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EDWARD W.

SAID

Reflexões sobre o exílio


E outros ensaios

Tradução
Pedro Maia Soares
O orientalismo reconsiderado

Os problemas que eu gostaria de discutir derivam hral,lcm:m duc cri ~;vsl:rria dc dismi i r
clcriva m d:rs qucst8cs gcrais tratadas em Orien~rrli;rru~. Os m:ris importantcs s:ïo: a
representaçaïo de outras culturas, sociedades e h istórias; a relação entre poder e conheci
mento; o papel do intelectual; as questcïes metodológicas ligadas às relaçcies entre diferentes
tipos de textos, enlre texto e contexto, eritre texto e história.
ncvo csclarcccr algumns coisas de início. I?m hrimeiro lugar, uso a palavra orientalisnu~"
mcnas para mc refcrir ao mcu I ivro dcr que aos problemas com os quais o livro. está
relacionado; vou tratar do territcírio intelectual e político coberto tanko pelo Orientcrlisrno (o
livro) conu~ p~lo trabalho que desenvolvi desde então. Em ségundo lugar, cu não gostaria
c~uc pensasscm que se trata de un;a tentativa de responder aos meus criticos. Oricrrtnlisron
provocou um grande nínnero de coment~Srios, em geral positivos e instrutives; uma boa
parte foi l:e;;til e, em alguw casos, oFensiva. Mas o fato é que não cheguei a digerir e enten-
der ttld0 fO Clu~~ lìr: clif:~ ou cscrito. Em ver disso', entre as qt~estòes suscitadas por rneus
críticos, cic·cliquci-n:e ìiquelas que me pareceram úteis para aprofundar um ar~umento.
Oútras observaç~es, comer o fato de eu ter excluído 0 orientalismo J
alemão, que não tcvc sua irrchrsirnjustificada por ninguém, hareceram-nie francan:ente
superirciais, por isso não vejo sentido em responder ao que nuestio
nam. Da mesma forma, a acusação feita por alguns comentaristas, de que sou anistória~ e
inconsistente, teria mais interesse se as virtudes da consistência
, qualquer que seja o.significado do termo, fossem su~metidas a uma análise rigorosa;
(~uando 1 minha anistoricida(ie, trata-sc taml)ém (Ic uma acus;yào mai;; carregada de
aiegações do que de provas.
Enquanto ~etor de pe~samPnto e do conhecimenFo, o orientalismo compreende naturalmente
vários aspectos sobrepostos. Em primeiro lugar, a relação cultural ehistóricacambianteentre
Europa eÁsia--uma relaçãocem 4 mil an~is de história. Em segund(i, a disciplina científica
no Ocidente scgundo a (Iual, a ~artir dolnício do século xlx, alguém se especiatizava no
estudo de várias culturas e tradições orientais. Eni terceiro, as suposições, imagens e fantasias
ideológicas sobre uma região do mundo chamada Oriente. O den(iminador comulo desses
três aspectos do orientalismo é a ünha que separa o Ocidente do Oriente, e essa linha,
sirstentei eu, é mais um faxa da produção humana do que da natureza-chamei-a de geogra ia
imaginativa. Porém, isso não significa qm a divisão entre Oriente c Ocidente n;io mG:de,
nem que seja simplesmentc tìctícia.'1'ratase de afirmar - enfaticarnente - que, como acontece
com todos os aspectos daquilo que Vico denornina mundo das nações, o Oriente e o Ocidente
são fatos produzidos por seres humanos e corno tal devem ser estudados como componentes
integrantes da natureza social, e não divina ou natural, do mundo. E unia ver que o mundo
social inclui a I)essoa ou o sujeito que faz o estudo, assim conu) 0 ohjcto ou (lomínior.Iuc
cst,í sendo cstudado, é imperativo incluir amUos cm qualquer consideração do orientalismo.
É óbvio que não poderia haver orientalismo sem orientalistas, de um lado, e orientais, do
outro.
É. na verdade, um fato básico de ql.zaiquer teoria da interpretação, nu hermenêutica.
Contudo, há uma notável rPlutância em discutir os hroblemas do orientalismo nos contextos
político, ético ou até epistemológico que lhe são apropriados. Isso vaie tanto para os críticos
literários profiìssionais (Iuc escrcv°~ram sobre meu livro como par~ os próprios orientalistas.
Uma vcr quc me paréce claramente impossível descartar a verdade da origem política do
orientalismo e sua contínua realidade política, somos obrigados, por rnotivos intelectuais e
políticos, a investigz.r a resistência à questão política do orientalismo, uma r~sistência que é
sintomática exatamente do que é negado.
~,z/
retratos figurativos que uma trajetória de "ocidentalização"- encontrada, por exemplo, em
Keats e Hõlderlin - via o Oriente cedendo sua preeminência e importância histórica ao
espírito mundial que avançava da Ásia em direção à Eu ropa.
