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INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO
DIREITO PENAL

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1.1 CONCEITO DE DIREITO PENAL

1.1.1 Noções básicas

A vida em sociedade é complexa e exige de todos a obediência a um conjunto de


regras de comportamento. O homem não é absolutamente livre para fazer o que bem
quiser, pois vive sob a égide de normas de conduta, que foram criadas por ele mesmo,
por meio do Estado, que ele também instituiu. O conjunto das normas estabelecidas em
uma sociedade é o direito positivo.

As normas jurídicas são comandos a serem obedecidos por todos os homens,


pois demarcam o que é, e o que não é, lícito fazer, o permitido e o proibido, o certo e o
errado.

O estabelecimento de normas de comportamento é exigência da vida em


sociedade. Desde o momento em que o homem decidiu agrupar-se, viver em
comunidade, tornou-se imprescindível a regulação dessa vida, com a criação de regras
de convivência, sem as quais não teria sido possível surgirem e desenvolverem-se
tribos, Estados, nações, enfim, o mundo e a realidade de hoje.

Quem vive o agitado dia-a-dia contemporâneo nem se preocupa em verificar o


quanto essas normas estão presentes em todos os momentos da vida de cada
indivíduo.

A primeira coisa que o homem faz ao acordar, diariamente, é, quase sempre,


acender as luzes de seu quarto e, ao fazê-lo, muitas vezes, ele nem se dá conta de que
está consumindo uma mercadoria adquirida mediante o pagamento de um preço. O
simples gesto de apertar um interruptor está sujeito ao Direito.

Quem adquire um bem deve pagar o preço. Paga-se em dinheiro ou por meio de
um documento denominado cheque. A vista ou a prazo. Quem contrata está obrigado e
adquire direitos.
2 - Direito Penal – Ney Moura Teles

Nenhum momento da vida está distanciado do direito. As relações e os vínculos


entre as pessoas também têm seus reflexos no direito: casamento, filhos, separação e
divórcio, guarda, visitas, pensão alimentícia, proteção, vigilância, bens, partilha etc.

As normas jurídicas objetivam à proteção dos bens considerados importantes,


pois que, tendo valor, são, comumente, objeto de ataques; por isso, precisam ser
protegidos.

A sociedade que preserva a família elabora normas que dizem respeito ao


surgimento e à proteção dessa instituição, colocando-a sob o amparo do direito,
mediante diversos comandos – ordens a que todos os indivíduos devem obedecer.
Nessa mesma linha, há normas que protegem o casamento e a união estável entre
homem e mulher.

Igualmente, a propriedade privada sobre os meios de produção encontra um


número grande de regras jurídicas que a protegem, regulando sua aquisição,
transmissão, conservação etc.

Todos os valores importantes para a sociedade estão sob a tutela do direito, por
meio das várias regras jurídicas. Vida, liberdade, integridade física, trabalho, lazer,
meio ambiente, família, propriedade, patrimônio, Estado etc. são valores sociais
amparados pelo Direito.

Algumas atitudes humanas voltam-se contra esses bens jurídicos, violando a


norma jurídica. O comportamento humano que contraria a norma jurídica constitui o
ilícito jurídico, o proibido, o que não deve ser.

À violação da norma corresponde a sanção, que é a conseqüência jurídica


imposta coativamente pelo Estado ao infrator de sua ordem, visando ao
restabelecimento do equilíbrio social.

Violando o marido um dever do matrimônio, nasce, para a mulher, o direito à


separação conjugal, podendo ela procurar o Estado, por meio do Poder Judiciário, que
decretará a separação do casal, estabelecendo obrigações daí decorrentes, para os dois,
entre si e com relação aos filhos por eles porventura havidos.

Se o adquirente não pagar o preço da mercadoria que comprou e recebeu, o


vendedor que tiver extraído a nota fiscal poderá emitir uma duplicata e pedir ao juiz
que mande executar a dívida. O devedor será chamado para, em 3 dias, pagar o valor do
débito, sob pena de lhe serem penhorados – seguros, e até apreendidos, se necessário –
tantos bens quantos bastem para satisfazer ao valor devido.

Se alguém, por descuido, destrói um livro, um caderno, uma peça de vestuário,


Introdução ao Estudo do Direito Penal - 3

qualquer outro bem, de outra pessoa, será compelido, pelo Estado – a pedido da pessoa
prejudicada –, a pagar o valor da coisa destruída. O Direito está presente na vida dos
indivíduos exatamente para proteger seus interesses contra as várias formas de
agressões praticadas pelas pessoas.

De modo geral, a sanção jurídica consiste numa condenação do infrator ao


pagamento de uma indenização, uma prestação pecuniária que, na maioria das vezes,
repara o dano sofrido. Noutras, condena-se alguém a fazer ou a não fazer alguma coisa,
a dar ou a entregar algo.

Os bens jurídicos têm valores diferentes – uns mais, outros menos importantes
– do mesmo modo que existem agressões mais e outras menos graves.

Alguns comportamentos humanos voltam-se contra determinados bens de


modo muito grave, causando-lhes lesões muito grandes. Por exemplo, o gesto daquele
que destrói a vida de outro homem. Também a atitude do indivíduo que, com violência,
se apodera de um objeto que pertence a outro, ou a ação do homem que obriga a
mulher ao ato sexual.

Se a conseqüência jurídica para esses comportamentos fosse simplesmente a


reparação do dano causado, a vida, no primeiro exemplo, e a liberdade sexual, no
último – bens importantíssimos –, não estariam adequadamente protegidos pelo
Direito. Pessoas com recursos financeiros suficientes para indenizar o prejuízo sentir-
se-iam livres para matar e obter relações sexuais dissentidas o tempo todo, na certeza
de que, pagando um preço, jamais seriam incomodadas por alguém.

