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In Anuário Antropológico 87.


Brasília: Editora Universitária
de Brasília/Tempo Brasileiro, ) . 'n i

1990. “Com Parente Não se Negueeia”


1 0 Campesinato Como Ordem Moral
KLAÁS WOOHTMANN

introdução

Meu objetivo neste artigo é ensaiar uma pñmeira aproximação, a partir da


etnografia brasiieìra do campesinato, ao que chamo de ética camponesa,
constitutiva de uma ordem moral, ¡sto é, de uma forma de perceber as rela
çöes dos homens entre si e oom as coìsas, notadamente, a terra. Tai pers
pectiva possui algumas impiicaçöes relativas ao modo de construir o campe
sinato.

1. Homo oeconomicus ou Homo moraiis? O Probƒema da Construção

Com grande freqüëncia, particulannente no Brasil, o campesinato foi


oonstruido como uma economia. Não nego o fato de que ele pode ser entendi
do através da análise de sua logica economica, ou da lógica da produçäo re
produção no piano das estrategias económicas, do modo oomo organiza os
fatores de produçäo ao seu alcance, ou do modo como articula os supostos
da produção. Pode se entender o camponès através da noção do modo de
produçäo, ainda que a apiicação desse oonoeito envolva di cuidades teóricas.
Pode se também entende lo como produzido reproduzido pela lógica do capi
tai ao qual se subordina.
Meu intento, porém. não é o de surpreender o oampesinato através de sua
economia, mas está mais próximo da idéia de uma sociedade camponesa. Os
dois planos não são, .é claro, separáveis, mas podem receber ênfases dife
rentes. Para usar um exernpio clässioo, Chayanov (1966) se concentra na

ànuàrlo Antropologieoi
Editora Universidade de Braslìiaƒïempo Brasileiro, 1 990

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Klaas Woortmann Com parente não se neguceia

anãiise da familia camponesa. Mas ele constroi uma familia (melhor dizendo, um valor, o valor familia, permanente no tempo. lsto significa que não estou
um grupo doméstico) "economlclzada", vista como uma unidade de força de me ocupando da "pequena produção". Não me centro na produção de bens
trabalho e, ao mesmo tempo, como uma realidade demográfica. Sahlins materiais pela familia, mas com a produção cultural da famflia enquanto valor.
(1978), em contraposição, parte da noção chayanoviana de um modo de pro O que interessa aqui é menos a teoria de um tipo de economia do que a de um
dução doméstico, mas como que “deseconomiciza” sua perspectiva, colo tipo de sociedade. Trata se, por outro lado, da construção de um tipo , apre
cando a no contexto de um contrato sociai fundado na reciprocidade enquanto endido através das conexöes de sentido que são signi cativas para es sujei
valor. tos, e nem todos os "pequenos produtores" são camponeses ou partilham
Meu objetivo não 6 tratar c campones como um “pequeno produtor”, ob igualmente da ética que procuro examinar no decorrer deste artigo.
jeto de uma anãilse objetiva de aua objetividade, mas tentar uma interpretação Prefiro então falar não de camponeses, mas de campesinfdade, entendi
subjetiva pois trata se da minha perspectiva de sua subjetividade. Neste da como uma qualidade presente em maior ou menor grau em distintos grupos
plano, por example, o concelto de valor de uso ganha outro valor: o de uso especf cos. Se ha uma rslação entre formas históricas de produção e essa
enquanto valor. Passa a significar uma categoria do discurso academico que qualidade, tal relação não e, contudo, mecanica. O que tenho em vista é uma
expressa um valor do discurso campones; um componente da etica campo configuração modelar, mas é preciso não esquecer, sob risco de rei cação,
nesa, uma forma "arìstoté|ica" de representação da atìvìdade econòmica. que pequenos produtores concretos não são tipos, mas sujeitos históricos e
Neste contexto, a economia camponesa é pensada mais como ceconomia do que as situaçöes empíricas observadas, por serem históricas, são ambfguas.
que como economica; mais corno oikcs (Polanvi, 1971; Taussig, 1983). Nessa De fato, pode se perceber a historia como uma continua produção e resolução
perspectiva, não se ve a terra como objeto de trabalho, mas como expressão de ambigüìdades. Modelos nunca são “iguais ã realidade", se por esse última
de uma moralidade; não em sua exterioñdade como fator de produção, mas se entende a concretude historica que é, essenciaimente, movimento.
como algo pensado e representado no contexto de valoraçöes éticas. Ve se a É possfvel imaginar um contínuo. que tanto pode ser pensado no tempo
terra, não como natureza sobre a qual se projeta o trabalho de um grupo do como no espaço, ao Iongo do qual se movem os pequenos produtores, desde
mestico, mas como patrimonio de familia, sobre a qual se faz o trabalho que um polo de máxima até outro de mínima campesinidade. Um tal contínuo foi
oonstroi a familia enquanto valor. Como patrimonio, ou como dãdiva de Deus, proposto por Velho (1982), mas dentro de uma perspectiva distinta daquela
a terra não é simples coisa ou mercadoria. que pretendo desenvolver. O continuo imaginado por Velho, ao Iongo de um
Estou tratando. pois, de valores sociais; não do valor trabaiho, mas do espaçoftempo que encontra na frente de expansão amazónica seu pólo má
trabalho enquanto um valor ético. Esta tentativa se afasta, portanto, da ten ximo, e na ,oianta on seu poto mínimo, se funda na integração ao mercado, às
dencia economicista que ve o campesinato como um modo de produção com tendencias dominantes na sociedade global e ã proietarizaçäo.
sua logica própria ou como o resultado de determìnaçöes impostas pela logica iviinha perspectiva é outra: penso urna “grande transformação", conju
do capital, mesmo porque, como ressalta Taussig (1983: 10), se o mercado gando a perspectiva de Polanvi (1971) com as de Tawnev(196 4) sobre trans
domina o campesìnato, ele não o organiza. Afasto me também dos estudos formaçöes religiosas, e de Dumont (1977) relativas ã constituição da moderni
monográficos, ainda que os retenha como etnografias de base, pois não me dade. Essa transformação liga se ã economia de mercado (ã invenção do
ocupo de qualquer grupo social delimitado no tempo e no espaço, ¡sto é, com mercado, segundo Polanyi) e à proletarização, mas o que me interessa, como
qualquer grupo historicamente dado. Ocupo me de uma qualidade: a cam já disse, são valores, tsto é, subjetividades, mais dc que relaçöes sociais ob
pesinidade , que suponho comum a diferentes lugares e tempos. Nem por is jetivas. Á campesinìdade pode ser apreendída de forma mais clara, em Iatguns
so, todavia, a història está ausente, como procurarei mostrar no desenrolar casos, justamente nas situaçöes menos camponesas, de um ponto de vista
deste trabalho. objetivo. Se a piantatfcn é o locus onde as relaçöes de produção correspon
Na perspectiva que adoto, a familia, que é um dos pontos centrais deste dem ao minimo objetivo, é precisamente neste contexto que a campesinidade
artigo, não é vista chayanovianamente como um pool de força de trabalho, va pode aflorar de maneira extremada no plano das representaçöes e dos valo
riãvel ao Iongo do ciclo de desenvotvìrnento do grupo doméstico, mas como res. É o caso do pacto com o Diabo, estudado por Taussig (1983): um con

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trato anti social, uma troca que termina todas as trocas, atraves do qual se ção) se encontram posseiros movidos por uma racionalidade secularlzada e
simbolizam os valores de uma etica camponesa. Tal situaçãc pode ser pen por um espfrito de cãicuio que realizam uma acumulação pela capitalizaçeo de
sada como uma especie de campesinidade agonistica, uma situação de crise sua proprla expropriação. A invasão de terras tem af uma razão economica,
em que se tornam manifestas e mais conscientes as categorias que organi maximizante. No Paraná, em contrapartida, encontramos invasores, descen
zam a ética camponesa. Numa situação máxima, quanto às reiaçöes socials dentes de colonos europeus (alemães, italianos, poloneses) que buscam res
objetivas, tais representaçoes poderiam estar como que adormecidas e natu taurar uma tradlção centrada no valor familia e no parentesco. Fazem no a
ralìzadas, latentes, pela préprla correspondencia entre c piano das relaçoes partir de uma prática (invasão) aparentemente "subversiva", na medida em
socials e o plano dos valores. Sltuaçoes de crise social são, provavelmente, que se opoe ao principio da propriedade mercantil, este último profundamente
situaçoes de agudização consciente de valores tradicionaisi. subversivo na historia moderna do Ocidente (Polanyi, 1971). Subverte se, no
A sltuação estudado por Velho (1972) revela que a frente de expansão é caso, a ordem economica para reinstalar a ordem moral@
um contexto onde são trabaihados conscientemente valores tradicionais. ivias A integração no mercado, por outro lado, não significa, necessariamente,
a frente de expansão nao e uma aituaçeo tradicional, e sim, uma situação de uma baixa campesinidade. Colonos teuto brasileiros do Sul do pais de hå
reconstrução da tradiçao, onde a campssinidade e um projeto. É, por assim muito produzem para o mercado, tendo se configurado, no passado, como ex
dizer, um vir a ser ao mesmo tempo novo e velho. É significativo que, no caso portadores de aiimentos para a Europa. Sua ordem social é, no entanto, de ca
estudado por Taussig (1983) o campones proletarizadc, transferido de uma rãter mais holista do que individualista; para eies a terra não é mercadorla, e
ordem moral para uma ordem economica, procura o Dlabo para se dizer cam sim, patrimonio da familia (mais precisamente de Casa Tronco), e garantir sua
pones, num jcgc de inversão simbólica, enquanto que, no caso estudado por integrldade é ponto de honra para pessoas morais governadas pelo senso de
velho (1972), o campones ameaçado de proletarização pela Lei do Cão, e re honraf Tal como os camponeses franceses estudados por Bourdieu (1982),
campesinizado na frente de expansão, foge da Besta fera que reinstaura o organizados pela maison (equivalente à Casa Tronco), a terra patrimonio se
cativeiro . Pode se ver então que, de acordo com a Ieitura que faço, os dois sobrepoe ao individuo; este é prisioneiro daquela, na medida em que ela ex
polos do continuo acabam se encontrando. pressa o valor familia, visto este último como manifestação especi ca do va
A ambigüidade historica a que me referi é também ressaltada por Velho lor hlerarquia, no sentido que lhe atribui Dumont (1985). Produzir, então, para
(1983) com relação a camponeses da Amazonia, onde, como diz o autor, a o mercado não significa, necessariamente, modernidade no plano do valor.
realìdade convive com a indubitável presença de concepçoes aparentemente Produzir para c mercado não significa tampouco estar integrado ao mercado
antitétlcas, num campo de força caracterizado pela ambigüidade. Na Amazo (Tepicht, 1973) e muito menos estar integrado à sociedade nacional, no que
nia, ccnvivem concepçoes sobre a terra que chamc de morais (terra enquanto se refere às tendencias dominantes desta. Não significa nem mesmo perten
valor de uso) com concepçoes utilitaristas mercantis. Não encontramos, en cer à nação, como mostra Delbos (1982).
tão, camponeses puros, mas uma campesinidade em graus distintos de arti imaginar um modelo generalizante cuja base empírica envolve diferentes
culação ambigua com a modernldade. momentos no tempo e no espaço, como, por exemplo, o Nordeste brasileiro
Prãticas aparentemente semelhantes podem ter conteúdos radicalmente atual, a Europa medieval e a Antiguidade greco romana, pode parecer uma
opostos. No Centro Oeste (região que vem paseando por rápida moderniza construçãc ahlstorica. Na realìdade, porem, significa iidar com a historia. Todo
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1. Uma situação análoga foi trabaihada por Deibos (1982). A autora surpreende as mais 3. Ivfulto significativamente, do ponto de vista desta lnterpretação, as terras invadldas são
fortes representaçoes morais do trabalho, caracteristicas do que cnamo de campesinida concebidas como terra de casarnento. A invasão visa constituir unidades socials coeren
de, em grupos e pessoas que jã nao são mais camponeses quanto ãs relaçoes de produ tes com os valores do coiono, como resposta a uma sltuação que impossibllita a transmis
ção, ¡sto é, entre assalariados, inclusive urbanos. são do patrimonio. Visto de outro ángulo, esse movimento social objetiva criar as condi
çoes de constitulção do par' e da famiiia. (Vienna, 1986).
2. Nas representaçöes camponeses do Nordeste, a proletarlzação e a escravldão se fundem
e se expressam pela categoria cativeiro. 4. Sobre as noçoes de ponto de honra e de senso de honra, ver Bourdieu (1977).

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Klaas Woortmann Com parente não se neguceia

cclono, sltiante, posseiro, etc. de came e ossc é ao mesmo tempo, construtor abre variantes que reconstroem a ordem tradicional, ou a exacerbam, como
da historia e construido por ela e, portanto, um ser em continua transforma nos chamados "movìmentos messiãnicos" e nos miienarismos. Outras vezes,
ção . Se a historia é produtora de ambigüidades, cada pessoa é igualmente é pelo engajamento no torpe iucrurn que se oonsegue realizar estrategias vol
ambigua, na medida em que a historia individual encerra a historia geral da so tadas para o valor aristotéiico do trabalho honrado, como se verá no decorrer
ciedade. Abstratamente, cada individuo ou grupo localiza se num ponto variã deste artigo. inversamente, o apego ã tradição pode ser o meio de sobreviver
vel ao longo da linha que une os dois polos do contfnuoii Tanto hã grupos co ã grande transfcrmação: manter se como produtor familiar em melo ao pro
letivamente localizados em distintos pontos (o que pode corresponder a dis cesso mais geral de proletarização ou de empobrecimento. A tradição, então,
tintas regioes do pais, isto o, a espaços contemporáneos, mas de distintas não é o passado que sobrevive no presente, mas o passado que, no presente,
tempcralldades) como ha individuos num mesmo grupo e região diversamente constroi as posslbilidades do futuro.
localizados nessa continuo. Como je disse, pode se surpreender a campesi Modelos implicam em recortes, o que jã significa subjetfvizar o objeto?,
nidade na frente de expansão, refúgio face ao "cativeiro da Besta fera” (Velho, em si mesmo construido e não empiricamente dado. Cada recorte sobre a
1972), ou lugar da “terra de Deus". ivias, pode se igualmente surpreende la mesma empiria etnogrãfica pode se revelar contraditorio a outros recortes so
em plena piantation (Taussig, 1983). bre a mesma "realìdade", não por inadequação intrlnseca ao recorte, mas pela
Na Amazonia, como se vlu, convlvem ambigüamente concepçoes que se ambigüidade da propria concretude. Todo modelo teorico implica em recortar o
podem chamar morais e concepçoes utilitaristas mercantis (Veiho, 1983). No concreto para poder construir o real e aqui estou recortando pessoas que,
Nordeste, encontram se individuos secularizados, voltados para o lucro mer como disse, são amblguas. Posse dar como exemplo um sltiante do sertão
cantil, ao lado de outros cujas dispcsiçoes são orientadas por um habitos tra sergipanc. Esse sltiante discutía comigo o melhor melo de aplicar os recursos
dicionai. obtidos através de nanciamento do Banco do Brasilii. O sltiante, como muitos
O modelo que imagino ltda, portanto, com seres historicos e não deve dar outros da região, caiculava as vantagens relativas entre investir os recursos
margem a reificaçoes. Ele é também historico na medida em que a passagem na compra de gado, forma predominante de realizar a acumulação nessa área,
de uma ordem moral para uma ordem economica e, efetivamente, um proces eiou aplicar o dinheiro em cadorneta de poupança. Num caso como noutro, o
so muitissecular por onde passa todo o mundo ocldental e jã antevisto por rendimento, seja pela valorização do gado, seja pelos juros e correção mone
Aristoteles quando este descobre a economia, na feliz expressão de Polanyi tãria da poupança, seria maior que c custo do empréstfmo. Este, como bem
(1975). Trata se de uma grande revoiução em toda a cosmología ocldental, sabia o sltiante, se fazia a juros subsidiados e com correção abaixo da taxa
epitomizada, talvez, na "revolução nevvtonlana" (Bunft, 1983). Passa se de de inflação. Embora analfabeto, revelava se perfeitamente racional, nos ter
uma ordem de primazia da lei dos homens para a primazia da lei das coisas; mos de uma logica empresarial. Em certo momento consìderou que seria ne
de um universo relacional para um universo atomizado; da sociedade para a cessãrio mandar benzer o gado, condição sino qua noo para o sucesso de
economia. sua estrategia, e iembrou se, então, de que o benzedor que havia techado o
A trajetoria camponesa não é, contudo, linear. Um movimento que se diri
ge a uma dimensão da modernidade pode ser, ele mesmo, necessãrio para _ ._ _ 11 un un o

que haja um outro movimento, o de reconstituir a tradição. A estrada principal 7. No que diz nespeito ã relação sujeito objeto, ca claro que o objeto aqui nace qualquer
grupo social especifico, mas uma construção. Como disse, não se trata de camponeses,
que conduz ã modernidade (lndividualização, secularização, racionalidade) mas de campesinidade. Fago a leitura das falas de pessoas concretas. nas quais busco
`†`I um "objeto generico", e às quais estou imputando uma qualidade percebida por mim.
5. Por outro lado, distintas manifestaçoes de campesinidade. em tempos e lugares diferen
clados e, portanto, em contextos cuiturals particulares, podem ser vistas como "transfor 8. Tais recursos eram destinados pelo Banco do Brasil ao custeio da produção de pequenos
maçoes" de uma matriz basica. _ iavradores. Seu uso era, todavia, redefinido nos termos da logica da reprodução social do
grupo que assim se apropriava, nos seus temtos, de algo formulado pelas instancias do
8. A noção de continuo não implica a ideia de uma evoiução uniiinear, nem de uma ¡never minantes nos termos de uma ideologia modemizante. Construia se, assim, um campo de
sibilldade historica. manipulaçao, a partir de uma situação subordinada. para escapar e subordlnação. ainda
que cometendo uma lnfração.

