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TEORIA DA PENA

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Acontecendo um crime – um fato típico, ilícito e culpável –, nasce para o Estado


o direito de punir o infrator da norma penal, o agente do crime.

O direito de punir – o ius puniendi – não pode ser exercido manu militari,
unilateralmente, pelo Estado, por força do princípio constitucional do due process of
law, inserto no art. 5º, inciso LIV: “ninguém será privado da liberdade ou de seus
bens sem o devido processo legal”, e também daquele outro, da presunção da
inocência, do inciso LVII: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em
julgado de sentença penal condenatória”.

O Estado, tão logo tem notícia da prática de um fato definido como crime – por
meio do Delegado de Polícia e de seus agentes –, deve, em regra, iniciar o trabalho
investigatório destinado a apurar a materialidade do fato – onde foi, como foi, por que
foi – e o responsável ou responsáveis por ele – quem foi, quem colaborou – para
permitir ao Promotor de Justiça a dedução da pretensão de punir o autor do fato
considerado crime.

Em regra, é o Promotor de Justiça – funcionário estatal encarregado de


perseguir o agente do fato típico – que inicia o chamado processo penal, conjunto
sistemático e organizado de atos destinados à descoberta da verdade, diante do juiz que,
chamando o acusado para se defender, preside a produção das provas e a oferta das
alegações que ambos – acusador e acusado – desejarem em favor de suas teses. Tudo
sob a égide dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório.

Depois de permitir aos dois lados – promotor e acusado – ampla liberdade de


provar suas afirmações e obedecendo a todas as normas procedimentais estatuídas no
Código de Processo Penal e em leis processuais especiais, o juiz, atento a tudo o que lhe
foi apresentado, principalmente aos fatos e às razões de direito, decidirá sobre qual dos
pedidos – o do acusador ou o do acusado – deverá atender.

O promotor de justiça pede ao juiz que aplique a pena cominada ao crime que
2 – Direito Penal – Ney Moura Teles

considera ter sido cometido. O acusado pede que não lhe seja aplicada pena alguma, ou
que se lhe aplique pena menor ou mais branda que a postulada pelo acusador.

Se o juiz estiver convencido de que o acusado da prática não cometeu o fato


típico, ou para ele não concorreu, nem como partícipe, ou que o realizou licitamente –
amparado por uma causa de exclusão da ilicitude – ou, ainda, que não é culpado, seja
por não ser imputável, seja por ter agido acobertado por causa de exclusão da
culpabilidade, deverá absolvê-lo da acusação formulada, rejeitando a pretensão do
acusador.

Dirá que não houve o crime e, por isso, não haverá a pena. Se menor ou
inimputável, receberá uma medida socioeducativa, do juízo especializado da infância e
da juventude, ou uma medida de segurança, respectivamente.

Pode ocorrer – e muito acontece, infelizmente – de o juiz convencer-se de que o


fato típico atribuído ao acusado foi mesmo por ele praticado, ou contou com seu
concurso, e que, além disso, ele não agiu licitamente, e, por outro lado, sendo capaz do
ponto de vista penal, merece ser censurado, por ter atuado com, pelo menos,
possibilidade de conhecer a ilicitude, sendo-lhe exigível, nas circunstâncias em que se
comportou, uma conduta diversa da realizada.

Nessa situação, o juiz, verificando ter havido o crime, deverá impor ao acusado a
sanção penal, observando rigorosamente a lei.

Tendo havido o crime, deverá ser a sanção penal, a pena criminal.

13.1 UM POUCO DA HISTÓRIA DA PENA

No alvorecer da humanidade com os primitivos seres humanos e as sociedades


ainda rudimentares, nascia o crime e com ele a pena. O crime era a agressão a um
interesse do indivíduo ou do grupo, e a pena a resposta, o mal infligido ao infrator.

A pena surge como necessária reação de defesa dos interesses dos indivíduos, e,
mais tarde, também, do grupo, do clã, da tribo, que precisavam ser protegidos de
ataques.

As primeiras penas eram manifestações de vinganças individuais,


extremamente severas e absolutamente desproporcionais, arbitrárias e excessivas. O
próprio ofendido ou alguém por ele, geralmente um seu parente de sangue, exercia o
direito de punir, impingindo ao agressor do interesse a pena que bem entendesse, em
qualidade e quantidade.
Teoria da Pena - 3

Tratando-se de crime perpetrado por membro do grupo, essa modalidade de


pena, que era uma vingança desproporcionada, constituía um grave prejuízo para o
próprio grupo, cuja força dependia, e muito, de um grande número de indivíduos
fortes, sadios, aptos para a guerra contra as outras tribos e os outros grupos que se
formavam.

Por isso, já com as primeiras penas, nasce a necessidade de limitá-las em


benefício do grupo social. Aos poucos, as comunidades vão-se organizando em formas
primitivas de Estado e, com isso, também a vingança penal vai assumindo uma feição
de natureza pública.

Quando o agressor não pertencia ao grupo, à tribo, a resposta penal era, nos
primórdios, a vingança de sangue – sua morte. Essa pena também vai ser, com o passar
dos tempos, substituída por pena menos drástica, geralmente a escravização do
ofensor.

As primeiras espécies de penas, arbitrárias, desproporcionais, extravagantes,


não se consolidam sem que sejam limitadas, e, ao mesmo tempo que, como vingança,
adquirem caráter divino e, mais tarde, público, vão sendo substituídas ou minoradas,
limitadas, controladas, enfim, até chegar-se, bem mais tarde, à formulação do talião e
da composição.

“O talião, aplicado apenas aos atentados contra a pessoa da mesma raça,


constituiu importante conquista, estabelecendo proporcionalidade entre ação
e reação. O instituto da legítima defesa e outras retaliações guardam vestígios
do talião.

Outro progresso, no período da vingança privada, foi a composição


(compositio). O ofensor compra a impunidade ao ofendido, ou seus
representantes, com dinheiro, ou gado, armas, utensílios, à maneira das
indenizações da vida, e, mesmo, da honra em vigor nos nossos dias (multas,
dote à ofendida nos crimes sexuais, reparação do dano em geral).”1

O Código de Hammurabi, que teria sido o mais antigo ordenamento legislativo


da Antigüidade, editado mais de dois mil anos a.C., contemplava o talião – conhecido
nas leis chinesas, persas e egípcias – e a composição, mas o Código de Manu,
aproximadamente mil anos mais recente, não faz qualquer referência a esses dois
importantes institutos. Neste se encontram penas corporais, como o corte dos dedos,
pés e mãos dos ladrões, da língua dos caluniadores, queima do homem adúltero e

1 LYRA, Roberto. Comentários ao código penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1955. v. 2, p. 13.
4 – Direito Penal – Ney Moura Teles

entrega da mulher adúltera aos cães, para que a devorassem.