Estes fatos mais graves – comportamentos humanos que se voltam gravemente


contra os valores sociais mais importantes – são chamados de crimes ou delitos. E para
proteger esses bens mais importantes dos ataques mais graves, dos crimes, o Direito
estabelece uma conseqüência jurídica, uma sanção também mais severa: a sanção penal
ou pena criminal.

Sua modalidade mais grave, para os crimes mais graves, em certos países,
consiste na própria morte do infrator da norma e, no Brasil, na privação de sua
liberdade por um tempo determinado, com a segregação do infrator da norma num
estabelecimento estatal destinado ao cumprimento das penas, denominado
penitenciária.

1.1.2 Definições

Ao conjunto das normas jurídicas que tratam dos crimes e das sanções penais
4 - Direito Penal – Ney Moura Teles

dá-se o nome de Direito Penal.

O Direito Penal era, antigamente, denominado Direito Criminal, expressão


talvez mais adequada, por mais ampla e que ainda hoje se encontra incrustada em
muitas das instituições atinentes: advogado criminalista, vara criminal, câmara
criminal etc.

VON LISZT definia o Direito Penal como “o conjunto das prescrições emanadas
do Estado, que ligam ao crime, como fato, a pena como conseqüência”.1 E MEZGER o
entende como “o conjunto das normas jurídicas que regulam o exercício do poder
punitivo do Estado, associando ao delito, como pressuposto, a pena como
conseqüência”.2

Outras definições muito próximas: “conjunto de normas jurídicas que o Estado


estabelece para combater o crime, através das penas e medidas de segurança” (BASILEU
GARCIA)3, “conjunto de normas jurídicas que regulam o poder punitivo do Estado,
tendo em vista os fatos de natureza criminal e as medidas aplicáveis a quem os pratica”
(MAGALHÃES NORONHA)4, “conjunto das disposições emanadas do Estado que
qualificam os crimes e determinam-lhes as respectivas penas” (GALDINO SIQUEIRA)5.

Outros doutrinadores entendem o Direito Penal como o

“conjunto de normas e disposições jurídicas que regulam o exercício do poder


sancionador e preventivo do Estado, estabelecendo o conceito de crime como
pressuposto da ação estatal, assim como a responsabilidade do sujeito ativo, e
associando à infração da norma uma pena finalista ou uma medida de
segurança” (JIMÉNEZ DE ASUA)6,

ou “aquela parte do ordenamento jurídico que estabelece e define o fato-crime, dispõe


sobre quem deva por ele responder e, por fim, fixa as penas e medidas de segurança a
serem aplicadas” (FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO).7

1 Tratado de direito penal. Madri: Reus, 1927.


2 Tratado de derecho penal. Madri: Revista de Derecho Privado, 1955. p. 3.

3 Instituições de direito penal. 5. ed. São Paulo: Max Limonad, 1980. p. 9.


4 Direito penal. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 1954. v. 1, p. 11.
5 Tratado de direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: J. Konfino, 1950. v. 1, p. 17.
6 Tratado de derecho penal. Buenos Aires: Losada, 1950. v. 1, p. 27.

7 Princípios básicos de direito penal. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 1.


Introdução ao Estudo do Direito Penal - 5

Para outros, é “o complexo de normas positivas que disciplinam a matéria ‘dos


crimes e das penas’” (BETTIOL)8, ou “o conjunto de normas jurídicas mediante as quais
o Estado proíbe determinadas ações ou omissões, sob ameaça de característica sanção
penal” (HELENO CLÁUDIO FRAGOSO).9

Nesse sentido, o Direito Penal é, efetivamente, a parte do ordenamento jurídico


que trata do crime e das penas e das medidas de segurança, mas, uma nota da mais alta
importância que exsurge do ordenamento jurídico penal fica esquecida em todas as
definições transcritas: a liberdade do indivíduo que pode ser coarctada pela incidência
das normas penais, mas que, igualmente, é protegida por elas, à medida que só pode
ser suprimida nos estritos limites da lei.

É o Direito Penal que define o crime, mas também é ele que diz quando um fato
aparentemente criminoso é, entretanto, permitido, ou quando, mesmo proibido, não
ensejará a aplicação da sanção penal.

Melhor, por ser mais completa, a definição de JOSÉ FREDERICO MARQUES, que
DAMÁSIO E. DE JESUS abraça: Direito Penal

“é o conjunto de normas que ligam ao crime, como fato, a pena como


conseqüência, e disciplinam também as relações jurídicas daí derivadas, para
estabelecer a aplicabilidade das medidas de segurança e a tutela do direito de
liberdade em face do poder de punir do Estado”.10

1.1.3 Ciência penal

A expressão DIREITO PENAL é também sinônima de CIÊNCIA PENAL. Esta, no


dizer de FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO, é o

“conjunto de conhecimentos e princípios, ordenados metodicamente, de modo


a tornar possível a elucidação do conteúdo das normas penais e dos institutos
em que elas se agrupam, com vistas à sua aplicação aos casos ocorrentes,
segundo critérios rigorosos de justiça”.11

Ciência prática, cultural, não visa ao estudo da realidade social; todavia, segundo

8 Direito penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977. v. 1, p. 62.

9 Lições de direito penal: parte geral. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991. p. 3.

10 Direito penal: parte geral. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 5.

11 Op. cit. p. 2.
6 - Direito Penal – Ney Moura Teles

ensina HELENO CLÁUDIO FRAGOSO, ao

“jurista moderno é essencial uma postura crítica perante o sistema vigente,


para abrir passo às reformas que uma política criminal progressiva
recomenda, com base na pesquisa criminológica”.12

Nos dias de hoje, com enorme e preocupante aumento da criminalidade violenta


e organizada, assiste-se à tentativa de transformar o Direito Penal no salvador da
pátria, como se ele fosse capaz de eliminar o crime e transformar os homens.