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Klaas Woortmann Com parente não se neguceia

seu proprio corpo contra doenças havia falecido poucos dias antes. Como Ffåïim B Um H m ' GGCOHOIHÍCUS, segundo certa visão teorica. Noutro re
a força da reza termina com a morte do benzedor, era preciso iecharo corpo Wmf ¡9r'5'9'¡a Uma DE “SS0a mais proxima a uma ordenação moral e sagrada
novamente com outro rezador. do mundo, mais perto de um Homo rnoraiis. Mas, na realidade, e a mesma
Esteva se, na época daquela pesquisa de campo, em plena seca pessoa que se move em dois universos. O que temes, e o que parece amb;
(1981 1983) e aquele sltiante paitilhava da orença comum de que a seca era o
castigo de Deus imposto na terra como punição pela maldade dos homens, Quo' é Um “S0 da h¡5tÓ"¡a› sua alìifilïtii 'ilção individual em duas temporaiidades
lniernallzadas, onde os tempos modernos são usados para restabelecer o
sendo necessãrio realizar ritos de puri cação. Estava se, creio, numa situa llmpo tradicional. Transita se pela ordem economica para realizar, como fim
ção potencialmente pre milenaristae. O que para nos é um fenomeno meteo I ordem moral e, com ela, a campesinidade. Noutro extremo contudo ee
rologico, explicãvel no plano da ordem naturali , para ele era uma realìdade m m ÍBWIPOS m0Ci€'l' 0S Produzem como que um deslocamenio face ã tiadi
metafisica explicãvel no plano da ordem moral, pela maldade intrinseca do elot o sltiante se torna negociante ou pecuarlsta. Tem se, então, dois usos do
homem, nos termos da "cultura biblica” de que tala velho (1986), que informa tempo historico, ao mesmo tempo, no interior do mesmo grupo. Como já disse
tanto os miienarismos nordestinos quanto o anti mllenarlsmo dos também nor GNSS. tanto ha grupos coletivamente localizados em distintos pontos do conti
destinos na frente de expansão. nuo por mim imaginado como ho individuos de um mesmo grupo divergamej ,ie
Por outro lado, esse sltiante concebia a terra como propriedade de Deus, localizados nessa continuo. Sao sujeitos objetos distintos de uma mesma
tornando se o homem seu done legitimo apenas através do traoaiho. Essa ter historia.
ra de trabalho (Garcia Jr., 1983a), que é tambem, a morada da vida (Heredia, Pedales comparar Illas sitlsntes com agricultores ltalo brasileiros da
1979), estava sendo* submetida à Leido Cão, enquanto propriedade mercantil, fü låe eo Ararll (BF ')'!, onde a representação tradicional da terra como pa
lugar do gado e do cativeiro dos homens. Por obra do Demonio, passava se l dl ipmllll Ó I base da modernização produtlva e da prosperidade
da ordem moral para a da mercadoria. Situação análoga ã do lviaranhão, onde H ol. errl ae, então, de um lado, uma descontinuidade construida in
o Coco de Deus (babaçu) estava sendo roubado pela Besta fera, através de lirielonalrnente, feto é, a interrupção estrategica do tempo da tradiçao para
sua transformação em mercadoria monopoiizada pela propriedade privada”. illtlurar a tradlção e, com ela, a continuidade em outro momento fiuturo
lvlas, o sltiante, alem de se dedicar ao comércio desonrado, ao qual volta Nsste caso, o do sltiante, cfuturo é a volta ao passado. De outro lado, tem se
rei mais adiante, cobria seu proprio sitio de pasto, a fim de valorizã lo no mer que a continuidade da tradição, no plano da representação da terra como va
cado de terras. Fazia o porém, para poder comprar mais terra e ter o que legar äiçluìãrgaépossivãl uma mudança, ¡sto e, a passagem de fraco para forte. Aqui,
aos filhos, ¡sto é, para poder realizar a honra de pal e para criar, para sua fa a_'T" 1 9993 Deia manutençao do passado. Os homens concretos,
milia, um espaço de trabalho honrado. por serem historicos. e por serem sujeitos de suas açoes, são mais comple
Seria possfvel fazer um recorte determinado no sentido literal de recor xos que os modelos produzidos pelos recortes. Ivlas, sem efes, não haveria
tar o discurso e ter se ia um pequeno produtor maximizante, secularizado, modelos.
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_Nestes seres complexos pode se surpreender os componentes da cam
9. Dove se notar que não era so a seca que ameaçava os iavradores. 0 processo geral de P slnldafiä assim 00m0 0 SGU UDOSÍU EU Püderia ter recortado o discurso
pecuarização da região ievava ao m da terra de trabalho. A amoiçäo tomava cada vez
menos possfvel o trabalho. daquela sltiante de uma dada maneira e encontrarla um pequeno produtor in
gressando, decididamente, no mundo da modernidade e do "esplriio de Cáicu.
10. É mmbém um fenomeno social, explicãvel pela indústrla da seca como estrategia de Io”. Fiecortando o de outra maneira, encontraría um homem que refuta em sair
dominação. do mundo da magia e do sagrado, levv bruhlianamente mistico ivlas aquele
11. A Guerra do Contestado, movimento messiãnico estudado por ivlauricio vinhas de homem concreto não e nenhum desees recortes. Por isso, advirto o ieitor:
Quelroz (1988), revela representaçoes do mesmo tipo. Naquela região, a terra era de 1_|______ __

apropriação ooletiva. lnexistia o principio da propriedade privada. A expropriação dos


posselros por uma ferrovia inglesa deu origem ao movimento, construido culturalmente 12. Esses agricultores paulistas estão sendo est d d rvi '
como a guena contra o Demonio. UN¦0r°~iViP H luem devo as intormaçoes que fliinìiaciì 2gievïlÍeii§Íãoeri[iIiï2neìïLïy' da

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. . * * Tiante é cam nes, dede de trabalho, através do tratorista. isto implicava, em minha percepção,
reaiizei um determinado recoite,'n_ao para dizer GU@ 0?: PO
mas para dizer o que é a campesrnidade, a Demi de 5' la a 3 nlo apenas um novo agente social concreto, mas um novo modo de pensar o
trabalho: o trabalho abstrato, concebido quantltatlvamente em tunção do prin
2. A Gestação da ideia cipio da produtividade. Chegando ã sua fazenda para inspecionar o empreen
dimento, o fazendeiro foi abordado por seus antigos agregados que procure
Nas páginas precedentes, apresentel ao leitor mlnhas ¡delas sobre a rela vam alertã lo de que estava sendo roubado pelos tratoristas, pois estes, gente
ção entre modelos e historia, minha percepção da tradição e o modocomo de fora, havlam trabalhado apenas urnas poucas horas e passaram o resto do
trato da reiação entre seres concretos e o que chamo decampesinidade. dia descansando à sombra das árvores. No entanto, estavam ganhando uma
Tendo tratado da historia, apresento agora a estoria de minha ideia. exorbitãncia. Foi dificil para o fazendeiro explicar ãqueies agregados a reiação
Como jã disse, o terna deste artigo é uma primeira aproximação ao cam _ entre o valor do trabalho e a produtividade.
peslnato como uma ordem moral, apreendldo atraves de sua etica. Formulei Poucos dias depois, li um artigo de Delbos (1982) sobre a noção de tra
esta questão pela primeira vez, de forma ainda muito embrlonãrla, durante um balho campones na França, trabalho esse tanto mais honrado quanto mais ár
seminãrio sobre o campesinato, realizado no Departamento de Antropologia duo, pois como lembra a autora, o campones não trabaiha, ele labuta. Li, em
da Universidade de Brasilia, e a expus ã critica por ocasião da 12@ Fieunião seguida, o trabalho de Garcia (1984), onde se trata do significado do negocioii
Brasileira de Antropologia, em 1984. O tema foi sugerido por uma combinaçao entre feirantes da Paralba. O tema jã havia sido gestado por essa epoca e mi
de eventos, a começar por uma experiencia de campo cuja. signlficaçao so nha atenção foi despertada para a extrema semeihança entre as representa
percebi poucos anos depois, em função de outros acontecimentos.. Dentre çoes dos feirantes paraibanos e dos sitiantes sergipanos foi a afirmação de
estes, estão dois “casos pitorescos" relatados em conversas informais na um destes últimos que deu titulo a este meu ensaio. A representação do tra
sala do cafezinho do Departamento de Antropologia da UnB, um espaçoaca balho dos agregados da fazenda do Brasil Central, por sua vez, era muito pro
demico dos mais fecundos para a troca de idoias e para a eclosão de insrghts. xima daquela examinada por Delbos. O diãlogo entre colonos e posselros ga
Um desees casos foi contado por um colega socloiogo e referia se ao con nhou uma significação teorica mais precisa. Finalmente, uma nova experiencia
fronto entre colonos modernizados e posselros tradicionais no Brasil Central. de campo, desta vez com colonos tradicionais teuto brasileiros do Filo Grande
Entre os dois grupos estabeleceu se um sistema de acusaçoes mutuas, onde do Sul, me mostrou que aquelas representa çoes, se colocadas num quadro
o colono acusava o posseiro de preguiçoso, atrasado, sem iniciativa, profeti mais amplo de valores, não eram um fenomeno restrlto ao Nordeste ou ao
zando que ele viveifa para sempre na pobreza. O posseiro, por seu lado, acu Brasil Central.
sava o colono de arnoição e de destruidor da natureza, de não temer a Deus, Estes acontecimentos resultaram num despertar para Ieituras que havlam
profetizando o castigo que Ele iria certamente the imporlã Ambas as profecias sido ieitas uma ou duas décadas antes e deram novo sentido a Ieituras mais
se realizaramz em poucos anos, os colonos, endividadcs e com as terras recentes, relativas às noçoes de hierarquia (holismo dumontiano), reciproci
exauridas, failram e voltaram para o Sul; os posselros continuaram no lugar, dade, honra, entre outras. Ftesolvi retomar as Ieituras de alguns pensadores
pobres como sempre. socials, como Arlstoteles, Tomás de Aquino, Hobbes, Locke, Quesnay, e ou
O segundo caso me foi relatado, naqueta mesma encruziihada academi tros e de historiadores como Tavvnev e Polanvi. Aos poucos, foi se deiineando
ca, igualmente referente ao Brasil Central, por um professor fazendeiro tam o quadro, inicialmente vislumbrado em 1981, de uma ética camponesa, e a
bém sociologo Ao modernizar sua fazenda, nela introduziu uma nova modali percepção da llgação entre urna tradição camponesa e os principios norieado
.__ __ " J res do pensamento ocldental, até a “grande transformação“, quando a socie
. ' " terra: num caso,
13. Estavam em jogo duas representaçoes antagonicas da relaç ü f *Um H
uma relação de troca, naqual o homem ajusta suas necããsidadeã âlåtëärerššrgâdiãgâ Bé
no outro, uma relação utilitarista, onde a terraé perce 1 a com l_ _ 14. lvlals tarde, quando o tema já se achava bem deiineado, a Ieitura do trabalho de Garcia
onde a natureza deve ser transfomtada "corr|g|da" para tornar se instrumento de lu Jr. {1983b), amplamente utilizado neste artigo, foi fundamental para a oonsolldação de
oro. minhas ideias.

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Klaas Woortmann Com parents não se neguceia

também exemplares para o antropologo em busca da tradição até que e


dade é transformada em economia e o contrato social su bstituido por um novo
historia torne novamente coerentes entre si as relaçoes socials e os valores.
“estado de natureza". ivluitos movimentos socials camponeses podem ser
A partir da etnogra a, focalizo algumas categorias culturais centrais do
entendidos nos termos dessa transição, desde os milenarismos até as revolu
universo campones brasileiro, que são também centrais para a reconstrução
çoes. Fiesoivi, então, percorrer slstematicamente a etnografia brasileira sobre
da ética mais geral que elas representam: trabalho, familia, llberdade, atom de
o campesinato. outras como comida. Ftetomando o que foi proposto em outro trabalho (K.
lvieu ponto de partida etnográfico foi dado por duas concretudes que Woortmann, 1986a), considero a cultura como o universo de representaçoes
dem ser consideradas como casos exemplares, ou situaçoes limite de máxi de um grupo, categoria ou sociedade. Ao mesmo tempo, considero a cultura
ma campesinidade no contexto brasileiro. Uma delas é representada pelo Sitio como um conjunto de textos ou discursos. Tal como flz naqueie trabalho, pro
no Nordeste e a outra pela Coionia do Sul do paislf* A primeira é uma situação curo fazer uma Ieitura desses textos, seguindo a idéia desenvolvida por Ge
de crescente consolidação e a segunda de crescente dissolução de valores ertz (1975). Percebo a cultura ainda como um sistema onde diferentes nú
tradicionais, bastante presentes, todavia, nas representaçoes da geração cleos de representaçoes estão em comunicação uns com os outros, como
mais velha de colonos. No Sitio, mantém se a tradlção, apesar de estar muito que formando uma rede de signi cados. Esses categorias nucleantes agre
proximo da área de plantafion. A Colonia, não obstante produzir hã muìtoitem gam conjuntos de significaçoes, os quais, em sua comunicação dentro do uni
po para o mercado, so recentemente teve abalada a tradìção, desorganizan verso de representaçoes, se alticulam e compoem uma totalidade. Essas ca
do se o principio da Casa (Stammhaus), análogo ao que preside aiviaison ou tegorias são também nucleantes no piano do discurso, isto é, elas organizam
Oostai na França, ou a Stern family na Iitanda. o discurso e a cultura pode ser vista como um conjunto de discursos” As
A essas casos, que me serviram de noneadores de ideias mais do que sim, naturalmente, cada cultura terá categorias nucleantes especificas, mas,
de materia prima principal deste texto, acrescentei dados relativos a outras ao que parece, existem certas categorias comuns às sociedades campone
sltuaçoes e outras etnografias, inclusive situaçoes de minima campesinidade, sas em geral, como terra, familia e trabaino. O importante, contudo, não é que
quanto às reiaçoes sociais, tais como o caso estudado por Taussig (1.983), sejam comuns pois elas estão presentes, também, em culturas urbanas
onde o minimo no plano objetivo engendra um máximo no plano da subjetivi mas que sejam nucleantes e, sobretodo, relacionadas, isto é, uma não existe
dadel . As sltuaçoes etnográ cas a que me referi, no Nordeste e no Sul, são sem a outra. Nas culturas camponesas, não se pensa a terra sem pensar a
como que ilhas cercadas por um oceano de perigos: um mundos campones familia e o trabalho, assim como não se pensa o trabalho sem pensar a terra e
cercado pelo (mundo) imondus da mercadoria, da propriedade privada mer a familia. Por outro lado, essas categorias se vinculam estreitamente a valores
cantil desvlnculada do trabalho, da ambição; mundo que ameaça a ordem e a principios organizatorios centrais, como a honra e a hierarquia. Pode se
ral, mas com o qual é preciso também saber lider. Quanto às sltuaçoes objeti opor esse tipo de sociedade às sociedades modernas, individuallzadas e vol
vamente minimas, jã ressaitei que, em momentos de crise aguda numa ordem tadas para o mercado; em outras palavras, pode se opor uma ordem moral a
social e num ordenamento do mundo, os valores tradicionais como que sobem uma ordem economica. Neste último tipo de sociedade, as tres categorias
ã consciencia; o que era dado como natural torna se mais intensamente pen acima referidas existem, naturalmente, mas elas podem ser separadas umas
sado. Como aponta Taussig, utilizando se do conceito de Turner, são situa das outras: a terra 'não e pensada em tunção da familia e do trabalho, mas em
çoes liminares. Como diz este último, são tempos de exame dos axiomas si mesma, como uma coisa, ou como uma mercadería; a familia é também
centrais de uma cultura (Turner, 1974). Sltuaçoes minimas como essas são pensada em si, sem relação com o trabalho ou a terra, o mesmo acontecendo
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com o trabalho, que pode mesmo ser pensado como uma abstração, como um
15. Sitio, oom S malúsculo, significa aqui uma oomunidade de parentesco com uma base
territorial. Colonia significa, em seu sentido mais geral, uma area ocupada por colonos, "fator". Temos, então, no primelro caso, um modelo reiacionai e, no segundo,
isto e, ¡migrantes europeos (no caso, de origem elemãi. um modelo individuai, tanto no plano das categorias, como no plano das rela
16. A noção de maximo e de minimo aqui usada e a de nida por Levi Strauss em sua apre 17. Como procurei mostrar no trabalho acima mencionado, essas categorias, que considero
ciação do Ensino Score a Dãdiva, de lvlauss, quanto ao uso da comparação.
como categorias fortes de uma cultura., falam de outras colsas que não seu referente
lmedlato. o caso da comida, que fala, entre outras colsas, da familia e do trabalho (K.
Wcortmann, t988a). 23
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Klaas Woortmann Com parente não se neguceia

çoes socials e das pessoas: estas são, nas sociedades camponeses, seres ção marxista que percebe a “pequena produção" como determinada pelo ca
relacionais constituidos pela totalldade e, nas sociedades modernas, seres ln pital tampouco delxou de enfatizar esse carãter familiar, tido como a condlção
divlduais constituintes da totalldade, vista esta como agregado de individuos mesma de subordinação ao capital. Não raro, o trabalho familiar é visto em
"em contrato". oposição ao trabalho assalarlado, ainda que, objetivamente, não haja uma
Neste trabalho, considero apenas o discurso verbalizado, isto é, a fala contradição necessária entre ambos. Subjetivamente, contudo, observa se
dos informantes, ainda que a noção de texto ou de discurso possa ser esten uma oposlção, no contexto de uma conoepção camponesa do trabalho. lvlas,
dida a outras colsas: ã briga de galo, no famoso ensaio de Geeitz (1975); ao em boa medida, tudo depende do lugar onde se dá o trabalho e de quem se
jogo das bolinhas de gude (Carvalho, neste volume); ã casa, como mostra relaciona através dele.
Bourdieu(1988), ou ã comida, como moetrei am trabalho anterior, já citado. As Trabalho familiar e assalariamento podem ser antinomlccs. Podem ex
categorias que aqui considero, como familia, trabalho, llberdade, troca, etc., pressar a antinomia entre o sitio, de um lado, e o eito (como ainda hoja se diz)
articuiam se estreitamente entre sl, como procurarai mostrar, e aniculam se do engenho. Contudo, no sitio também ha o trabalho assalariado. O que não
igualmente com práticas especificas enquanto açoes significativas (Cardoso há no sitio é o alugado.
de Oliveira, 1984) referidas a valores centrais. Essas práticas ganham seu Taussig (1983) nos relata o que pensam os camponeses do Vale do
sentido por serem contextualizadas, não so em situaçoes sociais, mas com Cauca, na Colombia, envoltos na passagem de uma oeconomia camponesa
relação a essas categorias e valores. para uma economia de pianiation:

A lnterpreiação do Corpa Etnográfico De todas as formas de trabalho na região, o assalariamento é considerado o mais
arduo... mesmo que a paga diana em dinheiro seja alta. Sobretodo. é a humiiia
ción, o humilhante autoritarismo, que agita os trabalhadores... o trabalho de al
Passarel agora a lidar com as categorias culturais e com as falas onde guma maneira se tornou o oposto da vida.
elas surgem, isto é, com o corpo etnográfico que me serve de base. Ele se ...a sociedade é composta de dois sistemas de troca antitéticos... de um la
oompoe, tanto de minhas observaçoes diretas, como também daquelas reali do, o sistema de reciprocidade e auto renovação (na oaoonornia camponesa); de
outro, a tnoca desigual e a auto extlnção.
zadas por outros autores. Por isso, a etnografia inclul, tanto o que disseram os o trabalho nas terras camponeses é percebido como menos intenso e
informantes para mim, como para outros, mas inclul, igualmente, o que disse mais agiadavel... Significativamente, asa percepção se aplica mmoérn aos tra
ram essas outros autores sobre seus objetos. A interpretação que se segue oaibadoras lsuiarfaoioe... que traosiltam para camponeses. (Taussig. 1983: 93)
focaliza, então, as interpretaçoes do mundo dos camponeses e também as Humfllacion, suƒaição, cativeiro, eito: percepçoes equivalentes no canavial
interpretaçoes sobre essas interpretaçoes. Por outro lado, minhas proprias colombiano ou no mundo brasileiro dos engenhos, onde a terra não e mais fer
observaçoes são limitadas, pois so vi o que consegui enxergar e so flxei co ra de trabalho nem morada da vida”.
mo relevante aquilo que fazia sentido para mim, como a frase que deu titulo a No interior do sitio, estaria o assalariamento negando uma ética campo
este trabalho. nesa? Orlenta se, neste sitio, o emprego de assalariados estritamenta por
uma racionalidade maximizante? Seria ele explicado apenas por uma "razão
1. “Se Quero, Vo": A Famiiia e o Trabalho Assaiariado. prática"'? Gual seu signi cado face ao trabalho. como categoria subjetiva do
campesinato, mais do que como categoria analitica objetiva do pesquisador?
Apesar da variedade com que tem sido construido o conceito de campo O uso de assalariados em unidades camponeses é, predominantemente,
nes, ressaita um ponto comum: o caráter familiar do trabalho. Este seria o de carãter temporãifo, enquanto o trabalho permanente é fornecido pelo grupo
elemento central de uma logica economica propria do "modo de produção"
campones. O estudo clássìco de Chavanov (1988), assim como os mais mo 18. Essas duas expressoes nordestinas, altamente significativas do ponto de vista de uma
dernos de Galeski (1975) e de Tepicht (1973) informaram, no Brasil, um oon ética camponesa, deram titulo, respectivamente, aos livros de Garcia Jr. (1983a) e de
junto de pesquisas que se propuseram a analisar essa especificidade. A tradi Heredia (1979).