Visto como primitivismo, antiqüíssimo antítipo da Europa, noitc fccunda a partir da qual se
desenvolveu a racionalidade européia, o Oriente, na verdade, retrocedia inexoravelmente para
uma espécie de fossilização paradigmfitica. As origens da antropologia e da etnografia
européias se constituíram a partir dessa diferença radical, e, pelo que sei, a antropologia,
como disciplina, ainda não enfrentou essa limitação política incrente de sua suposta
univcr,alidadc dcsinteressada. Essa é uma das razões por que o livro de Johannes Fabian,
7'irne rrnd the Other: HowAnthropology Constitutes Its Object [ O tempo e o outro: ~orno n
rxnrropologia constitui seu objeto] é importante e único. Comparado, digamos, com as
racionalizações padronizadas e c:ichès autocongratulatórios sobre círculos hermenêuticos
oferecidos por Clifford Geertz, o esforço sério de Fabian a fim. de redirecïonar a a.tenção dos
antropólogos para as discrep3ncias de tempo, poder e desenvolvimento entre o etnógraa e seu
objeto constituído se conl ìgura ainda mais notável. De qualcluer modo, o que, em sua maior
parte, ficou dc lòra da d1sciplina do orientalismo foi a própria história, que resistiu a seus
atadues ideológicos e políticos. Essa história reprir.üda retornou rtas variadas cr íticas e
ataques ao orientalismo como urha ciência do imperialismo.
No entanto, as dïvérgências entre os numerosos críticos do orientalismo como ideologia e
pr~xis são muito amplns. Alguns condenam ~ orientalismo como prelúdio para a afirmação
das virtudes de uma ou outra cultura nativa: são os nativistas. Outros criticam-iro como uma
defesa contra ataques a um~ou outro credo político: são os nacionalistas. Outros ainda
censtiram o orientalismo por falsificar a natureza do islz: são,grosso rnodo, os fléis. Não vou
atuar como juiz entre essas afirmações, exceto para dizer que evitei tomar posiçâo em qucs-
tões tais como o real, verdadeiro ou autêntico mundo islàmico ou firabe. Mas, em comum
corn todas as crítiças recentes ao orientáli~mo, penso cpe du:ts coi~as sáo especialmente
importantes: oma vigilância metodológica que faça do or ientalismo uma disciplina n ìais
crítica do que positiva--e, portanto, ponha seu objeto sob intenso escrutínio-e urna
determinação de não permitir que a segregação e o confinamento do Oriente fiquem sem
contestação. Minha compreensão
desse segundo ponto levou-me a recusar totalmente designações como "Oriente" e
"Ocidente':
Dependendo de como concebem seu papel de orientalistas, alguns críticos dos crít icos do
oricntalisnu~ rcforçaram as af ìrnr,tç~ìcs do podcr positivo no discursv do oricntalisino ou,
com muitn menos Fredücncia, envolveram os críticos do orientalismo num genuíno
intercâmbio intelectual. Os motivos dessa divisão são auto-evidentes: alguns têm a ver com
poder e idade, bem como com uma atìtude defensiva institucional ou corporativa; outros têm
relação com convicçcies religiosas ~n ideológicas.'T'ndos s:io políticos-algo que nem todo o
mundo achou I:ícil admitir. Sc mc pcrmitem usar meu cxemplo, quando alguns de meus
críticos concordavam com as principais premissas de minha argnmentaçào, ainda assim
tendiam a recorrer a encomicìs fis realizações do que Maxicne Rodinscìo chanum de"la
science oricntalisle': Essa vi;:ão se entregou a ataques a um suposto lysenkismo emboscado
no interior das polêmicas de muçulnìanos e ~rabes que apresentam um protestojunto ao
orientalismo"ocidental'; Essa auaaç:io despropositada fcìi fcita apcsar do fato de todos os
criticos recentcs do oricW alism<r tcrcm sido hastanrc cxplícitos quanto ao uso de
loerspectivns críticas como o marxismo e o estrutur:~lismo, num esforço de superar as
distinções odiosas entre Oricnte e Ocidente, entre verdade árabe e ecidental e coisas
semelhantes.
Ser~sibilizados com os ataques ultrajantes a uma ciência augusta e anteriormente
invulnerável, rriuitos profissionais renomados, cuja firea de estudos são os árabes c o isl;ï,
repeliram qualquer posicionamento político, ao mesmo tempo que lançavam um cç:;:ttra-
ataque ideológico. Devo mencionar algumas das imp:ataçoes mais típicas feitaa contra mim
para c~ue o leitor possa perceber 0 orientalismo a:opliando seus argumentos do século xtx a
fim de cobrir um conjunto incomen.surável de acontecimentos do final do século xx. Todos
eles derivarn do que para a mente oitocentista é a situação absurda de um oriental
respondendo às asseverações do orientalismo. Do ponto de vista do antünteiectuali~mo
dcscnl'reado, livre dc c~ualquer autoconsciência crítica, ninguém atin~giu a sublim~
contìança de l3ernard I.ewis. Suas explorações quase puramente políticas exigem, para serern
mencionadas, mais tempo do que merecem. Tluma ;série de artigos e em um livro
harticularmente fraco -- 77rc Muslim l7iscovcry oj `Europe [A.descobcrta mrrFrrJnr~na dn
Er~rnpn[ -, Lewis se ocnpou ern responder

Se o primeiro conjunto de questões trata dos problemas do orientalismo repensado do ponto


de vista dos temas locais-por exen:plo quem escreve sobrè o Oriente ou o estuda, em (Iue
cenário institucional ou discursivo, para qual l)lll)lICO C C()n ) (lIIC fÌll.tll(1.1(1C C111
111CIllC ~~, o scgun(io n()s rCnlele :t um círculo
mais amplo de I)roblemas-problernas esses suscita(ios inicialrnente pela metodologia e
consideravelmente aguçados por questõc, sobre o modo como a prnduGão de conhecimento
atenderia melhor a objetivos comtlnais, po!- oposição a objetivos sectários; ou como é
possível produzir conhecimento não-autoritário e não-cocrcitivo num ccn.rrio profundamente
inscrito na política, nas consideraçC~e;;, nas posi4(ìes c nas estratégias do poder. Nessas
rec~nsiderações metodo-
l6gicasemoraisdoorientalismodevo,muitoconscienciosamente,aludiraquestões simüares
suscitadas pel.os experiências do fcminisnul c d~s estudos sobre as qucst<ìcs das mulhcres c
dos negros, ou as étnicas, socialistas c antümperialistas, que-sem exceção-partem do direito
que têm os grupos humanos anteriormente mal representados, ou não representados de todo,
de falar por si mesmos e se representar em áreas política e intelectualmente definidas como
normalmente cxcludcntcs dcsscs mcsntos grupos, usurpalldo suas funç(ïcs de signi ficação e
representação e atropelando sua realidade hist(írica. Em suma, o orientalismo repensado
dentro dessa ótica mais ampla e libertária acarreta nada menos do que a criação de objetos
para um novo tipo de conhecimento.