O Direito Romano conheceu a vingança, o talião e a composição, e no Libri


Terribiles, as penas vão-se diferenciar em face das causas dos delitos.

A vingança era privativa do ofendido, do indivíduo vitimado pela conduta do


agente, ou de seus sucessores, parentes sangüíneos, que só se afastava se houvesse a
composição, vale dizer, se o agente do crime tivesse recursos para, literalmente, “comprar”
outra solução.

Se entre os germanos prevalecia o interesse pela natureza objetiva do crime – a


gravidade da lesão ao interesse atingido pelo comportamento do agente –, entre os
romanos o mais importante era verificar o lado subjetivo do delito. As penas, todavia,
eram, entre os dois povos, cruéis e desumanas, mas o talião dos romanos não incluía a
vingança de sangue dos germanos, até porque, com exceção dos crimes graves, a
punição dependia do insucesso da composição entre ofensor e ofendido.

Ao tempo de Justiniano, a pena encontra seu fundamento no interesse do Estado,


o que, de todo óbvio, demonstra sua natureza plenamente pública.

O aparecimento da Igreja Católica e do Direito Canônico faz-se acompanhar das


idéias de humanizar e espiritualizar as penas, nelas incorporando o espírito cristão.
Noções como a da imortalidade da alma, que seria salva, eternamente, caso o pecador –
agente do crime – se redimisse pelas penitências, pela redenção, regeneração,
arrependimento, aperfeiçoamento pessoal, incorporam-se à idéia de pena enquanto
retribuição e, inegavelmente, constituem importante conquista, à medida que se
humanizam os castigos, evitando-se o sofrimento dos condenados. Até porque o Deus
do Novo Testamento é piedoso e bom e só permite o sofrimento do pecador para que
ele se purifique e possa apresentar-se, um dia, diante do próprio Criador, sendo digno
de entrar em sua morada, o paraíso.

As idéias cristãs são de grande importância para o Direito Penal, principalmente


porque permitiram a construção da intencionalidade como medida da punição.

Com o pensamento de Santo Agostinho, elimina-se, também, a exigência de que a


pena devesse ser, necessária e absolutamente, proporcional ao crime praticado – o que
implicaria a adoção obrigatória da pena de morte para todo e qualquer homicídio. Além
disso, constrói-se, a partir daí, a necessidade de que a pena tenha, igualmente, caráter
utilitário. Em outras palavras, deveria revestir-se de uma finalidade, que, como não
poderia deixar de ser, só poderia ter um fundo ético e moral.

Em toda a Idade Média, todavia, a brutalidade e a crueldade das penas ainda


constituem a tônica.
Teoria da Pena - 5

Só mesmo quando as idéias iluministas se desenvolvem e ganham forma com as


proposições concretizadas por Cesare Beccaria é que a pena criminal passa a ganhar um
matiz de humanidade. Com a Revolução Francesa, a Declaração de Direitos estatuiu: “A
lei só deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias.” Esta idéia de
necessidade da pena, aparentemente simples ou simplista, é da mais alta importância,
pois que não mais se admitiria a punição por pura e simples vingança.

Desse tempo em diante, as penas vão sendo humanizadas. Alguns Estados


Nacionais abolem, outros restringem, a pena de morte. Eliminam-se em grande parte
as penas corporais, torturas, suplícios, trabalhos forçados etc., e as infamantes.
Caminha-se em direção a um novo ideário penal, o de recuperar, educar ou reformar o
condenado.

Uma nova espécie de pena – a de prisão por tempo determinado – torna-se a mais
grave entre todas. Se hoje a achamos violenta, constituiu, sem dúvida, um avanço em
relação tanto à pena capital quanto à de duração perpétua.

Na história do Brasil “até 1530, a justiça penal era o arbítrio dos capitães. Martim
Afonso trouxe carta branca do governo português para processar e julgar
inapelavelmente, aplicando a pena de morte”2.

No século XIX, há pouco mais de 150 anos, a gente brasileira convivia com as
seguintes penas: morte, com ou sem crueldade, inclusive pelo fogo, até o condenado
tornar-se pó para que não fosse possível sepultar-lhe, açoites, degredo, perpétuo ou
temporário, para a África ou para a Índia, mutilação das mãos e da língua, e
queimaduras de partes do corpo.

Só mesmo com a primeira Constituição Brasileira, a do Império, de 1824, são


abolidas as penas de tortura, de açoites e de marca de ferro quente – como se marca,
para provar a propriedade, os bovinos e eqüinos.

Nosso primeiro Código Criminal, de 1830, comina a pena de morte na forca, a de


galés – exceto para mulheres e menores de 21 anos e maiores de 60 anos – e outras
menos cruéis: de prisão com trabalho, prisão simples, para a grande maioria dos
crimes, de banimento, degredo, desterro, multa, suspensão e perda de emprego e, para
os escravos, açoites.

Assim dispunha o Código Criminal:

“Art. 38. A pena de morte será dada na forca.

2 LYRA, Roberto. Op. cit. p. 58.


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Art. 39. Esta pena, depois que se tiver tornado irrevogável a sentença, será executada
no dia seguinte ao da intimação, a qual nunca se fará na véspera de domingo, dia-
santo ou de festa nacional.

Art. 40. O réu, com o seu vestido ordinário, e preso, será conduzido pelas ruas mais
públicas até a forca, acompanhado do juiz criminal do lugar onde estiver, com o seu
escrivão, e da força militar que se requisitar. Ao acompanhamento precederá o porteiro,
lendo em voz alta a sentença que se for executar.

Art. 41. O juiz criminal, que acompanhar, presidirá à execução até que se ultime; e o
escrivão passará a certidão de todo esse ato, à qual se juntará o processo respectivo.

Art. 42. Os corpos dos enforcados serão entregues aos seus parentes ou amigos, se os
pedirem aos juízes que presidirem à execução; mas não poderão enterrá-los com
pompa, sob pena de prisão por um mês a um ano.

Art. 43. Na mulher prenhe não se executará a pena de morte, nem mesmo ela será
julgada em caso de a merecer, senão, quarenta dias depois do parto.”

“Diz-se comumente que, desde Pedro II, já estava abolida de fato a pena de
morte. Ora, a declaração da maioridade é de 1840 e só depois do sacrifício do
fazendeiro Mota Coqueiro, de Macaé (HEITOR LIRA fala em 1856 e COSTA E SILVA em
1885), aquele imperador resolvera emendar a mão. Os escravos continuaram a ser
caçados, e, em pena de morte de fato, sem forma nem figura de juízo, mas de lenta
crueldade, importavam os suplícios contra os negros.”3

Nosso primeiro Código, apesar da pena de morte, constituiu enorme avanço em


relação à legislação então vigente, inclusive porque, segundo ROBERTO LYRA,
contemplou a individualização e a indeterminação relativa das penas, a atenção aos
motivos e à reparação do dano. O grande penalista dá notícia de que a “simplificação do
sistema primitivo, com as diferenciações quantitativas e qualitativas na aplicação da
pena, só meio século depois foi realizada na Holanda e, posteriormente, na Itália e na
Noruega”4.