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Klaas Woortmann Com parents não se neguceia

doméstico. Por outro lado, as observaçöes etnogrãficas indìcam que, ionge de 0 reconheclmento por parte do pai da participaçao da mulher e das lllhas rnoçsa
no trabaiho do sitio... é vivenciado como uma situação de precariedade na qual
se opor ao trabalho doméstico e ao trabaiho como categoria indissocìável da ele nao tem possibilidade de contratar rrabarnador de fora (Rinaldi Mayer.
tam ia, o uso de assalariados é a condição mesma de realiza ção desta últi 19?9:8U; grifos da autora).
maiä.
O par de rarnrira contrata assalariados durante o pico do ciclo agricola, É o que também observa Garcia Jr. (f983b) para os agrjcuitcresïü da Pa
pois é o volume de trabalho realizado neste momento que ira determinar otra raiba. Ali, o assalariado substitui, preferencialmente, a mulhergi e, quanto mais
balho realizado durante todo o ciclo. Por isso, os trabalhadores temporárìos próspero for o agricultor, tanto menor sera a utilização da rnãe de rarnriia (cujo
irão viabiiizar a atividade dos membros da familia e não a eia se opor. Visto a espaço preofpuo é a casa quintal) e das filhas no roçado. Tai utiiização estaria
partir do ángulo que me interessa mais de perto, o uso do trabalho assalaria depondo contra a posição do pal e mesmo, acredito, de tiberto, categoria da
do, nas situaçües onde ocorre, é condição para que se realizem o pai de fami qual também me ocuparei mais adiante. No momento, lembro apenas que a
iia e a hierarquia familiar, isto é, o valor fam ia, e não apenas a “produção condição plena de par' supöe a condição plena de ijberro.
doméstica". Os dados de Fiinaldi lvlever e de Garcia Jr. indicam, então, que o assala
Nas comunidades camponeses que se organizam pelos principios do pa riamento, além de uma razão prática, possui também um sentido simbólico. De
rentesco, tal como no Sitio que tomamos como caso exemplar, as necessida um lado, preserva se, através dele, a hierarquia familiar. De outro, colocando
des de trabalho durante o pico são satisfeitas através da reciprocidade, como se assalariados para realizar as tarefas mais pesadas, esta se, como mostra
veremos em detalhe mais adiante. É nas situaçöes onde não operam plena Garcia Jr., poupando a familia. Contratando assalariados, o pai está, então,
mente os principios de parentesco e reoiprooidade e onde, ao mesmo tempo, pensando a familia.
se acentua a pressão demográfica, que se recorre ao assalariamento. Mas, Por possuir um significado subjetivo, o trabalho assalariado é simbolica
estaria este contrariando o principio familiar? mente manipulado. Em Sergipe, nas ãreas estudadas, o sj ante que emprega
.Jå apontamos para uma das caracteristicas do assalariamento e vimos diaristas não define a atividade destes como trabaiho, mas como ajuda, e se
que ele não nega o trabalho familiar. Ao que tudo indica, ele tem como uma de refere a ele como trabaihadorzinho. A conjugação dos dois termos (o diminuti
suas razöes suprir de ciências quantitativas do grupo doméstico e possibiiitar vo e o tenfno que designa a atividade do filho) parece colocar o diarista em po
o trabalho familiar durante todo o ano agricola (Garcia Jr., 1983b; Tavares dos sição semelhante ã de filho, subordinado a um pai que encarna o trabaiho.
Santos, 1978). Ele torna possfvel ao pal desenvoiver o negócio ou a arte e Mas, quem é o trabainadorzinho que ajuda um par?
possibìtita a migração (sazonal, temporaria ou definitiva) dos filhos, necessária Um par de rarnriia, naquela região, só se assalaria em último caso. Sem
à reprodução social do campesinato. Em nenhum caso, ele contraria o traba pre que possfvel, desioca se um filho para tai atividade e, sendo ele, por defi
lho familiar; em todos os casos, ele é determinado pelo caráter familiar da pro nição, subordinado, minimiza se a contradìção envolvida no assalariamento.
dução. Ajuda é um termo que tem distintos significados, a depender do contexto em
lvlas, além de ter razöes, o assalariamento tem significados. É o que indi que é empregado; aqui, implica hierarquia e subordinação. No interior do Sitio,
ca, por exemplo, o estudo de Rinaldi ivieyer (1979) sobre lavradores em terra terá outro significado, como sera visto.
de santo de Pernambuco. Longe de se opor ao modelo da familia camponesa, No entanto, o sitiante que assalaria outro sitiante, ou o iilho deste, tam
ele pode ser acionado para evitar a ruptura desse modelo, no que se refere à bém de ne seu ato como ajuda. Pensa se, de tato, numatroca de ajudas, e o
complementaridade entre trabalho e ajuda (marido mulher e à posição do pal † _.. .__ ___. `_ïII'

na hierarquia familiar: 20. O terrnc agricuitor na Parafba equivale a sitiante em Sergipe e outras partes do Nordes
te. Hefere se, basicamente, ao ,oai de femfiia que trabalha em ten'as próprias.
21. O trabaiho como categoria cultural refere se, de um lado, ao trabalho sobre a ten'a e, de
19. Com reiaçãe ã categoria cultural trabaiho ver Garcia Jr. (1983a); Heredia (19?9); K. outro, ao bai. Trabaihe é uma categoria moral relativa ao controle do pal scbre o proces
Woortrnann (†986e}. so de trabalho da familia. É uma categoria objetiva do sujeito que estuda.

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Klaas Wooitmann Com parente não se neguceia

pelo contrario, vive do trabalho do traco. Portanto, é se dono pelo trabalho, irt
que se observa em Sergipe configura, neste piano, uma construção muito
dependentemente de haver ou não propriedade juridica da terra. Slnonims
próxima da que foi registrada entre coionos italo brasileiros no Fito Grande do
mente, é se sitiante por se ter construido o sitio, espaço por excelencia da la
Sul. Entre estes, prefere se ao contrario de Sergipe, contratar como jornatero
milia, através do trabalho, ou por te lo herdado de um pai para transmlti lo no
alguém que seja, ele mesmo, um produtor familiar:
futuro a outro pai.
No Nordeste do Brasil, como indicam as minhas observaçöes e as de
É dono de terra, porque naquela época non tem service na roça, porque o miiho
ton limpo, o teijon non ton pronto pra colhe, ton de fotga. Porque é gente acostu Garcia Jr. (1983b), assalariar se permanentemente, isto é, viver do alugado é
rnada a trabaiha. 'vai chamá gente que non son dono de tera, que non trabalha na a negação da condição de dono. Viver do alugado é o cativeiro, a negaçäo da
tara, non é acostumado de trabaihã no pesado (Tavares dos Santos, 19?8: 42; autonomia no processo de trabalho. O assalariamento na fazenda ou no en
grifos meus)
' i. genho é cativeiro, é sujejção, tal como na Colômbia é humiilación. Distinta, to
O trabalho assalariado se taz ai, então, peia conciliação de dois proces davia, é a representação do assalariamento entre sitiantes. O fazendeiro é
sos de trabalho familiares com temporaiidades distintas. Quando num deles se percebido como outro; o sitiante, ao contrario, é visto como vizinno e trabalhar
necessita trabalho, no outro "ton de folga”. Tal conjugação torna possfvel, a para ele é ajuda.
Iongo prazo, a continuidade do trabalho familiar em ambos os lados. O assala Quando ajuda se conjuga a trabatnadorzinno, os termos remetem à hie
riado, ademais, deve ser, ele mesmo, um produtor familiar e, mais do que isso, rarquia. lvlas, o proprio diarista também expressa a relação como ajuda: “vou
deve ser dono de tere, com uma ética de trabaiho camponesa (Delbos, 1982). ajudar F. na derrubada da roça". Ainda que se trate, objetivamente, de uma
Dono de tera e pai de farnriia parecem ser categorias que, em distintos con relação de compra e venda de força de trabalho (que, nem por isso, transfor
textos de discurso, expressam o mesmo principio moral do trabaino. ma o comprador em capitalista, ou o vendedor em proletário), ela è represen
Dono é também uma categoria moral entre os srtrantes de Sergipe, opon tada significada, pode se dizer através de uma categoria que expressa a
do se ã de propnetário. Enquanto esta última remete a uma ordem económica,
reciprocidade entre iguais. Neste contexto, ajuda não pode significar a relação
onde a terra é mercadoria, e a uma lógica juridica coerente com tal ordem, a com o outro, mas apenas com o vizrnno, um igual. Construindo se o assala
primeira remete a uma ordem moral, onde a terra é patrimonio e transmitida riamento como ajuda, elude se a precisão daquele que se assalaria.
como tal, de geração a geração, segundo padrbes camponeses de herança Quando o assalariado é um filho, a contradição ca, como vimos, minimi
que variam de lugar para lugar, mas sempre espelham essa ordem moral
zada. De certa forma naturaliza se a relação. Quando, pelo contrario, ele é
(Bourdieu, 1962; Moura, 19?'8; Greven, 1970; K. Woortmann, 19B6a; E.
dono de terra, a categoria ajuda opera no sentido de rea rmar sua condição de
par. Um dos atores diz que ajuda quem tem pouca terra para trabalhar; o outro
Woortmann, 1987).
E se dono, não por se ter comprado a terra, mas por te la trabalhado, afirma que ajuda quem tem poucos filhos para trabalhar a terra. Trata se sem
pre de uma relação entre tracos, pois os sitiantes, em conjunto, se opöem ao
como revela o depoimento seguinte:
proprietádo, ao outro que é forte. Não é distinta essa construçãc daquela re
O seu pai sempre foi proprietãrio de tenes?
gistrada entre os colonos 'talo brasileiros estudados por Tavares dos Santos.
Ele foi proprietário, quer dizer, dono, não é? Proprietãrio mesmo nos não so A transformação do assalariamento em ajuda transparece no depoimento de
mos. Proprietário chama so esses que tem muìta terra, e nos não tem. Ele foi dono um dono de terra:
porque ele trabalhou a terra e passou para os filhos (E. Woortrnann, 19B1:30)2E
Ah, jornaiero as veiz, ,ora ajuda aigunt nome rá, no que precisa um dia eu vo aju
É se proprietário pela compra, e não pelo trabalho. Proprietãrio designa da; mas non sou obrigado de trabalhã, se quero vo (Tavares dos Santos, 19}'B:39
grifos meus).
também o outro, na terminologta local, isto é, o forte que não trabalha, mas,

Vé se nesse depoimento que quem assalaria é que precisa; o jornaiero


22. Note se que “esses que tem multa terra” são pecuaristas. Para eres a terra é terra de
gado e não terra de trabaino. ajuda, mas só se quiser; não é obrigado a fazë Io. O discurso como que pre
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Klaas Woortmann Com parente não se neguceia

serva a independencia e a honra do pai de familia, pois é um discurso cons Num segundo sentido, sitio signi ca uma area de terras trabalhadas por
truido com as categorias da reciprocidade. uma familia, idealmente localizada no interior do Sitio em sentido amplo. No
O significado do assalariamento, contudo, deve ser relativizado e con século passado, o sriio era a posee não delimitada nas soitas da regiao, tra
textualizado, como se vera no prosseguimento deste trabalho. Aqui, vamos balhada seja por uma familia, seja por um conjunto de “heréus em comum"
reter apenas que viver do aiugado é distinto de “ser jornalero as velz... se que (Teixeira da Silva, 1981), e este segundo sentido do termo podia se confundir
ro vo", ou de ser um traoainadorzinno que ajuda um pai de familia com poucos com o primeiro, pois era de um tal sitio com “s” minúsculo que se originava
lhos. o Sitio com "S" maiúsculo. Neste seu segundo signi cado, o sitio é o patrimo
nio construido pelo trabalho da fam ia e transmitido de pai para filho, segundo
2. Quem é Casávei não e Assaiariavei regras de nidas (E. Woortmann, 1985). O sitio é o resultado do trabalho e o
lugar do trabalho por excelencia. So é sitio a terra que é trabalhada ou foi tra
Sitiantes tracos vendem sua força de trabalho aos sitiantes torres* du balhada no passado (estando em "descanso" no presente, para voltar a ser
rante o pico do ciclo agricola, mas essa relação obedece a regras relaciona trabalhada no futuro). Esse sitio atravessa um ciclo de desenvolvimento que
das ao padrão de trocas matrimoniais, no caso do Sitio, assim como aos prin não interessa considerar aqui em detalhe, correspondendo numa fase a varias
cipios (antropologicos) da honra e da reciprocidade. Para entende las é preci casas que trabalham aterra em comum, solo certos aspectos, e separada
do examinar o significado de Sitio. mente, sob outros. Esse padrão corresponde a principios de troca matrimonial
O termo designa mais do que uma parcela, posse, ou mesmo terra tra e de residencia.
balhada no interior de uma fazenda ou engenho. Ainda que a comunidade de Num terceiro sentido, a mesma palavra designa o conjunto casa quintal,
sitiantes que toi estudada em Sergipe como caso exemplar e como situação aproximando se seu signi cado do de chao de morada. Durante a fase do ci
Iimite apresente diferenças relativamente ao Mir russo, ao Avllu andino, a Za clo de desenvolvimento referida acima, cada sriio (no segundo sentido do ter
druga dos camponeses eslavos e outras formas, ela retém, no entanto, ca mo) pode conter varios sitios (neste terceiro sentido).
racteristicas de "comunidade fechada", onde o acesso ã terra se faz pela via O termo Sitio designa, então, o espaço de troca de mulheres, através da
do parentesco, aproximando se um tanto de uma irinsnip poiity, tal como defi qual se realiza a alìança entre os homens; o espaço da troca de tempo detra
nida por Fortes (1970). balho entre pais e o espaço do circuito de dotes, isto é, o espaço da reciproci
O termo sitio tem tros significados. Em ordem decrescente de inclusivi dade; essas trocas se dao no interior de um territorio que é constituido peia
dade, são os segurntes: em seu sentido mais amplo, ele designa uma comuni descendencia. A palavra sido designa, igualmente, o espaço de trabalho do
dade de parentesco, um espaço onde se reproduzem socialmente varias fami pai e da reciprocidade deferida pai lho no contexto da hierarquia familiar.
tias de parentes, descendentes de um ancestral fundador comum. Existem Si Neste sentido, o sitio é o lugar ideal da terra de trabaiho. Finalmente, em seu
tios mais ou menos abertos a não parentes, mas aquele que é aqui tomado terceiro significado, sitio designa o espaço da mae no contexto da comple
como situação limite é inteiramente fechado a estrannos, isto é, as pessoas mentaridade casairoçado. Em todos os seus sentidos, o termo remete ao pa
que não descendem do referido ancestral. Neste plano de significado, o Sitio é rentesco ou, mais especi camente, à iamriia, que possui, também, tres signi
um territorio de parentesco, definido peia descendencia e pelas trocas matri cados: quem mora numa casa é uma familia; o conjunto de casas (ou fogos)
moniais, como dominio quase corporativo do conjunto de suas terras. dentro de um sitio (no segundo sentido da palavra) é igualmente uma fam ia
(uma familia extensa, pode se dizer); o conjunto de parentes que descendem
do ancestral fundador e que constituem o Sitio sao “uma fam ia so”. O dtrelto
aos recursos do Sitio são dados pela descendencia; o acesso ao sitio nos
23. Face ao proprietario, como vimos, todos os sitiantes são iracos, mas intemamente se dois últimos sentidos da palavra são dados pela liaçao, casamento s resi
diferenciam. Todos, porém, se identificam como sitiantes e vizinhos. Todas essas cate
gorias, como sera visto, são sempre relativas ia contextos especi cosj e relacionais (en dencia. Entao, sitio e familia são termos polissèmicos e paralelos, mas cuja
tre pessoas e situaçoesj. polissemia "unifica" categorias de espaço e de parentesco.

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Klaas Woortmann .
Com parents nao se neguceia

Sitio designa sempre um espaço de reciprocidade e o assalariamento,


ainda que representado como ajuda, nunca ocorre no interior de um mesmo A, estabelecendo se uma relação de reciprocidade direta2'*. Compadrss sao
Sitio (isto é, comunidade, bairro, parentela), mas apenas entre Sitios distintos. concebidos como lrmaos rituais (e, com grande freqüencia, são “irmaos de
Dentro do Sitio, as necessidades de trabalho são satisfeitas através da troca sangue"). O padrinho, por outro lado, e "que nem o pai", e essas construçoes
de tempo, para usamtos o termo local. Essa troca nao é pensada como tra legitimam a troca de crianças, tornado se o(a) a lhado(a) um(a) lho(a). Atra
oaino. mas como ajuda entre iguais, e que sera retrfbuida. É uma atividade vés da cultura, oonsegue se equilibrar o grupo doméstico, ao mesmo tempo
descrita mais como festa que como labuta; o que os informantes enfatizavam que se preserva o principio da iamiiia.
ao falar dessa troca era seu aspecto ritual. No interior do Sitio, a troca de tem Voltando a Sergipe, vimos que nao ha assalariamento no interior do Sitio,
po, além de responder a uma necessidade pratica, possui também um signi porque nao se assalaria quem é da mesma familia; nao se transforma um pa
cado simbólico: não se esta apenas produzindo um roçado; esta se reprodu rents em aiugado categoria que remete ao cativeiro nem em irabainadorzi
zindo uma comunidade. nho. No interior do Sitio, o que se da é a troca de tempo (de trabalho) entre
pais concebidos como iguais. Sendo o Sitio um espaço de trocas matrimo
No Sitio estudado em Sergipe, as necessidades de cada grupo doméstico niais, pode se expressar a antinomia entre assalariamento e parentesco pelo
se resolvem ainda de outras maneiras expressivas da ordem social que o principio de que quem é casavei não é assaiariávei. Essa troca é representa
constitui. A relação padrinho afilhado tem uma serie de conteúdos centrais a da como ajuda, mas o termo aqui não expressa, como vimos antes, uma rela
organização do grupo, inclusive, no que diz respeito à reprodução do patrimo çao de hierarquia, mas de igualdade. Outra forma assumida pela ajuda é o
nio familiar. Neste contexto pressäo demogra ca e percepção da terra como chamado ieiião. Este ocorre quando um pai esta temporariamente iracassado.
patrimonio aiilhados trabalham para padrinhos, com poucos filhos ou sem A comunidade se reúne e cada um contribui com algo a ser Ieiloado. O ieiião
lhos, e se tornam seus herdeiros. l lerdam a terra porque realizaram nela se realiza na casa do precisado, num contexto festivo, cada um comprando o
o iraoaino que legitima a condição de dono e porque são " lhos". Se o padri que foi doado por outro e repassando o apurado ao dono da casa que, diga se
nho é o pai substituto, o a lhado é c filho substituto. Essa realocação do afi de passagem, não doou nem comprou nada. Em nenhum momento, se faz
ihado e sua transformação em herdeiro se coaduna com o padrão de nomina referencia à precisão deste último e tudo se passa como se ele estivesse
ção, ja que é o padrinho que transmite o sobrenome ao a lhado e não o pai ao “dando o leilão', num processo simbólico onde, pode se dizer, as lágrimas
filho. são substituidas pelo riso, resolvendo se em festa uma crise.
Numa situação demograficamente oposta a essa, isto é, uma situação de Se a comunidade é a capsula protetora do campesinato, como diz ivien
fronteira, como aquela por mim observada na Amazonia (K. Woortmann, dras (1976), ela o é por constituir uma ordem morai. lviesmo nas comunidades
teoob), as dimensoes do empreendimento agricola acompanham o ciclo de mais abertas, não se assalaria o vizinito, até porque, dada a recorrencia do
desenvolvimento do grupo doméstico, face ao iivre acesso à terra. Configura casamento intra sitio, o vizinho é um parente potenciale . Neste contexto, en
va se la uma diferenciação demográfica, segundo a concepção de Chavanov tão, vizinno adquire outro signi cado que aquele anten'ormente observado. Fo
(1966). A cisão do grupo doméstico pelo casamento dos filhos correspondía a ra do Sitio, o assalariar se ao vizinho opoe se a alugar se ao outro, pois o vi
instalaçao de novos sitios e à gradativa constituição de comunidades de pa zinho é um igual com o qual se troca ajuda. Fora do Sitio, o vizinho é o empre
rentesco com uma base territorial. Também la, a reciprocidade e o compadrio
jogavam um papel central. Através do compadrio podia se manipular a com 24. A reciprocidade de parentesco (e o compadrio é uma fonna de parentesco simbólico) ii
posição de cada grupo doméstico segundo códigos culturais definidos e coe comum em grupos camponeses. É bastante freqüente a troca direta de im ias, assim oo
rentes com o modelo da familia. Um gnipo doméstico com excedente de me mo a troca em geraooes altemadas. Para um estudo detalhado de alianças através da
troca de compadrio entre camponeses, ver Hammel (1968).
nrnas trocava filhas com outro grupo que ttvesse excedente de meninos pela
via do compadrio. Nesse caso, como em outros, se A se torna padrinho de um 25. A endogarnia de bairro, oomo o Sitio, no Brasil, ou de aldeia, na Europa, e uma dasca
ou mais lhos de B, este, por sua vez, sera padrinho de um ou mais lhos de racteristìcas mais reoorrentes do campesinato. Com frsqüéncla, é perceblda e valortzada
como casamento entre consangüíneos (Burguiere, 1986).