Devo retornar aos problemas locais que mencionei antes. A percepção tardia dos autores n:i~
somcntc Ihes provoca um scntimento dc arrepcndimento pelo quc hodi:tnt (,u (Icviam Icr
Ìcito c não (ïrcram: cla Ihcs (i,í tamhém uma perspectiva mais ampla para compreender o que
fizeram. Em meu próprio caso, para atingir essa compreensão mais ampla, contei com a ajuda
de quase todos os que escreveram sobre mcu livro c que o considerar,lm, de uma fornrl ou de
outri
,, parte dos debates atuais, intcrpretaçòes contestadas c contlitos reais do mundo árabe-
islâmico, na medida ern que esse mundo interage com os Estados Unidos e a Europa. No meu
caso um tanto limitado, a consciência de ser um oriental rcmont;l ,r minh:t juvcntudc na
I'alcstina e no ~git~ coloniais, embora o impulso para resistir ls violações que acompanham
essa situação tenha sido acalentado no ambiente de independência do pós-guerra, quando o
nacionalismo árabe, o nasscrismo, a guerra de 19C,7, a ascensão do nu)vimcnto nacional
palestino, a guerra de 1973, a ç;~uerra civil libanesa, a revolução iraniana e suas terríveis
conseqüências pro(iuzi ram a séric extraordinaria de altos e baixos que ainda não ter
à minha argumentação. insistindo.`que a busca ocidental pelo conhecimento sobre outras
sociedades é sem par, que é motivada pela pura curiosidade e que, em contrapartida, os
muçulmanos não tiveram a capacidade nem o interesse de obter conhecimentos sobre a
Europa, como se esse conhecimcrrto lòsse o únic;o critério aceitável para o verdadeiro
conhecimento. Os argumentos de Lewis são apresentados çomo se emanassèm
exclusivamente da imparcialidade apolítica do estudioso, enquanto ele se tornava uma
autoridade ampla.nente considerada para cruzadas anti¡slâmicas, antiárabes, sionistas e da
Guerra Fria - todas elas subscritas por um fanatismo coberto com o verniz da url?anidade que
tem muito pouco em comum com a "ciência" e o conhecimento que Lcwis atìrma defender.
Não tão hipócritas, mas não menos carentes de crítica, sãojovens ideblogos e orientalistas
como Daniel Pipes. Seus argumentos, tal como denu~nstrados cm In the Path of God: Islam
and Political Power [Na trilha de Deus: islã e poder político], não parecem estar a serviço do
conhecimento, mas de um país agressivo e intervencionista-os Estados Unidos-, cujos
interesses Pipes ajuda a definir. Ele fala de anomia do isl i, de seu sentimento de
inferioridade, sua at itude defensiva, como se o islã fosse uma única coisa e como se a
qualidade de suas provas ausentes ou impressionistas fosse da importância mais secundária.
Seu livro é um testemunho da peculiar resistência do orientalismo, seu isolamento dos
desenvolvimentos intelectuais no resto da cultura e sua arrogância antediluviana ao fazer
afirmações com pouca consideração pela lógica ou pela argumentação. Duvido que qualquer
especiaüsta do mundo falasse hoje do judaísnu? ou do cristianismo com a combinação de
força e liberdade que Pipes se permite em retação ao islamismo. Esperar-se-ia também que
um livro sobre o renascimento islâmico aludisse a d~sdobramentos paralelos e relacionados
em vários lugares, como Líbano, Israel ou os Estados Unidos.'Tampouco é provávei que
alguém que escreva a partir de material cujas únicas provas sejam, em suas próprias palavras,
"rumores, boatos e outras farripas de indícios" transmute alquimicamente no mesmo
parcígrafo rumor e l?e?atc? em "fatos'; sobre cuja "multi·.lao" cl~ se haseia para "reduzir a
importância de cada um': Isso é uma magia pouco digna até mesmo do alto or ientalismo e,
embora Pipes pague seu tributo ao orientalismo imperialista, ele não dornina o conhecimento
genuíno desse ~ricntalismo nem sua pretensão dc desinteresse. i ar a Pipes, o islã é um
negócio volátil e perigoso,
~,s
um movimento político que interfere no Ocideote c o perturba, que provoca insurreição e
fanatismo no resto do mundo.