Com o advento da República, já em 1890, antes, pois, da Constituição, a pena de


galés era abolida pelo Decreto nº 774, do qual constou:

“as penas cruéis, infamantes ou inutilmente aflitivas, não se compadecem com os

3 LYRA, Roberto. Op. cit. p. 63-64.

4 Op. cit. p. 59.


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princípios de humanidade em que no tempo presente se inspiram a ciência e a justiça


sociais, não contribuindo para a reparação da ofensa, segurança pública ou
regeneração do criminoso”.

No Código Penal Republicano, de 1890, as penas previstas eram: prisão celular,


banimento, reclusão, prisão com trabalho obrigatório, prisão disciplinar, interdição,
suspensão e perda de emprego público, com ou sem inabilitação para o exercício de
outro, e multa. Foram proibidas as penas infamantes. No mesmo documento legal,
estabeleceu-se que as penas privativas de liberdade seriam temporárias e não poderiam
exceder 30 anos.

A primeira Constituição Republicana, de 1891, confirmou a abolição da pena de


galés e a do banimento judicial, e a de 1934 proibiu a pena de morte, de confisco e as de
caráter perpétuo. A Carta autoritária de 1937 restabeleceu a possibilidade da adoção,
pela lei ordinária, da pena de morte para alguns crimes – na maioria de natureza
política, e para o homícidio cometido por motivo fútil e com extremos de perversidade.

Em 1938, a Constituição de 37 foi emendada pela Lei Constitucional nº 1 que,


em vez de facultar, determinou, ao legislador a adoção da pena de morte e, em vez de
prescrevê-la para o homicídio por motivo fútil e, ao mesmo tempo, perverso,
determinou sua cominação para o homicídio fútil e também para o homicídio cometido
com “extremos de perversidade”.

Apesar de elaborado e ingressado no mundo jurídico sob a égide dessa


Constituição autoritária, o Código Penal de 1940, felizmente, não incluiu a pena de
morte, adotando apenas as de reclusão, detenção e multa.

Apesar de inúmeros estudos e estudiosos, de idéias as mais díspares, e todas


visando à resolução dos problemas derivados da criminalidade, ainda se vive um tempo
de perplexidade. Se é verdade que a pena de morte, as penas corporais, foram,
devidamente, banidas do ordenamento jurídico dos povos civilizados, não menos
verdadeira é a conclusão de que a pena privativa de liberdade está completamente
falida, e não se presta a coisa alguma, a não ser a tornar o condenado um ser ainda mais
revoltado e perigoso para o convívio com a sociedade.

A história da pena é a história da luta contra sua crueldade e severidade. Com a


pena nasceu a necessidade de limitá-la. À vingança privada seguiram-se a divina e a
pública que, inegavelmente, a limitaram.

Às penas corporais, violentas, cruéis, inclusive às de morte, sucederam as privativas


de liberdade, hoje, inevitavelmente, consideradas cruéis e que, por isso mesmo, deverão
ser substituídas por outras, menos severas, mais humanas. O tempo atual haverá de ser o
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das penas restritivas de direito e de prestação de serviços à comunidade, compatíveis com


o estágio de desenvolvimento cultural hoje vivido.

13.2 FINALIDADE E TEORIAS DA PENA

O grande ROBERTO LYRA ensinou: “o fundamento da pena, que não resulta de um


conceito jurídico, foi conduzido para a abstração filosófica” e tendo-se formado diversas
teorias, cada qual com suas características e sutilezas, são, todavia, classificáveis apenas
“para fins didáticos”5.

Mas ninguém pode negar que os estudiosos do Direito Penal sempre se


preocuparam com o fundamento – a razão de ser – e a finalidade, o objetivo da pena.
Por que punir alguém? Com qual objetivo? Para quê, com qual finalidade?

Essas são questões importantíssimas, com respostas até hoje não


satisfatoriamente encontradas. Nenhum estudioso sério do Direito Penal poderia
deixar passar em brancas nuvens a necessidade de discutir as bases e os fundamentos
da pena criminal. Nenhum jurista sério poderia limitar-se a estudar a pena sem
perquirir sobre seus fundamentos, suas bases e sua justificação.

CLAUS ROXIN indaga: “com base em que pressupostos se justifica que o grupo de
homens associados no Estado prive de liberdade algum dos seus membros ou
intervenha de outro modo, conformando a sua vida?”6

Essas preocupações, ensina ROBERTO LYRA, já faziam parte do pensamento de


Pitágoras, de Platão e de Aristóteles, mas a pena como fato, segundo Belloni, não
precisaria ser justificada7.

É certo que para o estudioso do Direito é indispensável conhecer o fundamento da


pena criminal, mas bem mais verdadeira é a necessidade de que ela seja justificada, isto
é, possa ser considerada justa como realização do interesse maior dos interesses da
coletividade. Por isso, é preciso verificar a razão de ser da pena e a justeza de sua
existência concreta.

Será isso possível?

A unanimidade dos doutrinadores classifica as teorias sobre a pena em absolutas,

5 Op. cit. p. 22.

6 Sentidos e limites da pena estatal. In: Problemas fundamentais de direito penal. Lisboa: Vega, 1986. p.

15.
7 Op. cit. p. 22.
Teoria da Pena - 9

relativas e mistas, divisão que se acata para estudá-las.

13.2.1 Teorias absolutas

Várias teorias entendem que a pena tem uma natureza absoluta, é justa por si
mesma e seu fundamento é a existência do crime. A pena seria, assim, a necessária e
indispensável conseqüência jurídica da existência do crime.

Uma delas afirma que o crime é a violação de um preceito oriundo de Deus, e a


pena, então, seria a retribuição divina. Outra, de KANT, considera o crime a infração da
ordem moral, e a pena deve ser a compensação moral. Já HEGEL mostra que, sendo o
crime a violação do direito, a pena é sua derivação dialética, produzindo a compensação
jurídica. O crime é a negação do direito. A pena é a negação do crime, a negação da
negação, a síntese.

Outra teoria apresenta a pena como uma necessidade estética que, por meio da
retribuição, estabelece a justiça no lugar da injustiça, que foi o crime. E outra teoria
absoluta procura demonstrar a pena como o meio – doloroso – para a purificação do
homem que praticou o crime.