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Klaas Woortmann Com parente não se neguceia

gador eiou assalariado preferencial. Dentro do Sitio, ao contrario, o vlzinho é o tem dono, as roças cultivadas e as capoeiras em descanso tem donos reconheol
assalariado proibido, como o é também o parente, talvez por possuir um ex dos, oom dtreito nao so ao uso mas a escolha do dono posterior... É por fssc muito
cesso de igualdade. ireqtlerite que a roça que era cultivada pelos pais pennanece com o último filhot...
por este ter ficado morando em casa, cultivando a mesma V098 que efes, enquanto
Formaçoes como o Sitio nao sao restrftas ã regiao por mlm estudada. que seus irmãcs ou cunhados em alguma época procurararn numa outra an :ra de
Soares (1987) estudou uma tormaçao equivalente no Noroeste da Bahia, cultivo... em geral após o nascimentc dos lhos (lvlagalhaes Lima, 1518?: fo).
igualmente organizada por principios de parentesco. Esta comunidade se es
trutura através das categorias parente/não parents e de dentro/de fora. Dife Temos, portanto, uma sìtuaçãc muito próxima a do Sitio nordestino, ainda
rentemente do Sitio de Sergipe, e possfvel o casamento com alguém que seja que se trate aqui de uma situaçao de baixa pressão demogra ca. Nessas co
não parente e de fora. Se um homem se casa com uma mulher de iora, seus munidades caboclas, o trabalho familiar, comandado pelo pai, é complementa
filhos serão considerados ,carentes e de dentro. Mas se uma mulher se casa do pelo ajuri, como é designada na região a troca de dias de trabalho. O pa
com um homem de iora, os filhos serão de iora e nao terao direitos plenos aos gamento pelo trabalho do ajuri e sempre feito com comida e nunca com dinner'
recursos da comunidade, pois tais direitos são transmitidos apenas pela linha ro. Eu diria que, neste contexto, a intromissao do dinheiro numa comunidade
masculina. Ter se ia, naquela comunidade, como que uma “cldadanla local” re prcduzìda pela reciprocidade, como que desmoralizaria esse espaço (que,
agnatica. também ai, é um espaço de parentesco).
Também em Pernambuco, encontra se o Sitio, que foi ali estudado por Nessas comunidades, uma familia pode se encontrar em alguma ocasião
Ftinaldi Meyer (1979). A autora aponta para uma identidade de Sitios e para a em situação de crise, sendo então ajudada pela comunidade, isto é, socorrida
constituição de conjuntos de Sitios relacionados entre si. Também ai, o assa pelo espirito de generosidade que informa o todo, ou seja, a comunidade como
lariamento nunca se da dentro de um mesmo Sitio, mas sempre entre Sitios de "capsula protetora”. Nao menos signi cativo e o fato de que, quando se con
um mesmo conjunto, entre Sitios determinados. O mesmo ocorre em Sergi trata mão de obra, usa se a expressão convidar e não empregar; sendo o pa
pee e a permanencia dessa relação conduz como que a uma "troca de ajuda' gamento feito em comi'da. Mas, para que se contrata? Para produzir a comida
entre 'itomadores' e “doadores” (compradores e vendedores) de trabalho, que sera necessaria como retribuiçao do ajuri. Paga se com comida o trabalho
numa relação de patronagem. Assim, se no interior do Sitio, a reciprocidade se que ira gerar a comida para pagar o trabalho. Uma situação descrita pela auto
opoe ao assalariamento, entre Sitios distintos, uma iinguagem de reciprocida ra é particularmente significativa: uma viúva, cujos lhos migraram para a ci
de transforma uma relação desigual noutra entre iguais. dade e que é incapaz de cultivar sozinha a roça, recebe daqueles lhos o di
Essas evidencias indicam, de forma signi catìva, que o assaiariamento nheiro necessário para comprar a comida com a qual pagara o trabalho do aju
nao segue apenas as ieis do mercado, mas também as regras da sociedade. ri, ao ìnvés de paga lo diretamente com o dinheiro recebido. Comparando duas
Se ele possui uma dimensao economica, obedece, por outro lado, aos prince comunidades, uma das quais mais tortemente orientada pelos principios de
pios de uma ordem moraL parentesco, a autora mostra que nesta
Se a troca é um principio fundamental, nao menos fundamental é o que se
O trabalho do ajurf e “mais relaxado' como dizem, pois nao ha a obrlgatoriedade
troca. O caso estudado na Amazonia por fvlagalhaes Lima (1987) é muito elu rígida da reciprocidade. Alem disso, quando o donc da roça nao esta em condi
cida vo. Em comunidades caboclas daquela regiao, ainda que a produçao çoes de oterecer o almoço tradicional do ajuri, os participantes levam sua propria
seja realizada por familias nucleares, comida. iliiorador aigurri ja' pagou por trabaino feito em sua roca. So ha troca de
dias ou pedido de ajuda. Esta eituaçao difere dc sistema de trabalho observado
em Nogueira, onde ja existe um proto mercado de trabalho. A ausencia desee
A propriedade da terra é considerada comunaL.. Sendo a terra comunal, as cas mercado em Vila Alencar pode ser explicada pelo tato de ser uma comunidade
tanheiras... sao de todos... Quanto ao uso da tena para a agricultura, existe uma menor onde os laços de parentesco sao mais proximos e mais visiveis... Na vila
noçao de posee temporal ligada ao uso agria ola continuo. Enquanto a tene não Alencar existe... menos contabilidade de favores tlvlagalhães Lima, 1986:2o}.

2s_ Em Sergipe como em Pemambuoo. existem Sitios torres e Sitios iracos, e o assalaria As duas comunidades conespondem, portanto, às gradaçoes de recipro
mento se da entre cs primeiros tempregadcres) e os segundos (empragados). eldltde modelamtente analisadas por Sahlins (1978). O que quero ressaltar,

34 ' 35
Com parente não se neguceia
Klaas Woonmann

$91 olotlvos, entidades hierårquicas, elas mesmas engiobadas no todo


todavia, é o signi cado da comida e a ausencia do dinheiro nas relaçöes inter Hìãhi' que é a fazenda. A situação é análoga ã do Sriio, onde a troca se da,
nas a comunidade 2?. hrrlbåm, entre familias, ou melhor entre pais de famiiia que encamam a hierar
Igualmente significativa é a situação estudada por Motta Santos (1986),
quia familiar enquanto pessoas morais e não como individuos; essas familias
não numa iormação análoga ao Sitio, mas numa fazenda. A fazenda pode ser
são também englobadas num todo maior, que é o Sitio, comunidade e patrimo
também um tern`tón`o de parentesco e de reoìprooidade2 . Estudando a fazen nio maior.
da goiana em processo de modernização, a autora aborda com relativo deta Tanto como no Sitio, a troca na fazenda é também obrigatória, mas o que
lhe o sentido da troca num *tempo de transionnação”. me interessa no caso é menos a obrigatoriedade da troca do que o que é tro
cado. O caso desta fazenda é sugestivo, precisamente, peia natureza das
Sob um aspecto, a fazenda não se diferencia do Sitio:
Tanto o proprietãrio quanto trabaihadores mantém entre si relaçdes de parentes colsas trooadas: comida e rraoaiho. Como já disse, examinei num trabalho
cos, ou compadrio... 0 processo de ccupação daquela região foi desenvolvido anterior o signi cado simbólico da comida, com relação ã familia, ã terra e ao
por grupos de parentes... essa circunstancia parece ter gerado uma especie de trabalho. Mostrei como a comida tala da familia e, notadamente, da honra do
obrlgação moral entre as familias (Motta Santos, 1986: 5,6).
pai. .ia sugerí que comida, terra, trabalho etc., são categorias nucieantes de
Não obstante a assimetria entre as categorias socials da fazenda, o sim signi cados, interconectadas e cujo sentido está, justamente, nesta intercone
xão. O caráter simbólico da comida foi também assinalado por Sahlins:
bolismo da reciprocidade ai operante postula uma equivaléncia moral entre
famiiias consideradas iguaƒs entre si (Motta Santos, 1986: 5). Themes aquì, a
meu ver, dois pontos básicos: a troca se dá entre familias, isto é, entre indivi A natureza dos bens trocados parece ter um efelto independente no caráter da tro
ca. Ailmentos não podem ser tratados como qualquer outra coisa... A comida é
fonte de vida... simbólica do fogo dc lar, quando não da més... Transaoöes com
27. Novamente, porém, as colsas precisam ser relativizadas e contextualizadas. Essas co comida sao um delicado barometro. uma a rrnação ritual, por assim dizer, de re
munidades amazonicas podem ser comparadas a aldeia camponesa da iiha de Nisos, Iacöes socials... o trafico de comida é trálìco entre interesses estranhos (SahIins,
19?Ei¦ 215, 216]
no mar Egeu, estudada por Kenna (1986), onde, pelo contrario, a presença do dinheiro
é obrigatoria:
Sahlins, referia se, é preciso notar, a sociedades produtoras de alimen
A regra estabelece que a ajuda seja reciproca e que, mesmo entre parentes pro
ximos, ela seja paga em dinheiro ou em natureza. A diterença entre essas arran tos, como também são os sitiantes ou os agregados da fazenda goiana. A
jos e o trabalho contratual reside no fato de que um homem tem a priori, a obriga comida é o elemento central da produção e do consumo, ambos realizados
ção de trabalhar (sendo remunerado) para seus parentes e compadres, antes que pela familia.
para outros, no momento em que eles tenham necessidade, e não de acordo com Entre sitiantes ou agregados, a comida é produzida pelo traoaiho do pai
sua esooiha. {Kenna, 1986: 163).
na terra, que é terra de trabaiho, seja no sentido observado por Garcia Jr.
As comunidades amazonicas são apenas marginalmente iigadas à economia monetaria, (1983a), seja no sentido de ser a terra construida pelo trabalho 29. Comida, tra
enquanto que a comunidade de Nisos dela participa ha muito tempo. Todavia, nem uma
nem outra são mais ou menos camponesas. A etnografia de Kenna deixa claro que tam balho e terra são, como já disse, categorias centrais do discurso campones e
bém em Nisos tem se o que chamo de ordem moral. expressam uma relação moral entre os homens e deies com a natureza. Um
A questão não é o dinheiro em si, mas o modo oomo cada cuitura o representa, e a pre ponto básico que, na minha interpretação, extraio do estudo de Motta Santos é
sença do dinheiro não torna a situação de Nisos um "nexo monetario", característico da
economia de mercado. O dinheiro pode ser ai um eiemento da linguagem da troca. Esta que a trocafé uma linguagem, como assinala a autora, mas que faia com os
comparaçäo chama a atençao para a necessidade de uma "fenomenologia do dinheiro" elementos de`outra iinguagern a linguagem da comida que, por sua vez, tala
em diferentes culturas, desigualmente integradas no mercado.
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28. O sentido da terra como territorio, e não apenas como objeto de trabalho, foi por mim 29. A idéia de que a terra é algo construido peto trabalho e pelo saber que o informa tol su
sugerido, com referencia a grupos camponeses, ao Grupo de Trabalho "Antropologia do gerida por Mireya Suárez, por ocasião do Seminario sobre o Campesinato, realizado no

, 36
Campesinato“, por ocasião da Fteunião Brasileira de Antropologia realizada em Brasilia,
em 1984.
Departamento de Antropologia da UnB, em 1981 [Suárez et alli, 1988].

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Klaas Woortmann Com parente não se neguceia

da iamliia e da honra do pai. Essas linguagens são constitutivas de uma ética As felras se realizam sempre em u m espaço u rbano, ou mesmo... dentro de
camponesa, enquanto maniiestaçóes de uma moralidade mais generalizada”. g randes prop riedades; em todo o caso nunca em um espaoo dominado pelos
prdprtos trabainadores rurais... Os pequenos produtores... na medida que pos
Se a troca é uma linguagem, é fundamental o ponto desenvolvido por sam vender livremente sua produção na feira passam a ter neia o prolongamento
Motta Santos de que o simbolismo da troca estabelece o entrelaçamento das da autonomia existente na unldade de produção. Ao mesmo tempo a feira cria
representaçóes simbólicas entre terra e trabalho: "... um principio moral que oondiçoes sociais de realização de trocas mercantis, consideradas iiegiiirnas entre
os pequenos produtores. Assim, a feira “está em oposição complementar a todas
emerge no momento da troca, articula os elementos terra, trabalho e aiintentos as relaçóes que pressupóem sempre uma oontratemização pesscai e, durante a
e investe os de um sentido simbólico preciso' (Motta Santos, 1986: 13; grifos maior parte do tempo, laços de sangue' (Weber, 19?4) (Garcia, 1984: 184 218;
meus). grifos meus).
Naqueia fazenda goiana, mostra a autora, a troca restaura, simbolica
mente, um tempo mitificado e procura trazer para dentro desee tempo os Vender a própria produção e realizar o valor monetario do trabaino é ex
'tempos modernos', o 'tempo de transformação', expressão local de uma pressão da autonomia camponesa. Neste sentido, a feira é um espaço de rea
'grande transformação” que aqueles protagonistas tentam domestlcar. A troca lização do pai de tamiiia que no roçado encarna o trabalho familiar e na feira
entre os homens é a continuidade da troca com a natureza, pois é a troca de "governa" a transtormação desse trabalho em ganho, necessãrio para 'botar
alimentos (que resuitam da troca com a terra) e de trabalho (que constrói ater de um tudo dentro de casa', outro atributo do pai. Neste piano, na feira se
ra e produz os alimentos). O espaço campones é, portanto, um espaço moral. a rrna a honra do pai, pois quem só pode vender para o patrão, como o mora
dor de engenho, não 'governa' o ganho; é sujeito (objeto de sujeição), já que
não pode dispor livremente do produto do processo de trabaiho, mesmo que
3. 'Com Parente não se Neguceia ou “Todo comerciante é iadrão' este tenha sido realizado autonomamente com base num saber próprio.
Mas, a feira não é apenas o lugar de "fazer a feira". sobretudo, o espa
Se, no interior do Sitio, não se assalaria, pela mesma ética, la não ocor ço do negócio, um espaço não controlado pelo campones; ¡sso no piano das
rem relaçóes de negócio. Segundo o negociante de feira sergipano que deu representaçöes, pois, concretamente, muitos negocìantes são também iavra
titulo a este trabalho, “Com parents não se neguceia, porque no negócio sem dores. Enquanto espaço de negócio, a feira se opóe à campesinidade. Por is
pre um sai ganhando e outro sai perdendo". Muitos sitiantes são também ne so, ela se realiza na cidade na rua ou no engenho, sempre fora do territó
gociantes, mas o negócio é percebido como a negação da moralidade, pois rio camponésff 2. *vale notar que, em Sergipe, quando o comerciante se dirige
ele significa ganhar às custas do trabalho alheio. É percebido, então, em opo diretamente ao produtor em seu sitio, a transação é feita sempre fora de casa,
1
sição ao trabaino e como uma atividade que não envolve honra i. O negocio é no terreiro que separa a casa do caminho, c privado do público, a familia do
pensado como ¡moral pelo próprio negociante, pois também para eie, que é estranho, o puro do impuro.

I igualmente sitiante, só o ganho obtido peto trabalho sobre a terra


traoaino é moralmente legflimo. O mesmo foi observado por Garcia (1984)
em seu estudo sobre as feiras da Paraioa. Nota a autora que
a terra de Sugestivo, também, é que os informantes de Garcia, tal como os meus,
considerem o negócio uma atividade ilegltima. Mais sugestivo ainda é que a
construçåo teórica de Weber (citado pela autora) seja a réplica académica da
ética daquele informante 'com parente não se neguceia* que, naqueie
r _ '_r ní

momento, estava como que falando em nome de todos os camponeses.


86. Essa moralidade contempla o que Motta Santos caracteriza, tomando a fazenda como
caso empírico, como uma continuidade entre as pessoas e as coisas, idéia esse, como
sabemos, central ac ensaio de Mauss sobre a dadiva. 32. Ha, por certo, uma "razäo prátlca" para que a feira se realize na cidade, tão obvia que
dispensa comentarios. Mas isto não nega o sentido simbólico de espaços sociais dife
31. O negocio se distingue também da arte, isto é, oficios como o de carpinteiro, terreiro, renciados e opostos: o espaço do negocio e o espaço da reciprocidade. No Nordeste, a
barbeiro, etc. tvluitos sitiantes possuem uma arte. Ainda que esta não seja trabaino (se cidade é referida como rue e rua é associada à poluiçåo simbólica, pois é dela (e nunca
gundo sua visão tisiocráttca deste), ela nao implica a avaliação negativa dc negocio. da casa) que vem a doença. 0 engenho, por outro lado, outro lugar de feira, éem Ser
Como práticas de reprodução sociai, arte e negocio podem ser pensadas como equiva gipe o mundo, termo que, tal como a cidade, designa o perigo; é também o lugar do ca
lentes; dl' 1 Perito de vista da ordem moral, são pensadas por seus sujeitos como opostos. tiveiro e da Leido Cäo.

