarado não é um erro.

Assim termina a primeira parte, O retorno do cavaleiro das trevas.

PROVAÇÃO SUPREMA

O jornal anuncia: o Conselho de mães enviou uma petição ao prefeito solicitando a


emissão de um mandado para a imediata prisão de Batman, acusando-o de ser uma influência
nociva para as crianças de Gotham. O Movimento pelos direitos das vítimas exige uma
sanção oficial das atividades de vigilantismo. Inúmeros casos de violência contra criminosos
estão ocorrendo e a mídia não sabe ao certo quais foram cometidos por Batman.

Carrie, a garota salva por Batman na fase de Testes, aliados e inimigos, ficou
impressionada com as atuações do mascarado e resolve investir contra o crime também,
vestindo um uniforme idêntico ao usado por Robin. Suas ações ocorrem simultaneamente às
ações de Batman, que, ao salvar uma criança sequestrada pelos Mutantes, observa que o
armamento por eles usados só pode ter sido obtido por meio de algum acordo militar.

Na busca por informações referentes a tais acordos, acompanhamos duas torturas


realizadas por Batman contra criminosos, ao mesmo tempo em que Carrie combate pequenos
crimes, como desmascarar charlatões que propõem jogos de azar na rua. Os destinos dos dois
se cruzam quando ambos ficam sabendo de uma reunião dos Mutantes com seu líder no lixão
de Gotham.

Batman se apresenta na reunião com seu “Batmóvel”, objeto que desperta saudades de
seu companheiro Robin. Logo no começo do discurso do líder Mutante, Batman já se irrita e
dispara um tiro de alerta. Começa assim um ataque massivo da gangue Mutante contra o
Batmóvel, que se mostra inútil, pois, como Batman afirma, “a única coisa talvez capaz de
perfurar sua fuselagem não é deste planeta”.

Ao fim dos tiros, Batman está intacto e a gangue Mutante dizimada, com exceção de
seu líder, que chama Batman de covarde, exigindo uma luta corpo a corpo. Batman sente
inveja do corpo e da juventude de seu oponente, e, sem medir as consequências, parte para a
luta corporal, mesmo tendo o vilão na mira de sua arma e sabendo que atirar é o mais sensato.

30
A luta é violenta e Batman sofre duras penas para acertar e se esquivar dos golpes.
Durante toda a luta, Batman inveja o corpo de seu oponente e deseja que Robin estivesse ao
seu lado. Depois de muita briga, o líder Mutante prova ser mais forte e está para finalizar
Batman quando Carrie (Robin) aparece e ataca o vilão. Com essa ajuda, Batman consegue
atirar uma bomba no oponente, salvar Carrie e se salvar.

De volta no Batmovel, com a ajuda de Carrie, Batman está gravemente ferido e


extremamente feliz com a volta de Robin. Tão feliz que, ao perguntar o nome da pequena e
obter em resposta o nome verdadeiro da garota, acaba revelando sua identidade, e quando
Alfred tenta disfarçar a gafe do patrão, Batman insiste e diz que a garota irá com eles para a
Batcaverna.

O líder Mutante foi preso e, em depoimento ao jornal televisivo, intima Batman para
uma segunda luta. Batman chega na Batcaverna e deixa tudo para trás, indo de encontro ao
local mais escuro do recinto e invocando a criatura que viu quando tinha apenas 6 anos.
Batman tem medo de morrer, mas a presença da criatura o reabilita para a luta.

Acontecimentos em Gotham City: o prefeito tomou duas importantes decisões. A


primeira é a escolha de um substituto a James Gordon, a tenente Ellen Yindel, forte opositora
às ações de Batman. E a segunda é um encontro com o líder Mutante para que negociem um
acordo. A única exigência do criminoso é que o encontro seja a sós. O prefeito concorda e
isso o sentencia à morte, pois no encontro, o criminoso o ataca mortalmente, antes mesmo que
se passassem cinco segundos. Nesse momento, Batman percebe que toda a resistência da
gangue está apoiada em seu líder. Derrotando-o, acabaria com a gangue inteira.

Então, ele põe em prática um plano que conta com a ajuda de Carrie e de James
Gordon: marcar uma reunião com toda a gangue, próxima à delegacia em que o líder está
preso, e facilitar sua fuga para que Batman possa, na frente de toda a gangue, derrotá-lo num
duelo até a morte.

Assim é feito e a luta se inicia. Batman tem dificuldades de enfrentar seu oponente por
conta da diferença de idade, mas ele tem que vencer, e para isso conta com a inteligência:
marca a luta em meio à lama, o que torna a locomoção de ambos mais lenta, e aplica golpes
certeiros em pontos estratégicos, que ou quebram os membros, ou os paralisam. Mesmo
assim, Batman apanha muito e a raiva vai tomando conta dele. Quando o líder Mutante está
imobilizado por uma chave de pernas, Batman comenta que algo lhe diz para parar de usar a
perna, mas ele não dá ouvidos.

31
RECOMPENSA

O líder Mutante foi derrotado, e no jornal televisivo já é possível ver uma nova
manifestação criminosa fazendo anúncio de suas futuras ações. São os Filhos do Batman, que
pregam investidas contra os criminosos da cidade. O mesmo jornal relata depoimentos de
inúmeras pessoas contra as ações do Batman, considerando-as como criminosas, mas Batman
não parece arrependido, como pode ser observado no último quadro da Parte 2 – O triunfo do
cavaleiro das trevas. Suas vestes são de Bruce, mas o balão cinza indica que quem está
falando é Batman. Seus olhos miram o céu escuro da noite com um semblante rude, que aos
poucos se torna radiante, intocados pelo amor, alegria ou tristeza, mas que revelam satisfação.
Sua face faz lembrar a face do morcego, que representa tão bem sua porção Batman.

CAMINHO DE VOLTA

Para tentar acabar com a má impressão causada por Harvey Dent, ao ser considerado
curado e, após solto, ter voltado ao crime, o médico responsável pelo tratamento de Dent e de
outros “perturbados mentais”, como são descritos seus clientes, resolveu propor uma
entrevista com um de seus pacientes a uma emissora de televisão, para mostrar que o
tratamento funciona e que, na realidade, o grande culpado pelos crimes é Batman. A
representante da emissora resiste à idéia, mas acaba cedendo espaço para uma entrevista de
cinco minutos com o paciente, o criminoso Coringa.

A terceira parte da história, intitulada A caçada ao cavaleiro das trevas, começa com
Batman perseguindo Bruno, ex-comparsa de Coringa, a procura de informações sobre
qualquer suposto plano de fuga do Coringa no dia de sua apresentação na televisão. A
perseguição vai bem, Batman captura Bruno, mas quando está prestes a agir, ele começa a
falar, interrompendo o momento. Uma voz diz “Bruce, temos que falar”. Batman diz que eles
podem se encontrar amanhã, mas por enquanto não queria ser incomodado. Provocando um
clarão azul, o intruso atravessa o teto de um prédio rumo ao céu. Convocado pessoalmente
pelo presidente dos Estados Unidos, Superman tem a missão de convencer Bruce Wayne a
aposentar Batman mais uma vez.

Batman segue atrás de outra pista que pode levá-lo a desvendar os planos de Coringa,
enquanto a nova comissária, Yindel, assume o seu posto e, como primeira decisão, emite um

32
mandado de prisão para Batman. No sanatório, Coringa não consegue dormir. Amanhã ele
estará solto.

A procura e o confronto com Coringa podem ser considerados o estágio de


CAMINHO DO VOLTA da jornada, porque são encarados por Batman como uma busca
pessoal. Se a televisão acusa Batman de incitar os criminosos a cometer os crimes, como se
fossem apenas seus fantoches, Batman também se sente responsável, mas por ter deixado
essas ameaças vivas.

São esses dois acusadores, o interno (Batman) e o externo (opinião pública), que o
acusam de criminoso e dividem o CAMINHO DE VOLTA de Batman em dois momentos
distintos. No primeiro momento, Batman enfrenta seu sentimento de culpa pelos crimes,
representado na disputa com Coringa. E, no segundo, mostra à sociedade que ele não é mais o
culpado pelos crimes, e sim responsável pela justiça, num momento adiante.

É a noite da apresentação de Coringa na televisão. Batman, assim como o criminoso e


a polícia, se prepara para o espetáculo. A comissária Yindel coordena duas equipes nos prédio
da emissora: uma para garantir a segurança no estúdio, e outra para prender Batman, caso ele
apareça. Esta última fica posicionada no topo do prédio da emissora.