Todas essas teorias, como se vê, partem do pressuposto de que a pena é


necessária em si e por si, em vez de apresentar um fundamento para sua existência, que
pudesse presidir sua criação.

No entanto, é preciso conhecer o fundamento da pena, sua razão de ser, sua


justificação, para que se possa afirmar sua necessidade. Esta tarefa não é realizada por
nenhuma das teorias absolutas.

Na verdade, as teorias absolutas, chamadas retributivas, traduzem-se na


necessidade de retribuir o mal causado – o crime – por outro mal, a pena, e sustentam-
se, por isso, ainda, no velho espírito de vingança, que se situa na origem da pena, o que
já não é aceitável nos dias modernos.

Inadmissíveis, pois, as teorias retributivas, principalmente porque não


apresentam os pressupostos, os requisitos, da pena e, desse modo, não limitam o poder
estatal de punir, deixando o legislador livre para incriminar qualquer comportamento,
qualquer conduta humana, qualquer fato, e cominar quaisquer espécies de pena em
quaisquer quantidades.

13.2.2 Teorias relativas


10 – Direito Penal – Ney Moura Teles

As teorias relativas contrapõem-se às absolutas, pois buscam apresentar a pena


com uma finalidade de natureza política e de utilidade para os homens e a sociedade. A
punição imposta ao agente do crime destinar-se-ia a prevenir a ocorrência de novos
crimes. Há duas espécies de teorias relativas: as teorias da prevenção geral e as teorias
da prevenção especial.

13.2.2.1 Teorias da prevenção geral

Essas teorias compreendem a pena como instrumento de intimidação geral dos


indivíduos, que, diante da ameaça abstrata e concreta da imposição da pena, ficariam
motivados a não transgredir a norma penal.

Entre elas, a teoria da intimidação defendia a necessidade de dar a maior


publicidade às execuções das penas, para que todos tomassem conhecimento do
sofrimento dos condenados. Uma teoria, chamada do constrangimento psicológico,
procura demonstrar o poder moral da pena.

A teoria da defesa mostra a necessidade da aplicação da pena pelo Estado porque o


crime coloca em perigo as condições de sua própria existência, e a punição do agente do
crime será o exemplo dado aos homens, para evitar os perigos futuros.

Como se vê, o fim da pena para todas as teorias da prevenção geral é a


intimidação da generalidade das pessoas, impedindo a ocorrência de novos crimes.

Contra essas teorias levantam-se algumas objeções sérias. A primeira delas é o


perigo da utilização, pelo Estado, de verdadeiro terror intimidatório que se faz
acompanhar da falsa ilusão de que o Direito Penal resolverá o problema da
criminalidade, o que é um verdadeiro engodo.

No Brasil, ultimamente, o Estado vem ludibriando as populações amedrontadas


com a edição de novas leis, mais severas, e com o aumento da quantidade de penas para
certos crimes mais graves, como se essa fosse a solução para conter a criminalidade
violenta.

A Lei nº 8.072/90, dos Crimes Hediondos, foi o grande exemplo de como não
atender aos interesses da sociedade. Penas maiores, com regime de cumprimento mais
severo, apenas aumentaram as populações dos presídios, com o incremento dos
problemas ali reinantes, agravação do já péssimo tratamento aos presos, maior crueldade
no cumprimento das penas, rebeliões, enfim, aumento da criminalidade nos presídios.
Por outro lado, não diminuiu o índice da criminalidade violenta. Ao contrário, dia a dia
pela imprensa, toma a Nação conhecimento de estatísticas reveladoras de aumento de
Teoria da Pena - 11

homicídios qualificados, estupros, extorsões mediante seqüestros e outros dos


chamados crimes hediondos.

Também essas teorias não apresentam o limite que se impõe ao Estado no


momento da elaboração legislativa. Até onde pode o Estado criar o crime e impor a
pena, em qual qualidade e em que quantidade? A tendência, como se vê, é
inevitavelmente o exagero.

Além disso, não se pode esquecer a crítica de CLAUS ROXIN, para quem nada
pode justificar a punição de um homem com a finalidade de intimidar os outros, sendo,
por isso, injusto punir alguém, para que outro não cometa um crime8.

13.2.2.2 Teorias da prevenção especial

As teorias da prevenção especial apresentam a pena com a finalidade de evitar


que o homem que delinqüiu volte a cometer outro crime.

Uma delas demonstra que o agente do crime ficará, para sempre ou por tempo
determinado, inofensivo e, experimentando a pena, terá conhecido as conseqüências do
crime.

Outras defendem ainda a necessidade de que o condenado seja “melhorado”,


mediante sua educação, sua correção, sua ressocialização, ou recuperação, para poder
retornar ao livre convívio com a sociedade.

Tanto quanto as demais, essas teorias não apresentam pressupostos que


permitam a limitação do poder estatal de punir, tanto na criação dos crimes, quanto na
quantificação das penas.

O mais grave, todavia, é que, se a pena se destinar a corrigir o agente do crime,


há de se convir que ela não poderia ser limitada no tempo, pois só deveria ganhar a
liberdade o condenado que estivesse plenamente corrigido e, enquanto não se
alcançasse sua correção, deveria permanecer preso, ainda que indefinidamente – o que
é inadmissível.

Criticam-se, ainda, essas teorias, pois é certo que existem pessoas que cometem
um crime e que não voltam mais a cometer outros delitos, e para elas a pena não teria
nenhuma razão de ser. Deveriam tais delinqüentes ficar impunes? Óbvio que não, mas,
então, com que finalidade seriam punidos, se não precisam ser corrigidos, nem seria o

8 Op. cit. p. 24.


12 – Direito Penal – Ney Moura Teles

caso de se prevenirem novos crimes?

Essas teorias não respondem a essas importantes e inquietantes indagações,


pelo que também não se pode aceitá-las.

13.2.2.3 Teorias de Von Liszt

Para Franz von Liszt, a pena destina-se a alcançar vários fins: a ameaça da pena
exerce a função de intimidação geral sobre todos os membros da comunidade, impede
que o ofendido exerça a vingança, e melhora e equilibra o agente do crime. Teria, assim,
uma finalidade de prevenção geral e uma função ressocializadora.

Conquanto seja esta uma teoria que sintetiza as anteriores, com todas as críticas
a elas endereçadas, contra ela se reiteram as mesmas objeções.

13.2.3 Teorias mistas

As teorias mistas procuram agregar os vários pontos de vista das teorias


absolutas e relativas.

Para MERKEL, a pena é justa retribuição que não exclui a idéia de seu fim, que é
manter no Estado as condições da vida social, destinando-se, pois, a proteger os
interesses dos indivíduos.