38 39
_É _

Klaas Woortmann Com parente nao se neguceia

Sitiantes comerciantes, por vezes, se tornam exciusivamente comer agricultores na Paralba retém, portanto, um padrão de moralidade e uma ética
ciantes. Mas, é apenas em situaçoes de diferenciação social acentuada que o que representa uma tradição no Ocidente, assunto esse ao qual voitarel male
negociante deixa de ser, também, sitiante. Nestes casos, ha um "descola adiante. _ __
mento', uma ruptura com relação aos valores e a ética camponesa, e o vaior O negocio é, então, a negação da reciprocidade (e, por isso, não pode ln
expresso peia categoria trabaiiro é substituido por outros, como 'tino comer vadir o Sitio) e do trabalho. Sob este prisma, é a negação da campesinidade t.
cial", coerente com a nova prãtica. Para a maiorìa, porém, o negocio é um dos Sob outro prisma, contudo, se pensado como práticaiestratégia, ele é o cami
malos para se chegar ã terra, isto é, ao patrimonio, condição de realização do nho para a iiberdade e para a terra. É preciso, então, contextuaiizar o signifi
pai como sujeito trabalhador e transmissor da terra. Neste piano, não ha in cado do negocio, isto é, relativizá io, se o que se deseja é subjetivar o objeto
compatibiiidade entre o negocio e o traoaino, pois o primeìro é o meio para que de nosso entendimento, ao invés de objetivar o sujeito do discurso e da ação.
se realize o segundo. No entanto, é preciso afastar o negocio (impuro) da ca A comparação entre o que foi observado no contexto do Sitio e o que foi ob
sa (espaço de familia) e do territorio camponés, Iocaiizando o na cidade. servado por Garcia Jr. no contexto do 'mundo dos engenhos' permite realizar
0 signi cado do negocio como meio de chegar a terra foi também obser tal propósito. No contexto do Sido, o negocio nega a campesinidade. No
vado por Garcia (1984) e por Garcia Jr. (1983b), cujas evidencias permitem 'mundo dos engenhos' ele a rma a iiberdade e permite a constituição de uma
alargar esta lnterpretação. O estudo deste último autor mostra como se cons condição camponesa, ainda que negando sua ética, num momento do proces
troi no discurso campones uma oposlgão entre traoaihar e viver do negociofia so. No contexto do Sitio, o que é central é a oposição entre negocio e o prin
Significativamente, são aqueles que mais tempo dedicam ao negocio os cipio de reciprocidade: no mundo dos engenhos, o que é central é a oposição
que mais lnslstem em declarar que também trabainam, como que buscando entre o negocio e a sujeiçäo.
afirmar sua honorabllldade através do código moral camponés. Se a condição Se o negociante é Iadrão, como ele proprio se percebe, a partir de uma
camponesa de pai supóe a iiberdade, que pode ser assegurada pelo negö i . campesinidade que 'ele busca reconstruir para si, é o negocio que o salva do
ela supoe igualmente a honra, assegurada pelo trabaino. cativeiro. Se é imoral, é também o caminho da iiberdade. Num paradoxo apa
São, contudo, os proprios negociantes que dizem que “todo comerciante rente, pode se dizer que, realizando o serviço do Demonio, escapa se da Lei
é Iadrão”, percepção essa coerente com a relação mutuamente exclusiva en do Cão. Nosso sitiante de Sergipe dizia, como Weber, que 'com parente não
tre parentesco e negocio observada em Sergipe. Na Antiguidade greco roma se neguceia”. Mas é por causa do negocio que pode o iavrador negociante da
na, aponta Garcia Jr., a riqueza era a agricultura, atividade por excelencia do Paralba dizer que “ iho meu nunca foi sujeito de ninguém' (Garcia Jr.,1983b:
cidadão, enquanto o comércio e o juro eram atividades socialmente desvalori 39). O negocio é, portanto, carregado de ambigüidade. Se traoaino e negocio
zadas, nos termos das regras morais da época. O comércio era atividade ne se opóem num plano, noutro plano se articulam, na medida em que um é o
gativamente valorizada por se basear na capacidade de ocultar informaçöes. meio para se chegar ao outro. Se, num contexto, ele nega a reciprocidade,
Na Paraiba, o comerciante é percebido como Iadrão porque o lucro depende, noutro, ele garante a iiberdade e ambos são principios constituintes da honra
não do esiorço fisico visivel, mas do monopolio de intormaçoes. O resultado do pai. A ambigüidade do negócio apenas espelha a ambigüidade inerente ã
do negocio é invisivel para todos (menos o comerciante), enquanto que o ga historia e os distintos meios de se usar seus tempos.
nno e a acumulação de recursos através do traoaino tem ampla visibiiidade
social (Garcia dr., 1983b: 175). A invisibilidade do negocio torna duvidosa a
honestidade do negociante. Em outros termos, o lucro do negocio escapa ao
controle do grupo, ao contrario do ganho na agricultura. Sitiantes em Sergipe e 34. Entre os ooionos teuto brasileiros do Sui não existe a feira. A oomerciaiizaçáo se faz
através de intermediarios, donos de um caminhåo, que legitimam sua atividade oons
†__† S' _ I__J truindo a como uma ajuda aos colonos carentes daqueie meio de transporte. Nao se
33. Enquanto que trabainar tem uma conotaçao moral positiva, como atividade honrada, vi admite que ele tenha lucro, mas apenas uma remuneraçáo pelo trabalho de transportar
var do negocio, tal como viver do aiugado, tem conotação negativa, ainda que so esta a produçao de terceiros. So se pode ter iucro através da venda da propria produçeo.
última condição implique suieicão. 0 iucro, neste caso, corresponde ao ganno no Nordeste.
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Klaas Woortmann Com parente não se neguceia
ve se, 'ent ão, que o signi cado da terra é o signi cado do trabalho e o tra
4. Cativeiro, Trabaino e Liberdade baiho é o signi cado da iamlira, como o é, igualmente, a terra enquanto patri
monto. Mars que objeto de trabalho, a terra é o espaço da familiai .
Fiz, diversas vezes, referencias ã iiberdade. Devo agora discutir mais _ A iiberdade do sitiante, do agricuitoi; do coiono sempre um pai de iamé
detalhadamente seu signi cado e sua articulação com a ramiiia, a terra e iia, ou mesmo um patriarca, cheie de uma Casa Tronco, como entre os coin
o trabaiito. Sitiantes, agricultores, agregados, falam de iiberdade ou do cati nos do Sul tem como uma de suas ciimensoes a autonomia do processo de
veiro mas de que se trata? Liberdade de quem? Para responder a essas in trabalho e do saber que a este informa, transmitido de pai a iho. A transmis
dagaçoes devo voitar a considerar algumas categorias já referidas anterior são da tenatsem o saber não transformada essa terra em terra de trabalho,
mente. nem em patnmonro familiar. É pelo saber que o pai "'govema", 'dá a direção'
Sitiante em Sergipe, agiicuitor na Paraiba, coiono no Sul do pais, são ter do processo de trabalho.
mos que se referem sempre ao trabalho realizado pela (e realizador da) fami Face ao si`tiante ou ao agricultor; o aiugado é um cativo porque não con
lia. No Nordeste, a terra de traoaiiro, oondição de realização do pai trabalha trola o processo de trabalho e porque este é organizado sob as ordene de um
dor, tem sua localização ideal no sitio (e dentro do Sitio), espaço por excelen Patrão e não pelos principios do parentesco e sob o 'governo' do pai. Na Pa
cia de realização do pai de familia e da iiberdade. Em Sergipe, a terra de tra ralba, a atividade do aiugado é muito sugestivamente denominada eito (Garcia
baino se opoe e terra de gado, espaço de onde o trabalho foi expuiso. Na Pa Jr., 1983b: 42). A autonomia tem ainda outra dimensão: o controie do tempo.
raiba, a terra de agricultura se opoe ã terra de engenho, espaço onde não se No rntenor do Sitio sergipano, como já se viu, o tempo é objeto de troca reci
.:i
¡.
.|, pode realizar o trabalho. proca entre pais iivres, 'cuja iiberdade depende da própria obtigatoriedade da
¡|. I
r troca. Sitrantes “lrocam tempo' entre sl. A relação entre pai e iho é também
_r A primeira marca o espaço social em que são reproduzldas as condiçoes sociais simboirzada pelo tempo: o pnmeiro doa ao filho que está se tomando adulto um
l' dos cultivos realizados por grupos domésticos de pequenos produtores [enquanto tempo para que ele posea, pelo trabalho, acumular os recursos necessãrios
I
I que a segunda] marca... um espaço sociai onde os cultivos são feitos por traba ao casamento. Diz se que o pal 'dá o tempo".
lhadones submetldos pessoalmente ao proprletårio das terras onde residem... re
lação essa conhecida como sujeição (Garcia Jr., t983b: 8 9). Com o casamento, o pai doa o ciião de roça e o chão de morada, isto é,
os .espaços onde irã se desenvoiver um novo tempo de familia; o iho ca re
A propriedade pecuarista e a propriedade canavìeira são, então, a nega srdrndo no sitio paterno, onde deverã agora 'dar o tempo' para o pai. O con
ção do trabalho. É como se fossem, do ponto de vista de uma moralidade traste com o mundo dos engenhos' estudado por Garcia Jr. é fiagrante, pois,
camponesa, terras sem sentido. Ao ¡nvés de serem a base da iiberdade, con quem vive do aiugado ou quem é morador em terra de engenrio não pode 'dar
duzem ao caiiveiro. Em nenhuma das duas se pode realizar o pai de familia. otempoH nem Il dar o chão', pois não controla nem o tempo nem a terra. Quem
No Sui, o termo coionia tem vãrios sentidos, como o tem também o termo vive do aiugado tem uma temporalldade distinta daqueia do ciclo agricola e,
Sitio, jã considerado, mas é sempre referido ao trabalho familiar num patrimo por rsso mesmo, não é agdcuitor. O tempo de duração de seu trabalho não é o
nio. Entre colonos teuto brasiieiros de Santa Catarina, coionia, significa tempo de todo o processo produtlvo controlado pelo agricultor. Ainda que, ob
jetivamente, seja um “trabalhador agricola', ele não realiza subjetivamente
.. as tenas, benfeitorlas, residencia, animals domésticos. plantaçóes, etc., que, o trabaino enquanto um valor cultural. Na medida em que não dirige o tempo
juntamente oom o grupo doméstico, formam uma unidade basica de produção e da familia, ele é sujeito.
consumo. A concepção de tarniiia camponesa está estreitamente iigada á idéia de O morador é igualmente sujeito, e até mais, pois o aiugado pode decidir
colonia... Constitui a propria caracterização desee campesinato, onde o trabalho quando está drsposto a trabalhar e por quantos dias, por mais ilusoria que seja
r familiar tanto quanto a propriedade da tena são extremamente valorlzados. A co
É.
Il
ionia, nessa contexto, e tanto a terra quanto o produto do traoaiho e do esionpo da essa representação. Quanto ao inorador
farniiia {Seiterth, 1985: 8; grifos meus).
35. A ssrm
' como o Sitio' em seu sentido mais amplo, a Coionia,
. enquanto conjunto
_ de patri
montos familiares localizados em picadas
* '
ou iinnas (pequenas comunidades), é també
I um espaço de trocas matrimoniais. m
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itI.
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Ki ä W00l†lTia"" Com parente não se neguceia

Uma relação que se caracteriza pela disponibilidade do tempo ao patrão é a ne de, na mesma condtção do aiugado nordeslino. A relação de troca com a terra
gação mesma da' temporalidade que supoe a agricultura... o morador é exclusi pois não so a relação entre os homens, mas também com a terra era perce
vamente da propriedade; os rendeiros e meeiros só vão ã propriedade para reali bìda como uma relação de reciprocidade cede lugar a uma relação destrutl
zar o serviço que desejam e quando querem. Os úttlmos são soitos porque o con
trole do tempo das atividades dos grupos domésticos é atributo apenas do pai de va da terra e dos homens. É o tempo da ambição. São representaçoes, como
familia... o que marca a sujeição... é a sltuação de disponibilidade da pessoa do se ve, muito proximas dos 'casos pitorescos' aos quais me referi no inicio
morador, que atinge até mesmo o grupo doméstico (Garcia Jr., 1983b: 33, 34, 8?', deste trabalho. Com a modernização, a terra, a comida, os corpos das pes
56: grifos do autor).
soas e o corpo social se tornam iracos. É este novo tempo que os agregados
estudados por Motta Santos (1986) tentavam domesticar pela prãtica da troca.
Tai subordinação, ionge de se limitar ao processo de trabalho, atinge,
A fazenda tradicional também pode ser um territorio campones e o lugar
também, a autoridade do pai sobre a familia, inclusive as mulheres. Nas paia
da iiberdade, na medida em que al' se dã um tempo e um espaço da familia.
vras de um senhor de engenho: o que está na terra o da terra; nas paiavras de
Essa fazenda se opoe, neste piano, ã piantation modernizada, lugar da sujiei
um morador: em terra de engenno todos são encabrestados.
ção no Nordeste brasileiro e da humiiiacion na Colombia. Contudo, a fazenda
O controle do tempo da familia e a existencia de um tempo de familia au
podia conter dimensoes de cativeiro. Os depoimentos transcritos por Leão
tonomo, assim como o controle do processo de trabalho, são dimensoes bási com relação ao Piauirevelam a ambigüidade da representação da fazenda:
cas da iiberdade do ,_: ai.
A condição de liberio é realizada plenamente pelo sitiante ou pelo agri
O patrão era um homem dc povo... Ele era proprietãrio de muitatena, tlnha vinte
cuitoi; na medida em que este, enquanto pai; tem o controle sobre a terra, o e tantos ou trlnta moradores e ninguorn pagava nada pre oie, então se chema oom
trabalho e o tempo. A situação máxima de iiberdade é a do sitiante no interior patrão, no?... Esse povo de Mundlco era de muito bom coração, não oobrava ren
do Sitio, onde ele é iioeito porque é garantido pela 'cápsula protetora' da co da. lvluitos cobravam. As vezes oe moradores produziam dez quartas, aieles da
vam duas. Se elos tivessem duas ou tree querias não davam nada. porque não
munidade e, através desta, pela tradição camponesa. Paradoxalmente, outra dave o cunsumo de cada dales, não podlem dar.. O morador desidia o tamanno
vez, é no Sitio, onde a terra não é livre, pois é ai pensada como um patrimonio da roça... Eles tudo lrabalhava por conte delas. .. os legumes dales, eies resoivia
que deve passar de geração a geração dentro de um território de parentesco, tudo.
que se é iiberto. O mesmo se pode dizer com relação ã Casa Tronco teuto
Era preciso respeitar os espaços da fazenda:
brasileira, análoga ã maison camponesa na França, onde a terra é presa a
uma ordem moral e não livre no mercado.
Se ele planta no cercado de fazenda ele não pode mandar porque é soita de
Podemos confrontar o que toi visto até aquì com outras sltuaçoes do botar animaL Agora, se ele derrube roça fora daquele cerco, aio fazendeiro não
Nordeste. No Piaui, segundo os estudos de Leão (1986), a formação social. tem o dlreito de botar bicho le dentro da roça do morador... o morador so manda
dominante tem sido a fazenda tradicional, trabalhada por um campeslnato de na roça dele, sendo a roça derruoeda por ele, ai' ele manda... o patrão não tem
nada a ver. (Leão, 1986: 12, 13, 18; grifos meus).
agregados, e permeada de relaçoes de parentesco entre estes e o fazendeiro.
Não é uma situação muito distinta daquela estudada por Motta Santos (1986),
relativa à fazenda goiana ã qual jã me referir Os espaços fisicos da fazenda eram, portanto, espaços sociais diferen
Tal como no Brasil Central, o agregado da fazenda tradicional do Piaui ciados e, dentro do seu, o agregado "'mandava" porque a roça “lol derrubada
pensava se a si proprio como um homem livre, embora imerso na hierarquia por ele”. Mandava, portanto, no produto do trabalho e no processo de trabalho.
da fazenda, pois detinha o controle do processo de trabalho realizado peia ia 0 espaço da roça era o espaço onde se desenvoivia o tempo de familia e a li
mllia. Como ocorrera também com os agregados estudados por Brandão em berdade.
Goiãs (Brandão, 1981 ), vivia se um tempo de iartura. Na fazenda estudada por Nem sempre, porém, o patrão era um 'homem do povo”. Havia fazendei
ele os homens transitaram de uma condição forte para outra fraca porque a ros que soltavam o gado no roçado do morador (que tem aqui o sentido de
reciprocidade cedeu lugar ao utllitarismo;"a troca toi substituida pelo mercado. _ 1
agregado): havia moradores obrigados a trabalhar para o fazendeiro mais dias
O agregado, antes um ,cai de iamiiia livre, tornou se um individuo sem llberda
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que o considerado adequado, fazendo com que o pai agregado não mais des

44 45
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Klaas Woortmann . _ Com parents não se neguceia

Então me lnteressava comprar uma área de terra... Era para ter ilmieza, Isso aqui
se 'conta da dlreção dele', isto é, o tempo do fazendeiro invadia o tempo da é meu... trabaihava encima do que é meu. Quando morro, licava al a famille a
familia do pai', configurando se o cativeiro. ' mulher e os filhos. Podiam dizer: aqui era do meu pal agora é nosso ara `
A fazenda pode ser, então, o lugar da iiberdade e também do cativeiro. nos prova (Leão, 1986: 2). I 'P 'Sau
Não é a 'fazenda em si mesma que é representada como uma situação de su A 'colonia' divide se em uma área comunitaria, chamada 'nosso' e outra
bordlnação, nem é a hierarquia da fazenda percebida como oposta ã iiberdade ãrea dividida em lotes dos colonos, chamada “meu”, Aparentemente, temos
I I I I

do agregado. É a transfonnação da fazenda numa direção racional, moderna, urna forma de apropnação semelhante ao padrão tradicional de uso da terra
“economica”, que traz consigo a 'amblção' e o cativeiro. Quando a fazenda é vigente em multas partes do Nordeste do século ><lX (e de Portugal até hoja):
penneada por relaçoes de parentesco,"o camarada mora de agregado e tem partes trabalhadas por uma familia, das quais se era dono pelo traoaiho, e
aquele dono de terra para servir aquele morador numa precisão partes utilizadas em comum pelo conjunto de familias, geralmente uma parerr
Temos assim uma situação onde o fazendeiro é um homem do povo, do tela, que consütuem o já visto Sitio. Essa 'colonia' apresenta, contudo, difeh
no de terra cujo papel é servir o morador. Parece tratar se de uma relação de renças fundamentais.
patronagem representada como uma reiação entre iguais. Situação oposta é a No lote familiar o “meu” o processo de trabalho é realizado, freqüen
que configura o cativeiro: 'o camarada mora com uma pessoa rica e vive pre tamente, sem a presença do pai, visto que este ocupa se da área coletlva o
cisando deia, e ela matando o camarada na unha' (Leão, 1986:8). i iã uma cla nosso onde o trabalho é realizado por grupos de pessoas Sem orncujo de
ra inversão nas representaçóes: 'homem do povo' (igual)i 'pessoa rica' (de parentesco e fora da organização familiar. O produto desee trabalho não pode
siguaI); o primelro 'serve' o agregado e o segundo 'mata o camarada”. Por ser utilizado pelo colono segundolsuas necessidades. O lote familiar é insu .
baixo e para aiém da dicotomía fazendeiroiagregado, desenvolvem se rela ciente para a reprodução da farrrilla. Tal como no engenho, perde se, então, o
çoes que medeiam essa oposlção fonnal e lhe atribuem conteüdos variãveis. controie sobre o tempo de familia. Os colonos se percebem cativos do traba
A transformação da fazenda em cooperativa, ou em "colonia", gera um iito. A rnversão é radical: o trabalho, ao ¡nvés de fazer a iiberdade, faz o cati`
novo conjunto de representaçoes, a partir de uma mesma matriz ideologica, veiro.
centrada na familia e no parentesco. Se a 'coionia' deveria libertar o Iavrador, Se, segundo a ética camponesa, é o trabalho que faz o dono, na 'colonia'
segundo seus idealizadores, não é assim que ela é percebida pelos colo I . I , _
SÉ É HPÉHHS QUHSB 13080 1 ISÍO É. 'quese pal". Se no S. lito o trabalho realiza a
nos"3E h'@faffiUi '=1 familiar. na "colonia" o trabalho coletlvo a elimina justapondo dife
rentes pais, nenhum dos quais 'dé a dlreção". O trabalho constltui o pai quan
Dlzem que colono é ser dono, que a gente vai ser dono, mas não sei, porque pro
ser dono tem que seriiberto... Golono está quase no que é dele... não esta sujeito do se trabalha "para nos', isto é, para a coietividade representada pela familia,
a um patrão, está sujeito es ieis do Projeto (Leão, 1986: 1; grifos meus). e por si. Mas, na "colonia", o 'nosso' não corresponde ao “nos”, e lá não se
trabalha por si, trabalha se para a cooperativa e pela cooperativa, pois é esta
que detenrrrna o processo de trabalho, seja enquanto forma de cooperação
Essa lala, dos novos "colonos", não é, evidentemente, a tala de um ho
(que anula o pai), seja como procedìmento técnico (que anula o saber do pal).
mem que se pensa livre.
O pai desaparece no "nosso"; ai, o que existe são individuos (e não pessoas
A 'colonia' se con gura, na verdade, como uma nova forma de cativeiro,
morais) subordinados ao "govemo" de estranhos (técnicos). A ooopora oa é
mais do que um espaço de iiberdade. Na “colonia”, o trabalho não quall ca um novo patrão, mas um patrão sui generis:
o pai; visto que não pode deixar herança para o iho, nem controla o processo
do trabalho:
...dlzern que essa cooperativa é nossa, tomos de cuidar dela como se fosse uma
Ufl ç ik P f quando ela crescer nos ajudar. Mas vejo que. essa oriança e dife
rente das outras orlanças, pois ela já nasce mandando na gente (Leão, 1986: 11).
36. .Neste contexto, o termo coionia tem um sentido radicalmente distinto daquele encontra
do no Sul, onde a coionia é o espaço de realização da familia. Na ooionia dc Sul tal co
mo no sitio de Sergipe, se é dono. Na "colonia" (cooperativa do Piaul) se é cativo.

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Klaas Woortmann Com parente não se neguceia

O con ito entre a racionalidade do projeto e a moralidade camponesa ex


A fala acima, de um “colono”, mostra que, se os organizadores da coope
plica porque a permanencia no projeto é, geralmente, de apenas alguns anos.
rativa tentar am construir um discurso fundado no modelo da familia, construi
Para muitos "irrigantes", trata se mais de uma estrategia: ganhar dinheiro para
ram uma familia “de cabeça para baixo". As falas dos 'colonos' expressam
poder, mais tarde, comprar seu proprio sfüo.
duas inversöes semánticas que bem revelam, por oposiçäo , a relação entre
trabalho e iiberdade: na “colonia”, se é cativo do trabalho e não seria despro Em outro estudo, focalizei a relação con ituosa entre agentes de exten
positado igualar o trabalho no "nosso" (que é, na verdade, "deles") ao eito dos säo rural e sitiantes em Sergipe. O programa de extensäo, que percebia os si
engenhos da Paralba. Por outro lado, na “colonia”, é a cniança que manda no tiantes como 'produtores de baixa renda' e não corno pais, partía de uma lógi
par. ca fundada na racionalidade econòmica e do suposto de que os sitiantes não
A situação acima descrita, estudada por Leão, é semelhante àqueia estu possulam tecnologia, isto é, que o saber do sitiante é um não saber (E.
dada por Cameiro (1983), também no Piaui. Trata se de um projeto de irriga Woortmann, 1983). Percebì a relação entre extensionistas e sitiantes como
ção e reassentamento de pequenos produtores, onde só eram aoeitas como um processo de acusaçöes recíprocas. Os primeiros acusavam os segundos
de ignorantes e refratârios a modemtzaçäo. Os sitiantes percebiam o progra
i “irrigantes” familias que contassem com adultos iovens do sexo masculino.
Chetes de famliia considerados idosos pelos administradores do projeto não ma deextensäo como sendo, em suas própñas paiavras, "a dominação', uma
tinham acesso à terra. Como mostra a autora, tal restrlção teve conseqüèn ingerencia na autonomia do processo de trabalho. Declarando ¡legitimo o sa
cias sobre a posição do pai na hierarquia familiar. A familia poderia ser aceita ber tradicional, o programa instalou um contlito entre a ordem moral campone
se um iho se tornasse responsãvel pelo lote, mas ¡sto implicaría uma situa sa e a ordem racional e economica moderna. Atacava se a presença do gado
çäo impensâvei para o pai. É o que ilustra o seguìnte depoimento: no sitio sem compreender seu signi cado para a reprodução social do grupo e
como parte das prestaçöes associadas às trocas matrimoniais (E.
Eles me oharnararn. Os doutor... me chamaram pra ser oolono. Eu assinei [o Woortmann, 1985). Atacava se o saber tradicional sem levar em conta seu
"I Contato Experimenta . Depois disseram que não tinha oondição, que minha ida
J
ds não dava mais. Ja tinha 50 anos, não dava mais pra ser colono, só se um iho signi cado na construção social do par' de familia. A imposição de pacotes
meu assinar prå mim. Que nada! Enquanto tiver ooragem de trabalhar eu não tecnológicos implicava um ataque à própria condição de pai. Numa verdadeira
quero que gente assine por mim (Carneiro, 1983: 11). subversão, deveriam os mais velhcs os pais de fam ia aprender com os
mais jovens, os extensionistas, que " nem casados são', classi catoriamente
Segundo a lógica do projeto, que obedece a uma ordem economica mais
pertencentes à categoria Iho37. Tomando ¡legitimo um saber secuiar, essa
que a uma ordem moral camponesa, a autoridade se subordina à produtivida
'dominação' signì cava o esvaziamento do sentido do trabalho em sua rela
de da força de trabalho e não à hierarquia familiar, onde cabe ao pai 'dar a di
ção oom a familia. implicava, de outro lado, a pcssibilidade de novo cativeiro,
reção', independentemente de sua idade. Se, em função dessa hierarquia, pois os sitiantes percebiam o perigo de se tomar cativos do Banco, visto que
encontramos na família camponesa situaçöes de 'menoridade adulta' que en
as inovaçöes propostas implicavam, necessariamente, uma subordinação ao
volvem, por certo, tensöes, configura se aqui o oposto: o pai subordinado ao capital iìnanceiro.
iho. Conforme relata Cameìro, o pai caria restrito ao dominio da casa e, 0 que observei em Sergipe era muito próximo do que Carneiro registrou
portanto, numa situação próxima à da mulher. no Piaul', onde os 'irrigantes' se percebiam ameaçados em sua autonomia.
O projetc de irrigação implica, então, a subversão da ordem familiar, de
Diz a autora:
sartlculando a relação representada entre o rraoarho e o pai e desconstruindo
a familia. Por outro lado, inventava se o vetho, transferindo para o contexto
A expressão ooncreta da mediação de autoridade do DNOCS sobre o "'I1'igante"
campones urna categoria gerada pela lógica do capital, quando, naqueie con se dá através da 'orientação técnica” a que está obrlgatoriarnente subme do., a
texto, o pai ìdoso nunca é marginalizado pela idade: ele é obno do sitio no qual através da impossibllldade å propriedade de um lote fator esse que garante, em
se mora e se trabalha e é também o detentor do saber e da experiencia acu
mulados. É por ser dono do saber que ele é dono do sitio e pai de fam ia. Ele 3?. A grande maiorla dos técnicos em extensão era composta de ¡ovens solteiros s habita
não é um veiho, mas um sabio. .Í'›I vam a rua, isto é, a cidade. Não eram nem ,pais nem sitiantes.
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Klaas Woortmann Com parente não se neguceia

última instancia, a subordinação do produtor às cendlcées de produçao impostas mer? Ou a relação entre efes é de outra natureza, inolulndo até vinculos de eit
pero ouocs (camara, tasa: 14 15). ploraçao (Loureiro, 1983: 4).