Na hora certa, Batman salta de seu helicóptero, auxiliado por Robin, e tem que
enfrentar a polícia para chegar até o Coringa. O cerco se fecha quando a polícia ataca o
homem-morcego e o Coringa realmente ataca a platéia, matando todos com seu gás mortal e
fugindo. Batman não consegue nem chegar perto do palhaço, já que a luta com a polícia foi
dificílima, culminando na hospitalização de 12 policias e no resgate de Batman no meio da
luta por Robin.

Batman agora corre contra o tempo para pegar Coringa antes que ele alcance seu
próximo alvo: a Feira da Amizade. Um evento da cidade que é realizado num parque de
diversões. Lá chegando, Batman encontra Coringa distribuindo bonecos-bomba para as
crianças com seu comparsa. Então, a equipe se separa: Robin persegue o comparsa, que leva
uma bomba para a montanha-russa, e Batman segue atrás de Coringa, que foge. No primeiro
confronto direto dos dois, Batman diz “Passei noites em claro... planejando... visualizando a
cena. Noites sem fim... considerando todos os métodos possíveis... saboreando cada momento
imaginário. Desde o começo eu sabia... que não há nada de errado em você... que eu não
possa consertar... com minhas mãos”. A perseguição se prolonga até que ambos estão dentro
do Túnel do amor. Batman está baleado e Coringa tem uma lâmina enfiada no olho direito. A

33
luta continua até Batman conseguir agarrar a cabeça de Coringa e tentar quebrar sua coluna,
mas o palhaço aproveita a proximidade para esfaqueá-lo. Batman torce a cabeça de seu
inimigo até um grande estalo acontecer. Coringa cai no chão, paralítico, e reclama: “Eu estou
muito desapontado com você, querido. O momento era tão perfeito e você não teve
coragem...”.

É Coringa quem se retorce, quebrando sua própria coluna para cometer suicídio.
Batman, muito ferido, senta ao seu lado. E é com essa visão dos dois sentados, um ao lado do
outro, como um casal enamorado que se abraça, que termina a terceira parte.

É o próprio Frank Miller que assume o simbolismo da disputa entre Batman e


Coringa, num dos documentos referentes à criação e publicação de O Cavaleiro das trevas,
quando diz “É notável como esses ícones reafirmam um ao outro – tinha que ser o Coringa.”
Durante a perseguição de Coringa por Batman, inúmeras vezes aparece esse sentimento de
culpa traduzido no palhaço, como por exemplo, após a explosão de um prédio por uma bomba
do Coringa: “Pretendo contar os mortos um a um. Vou por todos na lista, Coringa. A lista das
pessoas que eu assassinei... por ter deixado você viver.”

Com o Coringa morto, Harvey Dent é mais uma vez capturado. Com o líder Mutante
fora de combate e com os Filhos do Batman atacando criminosos, mesmo que com atuações
controversas, Batman praticamente acabou com a violência que antes assolava Gotham, e não
se sente mais pessoalmente responsável pelos crimes. O primeiro momento do CAMINHO
DE VOLTA foi superado. Basta agora provar isso à mídia, sociedade e policia. Polícia essa
que o espera na saída do Túnel do Amor, com a ordem de prendê-lo junto com o Coringa. O
justiceiro, sabendo disso, já se prepara para fugir, mas o encontro é inevitável. A sequência de
fuga de Batman dá início à quarta e à última parte da saga: O cavaleiro das trevas, A queda
do cavaleiro das trevas.

A disputa com a polícia é intensa e termina com o desabamento da estrutura do Túnel


sobre os policiais. Com isso, Batman é resgatado por Robin e levado para a caverna, onde
recebe cuidados médicos de Alfred. Com a morte de Coringa à lista de acusações de Batman,
soma-se um homicídio.

A televisão transmite alguns casos de crimes contra bandidos de Gothan, inspirados


em Batman, quando é interrompida para um informe extraordinário do presidente dos Estados
Unidos, anunciando um ataque nuclear ao país. Agora a narrativa do gibi é dividida em duas,

34
pois acompanhamos as consequências do ataque na cidade de Gotham e a tentativa do
Superman em conter o ataque.

Superman consegue desviar a bomba, lançando-a em um deserto, o que evita a morte


de inocentes. Porém, gera um forte pulso eletromagnético, provocando a parada de qualquer
objeto eletrônico. Lança então milhões de toneladas de fuligem na estratosfera, criando uma
nuvem negra que bloqueia a luz solar de incidir, privando Gotham e toda a América de luz e
calor. Agora a cidade se transforma em trevas.

Acidentes de avião, pessoas desesperadas, incêndios e assaltos. Instantes depois da


explosão, Gotham já vivia um pesadelo urbano. Esse é o momento perfeito para mostrar a
todos de que lado da lei Batman se encontra.

Não muito recuperado da disputa com o Coringa, Batman sai na cidade para,
acompanhado de Robin, aliciar os Filhos de Batman e os membros remanescentes da gangue
Mutante, que fugiram da cadeia, para juntos se transformarem na lei. Batman não está nem à
direita nem à esquerda da lei. Ele está acima. Ele é a lei.

“Hoje, nós somos a lei. Hoje, eu sou a lei.” Assim termina o discurso que Batman faz
aos Filhos do Batman quando os convoca à luta. Com palavras e atos mais severos, o
justiceiro coordena uma ação que visa acabar com o caos na cidade, para assim, a comunidade
conter incêndios, ajudar nos acidentes e restabelecer a ordem para os próximos dias que se
seguiriam negros e fora do comum.

A ação dá certo, e, após uma semana dos ataques, Gotham continua submersa em
trevas, mas é a única cidade que não está tomada pelo pânico, a exemplo de Nova York,
Chicago e Metrópolis. Os créditos são de Batman e sua “gangue de justiceiros”, como
denomina a mídia.

Os créditos da mídia: a sociedade admite para os jornais a liderança positiva de


Batman naqueles momentos assustadores e, na seqüência do gibi _ onde Batman convoca os
membros da gangue Mutante em frente à delegacia, com um policial perguntado à comissária,
que observa o discurso de Batman, se devia prendê-lo e recebe como resposta de Yindel um:
“Não. Ele é... grande demais” _ mostra que Batman conseguiu provar a sociedade sua
oposição ao crime e luta pela justiça, mesmo que seus meios não sejam politicamente
corretos. Ele passa pelo segundo momento do CAMINHO DE VOLTA triunfante e poderia
voltar ao MUNDO COMUM em paz, se não fosse o alerta que seu amigo Clark Kent

35
(Superman) já havia lhe dado: o governo não apóia e quer punir as ações do homem-morcego.
O momento do castigo é aguardado por Batman.

RESSURREIÇÃO

O governo convoca Superman e ordena que ele dê um jeito em Batman, encerrando


com suas ações. O primeiro anúncio da batalha acontece antes mesmo de Batman aniquilar
Coringa, numa tarde ensolarada em sua mansão. Clark tenta lembrar Bruce do passado, de
porquê os super-heróis se aposentaram e garante que, mais dia, menos dia, alguém com
autoridade o designará a detê-lo. Bruce retruca dizendo: “Quando isso acontecer Clark... Que
vença o melhor”.

A designação chega após o ataque de bomba e a tomada de poder de Batman sobre


Gotham. Do céu negro, o Homem de aço escreve com sua visão de raio-laser um “Onde?”
flamejante. “Beco do crime” é a resposta de Batman. Onde tudo começou, com seus pais
assassinados, é onde tudo terminará.

À noite, o governo interdita os arredores do Beco do crime e a mídia já especula sobre


o duelo do justiceiro de Gotham e do homem mais poderoso do mundo. O primeiro possui a
imagem da revolução que toma as ruas, o segundo é um títere do governo de tanques.

Batman se prepara para a luta e conta agora com o apoio de Oliver, o Arqueiro-verde,
o qual veio a Gotham para dar seu apoio na batalha e confidência, já que sempre soube que o
confronto entre Batman e Superman era inevitável. “O mundo é pequeno demais para os
dois”. Oliver, na verdade, é um desafeto de Superman, e tudo indica que foi o homem de aço
quem arrancou um de seus braços, anos atrás, provavelmente a mando do governo. Outro
recurso, além das alianças e da tecnologia, para a batalha, é a química: Batman toma um
coquetel de remédios, com o intuito de programar um ataque cardíaco a meia-noite, bem no
meio da luta. “Uma morte grandiosa.”