BINDING concebe a pena como compensação ou satisfação. O direito de punir,


que é também um dever, é oriundo da insubordinação do agente do crime, para
alcançar o respeito às leis e a conservação do Direito.

ROBERTO LYRA ensina que

“todas as teorias sobre o fundamento e o fim do direito de punir podem ser


concentradas em três idéias: justiça, ou expiação; defesa social, ou intimidação; e
contrato social”.

Pela idéia de justiça, o agente do crime deveria sofrer a pena, para expiar sua
falta, devendo haver proporção entre o crime e a pena. A doutrina da defesa social
procura demonstrar que a sociedade, atacada pelo agente do crime, deve defender-se,
impedindo, perpétua ou temporariamente, o indivíduo de voltar a agredi-la, ao mesmo
tempo em que intimida os outros.

13.2.4 Teoria unificadora dialética de Claus Roxin


Teoria da Pena - 13

Com base na verificação da natureza fragmentária, subsidiária, limitada, do


Direito Penal, de sua missão de apenas proteger os bens jurídicos mais importantes e,
tão-somente, das lesões mais graves, o Estado só pode construir tipos de crimes que
constituam comportamentos dessa natureza, e, ao fazê-lo, estará certamente buscando
a prevenção generalizada dessas lesões ou ameaças. Este é o primeiro fim da pena, o de
prevenir as lesões mais graves aos bens jurídicos mais importantes.

De notar que esse fim está restringindo a construção dos tipos, somente
admissíveis quando for absolutamente necessário para a proteção dos bens jurídicos e
quando os outros ramos do Direito se mostrarem insuficientes ou incapazes de
proporcionar a necessária tutela.

Não sendo alcançado o primeiro objetivo da pena, o que ocorre quando o


indivíduo comete o crime, a pena destina-se a prevenir a continuidade do sujeito na
atividade agressiva dos bens jurídicos importantes, com a observação de sua
responsabilidade individual, ou seja, de sua culpabilidade, que vai limitar a aplicação
da resposta penal. Aqui se entremostra a prevenção especial.

Finalmente, só é possível compreender e justificar a pena, se ela tiver como


objetivo a recuperação do agente do crime, seu aperfeiçoamento, a aprendizagem dos
valores ético-sociais cultivados pela sociedade, a fim de, alcançando-os, poder voltar ao
convívio social em liberdade. Essa finalidade ética é indispensável para justificar a pena,
pois sem ela a dignidade humana restaria inexoravelmente violada.

ROXIN justifica sua teoria:

“Com efeito, a realidade social exige que a comunidade seja protegida de


agressões do indivíduo, mas também que o indivíduo o seja de uma excessiva
pressão por parte da sociedade. E o próprio delinqüente constitui, por um
lado, uma pessoa débil e urgentemente carenciada de um tratamento
terapêutico-social e, por outro lado, há que encará-lo de acordo com a
concepção de homem livre e responsável, na medida em que um ordenamento
jurídico que possua uma noção demasiado pequena do homem, acaba por dar
origem à tutela e à falta de liberdade. Esta dupla polaridade entre indivíduo e
colectividade, e também entre o fenômeno empírico e a idéia de homem,
constitui o ponto de tensão de qualquer problemática social, que em cada caso
também se representa na sua totalidade por uma fragmentação como aquela
que o direito penal contém. Uma teoria da pena que não pretenda manter-se
na abstracção ou em propostas isoladas, mas que tenha como objectivo
corresponder à realidade, tem de reconhecer estas antíteses inerentes a toda a
existência social para, de acordo com o princípio dialético, poder superá-las
14 – Direito Penal – Ney Moura Teles

numa fase superior; ou seja, tem de criar uma ordem que demonstre que, na
realidade, um direito penal só pode fortalecer a consciência jurídica da
generalidade no sentido da prevenção geral se ao mesmo tempo preservar a
individualidade de quem a ele está sujeito; que o que a sociedade faz pelo
delinqüente também é afinal o mais proveitoso para ela; e que só se pode
ajudar o criminoso a superar a sua inidoneidade moral se, a par da
consideração da sua debilidade e da sua necessidade de tratamento, não se
perder de vista a imagem da personalidade responsável para a qual ele
aponta.”9

13.2.5 Direito penal simbólico: teoria da prevenção positiva

A teoria da prevenção geral, para a qual a pena tem a missão de prevenir a


ocorrência de novos delitos, é chamada, modernamente, de teoria da prevenção
negativa, exatamente para se distinguir da chamada teoria da prevenção geral
positiva. Esta teoria abandona a função instrumental da pena, construindo no lugar a
função simbólica.

“Segundo esta teoria, a função da pena não se dirige nem aos infratores
atuais nem aos potenciais. Ela se dirige sobretudo aos cidadãos fiéis à lei, aos
que supostamente manifestam uma tendência ‘espontânea’ a respeitá-la. Em
relação a estes, a previsão ou aplicação das penas não têm a função de
prevenir delitos (prevenção negativa), senão a de reforçar a validade das
normas (prevenção positiva): isto significa também restabelecer a ‘confiança
institucional’ no ordenamento, quebrada pela percepção do desvio. Um dos
principais representantes desta teoria define o fim da pena como o ‘exercitar
os cidadãos para a validade da norma’, fórmula esta que não se encontra
muito longe daquela proposta por Andenaes, que falava da ‘educação’ dos
cidadãos de acordo com as leis.”10

Diante dos problemas derivados do aumento incontido da criminalidade grave,


aos quais se acrescem os decorrentes da falência dos sistemas penitenciários, a teoria
da prevenção positiva marcha para a construção de um direito penal simbólico, em que
o legislador não apresentaria as soluções para modificar a realidade, mas apenas

9 Op. cit. p. 45.


10BARATTA, Alessandro. Funções instrumentais e simbólicas do direito penal. Lineamentos de uma teoria
do bem jurídico. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 5, p. 21,
jan./mar. 1994.
Teoria da Pena - 15

proposições destinadas a alterar a imagem da realidade e, em outros termos, criar junto


às populações a ilusão de que seus interesses, seus bens, estão devidamente protegidos
pelo ordenamento jurídico, pelo Estado. O poder político, uma vez mais, engana a
opinião pública.

Verifica-se, presentemente, não só nos Estados Unidos da América e na Europa,


mas também no Brasil, a presença desta tentativa de construir um direito penal
simbólico, em que o legislador declara uma intenção, quando na realidade deseja
exatamente outra: apenas a de ludibriar a comunidade, inculcando nela a idéia de
confiança no Estado.

Essas proposições devem ser vigorosamente combatidas.