Grande parte dos lhos, mostra a autora, se transforma em assalariados;


São situaçöes, pois, que tornam impossivel a iiberdade, tal como esta é somente o iho mais velho tem o “privilegio” de se reproduzir enquanto pe
percebida nos termos de uma ética e uma moralidade especifica. São situa queno produtor, comprando a preço simbólico a parte dos irmãos na herançe.
çées que configuram de distintas maneiras o cativeiro. Mas, o que é essa li A sltuaçäo é muito semelhante à estudada por Moura (1978) e por E.
berdade? Segundo minha interpretação, trata se da iiberdade da familia hierar Woorlmann (1985; 1987) em distintas partes do Brasil, ou por Bourdieu (1962)
quica, hierarquia essa encarnada no pai. Trata se, portanto, da iiberdade da para a França, Arensberg (1959) para a Irlanda, e Burguière (1986) para di
hierarquia no contexto de uma ordem moral. É também a iiberdade de realizar versas regiöes europëias. Loureiro, no entanto, não logra penetrar na lógica da
o trabalho para nds, em oposição ao não trabalho Para o outro. reproduçäo social camponesa. Descrevendo um caso tipico de regìäo, diz ela:
O engenho é, então, um espaço de sujeicão porque nele não se pode
O caso do Sr. Licio é ilustrativo. Ele mora, assim como outro irmão também casa
realizar o pai de familia, nem o tempo de familia. Os projetos inovadores do do... em casa construida no terreno de propriedade do paL.. Suas lnnãs, com o
Piaui são o lugar do cativeiro porque tampouco ai ha condiçöes de reaiizaçäo casamento, sairam da unldade produtiva do pai. Somente seu innão mais novo,
do pai: ele é negado enquanto detentor de um saber e é negado, também, en ainda sotteiro, usa a propriedade do pai (produttvamente)... a propriedade do pai
de Sr. Liclo oonstitui se como meio de produção para apenas um dos lhos... o
quanto pessoa moral quando dissolvido numa massa amorfa de individuos capital investido perrnftiu que c excedente gerado peto trabalho do pai, da mae e
que trabalham no 'nosso' ("deIes") sob as ordens de um estranho. Os proje de todos os iiihos... se oon gurasse oomo capital para apenas um delas... Para os
tos de cooperativas e de ìrrtgação no Piaui, ou de extensao rural em Sergipe demals membros (restou) täo somente reproduzir suas oondiçées de vida oomo
são, sem düvida, bem intencionados, mas como se sabe, o interno está re lrabaihadores, configurando para elos a relação de trabalho familiar como uma
relação de exploraçäo... O que deve ser retido é a existencia de relaçoes de ex
pleto de boas intençbes. _ ploração... mesmo quando os vinculos de parentesco possam dificultar a percep
A historia tem, porém, muitas dimensöes e, como veremos a seguir, no ção (Loureiro, 1963: 5 6; grifos da autora).
bojo desea historia, a iiberdade da familia pode se tornar o cativeiro do indivi
duo. O discurso de Loureiro é muito sugestivo, exemplar de uma ideologia in
dividualista e de uma postura objetivista. Suas observaçöes apenas confir
5. A Descoberia do Pai Paträo, ou O Herdeiro que não Ouer Herdar rnam o que já se conhece sobre os padröes de herança camponesa. Que
sentido há em quali car as reiaçöes familiares como "expioração"'? Que com
A hierarquia familiar é um dos componentes centrais da ordem moral preensäo da lógica camponesa nos dá tal avaliação? Que compreensão da
camponesa. No entanto, sucessivos movimentos de reintegraçäo à sociedade familia camponesa ela nos possibilìta? O tom de denüncia “objetiva” pode bem
nacional moderna geram reonentaçöes nas 'drsposiçöes lnternailzadas que
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ser a projeção sobre um universo camponés da subjetividade da própria auto
configuram um habitos (Bourdieu, 1980), ameaçando o coletivismo interno da ra, com sua consciéncia localizada num universo que tende a ser individua
familia e o poder de coerçäo da comunidade. lista, no plano da ideologia. '
Tomarei aqui dois casos etnogrå cos: os colonos teuto brasiieiros do Sul Não pretendo idealizar a familia camponesa como um mundo de hermo
e um grupo de produtores familiares de São Paulo, estudado por Loureiro nle. Como mostraram Bourdieu (1962), Arensberg (1959), Burguière(1986) e
(1983). Este último grupo realiza uma agricultura moderna orientada mais para outros, a familia camponesa é o iocus de inümeras tensöes, deconentes do
o mercado do que para as necessidades da familia. Pergunte a autora se al', e principio da unigenitura. É justamente este principio que está na raiz da 'explo
entre os produtores familiares em geral, ração' denunciada por Loureiro; o que se torna necessário é entender a rela
ção entre tal principio, o signi cado da terra e da familia e a reproduçäo social
existe de fato urna ooleltvidade de trabalhadores, ligados pela cooperação, ajuda osrriponesa. A propria autora se refere à terra como patrimonio farniiiar. A
mutua e apropriação comum dos resuttados desee trabalho, como a ideologiataz trlnsmissão indivisa é uma prática corrente em grupos sociais onde se privi

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Com parents não se neguceia
Klaas Woortmann
Ett!!! os ooionos teuto brasileiros do Sul, a preservação da Casa Tronco
legia a perpetuação do patrimonio e da familia e não a reprodução social do in oomblnava, ete uma decada atrás, o casamento preferencial (com a prima
dividuo. A unigenitura é um componente de uma ordem moral tendencialmente oruzada patrilateral), a unigenitura, o celibato e a emigração. Tal como ne Eu
holista. A sua melhor expressão no mundo atual talvez seja amaison campo ropa (Bourdieu, 1962), em cada geração, so um iho, o herdeiro, podia se ca
nesa da França, a stem iamiiy irlandesa, ou a Srammnaus aiema. A unigenitu sar e pennanecer na Casa Tronco. O casamento do herdeiro, verdadeirc af
ra e parte de uma tradição que possibilita a continuidade do campesinato no fair o"éi'at para a Casa Tronco envolvida, era construido pela familia e como
mundo moderno. Em comparaçâo, a partilha igualitaria, no Brasil e na Europa, que supervisionado pela comunidade. Essa politica matrimonial visava sempre
oonduziu à proletaitzaçäo, a não ser naqueias situaçoes onde as práticas de a pressivaçäo do patrimonio ìndiviso. A felicidade do novo casa! era assunto
troca matrimonial neutralìzam os efeitos de tal partilha . ' secundario. Em época mais recuada, os lhos não herdeiros migravam para
No entanto, a situação estudada por Loureiro é uma situação de rnudança outras regioes, onde constitufam Casas Filiais, em moldes semelhantes
e he, de tato, uma correspondencia entre as opinioes da autora e as repre ei maison cadette francesa, cando o herdeiro como sucessor da Casa lvlãe
sentaçoes dos lhos sacrificados pelo sistema de herança. O grupo por ela (análoga à maison ainée). Conjuntos de Casas lvlães formavam a 'colonia
estudado atravessa um processo de modernizaçäo que the imprime forte am mãe”, e conjuntos de Casas Filiais formavam “colonias ii|has"; entre tais co
bigüidade. Ao lado dessa modernizaçäo permanece, contudo, uma tradiçâo no lonias se estabeleciam trocas matrimoniais. Ate hoje, o herdeiro, mais que
que concerns à terra como patrimonio indiviso, e pode se indagar se não é proprìetáric da terra, é considerado o guardiäo do patrimonio da Casa Tronco;
essa tradição que, num plano, possibilita a modemização em outro plano. os interesses da Casa se sobrepoem aos do individuo. O signi cado da terra
Para entender a situação descrita por Loureiro, e conveniente voitar bre pode ser avaliado pela idéia, ainda hoje comum entre colonos, de que vende la
vemente ao Sitio de Sergipe, assim como realizar uma rápida visita à Casa constitui traição à Casa e aos ancestrais.
Tronco (Stammhaus) teuto brasileira. Ja vimos que o Sitio é um territorio de Este caso contrasta com o do Sitio na medida em que, enquanto neste a
parentesco, onde o acesso à terra e dado por uma combinação de principios primogenitura e a indivìsão estão em processo de se consolidar, no Sul, ob
de parentesco (descendencia, liação e aliança matrimonial) com o principio serva se, na atual geração, o inicio do rompimento com os valores tradicio
moral do rrabaiho, constitutivo do dono. O acesso à terra nunca é dado peia nais: é cada vez mais dificil construir o herdeiro; os lhos, crescentemente,
via mercantit. Ftegras de casamento prescritivas que não admitem trans deixam de se casar segundo as práticas tradicionais de aliança e de reprodu
gressoes associadas a práticas migratorias e a uma forte tendencia para a ção do patrimoniotii. As moças não querem mais se casar com colonos, pre
prìmogenitura, reproduzem o patrimonio de cada familia e o territorio do Sitio ferem cs citadinos; o “colono trabaihador” cede lugar ao 'moço bonito' como
como um todo. No Sitio, os herdeiros idealmente os primogenitos de cada padrão de avaliaçäo de possiveis noivos. Instila se, cada vez mais, a noção
familia, que recebem o nome do heroi fundador do grupo são socialmente subversìva do amor romantico como determinante dc casamento, pondo em
construidos, como são construidos também os lhos que devem emigrar. A peiigo todo o arcabouço social que reproduzia a Casa Tronco. Os lhos agora
continuidade dc grupo, que neste particular não se distingue da maison fran 'vivem sonhando com a cidade”, como dizia um pai desesperançado, e não
cesa, implica o 'sacrificio' de alguns, ou mesmo da maioria dos individuos. são poucas as unidades de produção onde o processo de trabalho se inviabi
Sua temporaiidade envolve, ac mesmo tempo, a continuidade e a ruptura, na
medida em que a permanencia do todo implica o sacrificio de parte dos seus sigualitária, do ponto de vista fcnnal, não significa um rnau tratamento dos näc herdei
membros”. ros. Pelo contrario, as oompensaçoes que recebem significam pesado onus para c pai e
para c iho herdeiro. C mesmo se pode dizer com relação ac dote das filhas. Por outro
lado, cs emigradcs voltam ac Sitio, a m de "buscar nciva", e constltuem os árbitros de
conflitos intemos ao Sitio.
36. A relação entre fcnnas de herança e práticas matrimcniais esta sendo analisada, com
i
I
parativamente, pcr E. 'v'v'ccrI:mann, em seu trabalho de dcutcramentc. _¿¿,`.¿`_ 4 D. A clrculaçäo das mulheres e dos dotes. em ccntrapcsiçãc à fixidez dos homens e de
terra, é central para a reprcdução da Casa e para a preservação dc panrlmonio (E.
39. Esse sacrificio nao significa, contudo, que cs deserdadcs sejam atiradcs a rua da amar _ Woortmann, 196?).
gura. Assim como na França do passado {Burguiere, 1996), um padrão de herança de
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Klaas Woortmann Com parente não se neguceia

liza pela ausencia de lhos. lvlais dramaticamente, o herdeiro se recusa a her


iguaidade, no universo da coionia. lnfringe se c codigo matrimonial, casande!
dar. introduzem se, então, no universo da coionia e da familia, os projetos in
se com "estranhos" e recusando o casamento socialmente reprodutlvo. Nega
dividuais dos filhos, em oposição ao projeto coletivo da familia, pedra de toque
se o valor do patrimonio familiar e se repensa a terra como mercadoria e como
da organização sociaL A familia tradicional, mais que simples 'grupo domesti
propriedade do individuo, livre para dela dispor como se quiser. Pode se dizer,
co extenso”, era o Tronco; a terra, aiém de objeto de trabalho, era o patrimonio
numa metáfora, que os ancestrais estão sendo mortos, ou 'desenterrados' do
desse tronco; a produçäc familiar stgnificava bem mais que a força de trabalho
solo que simbolicamente lhes pertence.
doméstica: significava a hierarquia familiar.
Com a emergencia de projetos de vida individuals, a migraçãc muda de
Se o pai, em todos os casos, encarna a familia, o sucessor encarna a
signi cado. De uma migração estruturante (a dos não herdeiros), passa se
Casa, no contexto do Sul, e o Sitio, no contexto do Nordeste. É nesses con para uma migraçäo desestruturante, ditada, não mais pelos interesses da Ca
textos que se compreende a “expropriação' de uns para que outros possam sa Tronco, mas pelos interesses do individuo”. Desnaturaliza se um habitos
se manter pais, guardioes da tradiçäoii. que a historia, em outro momento, naturalizou. Se, na situação tradicional, o
O coletivismo interno da familia tem sido um dos fatores de pennanencia não herdeiro era a vitima estruturai do sacrificio reprodutivo do todo, vitima
do campesinato através da historia, mas hoje, ele parece se chocar com pro essa socialmente designada e, por isso, resignada, como diz Bourdieu (1962),
jetos individuais. Tal coletivismo expressa a oposição entre o 'nosso' e o 'do hoje e o herdeiro que começa a se perceber corno vltima. O herdeiro era her
outro": supondo a subordlnação do destino individual à coietividade, ele pode
dado pela terra. A crise se instala, sobretodo, quando ele se recusa a conti
se tornar uma das fontes da crise do campesinato. O que ocorre entre os co nuar pertencendo el terra, isto é, quando começa a se perceber como indivi
lonos do Sul e o mesmo que ocorreu na Europa. Como mostra Tepicht: duo. Os guardioes da ordem começam a não mais poder impcr a submissão
.. é precisamente esse coletivismo interno rigcroso que se torna uma das fontes "espontánea", ã medida em que novas avenidas se abrem e a migração, que
de sua crlse.. O confllto entre os "menores de trinta anos” e seus pals...; a impos era um cálculo coletivo, se torna um cálcuio individual desorganizador da co
sibllldade de se aflnnar no trabalho e de dispor materialmente de si mesrnos, es
tlmulam a partida dos mais dinámicos, engendrando o envelhecimento do 'pes Ietividade.
soal' dos estabelecimentos camponeses, o abandono daqueies que ficam, a naL Podemos voitar, agora mais bem informados, às observaçoes de Loureiro
sem herdeiros. Os esforços para se adaptar és novas exigencias do tempo...
agravam sua situaçäo linanoeira, sem resolver, contudo, seus con itios internos. O para o grupo que ela estudou em São Paulo. Se sua anålise obscurece a
que toi um dos traços mais antlgos e mais duréveis da economia camponesator compreensäo de uma logica camponesa, fundada nos principios de uma or
na se um dos fatores de sua inevltével ruptura (Tepicht, 1973: 24). dem moral, e do signi cado de uma tradiçäo camponesa, a autora, no entanto,
detectou rachaduras no coletivismo familiar, teo significativas como aquelas
Bourdieu (1962) também aponta as mudanças que transformam a primo observadas entre os coionos teuto brasileìros. É o que expressam as pala
genitura de priviiégio em prisão e que dificultam a realizaçäo das práticas ma vras de uma fiiha: “Bem que eu que 'ria trabalhar so de camarada pre ganhå um
trimoniais (e seu corolário, o ceiibato) que asseguravam a preservaçäo do pa dinheiro que é meu, mas não posso, porque tenho que trabalha para o pai', As
trimonio.. O coletivismo interno começa a apresentar rachaduras que se ex paiavras dessa filha são coerentes com a opinião de Loureiro, mas o mais
pressam pela recusa dos lhos em aceitar o destino campones. No Sul do signi cativo é que aquela lha percebe o trabatho familiar como trabalho para o
Brasil, também se nega a condiçäc de herdeiro, assim como a de não herdei par; como se este último deixasse de encarnar a totalìdade da familia para se
ro; invocando o Codigo Civil, introduz se, através dele, uma outra logica, a da
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42. 'valeria a pena estudar o significado das migraçoes recentes para a nova fronteira do
41 Também no Sul, o deserdamento dificilmente pode ser considerado uma "exploraçao". Centro Oeste. Poderiam elas de alguma maneira contribuir para uma reversäo do pro
No caso das mulheres, a herança é compensada pelo dote e no caso dos homens, pelo cesso, no sentido de afastar os não herdeiros do patrimonio original? vale aqui uma
treinamentc necessario para a vida na cidade, hcje, ou pelo investimentc que possibiiita ccmparaçåo com a migracäo de nisseis e de sanseis para o Brasil Central: ao que pare
estabelecer se numa coionia nova. Ate hoja, boa parte dos deserdadcs ingnessa no ce, trata se da migraçäo do filho ni *' 2, permanecendo o primogénito na terra origi
clero. A elite eclesiástica e a elite burguesa atuai tem sua origem, em boa parte, nos de nat.Nesse caso, de nipo brasiteiros, mantém se a tradiçäc da casa japonesa, paratela
serdados. mente a uma considerável modernizaçãc tecnologica.