No local combinado, Batman espera por Superman usando uma enorme armadura, e
quando este chega, é prontamente atacado por armadilhas. Após os ataques, Superman se
recupera e se aproxima de Batman, que está conectado ao poste de luz na tentativa de usar a
energia elétrica da cidade contra Superman. Durante a luta, Batman afirma sua opinião sobre
as atitudes de Superman: um traidor que se tornou uma piada do governo.

36
O truque da energia elétrica não sai como planejado, e Superman consegue acertar
muitos golpes em Batman, sempre afirmando que a luta é uma idiotice da parte do morcego,
afinal, ele é um humano e Superman é algo superior a isso. Mesmo assim, Batman resiste. Em
Oliver reside sua salvação. Uma flecha com kriptonita sintetizada é disparada. Agora
Superman é alvo fácil para Batman, “o único homem que o derrotou”. Com a garganta do
homem de aço nas mãos, a meia-noite chega, e com ela o ataque cardíaco acontece como
programado.

Batman cai e é socorrido por Superman. Simultaneamente, Alfred, a mando de


Batman, executou o comando de autodestruição da Mansão Wayne e, consequentemente, da
caverna. Por coincidência, de enfarte morreu vendo a casa indo abaixo.

Todos os noticiários informam a morte do justiceiro por enfarte, em meio a uma


batalha contra tropas governamentais, e revela sua identidade secreta, como Bruce Wayne. No
enterro, está presente Clark Kent e Carrie.

RETORNO COM O ELIXIR

Subitamente, o coração de Bruce volta a bater e Clark percebe, graças a sua audição
sobre-humana. Ele se aproxima e percebe que a dama de preto é Carrie, e apenas sorri,
piscando o olho.

A narração desse fato é a primeira coisa que Carrie comunica a Bruce quando termina
de desenterrá-lo. Debaixo da terra, em outra caverna, Bruce lidera uma multidão de jovens,
sendo a maioria da gangue Filhos do Batman ou ex-Mutantes. Detalha um plano para
transformar a caverna em um lugar habitável, onde pretende treinar um exército “para trazer
sentido ao mundo infectado por algo pior do que ladrões e assassinos”, e afirma que “será
uma boa vida” “longe dos despojos de um justiceiro cujo tempo já passou”.

Fazendo uma leitura Campbeliana desse final, ser enterrado e sair da terra simboliza a
volta ao útero da mãe e renascimento como um novo ser, livre de qualquer carga negativa do
passado, sobrando apenas a experiência da jornada empreendida. Esse tipo de ritual (ser
enterrado) é encontrado em algumas culturas, e simboliza o renascimento.

A descida à caverna também é um tema recorrente em mitos de todos os tempos,


simbolizando tanto o útero da mãe-terra como o inconsciente das mentes humanas. A
afirmação de Bruce, sobre a ausência dos despojos do Batman, é real nessa nova vida que

37
pretende levar, comunicando e ensinando a uma legião de soldados o que aprendeu na sua
jornada. Mas, além da experiência, há algo a mais que Bruce traz consigo da jornada. Fica
evidenciado isso nas suas falas, todas em um box cor cinza. Afinal, ele e Batman são um só.

38
2. A jornada em Tropa de elite

2.1. Sobre a história

O longa-metragem nacional Tropa de Elite, dirigido por José Padilha e estrelado por
Wagner Moura, foi um dos mais importantes lançados em 2007. Ganhou a atenção da mídia
por sua qualidade acima da média; conteúdos críticos reveladores do estado de caos das forças
policiais e da dinâmica urbana do Rio de Janeiro; polêmicas envolvendo a pirataria de cópias
não finalizadas antes do lançamento; e caracterização da personagem Capitão Nascimento,
dividindo opiniões quanto à interpretação de seu discurso e atitudes perante o crime.

Com roteiro de Padilha e Bráulio Mantovani, e montagem de Daniel Rezende, Tropa


de elite conta a história da busca de Capitão Nascimento, capitão do BOPE (Batalhão de
Operações Policiais Especiais) e narrador da história, por um substituto ao seu cargo no
batalhão, devido ao nascimento de seu filho. O filme traz à luz todo o funcionamento
desestruturado, desorganizado e corrupto da Polícia Militar do Rio de Janeiro, e a brutalidade
das ações do BOPE nos morros cariocas, dominados pelo tráfico.

O embrião do BOPE — o Núcleo da Companhia de Operações Especiais da


PMRJ — foi criado em 19 de janeiro de 1978, sob inspiração do então
capitão PM Paulo César Amêndola de Souza, mas apenas em 1991 foi
batizado com o nome atual. O BOPE não foi preparado para enfrentar os
desafios da segurança pública. Foi concebido e adestrado para ser máquina
de guerra. Não foi treinado para lidar com cidadãos e controlar infratores,
mas para invadir territórios inimigos. Tropas similares servem-se de
profissionais maduros. O BOPE acelerava meninos de 20 e poucos anos
até a velocidade de cruzeiro do combate bélico. Vamos cobrar a loucura da
20
guerra a quem foi treinado para matar?

Pela ótica de Capitão Nascimento, acompanhamos sua busca e recebemos, com suas
palavras, a explicação de como a corrupção acontece na polícia e como são as ações do
BOPE. Percebemos então qual é o tipo de discurso e pensamento que Nascimento tem sobre a
criminalidade e sobre a hipocrisia da sociedade, em especial na classe média e alta. Aos
poucos, entramos na vida de Nascimento e vemos que, fora o policial linha-dura da farda
20
BATISTA, André; PIMENTEL, Rodrigo e SOARES, Luis Eduardo. Elite da tropa, prefácio.

39
preta, há um pai preocupado, um homem com medo de morrer e um membro da sociedade
indignado.

A indignação de Nascimento provocou reflexos nos espectadores e na opinião pública


enquanto esteve em evidência. As discussões giravam em torno da figura de Capitão
Nascimento com a seguinte questão em pauta: herói ou vilão? Como classificar um policial
incorruptível, que entrou para as forças armadas por acreditar na justiça e tem disposição de
fazê-la vingar, nem que seja necessário adotar medidas violentas, que violam claramente os
direitos humanos, como a tortura? A pergunta não parece ter uma resposta certa e é necessário
avaliar cada ponto de vista pra chegar a uma conclusão. Padilha, na ocasião da polêmica,
declarou que não considerava Capitão Nascimento um mocinho da história, mas o
personagem se tornou muito maior que uma simples marionete do diretor para contar uma
história e se tornou um modo de interpretar a sociedade em que vivemos atualmente.

Criado a partir de uma idéia do primeiro longa-metragem de José Padilha, em 2002,


um documentário sobre o BOPE - Ônibus 174 - o qual foi destaque de festivais nacionais e
internacionais, Capitão Nascimento se tornou símbolo de tudo que esse Batalhão Especial da
Polícia do Rio de Janeiro representa para a sociedade e Estado.

O filme todo é uma crítica, que deixa de lado a sátira e se aproxima de uma linguagem
documental. Mostra, sem “meias imagens”, como funciona a polícia do Rio de Janeiro, e
escancara todos os seus pontos fracos, comprovando ser um recurso poderoso e bem aceito
pelo público em termos de disseminação e impacto da mensagem/crítica do filme. Prova disso
é o fato de ter liderado o Ranking nacional de 2007 de maiores espectadores em salas de
cinema, com 2,47 milhões de espectadores, além de haver uma estimativa de que a cópia
ilegal do filme, que circulava no mercado negro - polêmica na época de estréia, pois ainda não
era o corte final do filme – foi vista por um milhão de pessoas em DVD.

A estréia (de Tropa de elite) estava marcada para 12 de outubro, mas o


governador (Sérgio Cabral) do Rio (de Janeiro) recebeu uma cópia em DVD
do diretor do filme, José Padilha. (...) graças a Tropa de elite, o governador
conheceu a rotina de abandono de um batalhão da PM (...). Cabral pede
que as medidas (correção das malesas expostas no filme) sejam adotadas
21
antes do filme estrear.

21
ALMEIDA, Gustavo de. Homens de preto, revista Rolling Stones, nº 13.

40
Premiado com o Urso de Ouro, no Festival de Berlim de 2007, um dos três festivais
mais importantes do mundo e com um viés mais político do que os outros dois, Cannes e
Veneza, foi recebido internacionalmente com críticas muito divididas, assim como no Brasil.