“O cuidado que se deve ter hoje em dia em relação ao sistema de justiça


criminal do Estado de direito é ser coerente com seus próprios princípios
‘garantistas’: princípios de limitação da intervenção penal, de igualdade, de
respeito ao direito das vítimas, dos imputados e dos condenados. Trata-se,
mais que tudo, de aplicar e transformar o direito substancial (fundamental),
processual e penitenciário em conformidade com aqueles princípios, por todo
o tempo em que deva durar a luta por uma política ‘alternativa’ com relação à
atual política penal.”11

No Brasil, em vez das propostas derivadas desse direito penal simbólico, necessita-
se de um direito penal de intervenção mínima. Descriminalizar certos fatos,
despenalizar, limitar as penas privativas de liberdade apenas aos crimes cometidos com
violência ou grave ameaça à pessoa, construir outras modalidades de penas – restritivas
de direitos, de prestação de serviços, entre outras, que a criatividade deve indicar –,
evitar, enfim, o encarceramento de delinqüentes de menor ou ínfima periculosidade,
construir um direito penal essencialmente tutelar, fragmentário, voltado
exclusivamente para a proteção dos bens jurídicos.

O caminho a ser trilhado é o percorrido pelo legislador que construiu a Lei nº


9.099/95, que precisa revogar a Lei dos Crimes Hediondos, e que está na obrigação de
revogar a chamada Lei do Crime Organizado, e outras mais, elaborando novos
diplomas legislativos em substituição, que atendam àqueles princípios.

13.3 CONCEITO E CARACTERÍSTICAS

11 BARATTA, Alessandro. Op. cit. p. 23-24.


16 – Direito Penal – Ney Moura Teles

A todo fato ilícito corresponde uma sanção. O ilícito é a violação do dever


imposto pelo direito positivo, sob a ameaça da sanção. Quem causa um dano deve
repará-lo, ressarcindo o titular do bem danificado. Quem viola um direito, igualmente.
O ilícito penal é uma espécie de ilícito jurídico, cuja sanção é a pena. Quem comete um
crime deve sofrer a pena.

A pena é a conseqüência jurídica da existência do crime, a sanção característica


da violação da norma penal incriminadora.

A pena deve ser proporcional ao crime em qualidade e em quantidade. Esta


exigência tem origem no talião – olho por olho, dente por dente. Modernamente,
devem o legislador, no momento da cominação, e o juiz, quando a aplica, estar atentos
para a necessidade de respeitar o princípio da proporcionalidade entre o fato criminoso
e a sanção a ele correspondente.

É óbvio que ao homicídio não corresponde a pena de morte – proibida entre os


povos civilizados – nem às lesões corporais correspondem castigos corporais. A
proporcionalidade diz respeito à gravidade da lesão e à importância do bem jurídico
atingido, em relação à pena a ser aplicada. Ao se falar de pena privativa de liberdade, a
maior pena deverá corresponder ao crime que destrói o bem jurídico mais importante
de modo mais grave.

Em qualquer ordenamento jurídico, a pena mais severa haverá de ser a


cominada ao delito do homicídio mais grave, o qualificado. E à medida que o bem
atingido é menos importante, ou a lesão é menos grave, menor em qualidade e
quantidade haverá de ser, também, a pena.

A proporcionalidade da pena deve ser em relação ao fato criminoso e não ao


agente do crime. A periculosidade do agente é, na realidade, indemonstrável e não é o
direito penal o redentor do pecado, ou o purificador das almas, como já dizia ASSIS
TOLEDO. Sua missão é essencialmente jurídica, tutelar de bens jurídicos.

A pena é personalíssima, por força do princípio constitucional da


responsabilidade pessoal (art. 5º, XLV, CF), só devendo alcançar o agente do crime,
não podendo ultrapassar sua pessoa, nem atingir seus descendentes ou ascendentes.

As penas mais graves, especialmente as privativas de liberdade, por mais que se


destinem a encarcerar o condenado, não deixam, em verdade, de refletir-se em toda a
sua família. Mães, filhos, irmãos e amigos do condenado sofrem, psíquica e fisicamente,
as conseqüências da prisão do apenado. Infelizmente, apesar da vontade do preceito
constitucional, a pena de prisão sempre alcançará outras pessoas, dada a violência de
sua execução, o sofrimento impingido ao agente do crime e a desumanidade e
Teoria da Pena - 17

crueldade com que é executada.

As penas devem ser iguais para todos, pobres e ricos, pretos e brancos, altos e
baixos, homens e mulheres, fortes e fracos, poderosos e humildes, exploradores e
explorados. A realidade não é esta. O crime é um fenônemo cujas causas também se
assentam nas desigualdades econômico-sociais. O agente do crime é, em regra, um
desajustado social, fruto das estruturas sociais perversas, negro, pobre, analfabeto,
nascido na favela, no morro, na periferia das cidades, muitas vezes de pai desconhecido
ou de mãe ignorante.

A pena deve ser legal. Há de resultar da cominação estabelecida previamente na


lei. Do princípio da legalidade (art. 5º, XXXIX, CF) decorre que não haverá pena sem
que haja, anteriormente, lei em sentido estrito, ordinária, federal, emanada do
Congresso Nacional, cominando-a.

Além disso, deve destinar-se a educar, corrigir, socializar, ou recuperar o


condenado. Inadmissível a privação da liberdade do homem que não tenha como fim
sua educação ou correção. Impossível compreender a pena sem a finalidade
terapêutica, correcional, educacional, socializante.

O agente do crime, por ter violado a norma penal incriminadora, demonstrou


não respeitar o valor erigido pela sociedade à categoria de bem jurídico penalmente
protegido – bem jurídico muito importante. Se não soube respeitá-lo, é porque não
estava apto a conviver em sociedade, necessitando, por isso, receber as informações e a
formação necessárias para conhecer a importância dos valores éticos cultivados pela
sociedade, e saber comportar-se em seu dia-a-dia de modo a não atingi-los.

Se essa finalidade é indispensável, discutível é a possibilidade real de realizar-se


esse desiderato por meio da privação da liberdade.

Não será possível jamais educar alguém, nem conscientizar quem quer que seja
da necessidade e importância de respeitar os bens jurídicos alheios, por meio da pena
de prisão. Em outras palavras, é impossível ensinar alguém a viver em liberdade,
privando-o dela.

Por isso, defende-se o fim de toda e qualquer espécie de pena privativa de


liberdade. A solução é a adoção de outras penas – restritivas de liberdade e de outros
direitos, de prestação de serviços à comunidade, perda de bens, para crimes
econômicos, organizados etc. – para a construção de um direito penal democrático e de
intervenção mínima.
18 – Direito Penal – Ney Moura Teles

13.4 CLASSIFICAÇÃO

A doutrina apresenta várias classificações das penas.