O legislador brasileiro, ultimamente, tem acenado com a exasperação de penas,


criação de novas figuras de crime, com a restrição de direitos e garantias processuais,
como se isso resolvesse alguma coisa.

Em 1990, entrou em vigor a Lei nº 8.072 – que definiu os crimes hediondos –,


elaborada dentro desse espírito e, passados quase vinte anos, nenhum fruto se colheu:
simplesmente aumentou a quantidade dos crimes definidos como hediondos.

Em 1995, surgiu a Lei nº 9.034, de 3 de maio, no mesmo sentido, como se os


crimes resultantes de atividades de organizações criminosas pudessem ser coibidos
com mais leis ou mais engenhosas medidas.

Cabe ao estudioso levantar-se contra essas investidas autoritárias que apontam


apenas para um Direito Penal extremamente rigoroso, que busca mostrar-se como um
símbolo, afastando-se dos princípios democráticos.

A ciência penal tem caráter dogmático, posto que seu objeto é o direito positivo;
todavia, não pode o cientista ignorar a dinâmica e os interesses da sociedade, que, em
última análise, é, a um só tempo, fonte e destinatária do Direito Penal. Sociedade
brasileira que – após longo período autoritário – fez clara e indiscutível opção por um
regime democrático, no qual as liberdades públicas e individuais foram consagradas
de modo cristalino e brilhante na Carta Magna de 1988, pilar de toda a ordem jurídica
em vigor e da sociedade que a gente brasileira está construindo.

Nesse sentido, a construção do direito positivo há de se moldar e nortear – em


todos os seus momentos – pela ordem constitucional vigente, de modo a não restar a
mínima dúvida ou incongruência, para que, no momento da interpretação da norma
penal, não se venha a olvidar dever estar ela em perfeita consonância com a lei maior, a
Constituição.

O operador do Direito, especialmente o aplicador da norma, não pode jamais –

12 Op. cit. p. 15.


Introdução ao Estudo do Direito Penal - 7

diante de leis que se voltam contra os princípios constitucionais, elaboradas ao sabor de


exigências espúrias de manipuladores da opinião pública – olvidar que a lei deve ser
interpretada em consonância com a Constituição Federal e não esta ser compreendida
em harmonia com aquela.

O Direito não está pronto e acabado, e tampouco é imutável. Decisões hoje


adotadas pela Suprema Corte, se consideradas injustas, inconstitucionais, ou contrárias
aos princípios maiores, da humanidade e do interesse público, haverão de ser
combatidas, até que sejam modificadas. É meta possível, que deve ser perseguida
sempre, pois o pensamento dos homens muda com o tempo e pela luta dos que não
desanimam, e a composição da Corte Suprema também se altera ao longo dos anos.

A quem faz o Direito – juízes, advogados e promotores de justiça, especialmente


– cabe estudar e pugnar pelo estabelecimento de um Direito Penal verdadeiramente
democrático. Sem ele, não haverá espaço para a vida livre e digna.

1.1.4 Características do direito penal

1.1.4.1 Positivo

O Direito Penal é positivo: é aquele que o Estado promulgou. Positivo quer dizer
posto, colocado, mostrado à sociedade, publicado, dado a conhecer a todos os
indivíduos, em vigor, por meio de um conjunto de documentos emanados do Poder
Legislativo, as leis, que são obrigatórias.

Dizer que é positivo, contudo, não é o mesmo que afirmar que fora do direito
legislado não existiria Direito Penal. A afirmação de sua positividade, como ensina
BETTIOL, só tem sentido desde que não se queira fazer dela

“um elemento essencial da noção do direito, dada a existência de um direito


natural que nenhuma positividade jamais pôde sufocar, e desde que não se negue
a utilidade de um enquadramento das normas penais na perspectiva filosófico-
cultural do período histórico no qual o jurista é chamado a atuar”.13

A positividade do direito não pode impedir a incidência de princípios superiores,


como o da humanidade e o da dignidade do homem, e tampouco de causas que excluam a
proibição ou que desculpem certos fatos definidos como crime, os quais, muito embora
não escritos, devem imperar no momento da aplicação do Direito.

13 Op. cit. p. 105.


8 - Direito Penal – Ney Moura Teles

Além disso, não pode fazer impedir a crítica do ordenamento penal, destinada
não apenas à obtenção das modificações que se fizerem necessárias, mas,
principalmente, à sua aplicação mais justa, que atenda aos interesses da sociedade, que
o constrói.

Essa positividade submete-se à interpretação, que haverá de se harmonizar com


as outras ciências afins, a criminologia, a política criminal, o direito processual penal,
inclusive o das execuções penais, e não pode impedir o conhecimento e a crítica das
incongruências, injustiças, violências, deficiências e necessidades do Direito Penal, para
que se encontrem caminhos que o tornem mais harmônico com os interesses dos
indivíduos.

1.1.4.2 Público

O Direito Penal tem natureza pública, uma vez que a proteção dos bens jurídicos
colocados sob sua tutela interessa a toda a sociedade. Ainda que sejam, muitas vezes,
individuais, dada sua importância, a natureza e a gravidade dos ataques proibidos sob a
ameaça da pena criminal, a proteção desses bens é indispensável à manutenção e ao
desenvolvimento da vida social.