O cerne do texto de I'ipes não é apenas o sens~ altamente oportunista da relev.ïncia pcrlítica
dc scu livro para os I'stados Unidos de lZeagan, em que o terrorismo e o comunismo fundem-
se na imagem da mídia dos atiradores muçulmanos, fanáticos e rebeldes, mas sua tese de que
os rnuçulmanos são a pior fonte para a própria história deles. As páginas de In the Patlr of
God estão pontilhadas de referências íì incapacidade do islã de auto-representar-se,
autoconhecer-se e autocompreendcr-se, c de clogios a testemunhas como V. S. Naipaui, tão
mais úteis e sagazes no entcndimento do islamismo. Encontramos nessa obra, obviamente, os
temas mais familiares do orientalismo: eles são incapazes de representar a si mesmos e
devem, portanto, ser representados por outros que conhecem mais sobre o islà do duc o isl.ï
conhecc sobrc si mesmo. Ora, é frec~üente c~ue outros nosconheçam por
aspectosdiferentesdosqueosque nós mesmosconhecemos e çue, em decorrência, às vezes
surjam insights valiosos. Mas algo bem diferente é determinar como lei imut5vel que os
outros têm ipso facto uma percepÇão melhor dc ncís do due ncís Prcíprios. Observe-se que
não se trata de qualquer intercâmbio entre os pontos de vista do islã e os de um estrangeiro:
nada de diálogo, discussão ou reconhecimento mútuo. t~á uma afirmação categórica de
qualidade que o dirigente ocidental ou seu fiel servidor possui graças a sér ocidental, branco e
não-muçulmano.
Ora, isso não éciência nem conhecimento, nem compreen ,ão: é uma declaração de poder c
unrt rcivindicaç.i~ de autoridadé al?soluta. Ela é fruto de racismo e tornada
comparativamente aceitável para um pírblico preparado de antemão para escutarsnas
verdad~svigorosas. Pipes frla a uma grandeclienteia para a qual o i,l:i não é um,r cultura, mas
um incdnuuio; ;r maioria de seus leitore. associaráoqueelediz com osoutros
incômodosdosanos60e70: negros,mulheres, nações pós-caloniais do'lèrceiro Mundo que
inclinaram a balança contra os Estados Un idos ~m Ir.rgares como a Unesço e a o~u e que
graças aos seus esforços provocar;~m reprimendas do senador Moynihan e da scnhorn
Kirkpatrick.Além disso, i'ipes-e a fila de orientalistas e especialistas similares que ele
representa -defer;de a ignorância program5tica. I,onge de tentar entender os muçulmanos no
contexto do imperinlismo e da revolta de um segmento da humanidadP ofendido e muito
diversificado internamente, longe de se valer de importantes
p
obras recentes so?~re o islã em diferentes h istórias e sociedades, Inr·,ge de da r alguma
atenção aos imensos progr essos na teoria crítica, nas ciências sociais, na Pesquisa
humanística e na filosofia da inrerpretação,longe de fazcr o :ü:~is Icvc csforço para se
t:~miliarizar com a vasta literattrra intaginativa cd munclo isl;rn~im, Pipes se alinha de modo
obstinado e explícito ao lado de orientalistas coloniais, como Snouck Hurgronje e renegados
descaradamente pró-colo~iais como V S. Naipaul.
Falei sobre Pipes somente porque ele serve para fazer algumas consi~'eraçcïes sobrc o grande
cen.Srio político do orientalismo quc é comumcntc ntgado e suprimido no tipo de alegaçì,o
proposta po~ seu principal porta-vor, l;crnard Lewis, que tem a desfaçatez de desassociar o
orientalismo de sua parceria de duzentos anos com o imperialismo europeu e associá-lo à
filologia clássica moderna e ao estudo das culturas grega e romana antigas. Vale a pena
mencionar que esse cenário mais a:nplo compreende dois outros elementos: a recente
proeminência do movimento palestino e a resistência demonstrada pelos árabes nos Estados
Unidos e em outros lugares contra o modo como s,ïo retratados no domíniu público.
A questão da Palestina e seu encontro fatal com o sionismo, de um lado, e, de outro, a
corporação do orientalismo, sua consciência de casta profissional de especialistas que
protegem seu território e suas credenciais do escrutínio externo respondem juntas por boa
parte da animosidade contra minha crítica do orientalismo. As ironias scìo abundantes.