Conforme sejam seus fins, as penas seriam de intimidação, destinadas aos


ainda não corrompidos ou intimidáveis; de correção para os corrigíveis; e de
eliminação ou de segurança, que seriam aplicadas aos incorrigíveis.

Quanto a suas conseqüências, as penas seriam eliminatórias, consistentes na


eliminação do delinqüente, como a pena de morte e as perpétuas, semi-eliminatórias,
que os manteriam temporariamente eliminados, e corretivas, nas quais se buscaria a
recuperação do condenado, restringindo-lhe direitos.

Com relação ao bem jurídico que atingem, as penas são: capitais, as que
eliminam a vida; corporais ou aflitivas, as que ofendem a integridade física do condenado;
infamantes, as que atingem a honra; privativas ou restritivas de liberdade pessoal, as
que agridem a liberdade de locomoção ou de domicílio; restritivas de direitos, as que
importam na perda de função política ou na inabilitação para o exercício de cargo; e
pecuniárias, as que atacam o patrimônio do agente do crime.

Penas corporais, aflitivas, infamantes, eliminatórias, de eliminação, enfim, penas


que agridem a vida, a integridade física ou a honra das pessoas são, à toda evidência,
inaceitáveis porque se voltam contra o princípio da humanidade e o da dignidade da
pessoa humana. Integram uma etapa retrógrada da história do homem e devem
permanecer apenas nos registros, como realidade superada e indesejada.

Felizmente, já se percorre o caminho no sentido da abolição da própria pena


privativa de liberdade, que a experiência demonstra estar falida.

13.5 SISTEMAS PENITENCIÁRIOS

As penas privativas de liberdade, hoje questionadas, significaram, quando


implantadas, um avanço em face da pena de morte e das penas corporais, executadas
antigamente, talvez mais do que hoje, com crueldade inominável. A pena de prisão, diz
Roberto Lyra,

“surgiu como reação contra a ignomínia, a crueldade e a estupidez dos


castigos, para humanizar e racionalizar o tratamento do criminoso. Ninguém
se deu, porém, ao trabalho de investigar se, na realidade, era mais humana”12.

12 LYRA, Roberto. Op. cit. p. 87.


Teoria da Pena - 19

Originalmente, a prisão era utilizada para manter o acusado custodiado


enquanto se dava seu julgamento, e o condenado durante a espera da execução da pena
aplicada.

A influência da Igreja Católica no sentido da humanização das penas, com a


proposição de penas destinadas à correção do delinqüente, vai permitir o aparecimento
dos primeiros cárceres organizados, que mais tarde serão conhecidos como sistemas
penitenciários. A expressão, como se vê, tem sua origem na idéia católica de penitência,
para a expiação do pecado.

Ao longo dos tempos, a humanidade racional conheceu três sistemas


penitenciários clássicos. O Sistema de Filadélfia, o de Auburn e o Irlandês ou
Progressivo.

13.5.1 Sistema de Filadélfia

Também conhecido por Sistema de Pensilvânia, esse sistema surge em 1775, na


cidade de Filadélfia, nos Estados Unidos da América, e consistia no isolamento
completo do condenado, durante o dia e durante a noite. Por isso, era chamado de
solitary system.

Para sua execução, criou-se a célula individual, da qual o condenado não saía,
com o objetivo de que pela solidão pudesse meditar e alcançar o arrependimento, por
meio da leitura unicamente da Bíblia e de outros livros religiosos. Eram proibidas
quaisquer visitas e qualquer contato do condenado com quem quer que seja, inclusive
outros presos, até mesmo por correspondência, só podendo avistar-se com o religioso.

Não muito se passou e a rigidez do sistema foi sendo abrandada, permitindo-se


pequenas saídas da célula e o contato com funcionários do presídio e membros de
entidades humanistas. Ao mesmo tempo, as células ganham aeração e insolação, e mais
tarde permite-se o trabalho do preso.

Este sistema, apesar de ter sido adotado em várias partes do mundo, é de todo
evidente, não podia tornar-se um modelo, dada sua rigidez e, como não poderia deixar
de ser, por não ter apresentado os frutos desejados por seus idealizadores: a redenção
do delinqüente.

13.5.2 Sistema de Auburn


20 – Direito Penal – Ney Moura Teles

Em 1816, no Estado de New York, foi construída a Penitenciária de Auburn, na


qual se introduziu o chamado congregate system, que consistia em manter o
condenado isolado durante a noite, em célula individual e durante o dia trabalhando
com os demais presos, proibida a comunicação, sob pena de castigos corporais.
Qualquer comunicação externa era proibida. Esse sistema, na verdade, é evolução do
sistema de Filadélfia.

13.5.3 Sistema irlandês ou progressivo

Tempos depois, em 1857, Walter Crofton concebe um sistema de cumprimento


da pena privativa de liberdade baseado na progressão, conciliando regras dos sistemas
anteriores com períodos de abrandamento. No primeiro período, o condenado seria
mantido completamente isolado. Depois, seria mantido o isolamento noturno, com
trabalho diurno e manutenção do silêncio. Em seguida, o condenado seria transferido
para uma penitenciária industrial ou agrícola, onde trabalharia durante o dia, sem
obrigação de silêncio e, por último, ganharia o livramento condicional.

O sistema constituiu significativo avanço e foi adotado por todos os povos


civilizados do mundo, com adaptações e particularizações as mais diversas, todas elas
no sentido do abrandamento da execução da pena.

13.5.4 Sistema brasileiro

A Constituição do Império, de 1824, no art. 179, XXI, estabelecia:

“As cadeias serão seguras, limpas e bem arejadas, havendo diversas casas para
separação dos réus, conforme suas circunstâncias e natureza de seus crimes.”

Como se observa, é da tradição brasileira o avanço na legislação, inclusive


constitucional, e o atraso na prática, pois o Poder Executivo sempre se esquece de
cumprir o que a lei manda.

Roberto Lyra anota:

“Mal se libertou do espírito medieval das Ordenações, o Brasil antecipou-


se na revelação de sua sensibilidade aos então recentes clamores da
consciência humana contra a ignomínia dos cárceres.”13

Nosso legislador do império não fez opção entre o sistema de Filadélfia e o de

13 Op. cit. p. 105.


Teoria da Pena - 21

Auburn, tendo sido experimentadas as duas opções.

O legislador da República vai abraçar o primeiro sistema, com características do


segundo e com a progressão do sistema irlandês, adotando como base a prisão celular,
que vai ser aplicada à grande maioria dos crimes, e destinando as penitenciárias
agrícolas para o cumprimento das penas de prisão com trabalhos e para a transferência
dos condenados a outras penas de prisão que tivessem cumprido metade da pena.

Na verdade é um dos sistemas progressivos sui generis, como tantos outros de


vários países. Por esse tempo, estabelece-se o livramento condicional, a princípio
quando não restasse mais de dois anos de pena para serem cumpridos.