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¡(1333 Woo; imann Com parents não se neguceia

tomar o pai patrão. igualmente significativo, contudo, é que os lhos continuem que organizam o discurso antropologico sobre essa mesma gente e, a partir
a aceitar o deserdamento (isto é, a unigenitura) e continuem a trabalhar para o dela, de um modo de ser humano mais gerai. As categorias antropologicas
pai. que permitem essa passagem do particular etnográ co para o geral teorico
Parece surgir, nesses casos, uma tensão entre o trabalhar para nos e o são reciprocidade, honra e ni'erarquia. Articulando as entre si e referindo se às
trabalhar para mim, quando era o primeiro que assegurava o não trabathar pa representaçoes daquelas homens concretos, posso me aproximar da cons
ra o outro. É como se, no movimento constante de reintegração a urna socie trução de uma tradiçåo na qual se inscreve a campesinidade..
dade global em transfomiaçäo, o fiiho reaiizasse uma 'descoberta do outro', Não será, porém, neste trabaiho, necessariamente limitado, que reaiizarei
de uma aiteridade não tradlcionai de novos valores, estabetecendo, com isso, plenamente tal intento. Esta é apenas uma primeira aproximaçao. Este texto é,
o estranhemento de seu proprio universo e sua desnaturaiìzação. É como se por isso, um pre texto; através de outras aproximaçoes, pretendo chegar ao
reailzasse, à sua maneira, pela experiencia, um equivalente ao encontro etno meu objetivo. Ele é, contudo, suficiente para mostrar que terra, trabalho, fami
gréficc. Ao faze lo, descobre o catlvelro no interior da familia, enquanto seu pai lia, etc., coristituem uma consteiação de categorias interdependentes que re
percebia o catlvelro como a negação da familia. O coletivismo que possibilita metem a um ordenamento moral do mundo.
va ser liberto 6 retnterpretadc como sujelçãc. O Sitio, a Goiônia, a comunidade da Amazonia e mesmo a fazenda, são
C transito da familia Iiberta para c individuo livre pode representar a dis territorios de reciprocidade, na medida em que são o espaço da troca, em sua
solução da ordem moral. Pode representar também, em muitos casos, a pro oposição ao negocio e ao cativeiro. Não pretendo explorar aqui o significado
ietartzação. pleno da reciprocidade, conceito fundante da antropologia; quero apenas des
tacar suas relaçoes com a ética da campesinidade. Tiboo não S9 COHTUÚB
Ccnciusão com reciprocidade, pois a primeira corresponde ao que Geertz chama de ex
perience near concept, enquanto a segunda, categoria teorica, corresponde
Depois de ter examinado as faias de sitiantes, colonos, agricultores, etc., aos experience distani concepts. É, todavia, a noção de reciprocidade, mais
devo agora realizar o paseo que liga essas faias, isto é, o corpo etnográfico do que a noçäo de troca, que pennite entender a campesinidade em sua di
às '*falas" dos antropoiogos, isto é, ao corpo teorico. Por outro tado, desejo mensão mais geral. isto porque a reciprocidade não significa, necessaria
estabeiecer algumas ligaçoes preliminares com o pensamento social ocidental mente, a troca, mesmo que a tenha como paradigma. Fteciprocìdade não im
e suas transformaçoes ao Iongo da historia. plica, necessariamente, a circulação de objetos concretos. O que ressaltei
neste trabalho foi o que se poderia chamar de espirito de reciprocidade, em
1. Categorias Cuiturais e Categorias Antropoiógicas oposiçao ao que a modernidade indivìduaiizante construiu como o esptrito da
mercadoria, cu o fetiche da mercadería. O espirito da reciprocidade se a rma
Procureì neste trabalho dar sentido a determinadas categorias culturais pela negação do negocio, ainda que nada seja trocado. inspirado nos escritos
que me parecem centrais, em sua articulaçãc reciproca, para a construçäo do de lvlauss, de Sahlins e de Pclanyi, procuro entender a tala do sitiante.
que chamo de campesinidade. vejo, como já disse, essas categorias como O sentido da expressão 'com patente não se neguceia", produzida num
nucleantes de signi cados. vejo as, também, 'corno concreçoes particulares contexto local, ganha signi cado no contexto geral produzido pela compara
de uma ética geral; se são especificas de grupos sociais brasiieiros, são tam çäo em tres planos: a ccmparação com outros contextos Iocais; a compara
bém definidoras de uma ordem moral. Coloca se, então, a questão da passa çäo radical de que tata Dumont (1985), quando, inevitaveimente, oontrastamos
gem do particular para o geral, entendido este geral como um modo de ser, o outro com o nosso proprio universo de valores; e a comparação com o dis
encontrado em muitos lugares e em muitos tempos. curso academico, isto é, entre as categorias culturais e as categorias teori
Farnfiia, trabaiiio, iiberdade, etc., são categorias empíricas que organizam cas. Entäo, compreender a fala daquele sitiante particular, local, implica pas
o discurso daqueles que compoem o corpo etnogrà co por mim utilizado. Mas sar pela teoria generalizante reintroduzida no particular. O homem do Nor
são, também, categorias que possìbilitam a passagem a outras categorias, deste que disse essa frase, ou que disse que todo comerciante é Iadrão, fatou,

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re. No campo da reciprocidade que estou aqui examinando, quanto maior o


a partir de sua experiencia imediata, aquilo que os teoricos escreveram, a par
valor de uso, tanto maior o valor de troca que possui a coisa trocada. É o caso
tir de uma vivencia mediada peia teoria.
da comida e poder se ia contrasta la com os famosos braceletes do circuic do
Os sitiantes,coionos, agregados, cabocios ou agricuitores examinados Kula, que tem alto valor de uso por causa de seu valor de troca. O valor de
neste trabalho, jã em si diferenciados por distintas historias, sltuaçoes e iden
uso da comida não se limita ãs suas quaiidades alimenticias; ele envolve tam
tidades étnicas, como que reproduzem o que outros sujeitos produtores de bém suas qualidades como linguagem, uma tinguagem que tala do pai. da fa
idéias dizem em lugares ou tempos Iongfquos, de maneiras distintas na apa rrr ia, do trabaiho, da honra e da hierarquia.
réncìa externa das falas e das práticas. É o caso do discurso produzido no Se a troca articula categorias culturais num campo semãntico uni cado, a
grupo estudado por Taussig (1983), quando nele se realiza o pacto com o reciprocidade, como conceito antropologico, articula se com outros conceitos
Diabo. Talvez de forma ainda mais ciara na situação agonistica da piantation
a honra e a hierarquia constituindo o campo teorico da ordem moraL Onde
colombiana do que no Sitio ncrdestino, temcs em jogo o valor de uso como se troca comida, e quem troca comida? Onde o valor de uso se sobrepoe ao
valor social e o espirito da reciprocidade. São discursos que, não obstante lo
espirito do tucro?
caìs, e que possuem uma especificidade que não deve ser dissolvida, se re A reciprocidade não é um principio de aplicação generalizado. Fteciproci
velam gerais, através da comparação. Trata se, contudo, de um geral com dade e generosidade são dois principios que caminham juntos e se expres
nova especi cidade, aquela da campesinidade como ordem moral, como um
sam num idiom of amity (Fortes, 1970) que pode ser codificado pelo parentes
modo de ser, não local, mas especifico, distinto quando contrastado à ordem co, comc é c caso do Sitio. É no interior do Sitic,espaço de relaçoes entre fa
da modernidade. As falas examinadas são discursos que constroem o mundo milias pensadas como iguais, que não se neguceia. Pela mesma logica, o pa
e o mundo que constroem é o da humanidade e não apenas da Iocalidade. É a renfe não pode ser tornado aiugadoif. Utilizando as idéias desenvolvidas por
construção axioiogica de como deve ser o mundo, ou, por vezes, de como ele Sahiins (1978) em seu ensaio sobre o ensaio de lviauss, eu diria que é no inte
foi antes da chegada da Besta ferafii. rior do territorio do Sitio que vigora com plenitude a lei dos homens. Fora dele,
Como eu disse antes, o espririto da reciprocidade não implica, necessa vigora a lei das colsas, a 'guerra de todos contra todos”. A frase que constitui
riamente, em colsas trocadas. Ele se a rma, também, enquanto um principio o titulo, e o principal leitmotiv, deste meu trabalho, replica tantas outras falas,
moral, pela negação do espirito do lucro, como já havia observado Polanvi como aquelas registradas por Sahiins (1978: 191):
(1971) para a Europa do século XVIII. No entanto, a etnogra a da fazenda
realizada por lvlotta Santos e a etnogra a do ajuri feita por lvlagalhães Lima, “A um estranho poder as emprestar com usura; mas a teu imião não emprestarãs
assim como a referencia que fiz a Sahiins (1978), revelam que, em outro piano com usura" (Deuteronomio X) (iii, 21)
de interpretação, o que é trocado é altamente signi cativo.. Como ressaitou
O marcador sempre engana as pessoas. Por Isso o comércio intra regional é de
lvlotta Santos, a prãtica da troca é uma linguagern e, segundo minha interpre saprovado, enquanto o comércio inter regional dé ao marcador Kapauku prestigio
tação, é uma linguagem que tala com os elementos de outra linguagem, arti e lucro (Pospisii, 1958: 127)
culando entre si categorias nucleantes de signi cado. O elemento central é a
Ganhar a custa de outras comunidades, particularmente as mais distantes, e mais
comida. Ela tem um valor social grande demais para ser mercadoria. É por especialmente aquelas consideradas estranhas, não é odioso aos usos e costu
seu valor de uso que ela tem valor de troca no contexto da reciprocidade, on mes domésticos (veblen, 1915: 46).
de o dinheiro nenhum valor de troca tem porque pertence ao dominio do mer
cado. O conceito de valor de troca depende, pois, do contexto ao qual se refe 44. É interessante observar c paraleiismc entre essas representaçoes e aquetas da França
do século Xvlil, onde as transformaçoes na oficina artesanal, na direção da diferencia
ção social entre o mestre (tornado patrão desvinculado da produção direta) e c oficial
43. Pensei em incluir neste trabalho algumas consideraçoes sobre o Cujo. Todavia, o avan (tornado assalariado), metamorfcsearam os oompagnons (termo que designa igualdade]
çado das páginas, que já ameaça ultrapassar os limites do razoãvel para publicação em aiioues. Tomavam se à iouer, isto é, para alugarfeiugado no Nordeste de hoje, ou
num periodico, me levou a deixar essa questão para outra oportunidade quando, junta aiioués na França de ontem, são os homens tornados mercadorias. Para o caso francés,
mente com a representação da terra , tratarei do Coisa Ftuirn e mostrarei seu significado ver Darnton (1986).
e o da Lei do Cão como simbolos da dissolução da ordem moral.

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Os moralistas Siuai atirmam que os vlzinhos devem ser amigos e mutuamente A questão da honra, como o Ieitcr certamente percebeu, perpassa toda
contiantes, enquanto pessoas de lugares distantes são perlgosas e não mereoem
consideraçoes morais... o comércio com estranhos pode ser guiado peto 'caveat esta minha interpretação. A categoria trabaino, aiém de outros slgnl cados
emptor' (Oliver, 1955: 82). ' que posea ter, na medida em que é constituinte do pai de iamliia, é constituin
te também da honra do pai e, com ele, da familia como um todo.. Trabalho
A reciprocidade, seja como troca obrigatorìa, seja como o espirito que se opoe se também a negocio, atividade enriquecedora, mas desonrante, assim
opoe ao da mercadoria, opera no interior do Sitio (ou de outras construçoes como se opoe ã condição de aiugado. O aiugado não é pai em sua plenitude:
sociais análogas) porque este sendo um territorio de reciprocidade, é também sendo à louer, como vimos, é um homem mercadoria. É através do pai, per
um campo de hora. O principio em jogo é o da honra e não o da honestidade. .sonagem social, como diria Leenhardt (1978), reiacional e engiobante, provido
A honestidade é devida a todo e qualquer individuo, no contexto da constru de honra e de senso de honra, que se realiza o valor familia como concretude
i especi ca do vaior hierarquia. Por isso, como mostrei, a comida, pela qual se
ção cristã do mundo, que transforma c estranho em proximo. Na concepção
cristã, o irmão a que se refere a citação do Deutoronomio, é a humanìdade, faz a troca, é o sinal do pai de familia, enquanto cabeça da hierarquia e reali
constituida por individuos morais em sua relação com Deus, pai desea huma zador do trabalhoi .
nidade. No universo que estamos examinando, a honra delimita um campo
O trabalho é, também, a condição e o simbolo da iiberdade, muito embora,
especifico para c jogo da reciprocidade, como bem mostra Bourdieu (1977), na ambigüidade historica que ressaltei, a iiberdade possa ser conquistada' pelo
negocio. Não hã honra sem iiberdade, mas a condição da iiberdade pode ser,
onde as prãticas são obligatorias, pois o que, realmente, está em jogo é o todo
(a comunidade, a “casa”, etc.). Se a reciprocidade exige um outro para que e no caso do Sitio certamente é, dada pela subsunção ao todo representado
possa haver a troca, ela supoe, também, a construção de um nos que se pela comunidade, ¡sto é, peia subordinação da parte ac todo; pela hierarquia
ii 1'

contrapoe a um outro outro o estranho. Esse nos é constituido por iguais em


honra. Por isso, a reciprocidade se realiza no interior de um territorio que é, compara esse costume com aquele de comunidades dinamarquesas, onde, por ocasião
também, um espaço de identidadetä. do Natal, a familia (viva) dorrne sobre palha no chão, pois as camas serão reocupadas
A reciprocidade opera, então, no contexto da honra. Ela se dé, indepen pelos ancestrais mortos.
Descrevendo comunidades contemporáneas da regiao de Barroso, Veiga de Oliveira
dentemente das diferenças economicas ou sociais que possam existir no inte ressaita sua organização comunitaria: a presença de terras de uso coletivo os baidios,
rior do Sitio, entre pessoas que são ¡guais em honra, pois a reciprocidade é oorrespondentes às soitas no Nordeste ou es iargas nc Centro Oeste brasileiros assim
uma questão de ponto de honra (Bourdieu, 1977). Por outro lado, a reciproci como a existencia de rebanhos coletivos de ovelhas “que cada casa ievava à vez para
os pastos": a existencia de moinho e fomo coletivo: a prãtica do adjunto e a presença do
dade obrigatoria e a honra pois a reciprocidade so é possfvel entre pessoas touro de cobrição, que também é do povo. Este touro possui pasto proprio e estãbulo
(e não individuos) com senso de honra que encamam a honra do grupo que proprio a corte do boi cuidado portodas as familias ern rodizio. O signi cado simbo
Li
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representam: a familia, a parentela ou o proprio todo englobante que constitui o lico do touro se toma expresso durante es ciiegas, isto e, Iutas entre touros do povo de
distintas comunidades. “As vitorias ou es derrotas são vividas como actos em que todos
campo de honra são os atributos de uma ordem hierãrquica. A ordem social, os habitantes da aldeia estão comprometidos o touro do povo é o proprio povo (veiga
que é guiada pelo principio da reciprocidade, é guiada, também, pelos princi de Oliveira, 1984: 254; gritos do autor). O touro vencedor “é um heroi que regressa à
pios da honra e da hierarquia. aldeia em triunfo": O touro vencido "é um animal destinado ao talho".
No contexto desta minha interpretaçäo da campesinidade, a presença dos monos no
Natal revela o caráter holistico da casa e ci touro como que encama, slmultaneameme,
45. Peço ao leitor que pemiita um breve retorno a etnogra a. Este trabaiho já estava pronto os principios da reciprocidade, da honra `“a chega é uma luta entre duas aldéias, para
quando tive acesso a descriçoes de comunidades camponeses portuguesas. Os estudos honra ou vergonha de uma e de outra") e da hierarquia (o touro é o todo), assim como
de O'Neill (1984) e de Veiga de Oliveira (1984) revelam algumas caracteristicas signifi .E` encama a identidade' da comunidade que se opoe a outras comunidades, com as quais
cativas da campesinidade em Portugal. Uma delas é a prática da troca adjunto entre
IE'
está simbollcamentié em guerra.
iamiiias (e não individuos): cada família da comunidade deve estar presente, represen *fit i rit.
tada por um de seus membros adultos. Por ocasião dc Natal, a mesa da ceia deve sem '› . 46. A gura metaforlca do pai como cabeça remote, claramente. à relação entre a parte e
_ pre contar com lugares vagos, que são ocupados pelos ancestrais monos que comparti o todo, tal como a oposiçãc entre direita e esquerda ihomemimulher). A opcsição não é
Iham desea comensalidade, tomando o Natal um culto aos ancestrais. Veiga de Oliveira simétrica, mas hierãrquica (Dumont, 1985).

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de uma ordem holista, na conhecida concepção de Dumont. Por outro lado, se Terra, trabalho tamlita e outras categorias culturais aqui consideradas se
o trabalho é o sinal da iiberdade, trata se da iiberdade do nos e não do eu; ìnterpenetram e não podem ser consideradas separadamente. Pensar trabalho
trata se da iiberdade da hierarquia e não do Individuo. é pensar terra e familia; pensar troca é pensar pai, urna vez que a troca se faz
O trabalho é, ainda, aqullo que tranltorrna a terra de Deus em patrimonio entre pais de familia, enquanto pessoas morais, e não entre individuos. Não
da família. Familia, trabalho e terra, nessa ordem social, constituem um orde são pensadas separadamente porque são categorias de um universo conce
namento moral do mundo onde a terra, mila que coisa, é patrimonio, isto é, bido holisticamente. Por outro lado, pelo menos no contexto deste meu traba
pessoa moral.. De um lado, a relaçlo do horrllm com a terra é uma relação de lho, honra, reciprocidade e hierarquia também não se pensam separadamente;
troca reciproca, onde o trabalho hound! I torta (Garcia Jr., 1983a) que se são conceitos teóricos que se interpenetram na constituição da ordem moral
torna morada cia vida. it relação oom I tlrrl Ó uma relação moral com a natu que chamo de campesinidade”.
reza". De outro lado, a relação oom I t rfl pltriménlo é uma relação de hon
ra e de hierarquia. Sendo a terra 'ttqullo que passa do pai para o iho” (sentido 2. De Aristóreies ao sitiante: As idéias “Nativas” e as idéias Eruditas
original do termo patrtménloj, s não perlenoendo nem ao pal nem ao iho mas
ao todo expresso pela tamlla, 6 o patrimonio que materializa a honra da fami Se é possfvel comparar as categorias culturais com as categorias teóri
lia, mais notadamente da Casa, que constitui ponto de honra para o parta. Ter cas, para dar um sentido geral ao parlicularismo das primeiras, é possfvel,
ra e pai expressam o principio da hierarquia em seu sentido mais fundamental também, e com o mesmo tito, comparã las com o pensamento erudito.. Este
de relação entre a parte e o todo, entre o engtobado e o engiobante.. Enquanto pode, igualmente ser visto como a construção de uma teoria, ainda que não
patrimonio, que pode ser de uma familia, de uma Casa ou de un ra comunidade uma teoria daquiio que é, mas daquilo que deve ser. Por outro lado, tal como
organizada pelo parentesco (como o Sritio no Brasil e a Zadruga eslava, por as representaçües de nossos informantes "nativos", são igualmente uma
exemplo), a terra subsume o individuo, pois este só existe como guardião do oonstrução do mundo.
patrimonio de um conjunto que engloba os monos, os vivos e os que virão a As falas aqui consideradas são, como disse, uma construção axiológica
nascer. A terra, por sua vez, só existe como rradirio.. É só quando eta se torna de como deve ser o mundo.. São falas que reproduzem o que eu chamaria um
mercadoria que ela se descoia da tradição e do todo para aderir ao individuo. 'discurso aristotélico' a oposição entre a arte de aquisição e a arte de enri
Ela deixa de ser da ordem da moralidade, como coisa que é também pessoa, quecer ou um discurso escoiãstico (que pode ser visto como a cristianiza
para ser da ordem da racionalidade, como objeto, coisa radicalmente separa ção do pensamento aristotélico), enquanto condenação do iurpe iucrurn. Se
da da pessoa. podemos entender a tala do povo a partir do escrito erudito, podemos, por ou
tro iado, (re)ler e melhor entender o escrito pela tala do povo , pois trata se do
4?. Essa relação moral com a natureza, relação de troca, é também expressa, na Amazonia, povo de hoje, acessfvel ao antropólogo. Do povo de ontem não é possivei re
pelo conceito de Curupira, tal como anaiisado por Lins e Silva (1977). A destruição da ter a tala; dele temes apenas o registro documental, ¡sto é, a tala que se tornou
mata parte fundamental do tripé em que assenta a reproduçâo do grupo caboclo estu escrito, geralmente, pelas mãos de um erudito (pois, pelo menos, sabia escre
dado por essa autora, juntamente com o roçado e a casa por empresas modemas, so
pode ser entendida pelo caboclo através da expiicaçao de que “os curupira torarn ern ver e, em o fazendo, utilizou os códigos de uma cuttura não oral).
bora". É um plano de ooncepção moral da atividade produtiva análogo às representa Constitui se, então, no meu texto e no de tantos outros antropólogos, uma
çoes dos Mbuti sobre suas reiaçües com a floresta (TurnbuII, 1966), e à famosa noção relação entre o chamado 'pensamento social' (expressão pela qual os aca
de Hau, pedra angular para a oonstrução da teoria da reciprocidade {|'v1auss, 196? e
Sahiins, 1978). A noçäo de curupira rernete a noção da natureza como pessoa, isto é, a
um ordenamento do oosmo onde não se separam as ooisas das pessoas; a um ordena
mento holista do mundo. 3 t 49. Se esses conceitos se articulam na constituição da ordem moral, tal articulação e, po
e rém, ela mesma, hierárouica: não é possfvel falar de reciprocidade sem falar de honra e
48. É neste contexto teórico que Bourdieu (1972) mostra que, na maison camponesa da de hierarquia {hoIismo); não é possfvel falar de honra sem falar de hierarquia; mas, se a
França, o patrimonio é o verdadeirc sujeito das práticas matrimoniais, visto que o senti reciprocidade e a honra constituem a hierarquia, neste contexto, não o fazem, necessa
do destas e preservar a indivisibilidade desee patrimonio e. com ela, a honra da Casa. A ..1,_ _. riamente, em outros contextos. Nestes. o fundamental pode ser a religião e a relação
noçäo de aliança (que supöe a pcssibilidade de mesaiiiance) ganha um sentido distinto puroiimpuro. Por isso, a noçäo de hierarquia é relativamente independente das outras
do da “teoria da aliança" de Lévi Strauss. duas: pode se falar de uma ordem holista sem falar de honra ou reciprocidade.
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Com parente não se neguceia