2.2. Sobre o herói

Nascido de uma pré-ideia de documentário sobre o BOPE, os roteiristas do filme


Tropa de Elite criaram o personagem principal, Capitão Nascimento, como símbolo de todo
um batalhão, reunindo nele uma média de discursos, ideias, atuações, convicções, problemas,
ansiedades, nervosismos e protestos de todos os polícias da tropa. Um arquétipo do policial do
BOPE, que serve para apresentar e discutir os problemas de segurança do Rio de Janeiro
através da retina de quem defende a lei.

As emoções são labirintos complicados. Pode ocorrer, na contramão do


bom senso, o encontro inusitado entre honra e desonra, numa dobra
improvável da alma humana, ou numa esquina obscura da cidade. Sob a
forma, por exemplo, da mistura de violência com fidelidade, desrespeito e
22
lealdade.

Uma força policial que é considerada incorruptível e é treinada como tropa de guerra.
Soldados que sentem orgulho da farda, mesmo recebendo salários de miséria e usufruindo de
uma infra-estrutura corroída pelo descaso. O que explica essa lógica? Apenas o orgulho de
pertencer à elite. À Elite da tropa.

“Faca na caveira e nada na carteira”. Um bordão associado aos policias do BOPE que
elucida essa questão. Mesmo com todas as adversidades, vestir a farda preta, e não azul do
policial convencional, faz o policial do BOPE se sentir superior a todos os outros. Como
ingressar num clube secreto, a tropa é símbolo de distinção.

Aliada ao orgulho, vem a força desmedida. Até que ponto a troca entre lealdade à lei e
à ordem e o desrespeito aos direitos humanos é justa? Leal à farda e nascido para matar. O
policial do BOPE é violento, porque assim foi ensinado a atuar. E foi assim ensinado, pois
aprendeu que o bandido também é “treinado” para matar, mesmo que o curso dele tenha sido
a desigualdade da sociedade à sua volta. Entre matar e morrer, o policial deve optar por qual?

22
BATISTA, André; PIMENTEL, Rodrigo e SOARES, Luis Eduardo. Elite da tropa, prefácio.

41
E o bandido? Acima da vida ou da morte vem o orgulho. A missão deve ser cumprida, mas,
como diz Capitão Nascimento, “homem com farda preta entra na favela para matar, nunca pra
morrer”.

"Você sabe quem eu sou?

Sou o maldito cão de guerra.

Sou treinado para matar.

Mesmo que custe minha vida,

a missão será cumprida,

seja ela onde for


23
espalhando a violência, a morte e o terror."

De forma autoritária, o policial do BOPE tenta fazer a lei e a ordem prevalecer, sem
que a paz seja fruto diretamente relacionado às suas ações. Seus soldados são treinados sob
pressão para se acostumarem com o ambiente de trabalho. A paz nada tem a ver com suas
motivações e ações.

"Alegria, alegria,

sinto no meu coração,

pois já raiou um novo dia,

já vou cumprir minha missão.

Vou me infiltrar numa favela

com meu fuzil na mão,

vou combater o inimigo,

provocar destruição.

Se perguntas de onde venho

e qual é minha missão:

trago a morte e o desespero,


24
e a total destruição."

23
BATISTA, André; PIMENTEL, Rodrigo e SOARES, Luis Eduardo. Elite da tropa, prefácio.

42
Acompanhamos no filme, o curso de formação de soldados do BOPE. O instrutor é
Capitão Nascimento, e dois dos inscritos que nos interessam são Matias e Neto. Vamos tomar
como experiência a entrada dos dois no curso, pois o filme não mostra a seleção de
Nascimento, apenas referências a ela em suas narrações, e a certeza de que muitos dos
processos a que os dois foram submetidos ocorreram ao Nascimento. Comprovando o uso
deles como seu reflexo, temos a afirmação do próprio Capitão de que Neto parecia muito com
ele quando se formou no BOPE, justificando a existência de algo como um arquétipo do
policial convencional e um do soldado do BOPE.

O curso do BOPE, como num ritual de passagens, tem a função de afastar os


aspirantes de seus ambientes comuns (família, relacionamentos, vida social) e não introduzi-
los de cara no novo mundo da Tropa. São deixados num limbo, espécie de purgatório onde a
seleção é feita, e posteriormente retornam às suas vidas comuns e ao novo mundo. No
processo de seleção, policiais que desonram a imagem da polícia, especialmente os corruptos,
são logo marcados e sofrem de tudo para que desistam. Apenas os mais fortes e honestos
passam no curso. Nascimento confessa que no curso dele, apenas ele e mais dois foram
aprovados.

Depois de atravessarem o limbo, os aspirantes ao pelotão são submetidos a testes


táticos e treinos, onde os instrutores escolhem os aprovados. Nascimento passou pelo curso, e,
após ser Capitão da Tropa por um bom tempo, hoje é seu instrutor. O curso não serve apenas
para buscar um novo membro, serve para buscar seu substituto.

Nascimento busca um substituto porque será pai em breve. O ano é 1997, e o Rio de
Janeiro vive uma guerra civil entre traficantes das favelas e o governo. À guerra, Nascimento
já estava acostumado, mas a paternidade é algo novo e ele não podia correr o risco de perder
essa novidade sendo morto em combate. Designado a acalmar uma favela para a visita do
Papa ao Rio de Janeiro, uma missão que considerava besta, Nascimento sente medo de
morrer.

Justificando seus meios violentos de conduta contra o crime, principalmente depois


que a busca por um substituto foi levada ao limite, vemos que fora o policial linha dura da
farda preta, em Nascimento, há um pai preocupado, um homem com medo de morrer e um
membro da sociedade indignado.

24
BATISTA, André; PIMENTEL, Rodrigo e SOARES, Luis Eduardo. Elite da tropa, prefácio.

43
2.3. A jornada do herói

Como em O cavaleiro das trevas, traçar a Jornada do herói de Capitão Nascimento, no


filme Tropa de Elite, não foi simples. Em primeiro lugar, a confusão era frequente por se
tratar de um filme com claras situações heróicas - as missões no morro - mas que não
constituem a verdadeira missão heróica de Nascimento, já que essa é uma aventura mais
pessoal refletida no exterior, as missões, buscas interiores, familiares e pessoais.

Em segundo lugar, a história apresenta três personagens, cada um com sua própria
Jornada, que em certo ponto se cruzam, fazendo com que os personagens assumam funções de
outros arquétipos, sem ser o de herói. Isso não chegou a ser um problema para a análise, mas
é difícil resistir à tentação de analisar as outras jornadas e confluí-las com a de Nascimento.

Mesmo com tudo isso, sua Jornada se apresentou mais clara do que a Jornada de
Batman, em O cavaleiro das trevas. Abaixo será apresentada, assim como no capítulo do gibi,
uma análise de cada uma das etapas da jornada de Capitão Nascimento na busca de um
substituto para seu cargo.

MUNDO COMUM

O ano é 1997, e o Rio de Janeiro sofre com a violência urbana nas favelas e com a
corrupção das forças policiais. Roberto Nascimento é capitão da força especial da Polícia
militar, o BOPE (Batalhão de Operações Especiais), e se prepara para se tornar pai.

Podemos diferenciar Capitão Nascimento em duas porções: o policial e o pai. Nas


duas sequências que revelam seu MUNDO COMUM, somos apresentados a ambas as
porções. O policial aparece primeiro, numa missão de apreensão de armas na favela, tendo
como alvo os traficantes e os policias corruptos. Ele deixa bem claro sua postura rígida e
punitiva frente ao crime praticado, e revela seu “pavio curto”, dando ordem a seu atirador para
disparar assim que estiver com os bandidos na mira, seja ele o traficante ou o policial.

O pai Nascimento surge na sequência dentro de sua casa, após a missão de apreensão
das armas. Nascimento chega em casa tarde da noite, vestido sem a farda preta de serviço, e
sim com uma roupa casual. Ele senta ao lado da mulher, que está deitada, e pousa sua mão
sobre a barriga dela. Na manhã que se segue, no café da manhã, sua mulher insiste para que
ele fique para comer alguma coisa junto a ela, mas ele diz que não pode, que precisa ir ao
trabalho. Nesse momento, ele é intimado pela mulher a tomar uma decisão.