“O sistema do primeiro legislador republicano era, portanto, aceitável,


prevendo uma configuração autônoma do sistema progressivo, na qual se
afastou de seu modelo, o Código italiano de 89. Mas, não dispúnhamos de
estabelecimentos, quer para executar a segregação celular no primeiro
período (só o Estado de São Paulo veio a dispor de penitenciária aparelhada),
quer para efetivar o terceiro período (penitenciárias agrícolas), mesmo em São
Paulo.”14

Como se vê, outra vez, o legislador brasileiro apresentou soluções avançadas,


condizentes com os melhores interesses da sociedade, mas, desde sempre, o Poder
Executivo nunca se preocupou seriamente com a questão penitenciária, tradição até
hoje mantida no país.

A história de nossos sistemas penitenciários é essa, avançada na legislação,


atrasada na prática. Cresce o país, cresce a população, desenvolvem-se as cidades, a
economia galga estágios de desenvolvimento, as péssimas condições de vida da maior
parte do povo se agravam, aumentam a miséria e a fome, com elas a criminalidade,
constroem-se penitenciárias em quantidade e qualidade insuficientes para atender à
demanda, não restando ao legislador senão apresentar novas e modernas soluções,
especialmente diante do descaso do Poder Executivo em todos os níveis.

Atualmente, o Código Penal brasileiro adota um sistema progressivo de


cumprimento das penas privativas de liberdade que significa o que pode haver de mais
moderno e democrático em todo o mundo. Pelo nosso sistema, as penas de prisão serão
cumpridas progressivamente em três regimes, fechado, semi-aberto e aberto,
comportando ainda o livramento condicional e prevista a possibilidade de regressão de
regime mais brando a regime mais severo.

14 LYRA, Roberto. Op. cit. p. 109.


22 – Direito Penal – Ney Moura Teles

Por ele, o condenado, após cumprido um sexto da pena, merecendo, será


transferido do regime mais severo para o mais brando. Suas regras serão estudadas no
próximo capítulo.

O sistema baseia-se na necessidade de que a privação da liberdade do


condenado seja executada com a finalidade de recuperá-lo, que terá, desde o início, a
perspectiva de alcançar a liberdade e a certeza de que ela lhe será devolvida,
paulatinamente, conforme seu merecimento.

Trata-se de uma concepção moderna, democrática e sobretudo mais humana,


da pena de prisão e poderia ter ensejado melhores resultados se os governantes do país
e dos estados-membros tivessem proporcionado os pressupostos indispensáveis à sua
implementação, construindo e mantendo em boas condições os estabelecimentos
prisionais necessários.

13.6 CONCLUSÃO

A sanção penal é indispensável, pois o crime vai continuar a existir, aliás, muito
provavelmente jamais será extirpado da face da Terra. Enquanto agressão grave ao bem
jurídico muito importante, deverá ser, sempre, objeto da preocupação e da repressão do
direito. Infelizmente, a única saída é a resposta penal, vale dizer, uma sanção mais
severa, mais drástica que a simples reparação civil.

De todo evidente que não se admite, em hipótese alguma, a famigerada pena de


morte. Trata-se de proposição absurda, desumana, inaceitável. O fim da humanidade é
eliminar o crime, não o homem. Já CESARE BECCARIA repugnava-a:

“A pena de morte, pois, não se apóia em nenhum direito. É guerra que se


declara a um cidadão pelo país, que considera necessária ou útil a eliminação
desse cidadão. (...) A experiência de todos os séculos demonstra que a pena de
morte jamais deteve celerados com a firme determinação de praticar o mal.
(...) Uma pena para ser justa, precisa ter apenas o grau de rigor suficiente
para afastar os homens da senda do crime.”15

Além de incoerente com o sistema que considera crime o homicídio, a pena de


morte, onde é adotada, destina-se na prática aos integrantes das classes subalternas,
negros, imigrantes, minorias.

Felizmente, a Carta Magna proibiu, expressamente, a adoção da pena de morte,

15 Dos delitos e das penas. São Paulo: Hemus, 1983. p. 118.


Teoria da Pena - 23

bem assim das de caráter perpétuo, de banimento e de natureza cruel (art. 5º, XLVII),
impedindo o Congresso Nacional de deliberar sobre emenda constitucional que vise
incluir qualquer dessas penas no ordenamento jurídico-penal brasileiro (art. 60, § 4º,
IV, CF).

O sistema penal brasileiro não poderá, em nenhuma hipótese, adotar a pena de


morte, nem qualquer pena privativa de liberdade perpétua, muito menos penas
executadas com crueldade. Por isso, a espécie de pena mais grave permitida é a
privativa de liberdade.

A pena privativa de liberdade – que é a sanção penal por excelência –, atualmente a base de
todos os sistemas punitivos conhecidos, está inexoravelmente falida.

Como se pôde observar, a história da pena é a história de sua limitação, de sua


modificação, sempre no sentido de minorar-lhe a gravidade, os efeitos, a crueldade e os
modos de execução. A história da pena de prisão, igualmente, é a história de sua
humanização e de seu abrandamento. A história dos sistemas penitenciários, do mesmo
modo, é a história de sua humanização e será a história de sua eliminação.

Inegável que esse tempo é o do ocaso da pena de prisão. Essa falência não se
deve apenas ao descaso com que o poder público encara o problema, que, felizmente,
faz com que toda a sociedade tome consciência da realidade e possa avançar na
construção de alternativas democráticas. Mas, deve-se, principalmente, à sua própria
essência, desumana e violenta, e à impossibilidade de, com ela, alcançar qualquer
objetivo ético em relação aos condenados.

Até porque na realidade concreta da quase totalidade dos países, as penas de


prisão vêm sendo executadas com total desrespeito aos direitos mais comezinhos dos
condenados. No Brasil, a situação é gritantemente absurda. Os sentenciados são
armazenados nos presídios e nas celas das cadeias públicas como nem se tratam os
animais de estimação, nem os selvagens, em compartimentos fétidos, sem mínimas
condições de higiene.

Vive-se um momento crucial na história do direito penal em todo o mundo. É


tempo de mudar, de romper com o passado, de criar um novo sistema punitivo, em que
a sanção penal seja a um só tempo severa, justa, democrática e recuperadora do
condenado, para conferir proteção ao bem jurídico.

Se a humanidade conseguiu chegar à Lua, e agora também ao planeta Marte,


viajar pelo espaço sideral, buscando contato com outros planetas, conhecendo-os,
explorando o universo, por que não será capaz de encontrar a solução para um
problema terreno tão importante que não exige tantos recursos materiais?
24 – Direito Penal – Ney Moura Teles

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