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SAID
Tradução
Pedro Maia Soares
O orientalismo reconsiderado
Os problemas que eu gostaria de discutir derivam hral,lcm:m duc cri ~;vsl:rria dc dismi i r
clcriva m d:rs qucst8cs gcrais tratadas em Orien~rrli;rru~. Os m:ris importantcs s:ïo: a
representaçaïo de outras culturas, sociedades e h istórias; a relação entre poder e conheci
mento; o papel do intelectual; as questcïes metodológicas ligadas às relaçcies entre diferentes
tipos de textos, enlre texto e contexto, eritre texto e história.
ncvo csclarcccr algumns coisas de início. I?m hrimeiro lugar, uso a palavra orientalisnu~"
mcnas para mc refcrir ao mcu I ivro dcr que aos problemas com os quais o livro. está
relacionado; vou tratar do territcírio intelectual e político coberto tanko pelo Orientcrlisrno (o
livro) conu~ p~lo trabalho que desenvolvi desde então. Em ségundo lugar, cu não gostaria
c~uc pensasscm que se trata de un;a tentativa de responder aos meus criticos. Oricrrtnlisron
provocou um grande nínnero de coment~Srios, em geral positivos e instrutives; uma boa
parte foi l:e;;til e, em alguw casos, oFensiva. Mas o fato é que não cheguei a digerir e enten-
der ttld0 fO Clu~~ lìr: clif:~ ou cscrito. Em ver disso', entre as qt~estòes suscitadas por rneus
críticos, cic·cliquci-n:e ìiquelas que me pareceram úteis para aprofundar um ar~umento.
Oútras observaç~es, comer o fato de eu ter excluído 0 orientalismo J
alemão, que não tcvc sua irrchrsirnjustificada por ninguém, hareceram-nie francan:ente
superirciais, por isso não vejo sentido em responder ao que nuestio
nam. Da mesma forma, a acusação feita por alguns comentaristas, de que sou anistória~ e
inconsistente, teria mais interesse se as virtudes da consistência
, qualquer que seja o.significado do termo, fossem su~metidas a uma análise rigorosa;
(~uando 1 minha anistoricida(ie, trata-sc taml)ém (Ic uma acus;yào mai;; carregada de
aiegações do que de provas.
Enquanto ~etor de pe~samPnto e do conhecimenFo, o orientalismo compreende naturalmente
vários aspectos sobrepostos. Em primeiro lugar, a relação cultural ehistóricacambianteentre
Europa eÁsia--uma relaçãocem 4 mil an~is de história. Em segund(i, a disciplina científica
no Ocidente scgundo a (Iual, a ~artir dolnício do século xlx, alguém se especiatizava no
estudo de várias culturas e tradições orientais. Eni terceiro, as suposições, imagens e fantasias
ideológicas sobre uma região do mundo chamada Oriente. O den(iminador comulo desses
três aspectos do orientalismo é a ünha que separa o Ocidente do Oriente, e essa linha,
sirstentei eu, é mais um faxa da produção humana do que da natureza-chamei-a de geogra ia
imaginativa. Porém, isso não significa qm a divisão entre Oriente c Ocidente n;io mG:de,
nem que seja simplesmentc tìctícia.'1'ratase de afirmar - enfaticarnente - que, como acontece
com todos os aspectos daquilo que Vico denornina mundo das nações, o Oriente e o Ocidente
são fatos produzidos por seres humanos e corno tal devem ser estudados como componentes
integrantes da natureza social, e não divina ou natural, do mundo. E unia ver que o mundo
social inclui a I)essoa ou o sujeito que faz o estudo, assim conu) 0 ohjcto ou (lomínior.Iuc
cst,í sendo cstudado, é imperativo incluir amUos cm qualquer consideração do orientalismo.
É óbvio que não poderia haver orientalismo sem orientalistas, de um lado, e orientais, do
outro.
É. na verdade, um fato básico de ql.zaiquer teoria da interpretação, nu hermenêutica.
Contudo, há uma notável rPlutância em discutir os hroblemas do orientalismo nos contextos
político, ético ou até epistemológico que lhe são apropriados. Isso vaie tanto para os críticos
literários profiìssionais (Iuc escrcv°~ram sobre meu livro como par~ os próprios orientalistas.
