Suplemento do caderno Mais da Folha de São Paulo com texto da crítica literária e professora da USP responsável pela edição crítica de Grande: Sertão Veredas e Os Sertões. Folha de São Paulo 17-03-02
Original Title
Cultura contra cultura. Walnice Nogueira Galvão. Folha de São Paulo
Suplemento do caderno Mais da Folha de São Paulo com texto da crítica literária e professora da USP responsável pela edição crítica de Grande: Sertão Veredas e Os Sertões. Folha de São Paulo 17-03-02
Suplemento do caderno Mais da Folha de São Paulo com texto da crítica literária e professora da USP responsável pela edição crítica de Grande: Sertão Veredas e Os Sertões. Folha de São Paulo 17-03-02
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| AN! POR WALNICE NOGUEIRA GALVAO
U
cultura
GrandeOtelo
emeenade
*Macunaima”
(1969),
deJeaquim
Pedrode
AndradeFOUADESPAIO Mats!
& domingo,17ée marco de 2002
Mario Sergio Conti
da Sucursal do Rio
Jf alnice Nogueira Galvao é uma intelectual a-
J ranum pafsem que raros intelectuais enfren-
tam o presente e sua vulgaridade: ela con-
fronta aarte contemporinea, busca sua raiz,
social, estabelece jufzasestéticos informados pela politica e
nao az média coma indiistria cultural,
Em termos de erudigdo, pesquisa e disposigio para es-
crever, Walnice, como todos a chamam, vale uns 20 acadé-
‘micos. Ela ¢responsével pela edigio critica de dois monu-
‘mentos, inclusive pelo tamanho, da literatura nacional:
“Os Sertoes”e Grande Sertio: Veredas”.
Para fazer a edicdo definitiva de “Os Sertdes” ela se pro-
pos aller tudo o que Euclides da Cunha leu (livros, jornais,
revistas, manuais, panfletos) durante a vida inteira, Deve
ter conseguido. Nao hé referéncia, nome, logradouro,alu-
so, fonte escrita ou oral e variante de texto do livro que
Walnice nao tenha remexido Passou 20 anos estudando
“Os Sertdes”, Sabe tudo 0 que € possivel saber a respeito de
Buclides.
‘A edigio erftca de “Grande Sertio: Veredas” serd publi-
cada na Franga pela prestigiosa colegdo Archives. Seguin-
do.0 modelo da colegio, ela encomendou e editou ensaios
especificos sobre o romance. Walnice tem cinco livros pu-
blicados sobre Guimaraes Rosa, tema de suatese dedouto-
ramentona USP. Sobre Euclidessio sete livros.
Walnice nao parece uma pesquisadora que passa a vida
enfurnada em arquivos e bibliotecas ¢ s6 fala das minu-
déncias de seu objeto de estudo. Extrovertida, conta casos
variados, pontuando-os com gestos amplos, pilhérias,iro-
nias, risadas, E com sorrisos, no entanto, que impde limi-
tes, Senta-sea cinco metros do entrevistador. Oferece-lhe
bebida, insta-o varias veres a tomar maisum copo,mas.ela
‘mesmo no bebe. Antecipa-se as perguntas indesejadas e
as formula de maneira marota. “Voc ndo vai perguntar a
‘minha idade, nao &, por exemplo. E: “Vocé nao vai per-
sguntar quantos maridos eu tive, nio @”. Quando as ques-
{es sio feitas ela as responde na lata, rindo alto: “Nao vou.
dizer minha idade nem morta” (parece ter uns 50 e pou-
0s) ¢ “Escreva que eu tive alguns maridos” (seus amigos
dizem que foram dois).
Walnice adora viajar, principalmente a Paris, onde mo-
rou, lecionoue vivem seu filho, pesquisador da éreade ma-
temética,e 0s dois netos. Jéesteve em cinco continentes,
em congressos ¢ debates universitirios.“Os estudos literd-
rios também se globalizaram’ diz.
la tem uma faceta espartana: entremeia dia de gindst-
«a, numa academia ao lado do prédio onde mora nos Jar-
ins, em Sido Paulo, com dias de caminhadas no parque
Ibirapuera.
‘Tem também seu lado ateniense: bom garfo ebom copo,
écapar.de organizar sozinhajantares para 20 pessoas. Gos-
ta de conversar em tomo de uma mesa inteligente, de as-
sistir éperas (de preferéncia Mozart ou Wagner), de ir a0
cinema (Bufiuel ou Godard).
Notrabalho, é uma ateniense espartana, Para ela, nenhu-
‘ma pesquisa & excessiva. Ela ndo vé exagero na iltima
‘gio critica de “Em Busca do Tempo Perdido”, que resultou
em 7.000 piginas de texto, sendo que quase 5,000 so de
notas,variantes, rascunhos eesbosos. “‘Daquia um ou dois
séculos, sem o aparato crftico, boa parte das referéncias de
Proust estariam perdidas.”
Pelos séculos afora, pois, enquanto houver interesse na
sociedade burguesa, mesmo que num arrabalde do siste-
‘ma capitalista, léestardo “Os Sertdes” e “Grande Sertdo”
—devidamente escorados nas pesquisas de Walnice.