44
CHAMADO À AVENTURA E RECUSA DO CHAMADO

“Se eu soubesse que você não ia sair, eu não tinha engravidado”. Sua mulher deixa
claro o desejo de ver Nascimento fora do comando do BOPE. Ela ainda o adverte que sua
constante preocupação com o marido, numa profissão tão perigosa, e a tristeza que sente ao
ver que seu filho nascerá sob a falsa promessa do cônjuge, está acarretando problemas à sua
gravidez. O CHAMADO foi dado, mas Nascimento, antes mesmo da intimação, já tinha se
pronunciado “você quer que eu faça o que? Você quer que eu pare de trabalhar?”. No fundo,
ele sabe que “toda guerra cobra seu preço, mas quando o preço fica muito alto, está na hora de
pular fora”, e mesmo assim ignora o pedido da mulher. Termina seu cafezinho e sai de casa
rumo ao trabalho, RECUSANDO O CHAMADO.

Esse é o primeiro de uma série de chamados e recusas da porção pai de Nascimento.


São chamados que concentram a um lado sentimental, intimo e psicológico. Eu denomino de
CHAMADO INTERNO.

O chamado feito à porção policial, agora CHAMADO EXTERNO, difere pelo tipo de
aventura e impede uma recusa por parte de Nascimento. Com a vinda do Papa João Paulo II
ao Rio de Janeiro, e graças a uma decisão do Sumo Pontífice em se hospedar próximo a uma
das favelas, o BOPE recebe a missão de apaziguar os morros, garantindo assim que nenhum
mal ocorra ao Papa durante sua visita.

A “operação Papa” é recebida com muitas ressalvas por Nascimento, que analisa as
perdas que ocorrerão em uma série de incursões diárias das tropas nos morros. O comandante
do pelotão não dá ouvido, alegando ser uma decisão imutável por parte da Igreja Católica e do
governo do Estado do Rio de Janeiro. Sem poder RECUSAR O CHAMADO, Nascimento
apresenta o primeiro de uma série de sintomas, que só desapareceram quando, de fato, ele
pôde aceitar o chamado de aventura particular. O nervosismo toma conta do Capitão e abala
seu comportamento.

Logo na primeira missão, Nascimento está descontrolado. O segundo sintoma começa


a interferir na sua dinâmica de trabalho: o medo. Nascimento justifica que “estratégia só tem
lógica quando a missão faz sentido”, e a operação Papa era muito arriscada para alguém que
ia se tornar pai em breve. Seu medo de morrer em combate aparece do choque entre o
CHAMADO INTERNO e o CHAMADO EXTERNO.

45
O conflito surge dos desejos negados de aceitar o chamado interno e recusar o
chamado externo.

ENCONTRO COM O MENTOR

Não posso considerar exatamente como encontros com mentores na forma arquétipa
de mentor, mas sim como símbolos de impulsos da vida e conflito de Nascimento.

O primeiro encontro ocorre com seu remorso, personificado na Mãe de um jovem


criminoso que foi morto depois da primeira ação à operação Papa. Não foi Nascimento quem
o matou, mas ele usou o garoto para dedurar um dos traficantes apreendidos e depois o
liberou, mesmo sabendo que “dedo-duro” na favela é morto pelo comando. A mãe do garoto
não quer achar culpados, deseja apenas enterrar seu filho e pergunta onde está o corpo dele.
Nascimento afirma que não sabe onde o corpo se encontra.

Um misto de orgulho e assombração permeia o segundo encontro, dessa vez com a


psicóloga do batalhão de polícia. Uma consulta com ela foi solicitada após Nascimento se
sentir mal enquanto praticava exercícios físicos, onde sua mão tremia sozinha e seu coração
disparava. O médico que o examinou revelou que o problema de Nascimento não era físico, e
sim emocional. Na psicóloga, a dúvida gira em torno do sigilo: Nascimento não sabia quanto
do que ele contasse seria reportado. Sem garantia de que tudo seria mantido em segredo ou
que pudesse escolher o que seria revelado, resolve não falar nada e se retira.

O terceiro encontro ocorre com o comando do BOPE, e dessa vez quem solicita a
reunião é Nascimento. Ele deseja sair do batalhão, por causa de seu filho, mas recebe como
resposta que é essencial à operação Papa. Finalizando com a sentença “missão dada é missão
cumprida”, o comandante traduz a perda de esperança de Nascimento em atender ao chamado
interior e abandonar o exterior.

TRAVESSIA DO PRIMEIRO LIMIAR

Como em toda a trama de Tropa de Elite, podemos dividir a história entre Interno e
Externo.

Na Travessia do primeiro limiar, acompanhamos uma travessia primeiramente interna,


quando Nascimento, atordoado pelo nascimento cada vez mais próximo de seu filho, sente
tanto remorso sobre o filho da mãe do criminoso, que não consegue mais desassocia-los dos

46
sentimentos que nutre pelo próprio filho. Nervoso por não poder mudar essa situação, resolve
juntar uma equipe e ir pessoalmente buscar o corpo do garoto, na tentativa de aliviar a tensão
dos acontecimentos recentes.

Na favela, torturando um criminoso para conseguir informações do corpo, Nascimento


é chamado para intervir numa ocorrência de tiroteio em uma favela próxima. Após controlar a
situação na favela, Nascimento recebe um telefonema: seu filho nasceu. No dia seguinte, o
filho de Nascimento, Rafael, recebe como presente uma chance de seu pai atender ao
chamado interno. Será aberto um curso do BOPE, onde ele coordenará e escolherá um
substituto. A TRAVESSIA DO LIMIAR EXTERNO foi feita e finalmente o conflito entre
CHAMADO INTERNO e EXTERNO está resolvido.

TESTES, ALIADOS E INIMIGOS

É no curso do BOPE que Nascimento entra em contato com Matias e Neto, dois
aspirantes da Polícia Militar, que provocaram o tiroteio na favela no dia do nascimento de
Rafael e, salvos pelo BOPE, se informaram sobre como ingressar na unidade. Eles serão seus
Aliados para o resto da história, e ambos o substituirão em determinado momento.

Nesse período da história, Nascimento assume o arquétipo de herói, e, apesar de


parecer que apenas Matias e Neto passam por TESTES, encontram INIMIGOS e fazem
ALIADOS, todo o curso do BOPE tem o propósito de encontrar o mais forte recruta para
ocupar o lugar de Nascimento. Então, o julgamento de quem é o mais apto é o grande TESTE
de Nascimento. Encontrar “alguém a sua altura” aproximará aliados e afastará inimigos.

APROXIMAÇÃO DA CAVERNA OCULTA

Quando o filho de Nascimento nasce, o filme só proporciona ao espectador um único


plano do momento de encontro entre pai e filho. De um lado do vidro da maternidade, está
Nascimento, e do outro, está seu filho no berço. O olhar terno e sorriso bobo do pai
contrastam com a farda preta manchada de sangue do policial. Não há contato entre os dois.

Nessa etapa da história, Nascimento já tem em mente um substituto para seu cargo, e
os sintomas que antes apresentava desapareceram. O garoto, Neto, tem a polícia no coração e
executa muito bem as tarefas. “Parece comigo naquela época que eu (Nascimento) fazia o
curso”.

47
Com a perspectiva de deixar no seu lugar sua imagem e semelhança, Nascimento está
tranquilo e empolgado. A cena de revelação do seu estado de espírito não podia ser mais
transparente: trocando a fralda de seu filho, acompanhado de sua esposa. Ele está em paz e
feliz. Vestindo roupas casuais, ele não se assemelha nem um pouco com o Capitão
Nascimento.

Para abandonar de vez a farda preta, ele precisa apenas contemplar Neto com o título
de capitão.

PROVAÇÃO SUPREMA

A escolha foi feita e Neto vai assumir a liderança da equipe de Nascimento. Porém, na
última operação-teste de Neto, acontece algo errado: ele se mostra impulsivo, o contrário do
que Nascimento buscava.