Uma vcr quc me paréce claramente impossível descartar a verdade da origem política do
orientalismo e sua contínua realidade política, somos obrigados, por rnotivos intelectuais e
políticos, a investigz.r a resistência à questão política do orientalismo, uma r~sistência que é
sintomática exatamente do que é negado.
~,z/
retratos figurativos que uma trajetória de "ocidentalização"- encontrada, por exemplo, em
Keats e Hõlderlin - via o Oriente cedendo sua preeminência e importância histórica ao
espírito mundial que avançava da Ásia em direção à Eu ropa.
Visto como primitivismo, antiqüíssimo antítipo da Europa, noitc fccunda a partir da qual se
desenvolveu a racionalidade européia, o Oriente, na verdade, retrocedia inexoravelmente para
uma espécie de fossilização paradigmfitica. As origens da antropologia e da etnografia
européias se constituíram a partir dessa diferença radical, e, pelo que sei, a antropologia,
como disciplina, ainda não enfrentou essa limitação política incrente de sua suposta
univcr,alidadc dcsinteressada. Essa é uma das razões por que o livro de Johannes Fabian,
7'irne rrnd the Other: HowAnthropology Constitutes Its Object [ O tempo e o outro: ~orno n
rxnrropologia constitui seu objeto] é importante e único. Comparado, digamos, com as
racionalizações padronizadas e c:ichès autocongratulatórios sobre círculos hermenêuticos
oferecidos por Clifford Geertz, o esforço sério de Fabian a fim. de redirecïonar a a.tenção dos
antropólogos para as discrep3ncias de tempo, poder e desenvolvimento entre o etnógraa e seu
objeto constituído se conl ìgura ainda mais notável. De qualcluer modo, o que, em sua maior
parte, ficou dc lòra da d1sciplina do orientalismo foi a própria história, que resistiu a seus
atadues ideológicos e políticos. Essa história reprir.üda retornou rtas variadas cr íticas e
ataques ao orientalismo como urha ciência do imperialismo.
No entanto, as dïvérgências entre os numerosos críticos do orientalismo como ideologia e
pr~xis são muito amplns. Alguns condenam ~ orientalismo como prelúdio para a afirmação
das virtudes de uma ou outra cultura nativa: são os nativistas. Outros criticam-iro como uma
defesa contra ataques a um~ou outro credo político: são os nacionalistas. Outros ainda
censtiram o orientalismo por falsificar a natureza do islz: são,grosso rnodo, os fléis. Não vou
atuar como juiz entre essas afirmações, exceto para dizer que evitei tomar posiçâo em qucs-
tões tais como o real, verdadeiro ou autêntico mundo islàmico ou firabe. Mas, em comum
corn todas as crítiças recentes ao orientáli~mo, penso cpe du:ts coi~as sáo especialmente
importantes: oma vigilância metodológica que faça do or ientalismo uma disciplina n ìais
crítica do que positiva--e, portanto, ponha seu objeto sob intenso escrutínio-e urna
determinação de não permitir que a segregação e o confinamento do Oriente fiquem sem
contestação. Minha compreensão
desse segundo ponto levou-me a recusar totalmente designações como "Oriente" e
"Ocidente':
Dependendo de como concebem seu papel de orientalistas, alguns críticos dos crít icos do
oricntalisnu~ rcforçaram as af ìrnr,tç~ìcs do podcr positivo no discursv do oricntalisino ou,
com muitn menos Fredücncia, envolveram os críticos do orientalismo num genuíno
intercâmbio intelectual. Os motivos dessa divisão são auto-evidentes: alguns têm a ver com
poder e idade, bem como com uma atìtude defensiva institucional ou corporativa; outros têm
relação com convicçcies religiosas ~n ideológicas.'T'ndos s:io políticos-algo que nem todo o
mundo achou I:ícil admitir. Sc mc pcrmitem usar meu cxemplo, quando alguns de meus
críticos concordavam com as principais premissas de minha argnmentaçào, ainda assim
tendiam a recorrer a encomicìs fis realizações do que Maxicne Rodinscìo chanum de"la
science oricntalisle': Essa vi;:ão se entregou a ataques a um suposto lysenkismo emboscado
no interior das polêmicas de muçulnìanos e ~rabes que apresentam um protestojunto ao
orientalismo"ocidental'; Essa auaaç:io despropositada fcìi fcita apcsar do fato de todos os
criticos recentcs do oricW alism<r tcrcm sido hastanrc cxplícitos quanto ao uso de
loerspectivns críticas como o marxismo e o estrutur:~lismo, num esforço de superar as
distinções odiosas entre Oricnte e Ocidente, entre verdade árabe e ecidental e coisas
semelhantes.