Por essa razão, e para retirar do indivíduo a possibilidade de vingar-se do


agressor de seu bem jurídico, o direito de punir o infrator da norma penal é privativo
do Estado, que irá, quando necessário, em nome da coletividade, aplicar a sanção
penal.

A relação jurídica que nasce com a prática do crime é estabelecida entre o


infrator da norma penal e o Estado, e, mesmo nos casos em que a lei reserva ao
ofendido a faculdade de iniciar a ação penal, o direito de punir continua nas mãos
exclusivas do Estado.

A Lei nº 9.099/95 – que criou os juizados especiais criminais, permitindo a


transação (a composição, o acordo) e a suspensão condicional do processo penal – não
retirou do Estado a titularidade do ius puniendi, o direito de punir o infrator da norma
penal.

Autorizando a composição, com a importante preocupação com a reparação do


dano sofrido pela vítima, e evitando a aplicação de penas privativas de liberdade, nem
por isso o Estado perdeu o direito de punir o agente do crime.

“Nem mesmo quando se sujeita a ação de determinados delitos à


iniciativa discricionária das partes, ou quando se criam institutos, como o
Introdução ao Estudo do Direito Penal - 9

perdão ou a renúncia, nem assim o Estado abre mão de sua competência,


posto que foi ele, pela lei penal, que delegou, parcial e revogavelmente, aos
particulares, apenas um poder iniciador ou extintor da ação nos casos, nas
formas e com as conseqüências que estabelecer.”14

Em verdade, apenas avança a sociedade na construção de um novo Direito


Penal, primacialmente voltado para a proteção do bem jurídico e distante de objetivos
como punição, vingança ou retribuição. Mas, para que ele não se afaste de seus
objetivos democráticos, deve o direito de punir permanecer, sempre, nas mãos
exclusivas do Estado.

1.1.4.3 Constitutivo, Original e Autônomo

Discute-se muito sobre ser o Direito Penal meramente sancionador ou,


diferentemente, constitutivo, original e autônomo.

O Direito Penal seria um complemento dos demais ramos do direito, surgindo


como o sancionador, diante das situações em que os outros ramos não forem eficazes,
ou seria um ramo que, por si só, constituiria um direito original e autônomo?

Para os adeptos da primeira idéia, a norma penal estabelece uma sanção mais
severa para a violação de preceitos contidos, primariamente, noutros ramos do
ordenamento jurídico. Assim, diversas normas jurídicas protegem a vida humana,
cabendo, porém, ao Direito Penal protegê-la de sua destruição por ato humano. A
norma penal seria secundária, acessória, em relação a outras normas do direito civil,
entre elas, em geral, a do art. 186 do novo Código Civil, que considera ilícito o ato
daquele que tiver violado direito e causado dano, inclusive moral, e a do art. 927 da Lei
Civil, que obriga à reparação do dano.

MIRABETE defende que, em princípio, o ilícito penal não tem autonomia, não se
podendo, portanto, falar em caráter constitutivo do Direito Penal, já que “a norma
penal é sancionadora, reforçando a tutela jurídica dos bens regidos pela legislação
extrapenal”. 15

Apesar disso, o Direito Penal protege outros bens não tutelados por outros
ramos do direito e, de conseguinte, “o mais correto é afirmar, como Zaffaroni, que ‘o

14 LOPES, Maurício Antonio Ribeiro; FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Comentários à lei dos juizados

especiais cíveis e criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 256.

15 Manual de direito penal. 6. ed. São Paulo: Atlas, 1991. p. 24.


10 - Direito Penal – Ney Moura Teles

Direito Penal é predominantemente sancionador e excepcionalmente constitutivo’”. 16

Na verdade, ainda que muitas vezes o preceito civil e o preceito penal cuidem
dos mesmos bens jurídicos, não se pode olvidar que o primeiro visa à proteção de um
interesse privado, ao passo que o segundo objetiva à tutela do interesse social. “Ainda
quando pareça que um interesse privado é amparado pela norma penal, isso ocorre
(...) apenas por via indireta, pois é sempre e apenas um interesse estatal a ser
garantido.” 17

A sanção penal não é acessória, nem secundária, mas estabelecida não só pela
verificação da insuficiência ou ineficácia das outras sanções – civis, administrativas,
tributárias, previdenciárias, trabalhistas etc. –, o que não quer dizer venha incidir a
posteriori, em segundo plano, num outro momento, ou alternativamente, mas,
principalmente, em razão da importância do bem jurídico e da gravidade do ataque a
ele dirigido, que se quer evitar. Até porque a definição de crime independe da prévia
existência de um ilícito civil, tributário ou administrativo, que nem precisa ser
construído, quando se verificar previamente a sua ineficácia.

A construção das figuras de crimes atende, precipuamente, ao interesse coletivo


de preservar de determinados ataques – os mais graves – os bens jurídicos mais
importantes, mediante a imposição de uma sanção mais severa.

Assim, não só em razão da natureza da sanção, mas, principalmente, do


conteúdo de seus preceitos, o Direito Penal não é meramente sancionador, mas
autônomo, original e constitutivo.

1.1.4.4 Valorativo

O Direito Penal tem caráter valorativo, porquanto proíbe os comportamentos


humanos que se voltam contra os mais importantes valores ético-sociais, selecionados
pela sociedade, dos ataques mais graves. Ao fazê-lo, pretende, é certo, que os homens se
conduzam em consonância com as exigências da vida social. Além do fundo ético que o
inspira, o Direito Penal revela a indispensável necessidade de aquilatar, pesar e medir
todos os valores da coletividade, de modo a, selecionando-os, escolher apenas os mais
importantes e buscar colocá-los a salvo dos ataques mais graves, visando impedir sejam
objeto dessa modalidade de agressão, venha de onde vier.