Na sequência da favela, vemos o problema, mas a solução apenas surge na casa de


Nascimento, à noite e em companhia de sua mulher. Irritado por ter escolhido o “garoto
pirado”, desabafa com a mulher e pensa em não abandonar o BOPE se for para deixar sua
equipe na mão de Neto. Após tomar uma dose de um remédio sem nome revelado, apenas
com a descrição de Nascimento como sendo “algo que todo mundo da corporação toma” e
“esse não tem problema”, desabafa, briga e chora. Sua mulher o aconselha a deixar o garoto
assumir, afinal, o “garoto pirado” é o mesmo garoto que Nascimento afirmava antes ser
parecido com ele próprio quando mais novo. A narração dele nessa cena deixa claro como foi
a resolução do problema: sem concordar com o conselho da mulher, ele acata e deixa o jovem
assumir. Como se estivesse dopado pelo medo de perder a RECOMPENSA tão próxima, a
escolha foi feita.

RECOMPENSA

A operação Papa continua com Neto no comando, no lugar de Nascimento, e anda


muito bem. Como todo oficial recém formado no BOPE, Neto sai “acelerado” e, como já
gostava de ação, só nas suas incursões nos morros mais de 30 criminosos foram presos ou
mortos. O sono do Papa estava garantido, assim como o recesso de Nascimento.

CAMINHO DE VOLTA

48
Para explicar a reviravolta que acontece no CAMINHO DE VOLTA de Nascimento, é
necessário voltar um pouco na história e acompanhá-la pela ótica de Matias.

Estudante de Direito, se envolveu com uma turma de sua sala, que administra uma
ONG voltada para as comunidades carentes, e engatou um relacionamento amoroso com
Maria, espécie de patrona da ONG e madrinha de um garoto da comunidade, Romerito, sem
revelar em momento algum ser policial, pensando em assim proteger os mais próximos. Num
dos primeiros trabalhos da faculdade, o grupo se reuniu na ONG, que fica dentro do morro, e
Matias conheceu Romerito. Ao perceber um problema de vista no garoto e querendo fazer
uma boa ação, prometeu a ele providenciar óculos.

Uma certa rivalidade começa a surgir entre Matias e o grupo de estudos. A tolerância
de Matias à polícia e a intolerância às drogas conflitam com o restante do grupo, que é
exatamente o oposto. Um dos jovens do grupo, Eduardo, tem uma relação de comércio com
os traficantes, levando drogas para revender na faculdade.

Mesmo com os problemas de relacionamento, Matias mantém o namoro e passa a


participar da ONG ativamente, o que lhe renderá uma entrevista de estágio num escritório de
advocacia. Mas, depois do tiroteio na favela (dia do nascimento do filho de capitão
Nascimento), uma foto sua fardado apareceu no jornal e o dono do morro, o traficante Baiano,
vai tirar satisfação com Maria sobre a relação dela com o policial. Matias está ausente da
faculdade e da ONG por causa do curso do BOPE e, quando volta, Maria pede explicações e
encerra o namoro.

Voltamos ao ponto em que Neto se torna capitão da equipe de Nascimento. Sem


esquecer a promessa de confecção dos óculos de Romerito, Matias ordena a Eduardo que diga
ao garoto para apanhar os óculos no fliperama para que ele possa pessoalmente entregá-lo.
Eduardo avisa o garoto, mas acaba falando para os traficantes do encontro e eles armam uma
emboscada para o policial, que está atrapalhando Eduardo na venda da droga. Acontece que,
por causa da entrevista de estágio de Matias, quem vai ao encontro do garoto é seu melhor
amigo, Neto.

Após entregar os óculos, Neto se vê cercado pelos traficantes e tenta fugir, acertando
alguns bandidos, mas mesmo assim é baleado. Os traficantes, ao descobrirem que o policial
era capitão do BOPE, para evitar uma retaliação do esquadrão, levam o ferido ao hospital.
Deixando preocupados Nascimento e Matias, Neto fica hospitalizado e morre. Por uma
estupidez, uma vida se perde, uma amizade acaba e uma esperança esmorece.

49
Sem Neto, Nascimento se vê sem um substituto e com o peso da culpa de ter escolhido
o “garoto pirado”. Na sequência seguinte, o capitão entra em seu lar, mas a porção policial
toma o lugar do pai e não se adapta à moradia. Fardado, ele entra e, dando de cara com a
esposa, aponta-lhe o dedo em seu nariz e diz com tom autoritário: “você não vai mais abrir a
boca para falar do meu pelotão nesta casa. Você tá entendendo?”, como se estivesse no curso
de formação do BOPE. Descarregando o sentimento de culpa pela decisão errada e, em parte,
culpando a mulher por provocar o erro, ele segue até o banheiro, pega o frasco com o remédio
“que todo mundo da corporação toma” e joga fora. Ele agora não vai tomar decisão quando
estiver dopado pela porção Pai, que, na PROVAÇÃO SUPREMA, se manifestou. A partir de
então ele é o policial e será o policial até que lhe arranjem um substituto. Agora é uma
questão de honra.

No enterro de Neto, Nascimento encontra a matéria-prima para criar um outro


substituto. Matias tinha sido uma das opções junto com Neto para assumir o comando de sua
equipe, e agora, com a vaga de Neto aberta e o coração de Matias aberto pela dor da perda,
Nascimento podia torná-lo o substituto perfeito, bastava explorar o sentimento vivido por
Matias para nutrir a porção policial dele. Iniciando uma caça a Baiano, Nascimento podia
reassumir o controle da situação, fazendo o bandido pagar e utilizando a caçada para
introduzir em Matias, por meio do lado pessoal da sua perda, uma necessidade de vingança e
de dever. Matar Baiano é prioridade.

Graças à ajuda de Maria (ex-namorada de Matias e fundadora da ONG na


comunidade), o BOPE dispôs de informações para começar a busca pelo traficante, e tudo
serve como um grande curso para Matias. Nascimento, no modo policial, estava se saindo
bem na conquista de um novo substituto, mas de volta à sua casa, após um dia de trabalho, a
porção pai de Nascimento percebe que não há mais filho.

RESSUREIÇÃO

Sua mulher havia levado a criança consigo e o deixado sozinho com sua porção
policial. Sua missão agora deveria ser outra, ou pelo menos sua motivação. Transformar
Matias em substituto não era só questão de honra, sua vida particular estava em risco. Sua
porção pai iria desaparecer e apenas com um substituto Nascimento poderia recuperá-la.

Na gana de conseguir um substituto, Nascimento começou a adotar procedimentos


condenados pelo próprio BOPE, como tortura e procuras indiscriminadas pela comunidade,

50
ignorando inocentes. A tática era desesperada e condenada pelo próprio Nascimento, “mas
nada nem ninguém ia lhe fazer parar”. Com tudo isso, resultados apareceram, Matias tomava
parte até nas torturas. Baiano finalmente foi localizado. Entocado numa casa, bastou alguns
tiros para fazê-lo sair e depois mais alguns para fazê-lo cair.

“O Baiano já era meu... Agora só faltava o coração do Matias”. Com essas palavras e
esse intuito, Nascimento deu nas mãos de Matias uma arma e, como um prêmio, passou a
execução ao comando de dele.

Matias aponta a arma para o rosto de Baiano. “Eu vou voltar pra minha familia...”
Carrega. “...sabendo que havia deixado alguém digno no meu lugar”

RETORNO COM O ELIXIR

Matias dispara a arma e tudo na tela é branco. Esse último momento é acompanhado
pelo espectador do ponto de vista do criminoso. Com a arma apontada para a câmera, o último
tiro pode ser em qualquer um que assiste, deixando a conclusão moral a cargo do público.
Nada foi concluído. Não se sabe se Nascimento voltou a sua família, se Matias continuou a
faculdade ou se o tiro acertou em cheio o rosto de Baiano. Na verdade, isso não interessa
mais. Matias está convertido e Nascimento alcançou seu objetivo. Se houve RETORNO, eu
não posso afirmar, mas do ELIXIR Nascimento provou.

51
3. Comparações

3.1. Cinema e história em quadrinhos

Quando comecei a pensar nesta pesquisa, surgiu a dúvida de como comparar um gibi a
um filme. Como mídia impressa, o gibi se apresenta em forma de literatura e arte visual, em
contrapartida ao filme, que é um produto áudio visual.

Uma parceria das palavras com as imagens torna-se uma permuta lógica. A
configuração resultante é a história em quadrinhos e ela preenche um
25
espaço existente entre o conteúdo impresso e os filmes.

A diferença dos dois meios começa pela relação que ambos geram com o interlocutor.
No gibi, o leitor participa da história. No cinema, a audiência apenas assiste, é espectadora do
filme. Essa diferença existe porque, para o gibi, é necessário que o leitor participe, lendo e
interpretando as ações, e no cinema, basta o mínimo de concentração à ação da tela para que a
história seja assimilada.