Sua critica visa o presente, busca uma dimensio social e
politica. Em “As Formas do Falso” (ed Perspectiva), ela ar-
Bumenta que as ambiguidades de “Grande Sertio” ex-
Oem a ambiguidade do intelectual brasileiro, que, “preso
a seus prvilégios (.), convive no mundo dos valores, mas
¢ tradicionalmente servidor do Estado; aqui existe e aqui
‘produ, mas de olho na tltima moda das agéncias centrais
dacultura”,
Walnice voltou recentemente ao teatro Oficina, onde,
«em 1968, ajudava a proteger os atores de “Roda Viva” dos
terroristas de extrema-dieita(“fazia seguranca”, confor-
me 0 jargéo da época). Voltou para falar de terrorismo,
chamada pelo lider do Oficina, José Celso Martinez Cor-
réa, que pretende encenar “Os Sertdes”, para um debate
sobreaguerra de Canudosea do Aeganist.
Hla discorreu sobre o fundamentalism religioso de An-
tonio Conselheiro, a miséria do sertdo, o mundo a parte
‘em que Canuidos vivia, a satanizagio dos jagungos ea guer-
rade exterminio que a repiblice moveu contra a Tréia de
‘Taipa, Falou também de “fundamentalismo do mercado”,
da “satanizagao do islamismo” e da “guerra de extermi-
nio” no Afeganistao.
“Sou uma criatura dos anos 60”, diz Walnice. Nascida
em Sio Paulo, numa familia de classe média que prezava a
cultura, fez 0 curso secundario no Mackenzie, passou no
vestibular da USP e um determinado dia atravessou a rua
‘Maria Antonia para estudar letras e ciéncias sociais. “Foi
‘como se eu entrasse num mundo novo, de estudo, discus-
s6¢s intelectuais e ativismo politico”, conta, “E eu lembro
‘quepensei:éessa ida que eu quero.”
Esse mundo foi moldado pela geragio da revista “Cli-
ma”, Walnice teve alas com Ruy Coelho, Décio de Almei-
da Prado, Gilda de Mello e Souza e Antonio Candido. Foi
aluna e asistente de Candido e o substituiu na cadeira de
teorialiterdriae literatura comparada.
‘Walnice tem empatia com 0 pop. E uma frequentadora
delocadoras de video e shows de jazz. Assisteboa parte do
lixo produzido por Hollywood e acompanha a miisica po-
pular brasileira. A empatia ndo a impede de criticar com
brioa industria cultural.
Nessa rea, ela tem um ensaio que marcou época, Foi es
crito em 1973, seu titulo é “Amado: Respeitoso, Respeité-
vel” eesté no livro “Saco de Gatos” (ed. Duas Cidades). E
uma andlise do romance “Tereza Batista Cansada de Guer-
1a”, lancado na época por Jorge Amado, Walnice fez pica
inho dolivro, o que ni era pouca coisa: oescritor baiano
estava no auige do sucesso de piiblico e boa parte da critica
6 respeitava, Ela demonstra como Jorge Amado, coman-
dado pelo gosto do piilico, se comprazia na pornografia,
‘Com boas maneiras eboa lbgica, chamava-o de sédico, vo-
yeur, ped6filo eexibicionista
Como passar dos anos,0 escritor afundou cada vez-mais
no populismo pornogrific. E foi justamente esse o Jorge
Amado adotado pela eevisdo e ocinems, pontas-ce-lanca
da indiistria cultural, Pessaram-se quase 30 anos o ensaio
de Walnice continua pertinente. Fla tem crescido como
citicae Jonge Amado diminuido como romancista.pagina 5
‘4
MUSAS SOB ASSEDIO
Acriticae professorada USP
discute comoa industria
cultural e a globalizacao
econdmica passaram
amoldargradualmentea
literatura, a arte, ocinemaeo
teatro produzidos no Brasila
partir de1968
por Walnice Nogueira Galvao
dado decisivo do panorama mundial nas il
mas décadas ¢ 0 fundamentalismo do mer-
cado. Uma certa concepgio de alta cultura
de alta lteratura— que tinhamos até hi
Pouco pereceu. A rapide inerente as transagdes do
mercado na contemporaneidade tornou-se solo adver
50 elas, como observou Pierre Bourdieu, ao lembrara
passagem de tempo necesséria & sua maturagdo: decé
acoes, séculos. Ainda bem que existem biblio
museus, nada impedindo que o prazertrazido
tee elaliteratura, que hoje s6 exstem na conju
gacio do pretérito, sea revistado com assiduidade. Os
paradigmas assim preservados nos impede:
ar que oespirito humano s6frutifica em banalidade e
esqualidez
Entretanto tampouco deixamos de constatar a demo
cratizagio que se operou paralelamente ao lento esbo-
roar-se da alta cultura, resultando na constituiglo de
uum mercado de trabalho para os artistas ena transfor
grande revira
a invengio da im
Depois do livro, assistiu-se a uma aceleragio
possiilidades de reprodugio a que nenhuma das
€ permaneceriam impensi
massas,ndo fosse toda essa tecnologia que co
teiae poe ao alcance
Democratizasioversusdegradasio
«que parece resdirafalicia. Uma logica perversaviriaa
imperar, privilegiando o investimento em novidades
que, devido a sua facilidade e baixo custo, degradariam
cada vez mais o gosto do cidadio. Foi assim que 0s pro-
dutores agiram, enquanto se justificavam dizendo dar
ao povo o que ele queria. Endo o contrario: os produto-
res € que se empenharam numa campanha de desedu
pblico (caso do cinema), imbe-
levisio), tratando seu ouvido co-
de decre-
artes escap