16 Idem. p. 25.
17 BETTIOL. Op. cit. p. 112.
Introdução ao Estudo do Direito Penal - 11

De qualquer modo, todos os comportamentos humanos são valorados pelo


Direito Penal, sejam os proibidos – aos quais corresponderá a sanção penal, como
resposta do Estado –, sejam os demais, que, por serem permitidos, são, igualmente,
objeto da valoração. Como diz Bettiol, “apenas não é possível a valoração jurídica
quando falte a ação humana”.18

1.1.5 Direito penal objetivo e direito penal subjetivo

Direito Penal objetivo é o conjunto das normas jurídicas que definem os crimes,
cominam as penas, bem assim as demais normas de natureza penal, que tratam dos
institutos e das questões penais. São as normas contidas no Código Penal e nas demais
leis penais, ou, no dizer de DAMÁSIO E. DE JESUS, “é o próprio ordenamento jurídico-
penal, correspondendo à sua definição”. 19

Direito Penal subjetivo é o ius puniendi, o direito de punir o infrator da norma


penal, aquele que vier a ser condenado. É o direito estatal de punir. Seu único titular é o
Estado, ainda quando a lei exigir a intervenção do ofendido como condição para a
formação do processo destinado a apurar a verdade e conferir ao Estado o título
indispensável para a execução da pena.

1.1.6 Direito penal comum e direito penal especial

Para DAMÁSIO E. DE JESUS, é comum o Direito Penal que se aplica a todos os


cidadãos, e especial aquele que se aplica a uma classe deles, pois o critério
diferenciador entre o direito comum e o especial “está no órgão encarregado de aplicar
o direito objetivo”.20 Assim, o Código Penal Militar é especial; todavia, o Direito Penal
Eleitoral não, pois a quase totalidade da justiça eleitoral é exercida por juízes da justiça
comum.

Já MIRABETE, lembrando que tal distinção não encontra apoio na legislação,


afirma que

“pode-se falar em legislação penal comum em relação ao Código Penal, e em


legislação penal especial como sendo as normas penais que não se encontram

18 Op. cit. p. 118.


19 Op. cit. p. 7.

20 Op. cit. p. 8.
12 - Direito Penal – Ney Moura Teles

no referido Estatuto”.21

O primeiro critério guarda relação com a especialidade do órgão do judiciário


aplicador do Direito, que, de seu lado, existe exatamente para decidir questões
específicas das relações, também especiais, reguladas por um ramo específico do
Direito.

Assim, o Direito Penal e a justiça militar, bem como o Direito Penal eleitoral e a Justiça
Eleitoral. A Justiça Eleitoral não se realiza pela justiça comum, apenas,
circunstancialmente, a maioria dos juízes eleitorais são, simultaneamente, integrantes
da justiça comum, por uma questão de economia e praticidade. Indiscutível sua
especialização, que decorre da autonomia do direito eleitoral, da natureza dos crimes
por ele definidos, de seus sujeitos, do bem jurídico tutelado e, ainda, das normas do
processo eleitoral.

O segundo critério tem como elemento diversificador pura e simplesmente estar


o direito objetivo contido no Código Penal, ou fora dele, e nada mais. Dessa forma,
pensamos, não há nenhum elemento especializante, até porque não seria desarrazoado
dizer, ao contrário, que comum é o direito que não está no Código e especial, porque
codificado, o que nele se contém.

1.1.7 Direito penal e direito processual penal

Direito Penal, simplesmente, ou Direito Penal material ou substantivo, é o


conjunto das normas que definem os crimes, cominam as penas e estabelecem os
princípios e normas gerais de Direito Penal. O Código Penal, a Lei das Contravenções
Penais e as demais leis tratam dos crimes e das penas, e das relações daí derivadas.

Direito Processual Penal é o conjunto das normas de aplicação do Direito Penal.


Conquanto seja disciplina autônoma, não se pode aceitar a antiga denominação de
Direito Penal adjetivo.

1.2 O BEM JURÍDICO E O FIM DO DIREITO PENAL

Para a própria existência, a conservação e o desenvolvimento de toda e qualquer


sociedade, é indispensável a proteção de seus pilares, suas bases, as coisas que valem,
que são consideradas interessantes, que são pretendidas, desejadas, almejadas, sonhadas,
enfim, que têm importância para os indivíduos.

21Op. cit. p. 26.


Introdução ao Estudo do Direito Penal - 13

As coisas importantes, materiais ou espirituais, podem ser chamadas de valores


ou de bens, porque valem. E, exatamente porque são importantes e têm valor, podem
ser atacadas e, por isso, devem ser protegidas.

Entre os vários bens que existem na vida, um número grande deles é


selecionado e colocado sob a proteção do direito.

São eles os chamados bens jurídicos, na definição de ASSIS TOLEDO,

“valores ético-sociais, que o direito seleciona, com o objetivo de assegurar a


paz social, e coloca sob a sua proteção para que não sejam expostos a perigo
de ataque ou a lesões efetivas”.22

São bens jurídicos a vida, a liberdade, a propriedade, o casamento, a família, a


honra, a saúde, enfim, todos os valores importantes para a sociedade.

Entre os bens jurídicos, alguns, os mais importantes, são colocados sob a


proteção do Direito Penal, que seleciona algumas formas de ataques ou de perigo de
lesões – as mais graves –, proibindo-as sob a ameaça da pena criminal.

Definindo o crime e impondo, como conseqüência, a pena, diz-se comumente que


a tarefa do Direito Penal é a luta contra o crime, como se fosse esse seu objetivo.