O cinema pretende transmitir uma experiência real, enquanto os quadrinhos


26
a narram.

Mas, apesar desta diferença, os dois meios, mesmo com a diferença no formato e na
interação com o público, respeitam o mesmo principio de construção de seu discurso,
linguagem e narrativa, que é o da montagem sequencial.

A própria história da narração em quadrinhos e do cinema se parecem. As duas, no seu


surgimento, foram consideradas um meio de comunicação para públicos de baixo nível
cultural, porque não exigiam muito esforço intelectual como a literatura exigia. Superado
esses preconceitos, hoje, a história em quadrinhos foi elevada ao status de literatura, e o
cinema é considerado a sétima arte.

25
EISNER, Will. Narrativas gráficas, p.09.
26
EISNER, Will. Narrativas gráficas, p.75.

52
Considerados obras de autor, cinema e gibi são dois formatos distintos para se contar
uma história, mas contam com o mesmo aparato lingüístico e elementos narrativos,
possibilitando assim uma comparação entre ambos.

3.2. Batman e Cap. Nascimento

Para comparar os personagens Batman e Capitão Nascimento, como heróis de maneira


clara e objetiva, vamos primeiro abordar a construção de um personagem. Para Syd Field,
autor do livro Manual do roteiro, as valiosas ferramentas no processo de criação são os
conceitos abstratos de contexto e conteúdo.

Identificar a necessidade do personagem é o primeiro passo. O que o personagem


busca? Qual é o seu objetivo? Numa jornada heróica, por mais que os heróis busquem
tesouros ou magias; mesmo que suas histórias tenham séculos de duração ou infindáveis
capítulos, o objetivo, na maioria das vezes, é algo simples, que pode ser resumido em poucas
palavras. Batman, no gibi O cavaleiro das trevas, não busca salvar Gotham, nem quer
exclusivamente acabar com o Coringa ou Superman. O que ele busca é a vingança pela morte
de seus pais, mesmo que seja inconscientemente. A necessidade de Batman é a vingança.

Em Tropa de elite, não sabemos o porquê Capitão Nascimento resolveu se tornar


policial, pois a história foca apenas o momento de sua decisão de sair do batalhão. Ignoramos
seu passado e acompanhamos a jornada heróica em um momento de sua vida. O herói não é
um policial, mas um pai de família. Seu objetivo não é acalmar o Morro do Turano, nem
matar o Baiano. Também não é simplesmente encontrar um substituto. Tudo isso são etapas
na sua busca pela paternidade. Sua necessidade é se tornar um pai de família.

Com a necessidade clara, criar o personagem em cima de outros conceitos abstratos


fica mais fácil. Syd Field aponta que cada personagem obrigatoriamente deve ser um ponto de
vista, uma atitude, uma personalidade e um comportamento.

Ponto de vista é a maneira como esse personagem olha o mundo e o interpreta.


Quando vemos a história do ponto de vista desse personagem, como o mundo será exposto?
Em Tropa de elite e O cavaleiro das trevas, ambas histórias com narrativas em primeira
pessoa dos protagonistas, vemos a história pela retina de combatentes do crime totalmente
intolerantes. Podemos perceber que ambos interpretam a realidade de maneira pessimista, seja
na Gotham, dominada pela criminalidade, seja na guerra civil do Rio de Janeiro.

53
Por atitude, entendemos a opinião do personagem. Sua maneira de agir ou sentir, em
determinada situação, revela muito. A maneira com que Capitão Nascimento e Batman
revelam a intolerância e um certo prazer em combater o crime. Dois personagens
conservadores e violentos, perturbados pelo estresse de suas atuações, seus traumas e medos
pessoais, e indignação social.

Personalidade designa como, visualmente, o personagem mostra sua personalidade.


Um conflito interno fica claro em Batman e Capitão Nascimento, por ambos usarem um
uniforme, “separando-os” em dois. A opção pelo estilo de uniforme também revela algo – as
cores escuras e até o símbolo que ostentam, morcego e caveira - evidenciam uma
personalidade obscura e singular.

A maneira como a ação se desenvolve abrange o conceito de comportamento dos


personagens. O modo como lutam, a entonação quando falam, como se comportam com e
sem uniforme são outros componentes na criação. Parecidíssimos, Batman e Capitão
Nascimento são violentos, intolerantes, falam com firmeza e comandam quando
uniformizados. Sem vesti-los, são pessimistas, nervosos e neuróticos, agem como normais,
mas seus pensamentos funcionam como se ainda estivessem uniformizados, obrigando-os a
entrar em conflito consigo mesmo.

Syd Field foi muito sábio na elaboração de seu capítulo sobre criação de personagens.
Toda vez em que se refere aos conceitos de ponto de vista, atitude, personalidade e
comportamento, escreve assim: personagem é um ponto de vista; personagem é uma atitude;
etc. A linguagem do livro dialoga direto com o leitor, em tom professoral. Então, por que não
elaborar a frase da seguinte maneira: o personagem tem que ter um ponto de vista; o
personagem tem que ter uma atitude?

A construção da frase deixa claro que o desejado é que o personagem seja ele mesmo
um ponto de vista. O personagem não é uma pessoa com um ponto de vista, e sim um ponto
de vista disfarçado de pessoa. O personagem não tem um comportamento, ele é um
comportamento. Com esse “absolutismo gramatical”, Syd Field explica o conceito de
arquétipo sem ao menos usar esse termo jungiano. De forma didática e disfarçada, talvez
inconsciente, ele apresenta o princípio dos arquétipos, apenas justificando que o uso dos
quatro termos, na elaboração da personagem, resultam em algo chamado identificação,
qualidade essencial para que um personagem convença o espectador a acompanhar sua
jornada por 2 horas, numa sala de cinema, por exemplo.

54
A identificação surge porque em cada ser humano há, em seu inconsciente, diversos
arquétipos, e ao ver um dos tipos no cinema, isso desperta algo que muitos denominam como
compaixão e simpatia.

A comparação entre Batman e Capitão Nascimento não deve ser feita em detalhes à
flor da pele, e sim em significados profundos de algo universal, como suas jornadas, o
arquétipo de herói que representam e o contexto de criação dos dois enquanto obra de arte.

Partindo dos símbolos que ambos denominaram como síntese de sua personalidade
máscara, uma caveira não é igual a um morcego, mas se analisado o porquê da escolha,
denota uma ligação igual com algo obscuro, algo tenebroso que deve evocar o medo no
próximo e, ao mesmo tempo, algo singular, único. O morcego é o único mamífero voador,
revelando uma certa semelhança com Batman, o único super- -herói sem superpoderes, no
universo da DC Comics, a lutar de igual a igual com Superman, um canivete suíço em termos
de superpoderes. A caveira de Capitão Nascimento não significa apenas a morte certa, mas
revela como esta será aplicada. A faca na caveira denuncia uma morte intencional, violenta e
fulminante.

Os objetivos ou necessidades dos dois personagens, a princípio, não parecem iguais.


Vingança versus paternidade. Mas olhando mais a fundo, vemos que os dois têm caráter
totalmente individual, para não chamá-los, rudemente, de egoístas. Agir como um justiceiro,
desrespeitando direitos humanos, por uma causa pessoal, como vingança pela morte dos pais
ou, repito, agir como justiceiro, desrespeitando direitos humanos, por uma causa pessoal,
como vingar a morte de Neto e, assim, conseguir tornar Matias seu substituto, a fim de
recuperar sua família, não são objetivos particulares com ações confundidas, como de
importância para a sociedade? Ambos agem por instintos individuais, motivados por
interesses particulares.

Suas maneiras, politicamente incorretas e intolerantes, de combate ao crime, tornam-


nos dois alvos fáceis da mídia, acusados de criminosos. Essa semelhança, mais que clara e
sem necessidade de um aprofundamento sociológico e político, trás à tona a semelhança
maior e definitiva entre os dois. Concebidos como arquétipos do herói, os dois são a
combinação de dois tipos muito particulares de herói, o anti-herói e o herói catalisador.

Esses dois tipos de herói estão classificados no livro de Vogler, A jornada do escritor.
Por anti-herói, muitos confundem com algo semelhante ao vilão, quando sua atitude e
objetivo são positivos. Mas ao herói é dado uma carga grande de cinismo ou, no caso dos

55
nossos personagens de estudo, violência. Herói catalisador é aquele que não sofre grandes
mudanças na sua consciência no decorrer da sua jornada, mas provoca muitas nos outros ou
no sistema em que está inserido.