Considere-sc o caso dc um oricntalista que atacou publicamente meu livro e que, em carta
particular, mc contou c~ue o fez não porque discordasse de mim - ao contrário, achava que o
que eu dissera era justo -, mas porque tinha de defender a honra de sua profissão! Ou tome-
mos a conexão feita explicitamente por dois autores que cito em Orier~tcrüsmoRenan e
Proust-entre islamofobia e anti-semitismo. Nesse caso, era de esperar que muitos estudiosos e
críticos vissem a conjuntura-que a hostilidade ao islã no Ocidente cristão moderno andou de
mãos dadas com o anti-semitismo, que deriva da mesn,a fcmtc, nutriu-sc na mcsnr~ correntc
do anti-scmìtisnu~, c que uma crítica das ortodoxias, dos dogmas e dos procedimentes
disciplinares do orientalismo rontribai para o alargamento de nossa compreensão dos
mecanismos culturais do anti-aemitismo. E~sa conexão jamais foi feita pelos críticós, que
encontraram, no ata ue ao orieiltalismo uma o ortunidade ara defender o
q,Pp
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sionismo, apoiar Israel e atacar o nacionalismo palestino. Os motivos para isso confirmam a
história do orien talismo, pois, como observou o comentador israelense nani Ruhcnstein,;t
ocupaç,ìo por Israel da frixa ocidental de Gaza, a destruiç,ïs~ cl;r sooicclacic Ir.rlcst in;r c
o;Uncluc contínuo do sionismo ao nacionr,lismo palestino foram de tòrma bastante literal
liderados e executados por orientalistas. Se no passado eram os orientalistas cristãos europeus
que forneciam à cu!tura enropéia os argumentos para colonizar e suprimir o islã, bem como
~ara d~sprezar osjudeus, agora é o movimento nacional judeu que produz os quadros
defuncion;írioscoloniais cujas teses idc:olcígicassohrea mcnte islâmica ou árabe são
implementaci;rs na administração dos árabes palestinos, uma minoria oprimida dentro da
democracia branca e européia que é Israel. Rubenstein observa com algum pesar que o
departamento de estudos islâmicos da Universidade Hebraica produziu todos os funcionários
coloniais e arahistas que dirigem os Territórios Ocupados.
Outra ironia deve ser mencionada a esse respeito: assim como alguns sionistas considcraram
scu dever dcfcndcr o orientalismo contra seus críticos, houve um csforço ccïmico dc alguns
nacionalis(as .Sr;rhcs dc ver a controvérsia orientalista como uma conspiração imperialista
para aumentar o controle americano sobre o mundo árabe. De acordo com esse cen5rio
implausível, os críticos do orientalismo nào são antümperialistas, mas agentes disfarçados do
imperialismo. A conclusão lógica disso é que a melhor maneira de atacar o imperialismo
énão dizcr nada crítico sobre elc. A esta altura, tcnho dc aclmitir que troc;amos a realidade
por um mundo ilcígico e insano.
Subjacente a boa parte da discussão sobre o orientalismo está uma inquietante percepção de
que a relação entre culturas é desigual e irremediavelmente secular. Isso nos traz ao honto a
que aludi há pouco sobre os récentes esforços
:' árabes e islâmicos, geralmente hem-intencionados, mas ,m vezes motivados por regimes
impopulares, c~ue, ao chamar a atenção para a falsidade da representa;,. ção dos árahes e cio
islã na mídia ocidental, desviam o exame dos abusos de seus `,', governos. I~esdobramentos
paralelosvêm ocorrendo na Unesco,ondea controÈ;: vérsia em torno da ordcm mtrndial da
informação - e as propostas para sua -: reforrna feitas por vários governos soc¡alistas e do
Terceiro Mundo -- assumiu I as dimensões de uma grande questão internacional. A maioria
dessas discussões ~ serve como testemunha, em primeiro lugar, de que a produção de
conhecimen

to ou informação e d~ imagens de mídia é distribufda de modo desigual: seus principais


centros estão localizados no que polemicamente foi chamado-por ambos os lados da disputa
-.de Ocidente metropolitano. Em segundo lugar, essa triste percepção por parte dos grupos e
das culturas mais fracas reforçou su. compreensão do fato de que há somente um mundo
sccular e histcírico I,cmhora existam muitas divisões c~cntro dcle) e que nem o riativismo, a
intervenção divina, o regionalismo e as cortinas de fumaça ideológicas podem esconder
sociedades, culturas e ISovos uns dos outros, especialmente daqueles com força e vontade de
infiltrar-se nos outros com objetivos políticos e econômicos. Em terceiro lugar, penso qup
muitos des;:es Estados pós-coloniais em desvantagem e seus fiéis intelectuais tirarsm a
corclusão errada de que é preciso tentá: irnpor controles sobre a produçâo de conhecimento
na fonte, ou, no mercado da mídia mundial, tentar melhorar e aperfeiçoar as imagens
atualmente em circulaç.ïo mas sem que nada seja feito para mudar a situação política das
quais elas emanarn e pelas quais são sustentadas.
As deficiências dessas abordagens scio óbvias: não é preciso sublinhar coisas como a
dissipação de quantidades imensas de petrodólarcs cm jogodas dc rclações públicas
irnediatistas, ou o aup~ento da repressão, as violaçcies dos direitos humanos e o
gangsterismo sem rebuço que ocorreram em muitos países do Terceiro Mundo, tudo isso em
nomA da segurança nacional e eventualmente da luta contra o neo-imperialismo. Quero antes
falar sobre a questão muito mais ampla: o que é preciso fazer e como podemos falar de um
trabalho intelectual que não seja meramente reativo ou negativo.