Enganam-se os que assim pensam. O crime não pode ser combatido


eficazmente pelo Direito Penal, que, aliás, se volta para as conseqüências e não para
suas causas.

Qualquer fenômeno social indesejável há de ser combatido por meio de ações


sociais que ataquem suas causas, e não com aquelas que apenas se voltem contra seus
efeitos. É lição de vida elementar, velha, a de que não se cura a doença com
medicamentos que alcançam apenas a dor, ou que façam tão-somente ceder a febre,
sem que se combata a causa da moléstia.

Querer combater a criminalidade com o Direito Penal é querer eliminar a infecção


com analgésico. O crime há de ser combatido com educação, saúde, habitação, trabalho
para todos, lazer, transportes, enfim, com condições de vida digna para todos os
cidadãos. É, portanto, tarefa para toda a sociedade, para o Estado, para os organismos
vivos da sociedade civil, e não para o Direito Penal.

Além disso, não é o Direito Penal instrumento para a transformação dos homens
em seres perfeitos.

22 Op. cit. p. 16.


14 - Direito Penal – Ney Moura Teles

“A tarefa imediata do Direito Penal é, portanto, de natureza


eminentemente jurídica e, como tal, resume-se à proteção de bens jurídicos.
Nisso, aliás, está empenhado todo o ordenamento jurídico. E aqui
entremostra-se o caráter subsidiário do ordenamento penal: onde a proteção
de outros ramos do direito possa estar ausente, falhar ou revelar-se
insuficiente, se a lesão ou exposição a perigo do bem jurídico tutelado
apresentar certa gravidade, até aí deve estender-se o manto da proteção
penal, como ultima ratio regum. Não além disso.”23

É óbvio que, ao proteger os bens jurídicos, o Direito Penal, por extensão, empresta
uma contribuição importante para o combate à criminalidade, como conseqüência
natural de sua atuação. Mas não mais que isso.

A observação é importante, para que não se procure buscar a resolução dos


problemas da criminalidade com leis penais mais severas, com restrições à liberdade,
com a criação de novos crimes, enfim, com o endurecimento do Direito Penal.

É dever do estudioso e de seu operador demonstrar, no seio da sociedade, fora de


seu ambiente de trabalho, sempre, enfim, a limitação do Direito Penal, seu caráter
fragmentário e, principalmente, sua tarefa de proteção jurídica dos bens mais
importantes das lesões mais graves, para que sobre ele não se lancem as injustas
acusações de ineficiência e inoperância, nem que lhe continuem a chamar para tudo
salvar, ou tudo resolver.

Conformado a sua missão jurídica, o Direito Penal tem muito a oferecer à


sociedade que o constrói, desde que, evidentemente, sejam respeitados seus princípios
fundamentais, especialmente os que o informam como de intervenção mínima,
democrática e, essencialmente, tutelar.

Não pode intervir a todo momento, nem onde não seja indispensável, e só pode
atuar para proteger o bem jurídico.

1.3 SANÇÃO PENAL

A sanção do Direito Penal é de uma severidade enorme: priva, em regra, o infrator


da norma de sua liberdade, por certo tempo, mantendo-o num lugar diferente do seu,
longe de seus entes queridos, suas coisas, sua profissão, sua vida, junto de outros, que
nem conhecia, sob a égide de um conjunto de regras antes jamais vistas, numa
inominável violência contra o ser humano, pois atinge o bem mais sagrado que ele tem.

23 TOLEDO, Francisco de Assis. Op. cit. p. 14.


Introdução ao Estudo do Direito Penal - 15

A liberdade é bem de maior valor que a vida, pois vida sem liberdade não é vida.

Qual é o fundamento da pena privativa de liberdade? Com base em que pode o


Estado intervir de modo tão violento na vida do indivíduo?

São três as principais e tradicionais teorias que procuram responder a essa


questão.

1.3.1 Teoria da retribuição

Para esta teoria, a pena não tem uma finalidade, pois contém um fim em si
mesma: realizar a justiça, mediante a retribuição do malfeito pelo infrator da norma
penal, infligindo-lhe outro mal, que é o sofrimento da pena criminal, seja ela de morte,
de suplício, de privação de liberdade, perpétua ou por tempo determinado.

A pena, segundo Hegel, seria a negação da negação do Direito, que é o crime.


Pelo sofrimento do condenado, o direito lesado restaria restabelecido.

Tal teoria não apresenta um objetivo a ser alcançado com a pena, o que, de
plano, é um absurdo, pois não é lógico, racional, nem humano, possa o Estado infligir
um mal a um cidadão, sem nenhum objetivo, sem nenhuma finalidade a ser alcançada.

Esse raciocínio é absolutamente inaceitável, especialmente nos tempos de hoje,


pois

“tal procedimento corresponde ao arraigado impulso de vingança humana, do


qual surgiu historicamente a pena; mas considerar que a assunção da
retribuição pelo Estado seja algo qualitativamente distinto da vingança
humana, e que a retribuição tome a seu cargo a ‘culpa de sangue do povo’,
expie o delinqüente, etc., tudo isto é concebível apenas por um ato de fé que,
segundo a nossa Constituição, não pode ser imposto a ninguém, e não é válido
para uma fundamentação, vinculante para todos, da pena estatal”.24

Não fundamenta nem limita o poder do Estado que a partir daí pode construir
as definições de crimes que bem entender, e impor as penas que bem quiser, na
qualidade e quantidade que desejar, porque se trata, pura e simplesmente, de retribuir
o mal causado a um interesse do indivíduo ou da sociedade.

Infelizmente, ainda há os que entendem a pena como simples retribuição, não


sendo desarrazoado enxergar tal visão no próprio art. 59 do Código Penal, que diz que

24 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. Lisboa: Vega, 1986. p. 19.
16 - Direito Penal – Ney Moura Teles

ela será fixada “conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção
do crime”.