Klaas Woortmann
Como observa Taussig (1983), ocorreu um 'holocausto moral' na alma
démicos designam as representaçoes e construçoes do mundo, através da da sociedade ocidental com a passagem para um mundo onde a natureza 'de
palavra escrita, daquelas que pertencem ao seu proprio estamento: os erudi Deus' e o trabalho do Homem são rede nidos como mercadoria.. Ao mesmo
tos) e as “representaçoes nativas' (expressão pela qual os académicos de tempo, como mostra Dumont (1977), o todo é substituido pelas partes, no pla
signam o pensamento social do povo, pela tala). Aristóteles, Tomás de Aqui no do pensamento. Teologos, sejam escolásticos, reformadores ou contra
no, Lutero, Quesnay, entre outros, são pensadores sociais fundamentais para refonnadores, ou puritanos são, é claro, pensadores sociais, pois não pensam
o entendimento da tradiçäo em que se inscreve essa ética que chamo de apenas a relação com Deus, mas, igualmente, as relaçoes entre os homens.
campesinidade. Podem ser tomados como marcos de uma moralidade que, a São, aiém disso, não apenas pensadores, mas agentes atfvos de um proseli
partir do século XVIII, sofre uma rnudança radicaL Essa mudança já se pre tismo social.
nuncia muito antes, é claro, com o cristianismo emergente do Ftenascimento, Aristóteles, quando fdescobre a economia', na feliz expressão de Polanyi
etc. lvlas, no século XVIII produz se como que uma precipitação de tenden (1975), já prevé o que ocorreria milénios depois, A ética camponesa que repli
cias, quando a razão, o individuo, o contrato lockeano rousseaniano, a (meta) ca os postutados da ética arlstotéilca se choca com essa nova ordem das
fisica nevvtoniana atomizante do universo, a mercadoria, etc., se articulam coisas, pots, para ela, o direito das pessoas se sobrepoe ao direito das coi
numa nova construção do mundo. sas. Na oeconomia, as pessoas são mais importantes que os bens materiais
Não desejo examinar aqui em detalhe as relaçoes entre a ética campone e sua qualidade é de maior relevãncia que a quan dade dos bens que consti
sa e o pensamento social. É, sem düvida, muito ìnteressante constatar que si tuem a riqueza (Aristóteles, 1985: 31). 'A arte natural de enriquecer pertence à
tiantes analfabetos ou proletárìos neotitos da Colombia percebem o mundo, ou economia doméstica, enquanto a outra pertence ao comércio... peto sistema
o construam idealmente, através dos mesmos valores formulados por pensado de permutas' (Aristoteies, 1985: 26). Esta segunda arte é contrãria ã nature
res eruditos, cujos escritos nunca Ieram. Não é menos interessante que as za. O ramo de atividades pertencente ã economia doméstica
concepçoes sobre o patrimonio e a familia, duas entidades quase sagradas,
sejam tão proximas àquelas tão bem descritas por Coulanges (1981) para o .. é necessãrlo e Iouvåvel, enquanto o ramo ligado ã permuta éjustamente cen
mundo greco romano agrårio. Ou que o valor familia, central para a campesi surado... ele não é conforme à natureza e nele aiguns homens gannarn á costa de
outros. Sendo assim, a usura e detestada com muita razão, pois seu gan ho vem do
nidade, esteja presente nas formulaçoes de tantos pensadores e mesmo de proprio dinheiro, e nao daquiio que ievou et sua invençao fo trabalno)... essa for
'representaçoes coletivas', que constroem a sociedade sobre a matriz data ma de ganhar dinheiro é de todas a mais conirárla ã natureza (Aristóteles, 1985:
milia. Esta é uma questão que será tratada em outro trabalho. Quero lembrar 28; grifos meus).
aqui apenas a profundidade das mudanças na concepçäo do mundo que aba
laram o Ocidente, a partir do século XVIII, criando uma nova cosmología, ato
O dito (escrito) de Aristóteles é o dito (talado) do sitiante. Vale lembrar o
mizada no piano da natureza e individualizada no piano da sociedade, em tudo que dizia este üftimo: “no negocio sempre um sai ganhando e o outro sai per
dende', Vale lembrar, também, o que diziam os agricultores negociantes da
oposta ao mundo relacional anterior e no qual se ìnscreve o modo de ver que
Paraiba: todo negociante é Iadrão. So é honrado, e conforme oom a natureza,
caracteriza a campesinidade: o mundo do valor de uso, de honra, da hierar
o ganho transparente provindo do trabalho; é desonrado o lucro invisivel (con
quia, da reciprocidade, da oeconomia. Tawney (196 4) nos mostra o sentido da
trãrlo ã natureza) derivado do negocio.
revolução moral gerada pelo surgimento de novas concepçoes religiosas que
As idéias de Aristóteles correram mundo e, na base delas, está a distin
fundamentam eticamente o novo mundo. O torpe iucrurn, antes pecaminoso,
ção entre o valor de uso e o valor de troca, distinção essa que não é apenas
se torna santo. O que era um perigo para a atme se transforma na modalidade do plano da economia, mas da ordenação do mundo. A ética aristotélica infor
mais radical da modemidade, em sinal evidente da salvação dessa afma. O
mou profundamente o pensamento social cristão, notadamente, em sua forma
puritanismo, eminentemente utilitarista, transforma o pecado em virtude:
escolástlca. Tanto quanto para Aristóteles, o comércio era percebido como
contrario à natureza. O proprio Lutero, fundamentalmente um agostiniano em
'a mudança de padroes morais que transfonnaram uma fraqueza natural num or
namento do espirito, e oanonizaram como virtudes economicas os hábitos que sua ética economica e social, que se rebelara contra a lgreja, justamente, por
uma era anterior havia denunciado como vicios" (Tavvnev, 1 964: 2).

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Klaas Woortmann Com parente não se neguceia

que esta aderira ao abominãvel iucro, nutria acentuada descon ança dos co ü mercado devia car afastada da ordem moral. Se na Grecia, como mostra
merciantes. O capitalismo nascente em seu tempo, com a gradativa imposi Flnlev (1975), o comércio não concedia a cidadania e devia ticar fisicamente
ção das ieis do mercado por cima das regras da sociedade, eram por ele vis marginalizado, na Europa do Antigo Regime, os muros da cidade destinavam
tas como obra do Demonio, a mesma Besta fera de nossos camponeses. se, não so a proteger o burgo, mas, também, a impedir que a cidade invadisse
Como diz Taussig, ao fonnular tais idéias, Lutero apenas dava voz ã revolta e o mundos agrãrio, ¡sto é, a proteger a ordem moral da reciprocidade e do valor
ao sofrimento causados pela expansão do “motivo do lucro” e pela subjuga de uso contra a invasão do espirito do lucro. Se a contenção do comércio ao
ção do direito dos homens peias ieis da rnercadcria. Paradoxalmente, contu espaço da cidade espaço do trnundus obedecia a projetos de poder politi
do, Lutero inicia um movimento social que conduzirìa, rrraigré lui, ao espirito do co, isto não elimina a antinomia simbolica em foco.. Signi cativamente, o co
capitalismo. Ao se confrontar com a lgreja (aiìando se ao Principe), inicia o mércio era, justa ou injustamente, associado ã gura do judeu, e não so o co
desmonte de um edificio hierãrqufco e, juntamente com o restabelecimento da rnércro, mas o geid rnotii (motivo do dinheiro) em geral. O comércio era a ativi
llgação direta entre o homem (individuo) e Deus, desencadeia um processo dade do Anti Cristo. Pode se especular uma possivel relação entre a invisibili
que, ã semelhança de uma bola de neve lançada morro abaixo, cresce cada dade do lucro e o simbolismo da "escuridão", aquiio que não é “às claras”.
vez mais e se transfonna numa avalanche ideologica. No entanto, Lutero era, Vale especular, também, sobre a idéia de que "o segredo é a alma do nego
no que concerne seu pensamento social, um escclãstico. O proprio Marx que, cio”. Se este segredo, que se contrapoe ã transparencia do ganho pelo traba
em essoncla, postulou o retorno do direito das pessoas, era herdeiro de Aris lho, é a alma do negocio, não seria uma alma vendida ao Demonio?
toteles, quanto ã moralidade do valor de uso. Ou, como dizia ironicamente Quando se formula, ainda na época medieval, a idéia de que Die Stadt
Tavvnev (1964), lvlarx foi o üttimo dos escolãsticos. Se lvlarx institui o indivi nuit maont Frei (o ar da cidade torna livre), inaugura se uma nova concepção
duo, como quer Dumont (19?'7), instituì, ao mesmo tempo, uma nova modali de iiberdade. Surge o burgués (do burgo) como cidadão (da cidade). A nova
dade de ordem moral que nega o individuo mercadoria. Essa Ionga conente cidade jã não é a "cidade antiga” de Coulanges, eminentemente holistica: ela é
de pensamento implica uma concepção de natureza humana radicalmente o lugar do individuo e não da hierarquia. Na cidade, não é o trabaino que en
distinta daquela que se instaura a partir de Lockeff e, mais ainda, daquela ex cama a honra e ìnstitui o pai de famriia como ser relacional. Será nessa cidade
pressa pela Fãbula das Abelhas. Se o mundo em geral seguiu as abelhas, El que, mais tarde, o “tino comercial" revelarã a graça, ou a vocação, do indivi
campesinidade permaneceu aristotélico escolãstica. duo.
O comércio, como vimos, deve car afastado da casa (e poder se la es A reciprocidade é o contrato social do camponés hierãrquico no interior
pecular sobre a relação entre a casa e o “lar”, concepção originalmente greco do todo que é a comunidade. Fora desta, prevalece um estado de natureza
romana de um espaço sagrado). Deve car ionge, também, pelo menos no hobbesiano, analcgamente ãs relaçoes entre naçoes (em contraste com as
Nordeste, do espaço campones em geral. Deve car na cidade, tai como na relaçoes internas) postuladas pelo autor do Leviatã. Fora, e contra o universo
Europa até o advento dos tempos modernos. Como mostra Poianvt (1971), na campones, constroi se outro contrato social, individualizante, e chega se
Europa medieval, o mercado não organizava a sociedade agrãrla i e a praça mesmo a reinstaurar o estado de natureza como lei da sociedade f tal como
implícito no puritanismo utiiitarista e explicito na Fabula das Abelhas. A Ieitura
5D. Convém lembrar que, se Marx é herdeiro das novas idéias sobre o contrato social e do
dessa fábula e a Ieitura da tala camponesa iluminam a passagem da moralida
iluminismo racionalizante, pois ocupa um ponto na historia posterior ao século XVIII, é de para a racionalidade.
também um restaurador da ética que antecede este século tão revolucionario.

51. Polanvi, ao tratar da "grande transfon~nação”, demonstra que, na Europa agraria, até o
século Xvlfl, vigorava uma economia enquanto "processo instituido". Esta economia 52. A rigor, a noçao de sociedade como ordemmorai, campo das regras derivadas do Deus
fundava se nos principios da reciprocidade, da autarquia, do oiiros. Outras fontes per da crrstandade medieval, tende a ser substituida, ou, pelo menos, dominada, pela no
mitem supor que o parentesco era um organizador básico dessa sociedade, como per ção de economia, campo das lets derivadas da natureza e colocadas no mesmo plano
manece sendo no campesinato contemporaneo das partes menos mercantilizadas da | ' r¬
das Iers da fisica. Entre as duas noçoes polares, medeia o contrato social do racionalis
Europa contemporanea (Hammel, 1968). mo que pode ser formulado sem recurso a Deus, substituido este pela Flazão.

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Não se pode aceitar de pleno a noção de Le Fiov Ladurie (Apud Darnton, ção, nem sempre conformes com a ortodoxia catolica. Tais Ieituras provoca
1986) de que a historia da aldeia é uma nistoire imrnooiie. Hã que pensar, ram no moleiro o mesmo choque relativista que provocaram em lvlontaigne.
contudo, que a historia que produz os novos pensadores que pensam a so i Jã me refen antes ã ambrgurdade introduzida pela historia no pensar e no
ciedade como um contrato entre os individuos não e a historia das aldelas, agrr de pessoas concretas, de carne e ossc. No caso brasileiro, assim como
mas das cidades. Se a historia não é imovel, ela tem velocidades diferencia na Europa, a chamada "penetração do capitalismo" não se faz só no modo de
das e, na aldeia, ela é mais lenta. A historia da aldeia não é a historia da cida produção, mas, também, no modo de pensar. Como eu havia dito, a historia de
de; no mundo do iiuminismo, a aldeia oontinuou não iluminada (Darnton, 1986); [cada um enoerra, corrtraditoriamente, a historia geral. O transito histórico rea
no mundo da razão positiva e do objetivismo, permanece a moralidade subjeti rzado pelo sitiante foi, com a mesma ambrgurdade, realizado pelo pensamento
va do mundos da tradição; no mundo do individuo, a terra se toma livre para o social dos eruditos. Se Tomás de Aquino pennanece tradicional em sua con
mercado, mas, na aldeia, ela permanece patrimonio, expressivo de uma or cepção da famiia e de uma sociedade hierãrquica, ele já começa a construir a
dem hierãrquica. Amblguamente, o campones europeu ou o sitiante brasileiro idéia moderna de nação; se Lutero expressa os valores camponeses da epo
realizam uma ética tradicional fundada na reciprocidade, na honra e na hierar ca, voita se contra as revoltas camponeses e se aiia ao Principe; se Quesnav
quia, mas não permanecem ã margem da historia. formula uma concepção cfenti ca da economia, através de seus iaoteaux,
Na verdade, se os pensadores eruditos e os aldeoes periencem a mun permanece preso a uma concepção do mundo organizado por Deus; se Hob
dos distitntos, esses mundos não são separados. De um lado, as concepçoes bes e Locke substituem em suas formulaçoes de pacto social, tão distintas
sofisticadas dos eruditos, como, por exemplo, o conceito de riqueza de Ques entre sr, o Deus holrsta crìstão pelo seus ex macnirra da Ftazão, substrato do
nay, são como que extraidas de um universo de representaçöes agrarias que individualismo, não conseguem, contudo, pensar o mundo sem pensar aquele
incorporam valores camponeses (muito embora Quesnav fosse, claramente, Deus cnstão, Os pensadores sociais são homens de seu tempo, mas são,
um advogado da modernização mercantilista da agricultura). A concepção de igualmente, sinal dos tempos, debatendo se entre valores antftétlcos que bus
trabalho do campesinato brasileiro é, por seu lado, claramente “fisiocrãtioa". O cam conciliar; com freqüencia, seu pensamento está adiante de seu tempo,
valor familia que orienta a ordem social camponesa também encontra sua cor assim como também estava o do moleiro italiano (submetido à inquisição mais
respondencia no pensamento erudito, de Aristóteles a Hobbes, paseando pelo Peli? Clue falava do que pelo que lia), cuja concepção prãtica da religião era
pensamento escolãstico. A não separação entre esses dois mundos, erudito e surpreendentemente proxima da atual Teologia da Libertação.
popular, é muito bem evidenciada por Ginzburg (1987). Anallsando o caso de Antes de terminar, devo fazer algumas ressalvas. Fiepito que meu inte
um moleiro aldeãc italiano do século Xvi, submetido ao Tribunal do Santo Ofi resse não é dizer que o sitiante é campones, mas sim extrair de sua fala e dos
cio, o autor mostra como esse aldeãc tinha seu pensamento fortemente in valores que ela revela uma ética que caracteriza o que chamo de campesini
uenciado peia ieitura de textos eruditos. Seu depoimento e, ao mesmo tempo, dade, expressão de uma ordem moral. Pessoas de carne e ossc são como
extremamente confuso e surpreendentemente moderno. Confuso, porque sua disse, ambiguas e se movem em dois mundos. Disso resulta que a campesi
Ieitura daqueles textos era liltrada pela cultura oral da tradição camponesa a nidade não é uma prisão cultural. Enquanto pessoa concreta, o sitiante não é
que periencia, resultando desse filtro uma interpretação materialista da teolo radicalmente distinto de pessoas "modernas". A nal, se ele acha que todo
gia inaceìtãvel para a Igreja. Moderna, porque o moleiro se antecipa aos pró comerciante é Iadrão, ele sabe, por outro lado, dedicar se ao negocio como
prios eruditos na formulação de uma noção de contrato social fundada na prãtica e sabe investir dinheiro. Os valores que focalizei e as práticas tradicio
igualdade e na iiberdade. Ainda que nunca tivesse iido as obras de Lutero, as nais a que me refen emergem de relaçöes sociais, isto é, são parte de uma
idéias deste circuiavam pelo ambiente campones italiano associadas a uma ordem social (e não de caracteristicas psicológicas individuals) hlstoricamente
série de heresias, como a dos anabatistas. Segundo Ginzburg, o moleiro não constituida. Se a campesinidade fosse uma prisão ou se o naoitus que Ihe
teria pensado o que pensou se já não tivesse sido de agrada e, de cena for corresponde o fosse a migração dos deserdadcs para a cidade, migração
ma, popuiarlzada a idéia de livre arbitrio, e se não tivesse sido inventada a im essa que reproduz o campesinato, resultaría na marginallzação daquelas rni
prensa, que colocou ã sua disposição um conjunto de textos de larga circula grantes, e não, como ocorre, em sua ascensão social no meio urbano. Voito a

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repetir que a tradição não impede a rnodernização; no plano das naçoes, o Este trabalho foi apenas uma primeira aproximação a um tema complexo
melhor exemplo talvez seja o do Japão: a mais moderna tecnologia e o mais Foi, como disse, um pré texto. Foi, por outro lado, um pretexto, pois as re e
eficiente marketing num pais que permanece uma societé a maison, hierarqui xóes sobre a campesinidade me conduziram a questoes mais vastas, como a
camente organizada sobre um modelo de famliia teología cristã e o pensamento social constitutivo da tradição ocldental; ou
A campesinidade, em sua rejeição do negocio e do lucro dele resultante, ainda, a questoes relativas ao valor familia como matriz para o pensar se a
não significa que camponeses sejam, necessariamente, pobres. Certamente, sociedade e a rellgião. Levou me, ainda, a outras questoes camponeses, co
não são magnatas, mas os colonos do Sui vivem bem e não deixam de ser mo a moralidade dos movimentos messfãnicos. Não chego, então, a uma
camponeses por contarem em suas casas com comodidades tais como refri conclusão, mas a um novo começo. Por ora, limito me a essa primeira apre
gerador, treezer ou aparelhos de TV. E entre os sitiantes do Nordeste nao sentação do Homo moralis.
deixa de ocorrer uma espécie de acumuiação a partir do trabalho (Garcia Jr.,
1983a). Nem o sitiante nem Aristóteles advogam o voto de pobreza: Agradecimentos

l 'ã, portanto, uma especie de arte de equlsição que é por natureza uma parte da Agradeço a Alcida Flita Fiamos por seus comentarios críticos e a Ellen F Wooiimann pela eri'
economia doméstica, uma vez que esta deve ter dlsponlvel, ou proporcional', Bla tica e pelas sugestoes que enriqueceram minhas tontes etnográficas
mesma, as colsas passiveis de aoumulação necessãrias ã vida e titers a comuni
dade oomposta peia familia ou peia ciidade... ha uma arte de aquisição, natural
mente pertencente ao chefe de familia e ao estadista... a arte de obter riqueza
através dos frutos de terra e dos animals pode ser pratioada naturalmente porto
dos... Os bens são um dos elementos constituintes da familia e a arte de enrique BIBLIOGRAFIA
cer é parte da tunção do chefs de familia. (Aristóteles, 1985: 1?, 24, 25)

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