Um dos legados do orientalismo - na verdade um de seus fundamentos epistemológicos -- é o
histericisrno, isto é, a visão proposta por Vico, Hegel, Marx, Ranke, Diltheyeoutrosdequea
humanidadetem uma história qucéproduzida por homens e mulheres e pode ser compreendida
historicamente, em determinados períodos ou momentos, como possuidora de uma unidade
complexa, mas coerente. No que se refere ao orientalismo eri~ particular e ao conhecimento
europeu de outras sociedades em geral, o historicisnu~ signi icou que a história humana que
unia a humanidade culminava na Europa ou era observada do ponto de v ista superior da
Europa e do Ocidente. Portanto, o que não era observado.nem documentado pela Europa
permanecia "perdido" até que, em data posterior, pudesse ser incorporado pelas novas
ciências da antropologia, da
economia política e da lingüística. Foi a partir dessa recuperação tardia do que Eric ïNolf
chamou de povos sem história que um passo ainda mais tardio foi dado: a criação da ciência
da história mundial, entre cujos principais praticantescncontranu~s lirauclcl, W,rllcrstcin,
1'crryAnclcrson co prcíprio~NolE
. ,Mas junto com ;mriior capacidade de tratar daquilo qtre Ernst I3loch charnou de
experiências não-sincrônicas do Outro da Europa veio um silêncio bastante generalizado
quanto 1 relação entre o imperialismo europeu e esses conhecimentos constituídos e
articulados de forma variada. O que jamais aconteceu foi uma crítica epistemológica da
conexão entre o desenvolvimento de um historicisnu~ due se cxpand¡u e desenvolveu o
suficientc para abranger, de um lado, atituàes antitéticas como:ideologias do imperialismo
ocidental e críticas do imperialismo e, do outro, <í È,r,ítica do imperialisnu~ pela qual se
mantêm a acutoulaçào de territcírios e dc populaçcics, o controlc das cconomias e a
incorporação e homogeneização das histórias. Se não esquecermos isso, observaremos
, por exemplo, que nos pressupostos metodológicos e na pr5tica da história mundial-duc c
idcologicamcntc antiimperialista-pouca ou ncnhuma atenção é dada ;uluclas pr,ític;r.s
eulturais, conu~ o oricntali,nu~ c a ctnografia, afiliadas ao imperialismo, due est,ìo na origem
da prcípria histcíria mundial. I'or conseguinte, a ênfase da história mundial como disciplina
tem sido posta sobre práticas economicas e políticas, definidas pelos processos da escrita da
história mundial como separadas, diferentes e não-afetadas pelo conhecimento que delas a
Inistcíria mundial produr. O que curi~samentc resulta disso é due as teo
"; rias da acumula4:ïo cm csc:rla mundial, ou o sistcma capitalista mundial, ou ,,
linhagens de absolutismo (a) dependem do mesmo observador e historicista que foi um
orientalista ou viajante colonial três geraçoes atrás; (b) dependem tatnhém dc um projeto
histcírico ntundial Itonu~gcncizador e incorporador c~ue
assimiloudesenvolvimentos,histórias,culturasepovos não-sincrônicos;e(c) bloqueiam e
eliminam críticas epistemológicas latentes d~s instrumentos institucionais,culturais e
disciplinares que ligam a prática incorporadora da história mundial com, dc um lacio,
conhccimentos parciais cpmo 0 oricntalismo e, de outro, com uma contínua
hegemonia"ocidental"do mundo não-europeu e"periférico':
O problema é novamente o historicismo e a universalização e validação de si mesmo que lhe
têm sido endêmica. O pequeno e importante livro Mnrx and The end of Orientalism [ A4nrx e
o frm do orientalismoj, de I3ryan Turner, avançou
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muito na direção da fragmentação, da dissociação, do deslocamento e do descentramento do


território experiencial atualmente coberto pelo historicismo universalizante. O que ele sugere,
ao discutir o dilema epistemoiógico, é a necessidade de ir além dns polaridadcs e oposiçc5es
binárias do pcnsamcnto marxistahistoricista (voluntarismo
versusdeterminismo,sociedadeasiática versussociedade ocidental, mudança versus
estagnação), a fim de criar um novo tipo de análise de objetos plurais, em vez de singulares.
Do mesmo modo, numa sérìe de estudos produzidos em campos in2er-relacionados e amiúde
não relacionados, houve um avanço geral no processo de rcimper, dissolver c reconcchcr,
tanto n ietodológica como critìcamente, e campo unitário domirrado até agora pelo
orientalismo, pelo historicismo e pelo que se poderia chamar de universalismo essencialista.
Adiante, darei exerriplos desse processo de dissolução e descentramento. O que precisa ser
dito ímedjatamente é que tal processo não é puramente metodológico nem puramente reativo
em sua intenção. Não se responde, por exemplo, à conjuntura tiránìca do poder coloniãl com
orientalismo erudìto simplesmente propondo uma aliança entre sentimenio natívista escorado
em alguma variante de idéologia nativa para combatê-lo: Foi nessa armadillïa que caíram
, por exemplo, muitos militautes do iercciro Mundo e antüinperialistas ao apoiar. a luta dos
iranianos ~ dos palestinos, para depoís ficar sem ter o que dizer sobre as abominaçóes do
regime d.e Khomeini, ou ter de apelar, no caso palestíno, a clichês gastos dé revolucionar
ismo c luta armada depois da déln9c'Ic' libancsa. Também não pode ser uma questào de
recìclar a velha retórìca mar xista ou histórico-mundial, caja dúbia façanha é o mero
restabelécimento da ascendênciá' intelectual e teórica de velhos modelos conceituais,agora
impertinentes egenealogicamente falhos. Em vez disso, creio que devemos pensar tanto em
termos teóricos como políticos; localizando os principais problemas naquilo que a teor ia de
Frankfurt identificou como dominação e divisão do trabalho: Devemos enfrentar também o
problema da ausência de uma dimensão teórica, utópica e libertária na análise. Não seremvs
capazes de avançar se não dissiparmos e reorientarmos o material dv historicismõ para buscas
radicalmente diferentes de conhecimentv e nâo poderemos fazer isso enquanto não
estivermos conscientes de que nenhum novo projeto de coahecirnento pode ser constituido
sem que se
resista ao domínio e ao particularísmo prof ïssionalizado dos sistemas historicistas e às
teorias reducionistas, pragmáticas ou funcionalistas.
