You are on page 1of 6

22

REDUÇÃO À CONDIÇÃO ANÁLOGA Á


DE ESCRAVO

_____________________________

22.1 CONCEITO, OBJETIVIDADE JURÍDICA E SUJEITOS DO


CRIME

O tipo está contido no art. 149 do Código Penal, com a redação dada pela Lei nº
10.803, de 11 de dezembro de 2003: reduzir alguém à condição análoga à de escravo,
quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a
condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção
em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.

A pena é reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à


violência. É o chamado plágio. Ensina MIRABETE que “etimologicamente, ‘plágio’ é
desvio de escravo e ‘plagiário’ o que toma para si escravo alheio”.1

A norma protege o status libertatis da pessoa, ou seja, seu estado de ser humano livre,
em toda a sua plenitude. Não exclusivamente a liberdade de ir e vir, mas a condição e a
qualidade do humano ser, ele mesmo, o único senhor de si mesmo. O escravo, sabe-se, era
absolutamente dominado por seu senhor, destituído da liberdade de dirigir a própria vida.

O ser humano é livre, por sua própria natureza, e o Direito protege-o contra as ações
que se voltam contra esse estado de liberdade.

Sujeitos desse crime podem ser quaisquer pessoas, sem distinção de qualquer natureza.
Ainda quando o ser humano seja incapaz de entender ou de se determinar, será ele sujeito passivo
desse crime, porque ainda nesse estado pode ser tratado como coisa.

22.2 TIPICIDADE

1
Manual de direito penal: parte especial. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2003. v.2, p. 192.
2 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

22.2.1 Forma típica básica

22.2.1.1 Conduta

O verbo empregado no tipo é reduzir, no sentido de converter o estado de liberdade


da vítima, transformando-o num estado de fato análogo ao do escravo.

A redação original do art. 149 levava a enormes dificuldades para a verificação da


tipicidade do fato, exigindo-se, então, que o agente realizasse condutas que, em seu
conjunto, impusessem à vítima a modificação de seu estado de liberdade, alterando seu
estado de liberdade natural de ser humano livre, de modo que se assemelhasse ao estado
de fato de um verdadeiro escravo, sem o poder de decidir sobre seu destino. Era
indispensável que várias condutas, inclusive omissivas, se realizassem, com ou sem
emprego de violência, grave ameaça, fraude ou qualquer outro meio capaz de minar a
resistência da vítima.

Com a nova redação do art. 149, dada pela Lei nº 10.803, de 11 de dezembro de 2003,
as dificuldades ficam minimizadas, senão que desaparecem.

22.2.1.2 Elementos objetivos

Os meios de execução do procedimento típico contidos na norma incriminadora são:


(1) submeter a vítima a trabalhos forçados; (2) submeter a vítima a jornada exaustiva; (3)
sujeitar a vítima a condições degradantes de trabalho; e (4) restringir, por qualquer meio, a
locomoção da vítima em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.

Submeter é obrigar, compelir, através de violência, grave ameaça, ou qualquer outro


meio capaz de diminuir a capacidade de resistência da vítima. Possível também que a
submissão se dê por meio fraudulento ou enganoso. Trabalhos forçados são atividades
laborais impostas contra a vontade da vítima. Jornada exaustiva é o período de trabalho
diário imposto em condições que signifiquem sofrimento físico ou mental, além das forças
da vítima, daí que devem ser consideradas as suas condições pessoais.

Sujeitar é, igualmente, impor com violência, grave ameaça ou fraude. Condições


degradantes são aquelas que importam em grave desrespeito moral, ferindo a dignidade da
pessoa.

Restringir a locomoção é impor empecilho ou obstáculo ao direito de ir e de vir. Esse


meio executório será reconhecido quando o agente atingir a liberdade locomotora, em
Redução à Condição Análoga à de Escravo - 3

razão de dívida contraída pela vítima com o seu empregador ou preposto. Realiza-se por
meio de violência, grave ameaça, outro meio que atinge a capacidade de resistência da
vítima, e também através de fraude. Cuida aqui a norma das práticas impostas por
fazendeiros da Amazônia que, após compelirem seus empregados a adquirirem gêneros de
primeira necessidade em armazéns do próprio estabelecimento agropecuário ou de
prepostos seus, coloca-os em situação de devedores para, ao depois, exigirem sua
permanência até liquidação da dívida.

Não basta, porém, para se reconhecer a tipicidade do fato que o agente empregue um
dos meios executórios referidos. É indispensável que, através de um deles, a vítima seja
colocada numa situação de absoluta submissão aos desejos do agente. Aí passa a
experimentar uma condição semelhante à do escravo histórico, que não tinha
personalidade, que era uma coisa e como tal tratado, objeto de contrato de alienação ou de
empréstimo, desrespeitado no seu direito de ir e de vir, no direito de ter sua integridade
física e moral intocados, enfim, sem qualquer possibilidade de se autodeterminar.