Batman e Capitão Nascimento são dois típicos anti-heróis, porque ambos, do ponto de
vista da sociedade, são considerados criminosos, mas seus objetivos e jornadas heróicas são
acompanhados e ganham a simpatia do público.

Como catalisadores, justifico avaliando que Capitão Nascimento começa o filme e


termina o filme como um policial violento. Não o vemos com sua família, calmo, deitado
numa rede, vendo o filho brincar no quintal. Acompanhamos a narrativa de um policial que,
devido a uma mudança, é jogado numa jornada heróica, e não alguém que mudou durante
essa jornada. Mas não mudar não configura um catalisador, e sim a capacidade de provocar
mudanças. Vendo Matias e Neto, que começam o filme inocentes, e, após o treino de Capitão
Nascimento, se transformam em máquinas de matar, justifica o termo.

Com relação a Batman, a justificativa para ele se encaixar como catalisador é obvia.
Ele provoca mudanças em tudo e todos. A começar por Carrie, passando pela ordem e bem
estar social de uma cidade inteira e terminando na conscientização de Superman. Isso sem
falar que, enfrentando Superman, enfrentava o governo da maior potencial mundial, os
Estados Unidos.

56
Considerações finais

Quem luta contra monstros deve tomar cuidado para que, no processo, não
se torne um monstro também. E quando você olha para o fundo do abismo,
o abismo também olha para você. (Friedrich Nietzsche)

Quando essa pesquisa nasceu, em seu escopo, o principal foco era tentar julgar se as
atitudes de extrema violência, autoritarismo e repreensão, cometidos por Capitão Nascimento
e Batman, eram ou não atos criminosos. Como principal elo entre os dois, suas figuras
controversas e as polêmicas em torno dos dois motivaram essa pesquisa a seguir seu rumo.

E foi um rumo natural. A questão social saiu e um novo caminho surgiu. Como
personagens, ambos eram iguais, pois nasceram destinados ao heroísmo. Campbell já havia
percorrido uma jornada árdua, estudando mitos e heróis, e apontou semelhanças entre todos.
Vogler, como um discípulo, utilizou todo o aprendizado de Campbell ao adaptar estruturas
míticas no desenvolvimento de roteiros e histórias.

Todos somos heróis de nossa própria história. O vilão é o herói de sua história, e isso
justifica o fato do sentido de herói ser algo extremamente valorativo, dependente de um
agente externo para ser validado. No caso de Batman e Nascimento, esse agente é a
sociedade, que esta no fogo cruzado dos heróis.

CAMPBELL: (...) Uma proeza pode ser absolutamente heróica, como


quando alguém dá a vida por seu povo, por exemplo.

MOYERS: Ah, sim. O soldado alemão que morre...

CAMPBELL: ...é tão herói quanto o americano, que foi mandado lá para
27
matá-lo.

Se até o vilão é herói, deparamos com uma questão maior: o que é o Bem e o que é o
Mal? Com o sentido das duas palavras sendo absolutamente valorativos, quem define o que é
Bem e Mal também é a sociedade, e é ela, mais uma vez, que traça uma linha de isolamento
“X” metros a frente do abismo. Herói será aquele que atravessar essa linha para encarar de

27
CAMPBELL, Joseph. O poder do mito, p.135.

57
frente, sem medo que o abismo o encare também. Com diz Batman: “Somos todos
criminosos. Nós temos que ser”.

Batman e Capitão Nascimento são iguais, como heróis. Suas particularidades podem
ser diferentes, mas se ambos as têm, temos uma semelhança. E podemos julgá-los? Acho que
não. Acredito que ambos “são grandes demais”. E mais uma vez, a semelhança prevalece.

58
Referências bibliográficas

a) Livros

ALMEIDA, Gustavo de. Homens de preto, Revista Rolling Stones, nº 13, outubro de 2007,
pág 44 a 48.

ARAUJO, Inácio. Cinema: o mundo em movimento, São Paulo, Scipione, 1995.

ARISTÓTELES. Poética. São Paulo, Ars Poética, 1993.

AUMONT, Jacques. A Estética do filme, Campinas, Papirus, 1995.

BATISTA, André; PIMENTEL, Rodrigo e SOARES, Luis Eduardo. Elite da tropa, editora
Objetiva, 2006.

BERNADET, Jean-Claude. O que é cinema, São Paulo, Brasiliense, 1983.

BOECHAT, Walter; BRAGA, Humberto; CARDOSO, Heloísa. Mitos e arquétipos do


homem contemporâneo. Rio de Janeiro, Vozes, 1995.

CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo, Pensamento, 1988.

CAMPBELL, Joseph, com Bill Moyers. O poder do mito. São Paulo, Associação Pallas
Athena, 1997.

COMPARATO, Doc. Da criação ao roteiro. Rio de Janeiro, Rocco, 1995.

DE MOYA, Álvaro. História da História em Quadrinhos. São Paulo, Editora Brasiliense,


1993.

DE PAULO, Sidney. O limite entre ser herói e ser vilão. São Carlos, Pedro & João Editores,
2008. p.119-124

EISNER, Will. Narrativas gráficas. São Paulo, Devir Livraria, 2005.

FIELD, Syd. Manual do roteiro: os fundamentos do texto cinematográfico. Rio de Janeiro,


Objetiva, 2001.

GOLDBRUNNER, Josef. Individuação: a psicologia de profundidade de Carl Gustav Jung.


São Paulo, Herder, 1961.

JUNIOR, Gonçalo. A guerra dos gibis. São Paulo, Companhia das letras, 2004.

59
KRAKHECKE, Carlos André. A Guerra Fria da década de 1980 nas Histórias em
quadrinhos Batman – O Cavaleiro das Trevas e Watchmen. Revista História, imagem e
narrativas, No 5, ano 3, setembro/2007.

LINDZEY, Gardner; HALL, Calvin S. e THOMPSON, Richard F. Psicologia. Rio de Janeiro,


Editora Guanabara Koogan, 1977.

LINDZEY, Gardner e HALL, Calvin S. Teorias da personalidade, editora pedagógica e


universitária, São Paulo, 1973.

MILLER, Frank. O cavaleiro das trevas, Editora Abril, São Paulo, 1987.

_______. O cavaleiro das trevas – Edição definitiva. São Paulo, Panini Comics, 2006.

OLIVEIRA, Luísa. A jornada do herói na trajetóra de Batman. Boletim de Psicologia, Nº 127,


ano LVII, 2007.

OSORIO, Ester Myriam Rojas. Bakhtin na prática: leituras de mundo. São Carlos, Pedro &
João Editores, 2008.

RODRIGUES, Edison Filho. Roteiro Cinematográfico – caderno de notas, edição do autor,


São Paulo, 2000.

VERSIGNASSI, Alexandre; NARLOCH, Leandro; RATIER, Rodrigo. A tropa revelada,


Revista Super Interessante, nº 245, novembro de 2007, pág. 60 a 68.

VOGLER, Christopher. A jornada do escritor: Estruturas míticas para contadores de histórias


e roteiristas. Rio de Janeiro, Ampersand Editora, 1997.

b) Filmes

ÔNIBUS 174. Direção: José Padilha. Pesquisa: Fernanda Cardoso e Jorge Alves. Brasil.
2002. DVD (118 min), sonoro, colorido.

TROPA DE ELITE. Direção: José Padilha. Roteiro: José Padilha, Rodrigo Pimentel e Bráulio
Mantovani. Intérpretes: Wagner Moura, André Ramiro, Caio Junqueira e outros. Brasil. 2007.
DVD (116 minutos), sonoro, colorido.

c) Sites

60
MARTINS, Romeu. “Omelete entrevista: Gonçalo Júnior, autor de A Guerra dos Gibis”.
Disponível em <http://www.omelete.com.br/quad/100002444.aspx>. Acesso em 22 out. 2008.

MARTINS, Jotapê. “Crônicas omeléticas: O Cavaleiro das Trevas e eu”. Disponível em


<http://www.omelete.com.br/quad/10000730/Cronicas_omeleticas__O_Cavaleiro_das_Treva
s_e_eu.aspx>. Acesso em 22 out. 2008.

61
62

You might also like