Ser~sibilizados com os ataques ultrajantes a uma ciência augusta e anteriormente
invulnerável, rriuitos profissionais renomados, cuja firea de estudos são os árabes c o isl;ï,
repeliram qualquer posicionamento político, ao mesmo tempo que lançavam um cç:;:ttra-
ataque ideológico. Devo mencionar algumas das imp:ataçoes mais típicas feitaa contra mim
para c~ue o leitor possa perceber 0 orientalismo a:opliando seus argumentos do século xtx a
fim de cobrir um conjunto incomen.surável de acontecimentos do final do século xx. Todos
eles derivarn do que para a mente oitocentista é a situação absurda de um oriental
respondendo às asseverações do orientalismo. Do ponto de vista do antünteiectuali~mo
dcscnl'reado, livre dc c~ualquer autoconsciência crítica, ninguém atin~giu a sublim~
contìança de l3ernard I.ewis. Suas explorações quase puramente políticas exigem, para serern
mencionadas, mais tempo do que merecem. Tluma ;série de artigos e em um livro
harticularmente fraco -- 77rc Muslim l7iscovcry oj `Europe [A.descobcrta mrrFrrJnr~na dn
Er~rnpn[ -, Lewis se ocnpou ern responder
Mas permanece o problerria que assola todo trabalho intelectual intenso, auto-imposto e
local: o da divisão do trabalho, uma conseqüência necessária daquela reificação e
mercantilização analisada pela primeira vez no século xx por Georg Lukács. Esse é o
problema co!ocado de forma sensível e inteligente por Myra Jahlen para os estudos
cemininosï se, na identificação e no trabalho com base em críticas antidominantes, os grupos
subalternos - mulheres, negros e assim por diante- sãe capazes de resolver o dilema de
campos autônomos de experiência e conhecimento que são criados como conseqüência. Dois
tipos de exclusivismo possessivo podem se instaurar: o sentimento de ser alguém que, graças
à experiência, está dentro e é exclusivista (somente mulhcres podem escrever para e sobre as
mulheres e somente a literatura que trata bem as mulheres ou os orientais é boa), ou alguém
que, devido ao método, também exclui (somente marxistas, antiorientalistas ou feministas
podem escrever sohre economia, orientalismo ou literatura feminina).
Esse é o ponto em que estamos agora, no limiar da fragmentação e da especialização, que
impõem seus próprios domínios paroquiais e atitude defensiva, ou à beira de alguma síntese
grandiosa que eu, de minha parte, acreditn que poderia facilmente aniquilar os ganhos e a
consciência oposicionista proporcionados por esses contraconhecimentos até agora. Várias
possibilidades se propõem; concluirei fazendo simplesmente uma lista delas. A necessidade
de um maior cruzamento de fronteiras, de maior intervencionismo em atividades
interdisciplinares, uma consciência concentrada da situação - política, metodológica, social,
histórica-em que o trabalho intelectual se realiza. Um compromisso político e metodológico
esclarecido com o desmantelamento dc sistemas de dominação que, tendo em vista que são
mantidos coletivamente, devem ser, para adotar e transformar algumas expressões de
Gramsci, combatidos coletivamente, com assédio mútuo, guerra de manobras e guerra
estratégica. Por fim, um sentimento mais agudo do papel do intelectual tanto na definição
como na mudança de um contexto, sem o que, penso eu, a crítica do orientalismo é apenas
um passatempo ef~mero.
7t~