A vítima é compelida a aceitar a condição de submissão, trabalhando como se escravo


fosse, em virtude das ameaças ou da violência empregada, que a mantém sem a
possibilidade de reagir à constrição, ou pelas próprias condições do lugar em que é
colocada, privada de acesso à vida livre.

Não há supressão da liberdade jurídica da vítima, que a conserva, mas sem qualquer
eficácia, em face da realidade fática que prevalece.

Não será plágio, por isso, a simples conduta do agente que submete a vítima a
trabalho forçado, jornada exaustiva ou condições de trabalho degradantes, ou a que
restringe sua liberdade locomotora, sem que, com qualquer dessas condutas resulte a
redução do status libertatis da vítima, com sua conversão ao estado análogo ao de escravo.
Poderá haver outro delito, como adiante comentado.

22.2.1.3 Elemento subjetivo

É crime doloso. O agente atua com consciência de que está submetendo a vítima, e com
vontade de violentar o seu estado de liberdade pessoal, convertendo-o em estado análogo ao do
escravo. Não prevê o tipo qualquer outro elemento subjetivo, exceto quando o agente restringe a
liberdade de locomoção da vítima, caso em que tal deve se dar por motivo da dívida por ela
contraída com o empregador ou preposto.
4 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

22.2.1.4 Consumação e tentativa

É um crime permanente. Consuma-se depois de um certo tempo após a vítima ter sido
colocada sob o poder do agente, na condição análoga à do escravo, protraindo-se, todavia, no
tempo.

Há tentativa quando, realizada a conduta determinante da submissão da vítima, não


se instala, ainda assim, a supressão de seu status libertatis, por qualquer circunstância
alheia à vontade do agente. Ou porque a sujeição da vítima é tão-somente momentânea, ou
porque nem chega a ocorrer, por força de ação externa ou da própria vítima que consegue
fugir.

22.2.2 Formas típicas equiparadas

O § 1º do art. 149, introduzido pela Lei nº 10.803, de 11 de dezembro de 2003, impõe


a mesma pena de reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à
violência, para aquele que:

“I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o


fim de retê-lo no local de trabalho;

II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos


ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho”.

Essas duas formas típicas elevam, à categoria de delito autônomo, condutas que, na
verdade, seriam formas de participação no delito principal, incidindo, assim, sobre os
comportamentos de pessoas a serviço do agente do crime de plágio, geralmente
empregados, pistoleiros, guardas, que contribuem para a manutenção da vítima na
condição análoga à de escravo. Penso que é indispensável que a vítima esteja sendo vítima
do crime de plágio praticado por outra pessoa, para que se reconheça a tipicidade da
conduta do que para ele contribui.

Assim, se o trabalhador não está sendo vítima do crime do art. 149, caput, e alguém
cerceia o uso de meio de transporte para retê-lo no local de trabalho, ou mantém vigilância
ostensiva, ou apodera-se de seus documentos, com o fim de impedir sua saída, o delito será
outro: constrangimento ilegal, ameaça, seqüestro ou cárcere privado.
Redução à Condição Análoga à de Escravo - 5

22.2.3 Aumento de pena

As penas serão aumentadas de metade se a vítima é criança ou adolescente, e


também quando o agente agir impelido por motivo de preconceito de raça, cor, etnia,
religião ou origem. É a norma do § 2º do art. 149, também acrescentado pela Lei nº
10.803, de 11 de dezembro de 2003.

22.2.4 Conflito aparente de normas

O constrangimento ilegal, a ameaça, o seqüestro e o cárcere privado podem ser


crimes-meio ou parte, ou fases do crime-fim que é a redução à condição análoga à de
escravo, o qual, por isso, absorve aquelas infrações, respondendo o agente tão-somente por
este. O plágio é o mais grave dos crimes contra a liberdade pessoal, absorvendo, por isso, os
demais.

No inciso I do § 1° do art. 203 do Código Penal está incriminada a conduta de quem


obrigar ou coagir alguém a usar mercadorias de determinado estabelecimento, para
impossibilitar o desligamento do serviço em virtude de dívida. A pena cominada é de
detenção, de um a dois anos, e multa, além da pena correspondente à violência. Uma única
coação, com a finalidade de manter a vítima no serviço, realiza esse tipo. Se, porém, a
vítima vem a ter, depois, restringida a sua liberdade locomotora, esse delito poderá ser
absorvido pelo plágio.

22.2.5 Concurso de crimes

Quando, para a realização do plágio, que, repita-se, é crime permanente, o agente


emprega violência, produzindo lesões corporais, ou cometendo tortura, tentativa de
homicídio, homicídio, estupro, atentado violento ao pudor ou outro crime, haverá concurso
material com o plágio, aplicando-se as penas cumulativamente, como determina
expressamente o preceito secundário.

22.3 AÇÃO PENAL

A ação penal é de iniciativa pública incondicionada, não sendo possível a suspensão


6 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

do processo penal.

You might also like