A pena como exclusiva retribuição não pode ser aceita porque está
absolutamente divorciada da missão do Direito Penal, que é a proteção dos bens
jurídicos.

1.3.2 Teoria da prevenção especial

Para esta teoria, o fim da pena é prevenir novos delitos do infrator da norma
penal. Enquanto preso, não cometeria novos crimes. Se o condenado fosse corrigível,
seria corrigido. Se apenas intimidável, ficaria intimidado e, se nem corrigível, nem
intimidável, restaria, pelo menos, neutralizado, durante o cumprimento da pena.

ROXIN faz objeções. Essa teoria, tanto quanto a da retribuição, não permite
delimitação do conteúdo do poder punitivo do Estado, seja na criação dos crimes, seja
na quantificação das penas. Além disso, para ser coerente, teria que manter o corrigível
preso até que se lhe desse a correção – mesmo que precisasse permanecer preso
indefinidamente –, o que seria um absurdo.

Por outro lado, se a idéia é prevenir novos crimes do infrator da norma penal,
não haveria necessidade da pena quando se verificasse a inexistência de perigo de
repetição da infração.

Criminosos eventuais, por fatos que muito provavelmente não mais se


repetiriam, não deveriam ser punidos, pois não haveria nenhum perigo de voltarem a
delinqüir. Exemplo: homicidas dos campos de concentração, que vivem, hoje,
plenamente integrados na sociedade, sem necessidade de ressocialização. Inúmeros são
os casos de indivíduos que cometem crimes – mormente passionais – e que nunca mais
voltam a cometer qualquer ato ilícito. Tais pessoas não precisariam ser ressocializadas;
no entanto, devem sofrer a pena. A que título e com que fim? A teoria não responde. 25

Se eles, apesar de terem cometido um crime, não representam nenhum perigo,


porque não têm personalidade voltada para o crime, porque o crime cometido fora, em
verdade, um acidente, por que mantê-los encarcerados, se não é necessária qualquer
prevenção especial?

Esta teoria só consegue justificar a pena para aqueles que, tendo cometido um
crime, voltariam, necessariamente, a cometer outros, mas como descobrir quem é esse

25 ROXIN, Claus. Op. cit. p. 21-22.


Introdução ao Estudo do Direito Penal - 17

que, obrigatoriamente, vai reincidir?

Impossível tal descoberta, pelo menos enquanto Deus não vier a operar o direito
dos homens.

1.3.3 Teoria da prevenção geral

A razão de ser da pena criminal estaria nos efeitos intimidatórios sobre a


generalidade das pessoas, que, diante da ameaça abstrata e concreta da pena, ficariam
motivadas a não transgredir a norma penal.

Tanto quanto as duas teorias anteriores, também esta não delimita o campo do
que pode ser definido como crime, deixando ao Estado plena liberdade para criar
novas figuras criminosas e estabelecer toda a espécie de penas, em qualidade e
quantidade. Daí o grande perigo de, com o objetivo de intimidar e prevenir novos
crimes, exacerbar, em demasia, as quantidades das penas e criar novos delitos. É o que
vem ocorrendo no Brasil nos últimos anos, infelizmente.

Com relação à criminalidade organizada, sofisticada, então, esta função


intimidatória é absolutamente nula. Exemplo brilhante são as extorsões mediante
seqüestros no Brasil. Elevadas à categoria de crimes hediondos – apenadas com
reprimendas bem mais severas e contempladas com diversas restrições às garantias
processuais e constitucionais –, seu número tem aumentado, vertiginosamente, após a
vigência da lei que procurou intimidá-las. De nada valeram, portanto, penas mais
severas.

A mais importante crítica a essa teoria vem, novamente, de ROXIN:

“Como pode justificar-se que se castigue um indivíduo não em


consideração a ele próprio, mas em consideração a outros? Mesmo quando
seja eficaz a intimidação, é difícil compreender que possa ser justo que se
imponha um mal a alguém para que outros omitam cometer um mal. Já KANT
o criticou por atentar contra a dignidade humana, tendo afirmado que o
indivíduo não pode ‘nunca ser utilizado como meio para as intenções de
outrem, nem misturado com os objetos do direito das coisas, contra o que o
protege a sua personalidade natural’.”26

Apesar de tudo, não se pode negar que a pena exerce, na prática, essa função, já
que muitas são as pessoas que deixam de cometer crimes exatamente pelo medo de

26 Op. cit. p. 24.


18 - Direito Penal – Ney Moura Teles

virem um dia, em razão deles, sofrer a pena criminal.

1.3.4 Teoria unificadora dialética

Contrapondo-se às teorias monistas e à teoria meramente unificadora das três


concepções referidas, CLAUS ROXIN elaborou a Teoria Unificadora Dialética, com base
no seguinte raciocínio.

O Estado só pode punir as lesões de bens jurídicos se for imprescindível, se não


forem eficazes os outros ramos do direito. Se o direito civil, o direito tributário ou o
direito administrativo se mostrarem impotentes para proteger certos bens, coibindo
certos comportamentos, então o problema deve ser levado para o âmbito do Direito
Penal. Só neste caso.

Conquanto seja a mais severa das sanções, a pena criminal só pode ser utilizada
em último caso, excepcionalmente.

Dessa forma, não pode o Estado proibir comportamentos não lesivos, ainda que
sejam imorais. Assim, o Direito Penal está limitado pelo grau elevado da importância
do bem jurídico e pela alta gravidade da lesão a ele causada.