Esses objetivos são menos difíceis do que minha descrição deixa transparecer. () rccx:~mcclo
oricntalismo.cst:í int im:~mcntc ligado a muitas outras atividades como aquelas a que me
referi anteriormente e due agora preciso articular com mais detalhes. Assim, é possível ver
agora que o orientalismo é uma práxis semelhante à dominação do gênero masculino- ou
patriarcado- nas sociedades metropolitanas: o Oriente costumava ser detìnido como feminino;
suas riquczas cram consicicradas fcrteis; seus principais símholos eram a mulhersensual, o
harém e o governante despcítico, mas curiosamente atraente. Ademais, os orientais, tal como
donas de casa, estavam confinados ao silêncio e à produção enriduccedora scm timites.
Grande partc desse material est:í manifestamente ligado ls contìguraçcïes da assimetria
sexual, racial c política subjacente à corrénte dominante da moderna cultura ocidental, tal
como iluminada respectivamente por feministas, pelos estudos afro-americanos e por
militantes antümperialistas. Ao lermos, por exemplo, o brilhante estudo que Sandra Gilbert
fez recentcmentc dc Shc, clc Ridcr I-laggard, percchcmos a estreita correspondência entre a
sexualidade vitoriana reprimìda na lnglaterra e suas fantasias no exterior, bem como o
domínio da imaginação masculina do século xtx pela ideologia imperiali;ta. Do mesmo
modo, uma obra como Manichean Aesthetics [Estética manigueísta), de Abdul Jan
Mohamrned, investiga os mundos artísticos paralelos, mas sempre scparados, da ficção negra
c branca do mesmo lugar, a África, sugerindo c~ue até na Íiteratura imaginativa funcio na um
rígido sistema ideológico sob uma superfície mais livre. Ou em um estudo como The Islarnic
Root of Capitulism [ As raízes isldrnicas do capitalisrnoJ, de Peter Grant, escrito a partir de
unrr posiçao antümperialista e antiorientalista meticulosamente pesquisada e
escrupulosamente histórica, é possível começar a perceber o vasto e invisível terreno de
esforço e engeuhosidade humana que jaz sob a superfície congelada do orientalismo, antes
acarpetada pelo discurso da história econômica islâmica ou oriental.
Há muito mais exemplos de análises e projetos teóricos empreendidos a partir de impulsos
semelhantes aos que alimentam a crítica antiorientalista. Todos eles são intervencionistas por
natureza, isto é, situam-se de forma consciPnte em nós conjunturais vulneráveis de discursos
em andamento em que cada
~s
um deles postula nada menos do que novos objetos de conhecimento, novas práxis de
atividade humanista, noves modelos teóricos que perturbam ou, no limite, alteram
radicalmente as normas paradigmáticas predominantes. Podemos listar aqui tentativas tão
díspares como os estudos de Li nda Nochl i n sobre a ideologia orientalista do século xtx
dentro do contexto da história da arte; a imensa reestruturação feita por Hanna Batatu do
terreno do comportamento político do moderno Estado árabe; o exame que Raymond
Williams fez das estruturas do sentimento, comunidades de conhecimento, culturas
emergentes ou alternativas, padrões de pensamento geográfico (como no notável O canrpo e a
oidarie); a an:Slise deTa(al Assad da autocaptação antropológica na obra de tcc5ricos impor-
tantes e nos próprios estudos de campo realizados por ele; a nova formulação de Eric
Hobsbawm da"invenção da tradição'; ou das práticas inventadas estudadas por historiadores
como um índice crucial do ofício do historiador e, o duc é mais importante, da invenção das
novas nações emergentes; o trabalho de reexame das culturas japonesa, indiana e chinesa
feito por estudiosos como Masao Miyoshi, Eqbal Ahmad, Tariq Ali, A. Sivanandan, Romila
Thapar, o grupo em torno de Ranajit Guha (Suhalterr~ Studies), Gayatri Spivak e intelectuais
nriis jovens, como Homi Bhabha e Partha Mitter; a reconsideração imaginativa dos críticos
literários árabes-os grupos Fusuole Mawakif, Elias Khouri, Kamal Abu Deeb, Mohammad
Bannis e outros-que busca redefinir e revigorar as estruturas. clássicas reificadas da tradição
literária árabe e, paralelas a isso, as obras imaginativas de Juan Goytisolo e Salman Rushdie,
cujos livros de ficção e de crítica s:ïo escritos de Forma autoconsciente contra os estereóf:pos
culturais c as rcprcsentações que dominam o campo. Vale a pena mencionar também os
esforços pioneiros do 8ulletin of Concernod Asian Scholars e o fato de que por duas vezes,
recentemente, em seus discursos presidenciais, um sinólogo americano (I3enjamin Schwartz)
e um indianista (Aínslee Embree) refletiram seriamente sobre o que a crítica do orientalismo
sign.itica para seus campds de estudo - uma reflexão pública ainda descenhecida pelo;s
estudiosos do Oriente Médio. f: h:; scmpre a obra levada av:lllte por Noam Chomsky nos
campos da política c da história, um exemplo de radisalismo independente e severidade
inflexível sem par hoje em dia; ou, na teoria literária, as vigorosas articulações teóricas de um
modelo social de r:arrativa, no scntido mais amplo e profundo, de Frederic Jameson; as
definições empiricamente obtidas por Richard Ohmann de privilé

gio e instittrição canônica em sua obra recente; as perspectivas emersonianas revisionistas


formuladas na crítica das ideologias tecnológica, imaginativa e cultural contemporâneas de
Richard Poirier; e as proporções descentradoras e redistributivas de intensidade e impulso
estudadas por I.eo I3ersani.