Nesse sentido, a pena criminal – bem limitada – só pode ter como primeira
finalidade a prevenção geral. Abstratamente, intimidar a generalidade das pessoas com
o fim de prevenir as lesões mais graves aos bens mais importantes. Sendo o objetivo do
Direito Penal a proteção de apenas alguns bens, os mais importantes, de apenas
algumas formas de lesões, as mais graves, então é claro que a criação dos crimes, com a
cominação das penas, tem como fundamento prevenir, de modo geral, a ocorrência
desses ataques. Nesse sentido, admite-se a prevenção geral, mas, é claro, apenas para
as lesões mais graves aos bens mais importantes.

Num segundo momento, quando falha a prevenção geral, a pena é concretizada


ao infrator culpado pelo fato cometido, que deverá suportar o mal porque, como
membro da coletividade, deve responder por seus atos, na medida da sua
responsabilidade. Serve a pena, então, falhada a prevenção geral, não só para proteger
os bens jurídicos mais importantes das lesões mais graves, de modo geral, mas
também, a partir da violação do preceito, para prevenir a continuidade do indivíduo na
atividade agressiva dos bens jurídicos mais importantes, observado, é claro, o limite da
responsabilidade individual do criminoso. Ocorre, aqui, a dita prevenção especial.

Por último, a pena só pode ser compreendida se tiver, também, o sentido de


buscar a ressocialização do delinqüente. Nada pode justificar querer impor a alguém
Introdução ao Estudo do Direito Penal - 19

alguma coisa, se não houver um interesse ético, superior, de proporcionar ao que


agrediu um bem da sociedade, condições para aprender a respeitar os valores ético-
sociais.

Só faz sentido a pena que tiver como finalidade educar o homem que delinqüiu,
para mostrar-lhe a importância e as vantagens do respeito aos bens alheios, de modo
que, apreendendo novos conceitos, possa voltar a viver em liberdade.

Em síntese:

“uma teoria unificadora dialética, como a que aqui se defende, pretende evitar
os exageros unilaterais e dirigir os diversos fins da pena para vias socialmente
construtivas, conseguindo o equilíbrio de todos os princípios, mediante
restrições recíprocas”. A “idéia de prevenção geral vê-se reduzida à sua justa
medida pelos princípios da subsidiariedade e da culpa, assim como pela
exigência de prevenção especial que atende e desenvolve a personalidade”.27

A teoria que justifica a pena, assim, é, dialeticamente, a composição do que há


de aceitável em cada uma das particularmente inaceitáveis teorias. Como dizia HEGEL,
a quantidade pode transformar-se em qualidade. Aqui, partes aceitáveis de três todos
inaceitáveis, agregadas, podem constituir-se num único razoável ou, pelo menos,
qualitativamente melhor.

Infelizmente, a pena privativa de liberdade é uma violência ainda necessária,


mas apenas para alguns – muito poucos – agentes de fatos considerados crimes, os
mais graves, praticados contra os bens mais importantes. Uma minoria de
delinqüentes.

A maior parte dos que violam as normas penais não pode sofrer penas severas,
que, longe de trazerem qualquer benefício a quem as sofre, proporcionam, ao contrário,
males irreparáveis, que se transmitem a todos os familiares do condenado.

1.3.5 Conclusão

A realidade indica que a pena privativa de liberdade é um instituto falido. Pode-


se concluir, com facilidade, que ela não alcança, a contento, seus fins de prevenção
geral, nem especial, muito menos o fim ressocializador ou socializador.

O crime é um fenônemo social que muito provavelmente não será extirpado da

27 ROXIN, Claus, Op. cit. p. 44.


20 - Direito Penal – Ney Moura Teles

face da Terra. O Direito Penal, enquanto protetor dos bens jurídicos mais importantes,
das lesões mais graves, deve, nesse sentido, encontrar outras modalidades de penas,
para responder aos delitos praticados.

A privação da liberdade não intimida e, o que é mais grave, não só não recupera
o condenado, como também o transforma negativamente. Não podia ser diferente, pois
não se ensina a viver em liberdade, respeitando os valores sociais, suprimindo a
liberdade do educando.

É como desejar ensinar um bebê a caminhar atando-lhe as pernas. Ele jamais


vai conseguir.

O caminho é o da limitação, cada vez maior, da presença do Direito Penal na


vida das pessoas. Somente quando a lesão ao bem jurídico mais importante for muito
grave é que o Direito Penal deve ser chamado.

E, enquanto não se encontram as alternativas, somente para a criminalidade


violenta é que se responderá com penas privativas de liberdade. Aos crimes de menor
gravidade devem corresponder penas não privativas de liberdade – de prestação de
serviços à comunidade e de restrições de direitos, e outras formas que devem ser
criadas, inventadas, emanadas da consciência da sociedade.

Importante passo nesse sentido deu o legislador brasileiro com a Lei nº


9.099/95, que criou os juizados especiais criminais, permitindo a transação em Direito
Penal – o acordo com a vítima do crime, mediante a reparação do dano e aplicação de
penas não privativas de liberdade – e, mais importante, a suspensão condicional do
processo, com a imposição de condições para o processado, que, durante certo tempo,
se submeterá a um chamado período de prova, em que será observado seu
comportamento, e, no fim, sendo merecedor, extinguir-se-á o processo, sem
julgamento, sem condenação nem absolvição, esquecendo-se o que aconteceu. Outro
passo maior foi o dado pelo legislador de 1998, com a Lei nº 9.714, que criou novas
penas restritivas de direito, ampliando o âmbito de sua incidência, alcançando
condenados a penas de até quatro anos de privação de liberdade.

O caminho a continuar trilhando é esse, e não o da exasperação das penas e do


endurecimento do Direito Penal.

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