~ para concluir, tentarei rcuni-los em um esfcarço comum que possa denunciar o
empreendimen to maior do qual faz parte a crítica do orien talismo. Em primeiro lugar,
notamos uma pluralidade de públicos e clientelas; nenhuma obra ouautorquecitei
reivindicaestartrabalhandoem nomedeUm público queseria o íuiico due conta, ~u para u m;:
Verdade cjorninant~, u ma vcrdade aliada ~l razão, objetividadc, ciência ocidcntal (c, por due
n5o, oriental ). Ao contrário, notamos aqui uma pluralidade de terrenos, experiéncias
mírltiplas e clientelas diferentes, cada uma com scus interesses admitidos (cm oposição a
"negados"), aspiraçõcs políticas, objetivos da disciplina.'l~dos csses esfor~:os rcsultam do
quc se poderia chamar de consciência descentrada, em sua maior parte não-totalizadora e
não-sistemática - e, em alguns casos, antitotaüzadora e anti-sistemática. O resultado é que,
em vez de buscar uma unidade comum com apelos a um centro de autoridade soberana,
consistência metodológica, canonicidade e ciência, eles oferecem a possibilidade de bases
comuns de articulação entre si. Portanto, são planos de atividade e práxis, em vez de uma
topografia dominada por uma visão geográfica e histórica localizá vel em um centro
conhecido de poder metropolitano. Em segundo lugar, tais atividades e práticas são
conscientemente seculares, nrirginaiscdcoposiç;iocom
rclaçcioaossistemasd~minantes,geralmenteautoritírios, c:ontra os duais se ir~surgcm. Gm
tercciro, são políticos e práticos na medida em que pretendem -não necessariamente com
êxito -acabar com os sistemas de conhecimento coercitivos dominantes. Nào creio que seja
cxagero dizer que o significado político da análise, tal como levada a cabo em todos esses
campos, é uniforme e programaticamente libertário graças ao fato de que, ao contrário do
orientalismo, ela não se baseia na finalidade e no fechamento do conhccimcnto tic nntiquário
ou curador, mas na an;ílise invéstigativa aberta, entbora possa parecer que análises desse tipo
- freqüenternente difíceis e abstrusas- sejam, no fim das contas, paradoxalmente qu ietistas.
Devemos lembrar o exemplo da dialética negativa de Adorno e considerar a análise, em seu
sentido mais pleno, em contrapartida, desconstrutiva, utbpica.

Mas permanece o problerria que assola todo trabalho intelectual intenso, auto-imposto e
local: o da divisão do trabalho, uma conseqüência necessária daquela reificação e
mercantilização analisada pela primeira vez no século xx por Georg Lukács. Esse é o
problema co!ocado de forma sensível e inteligente por Myra Jahlen para os estudos
cemininosï se, na identificação e no trabalho com base em críticas antidominantes, os grupos
subalternos - mulheres, negros e assim por diante- sãe capazes de resolver o dilema de
campos autônomos de experiência e conhecimento que são criados como conseqüência. Dois
tipos de exclusivismo possessivo podem se instaurar: o sentimento de ser alguém que, graças
à experiência, está dentro e é exclusivista (somente mulhcres podem escrever para e sobre as
mulheres e somente a literatura que trata bem as mulheres ou os orientais é boa), ou alguém
que, devido ao método, também exclui (somente marxistas, antiorientalistas ou feministas
podem escrever sohre economia, orientalismo ou literatura feminina).
Esse é o ponto em que estamos agora, no limiar da fragmentação e da especialização, que
impõem seus próprios domínios paroquiais e atitude defensiva, ou à beira de alguma síntese
grandiosa que eu, de minha parte, acreditn que poderia facilmente aniquilar os ganhos e a
consciência oposicionista proporcionados por esses contraconhecimentos até agora. Várias
possibilidades se propõem; concluirei fazendo simplesmente uma lista delas. A necessidade
de um maior cruzamento de fronteiras, de maior intervencionismo em atividades
interdisciplinares, uma consciência concentrada da situação - política, metodológica, social,
histórica-em que o trabalho intelectual se realiza. Um compromisso político e metodológico
esclarecido com o desmantelamento dc sistemas de dominação que, tendo em vista que são
mantidos coletivamente, devem ser, para adotar e transformar algumas expressões de
Gramsci, combatidos coletivamente, com assédio mútuo, guerra de manobras e guerra
estratégica. Por fim, um sentimento mais agudo do papel do intelectual tanto na definição
como na mudança de um contexto, sem o que, penso eu, a crítica do orientalismo é apenas
um passatempo ef~mero.
7t~

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