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BENTO masons ETICA Ee) DE CARVALHO Ce Bento de Espinosa FILOSOFIA - POS~ G2AD uis ETICA BS Introdugiio e Notas de Joaquim de Carvalho Eee Er Rua Sylvio Rebelo, n° 15 1000 Lisboa — Tel. 8474450 994 2665 ; 17.02 esr ei “Titulo: Etica = i ‘Tradugdo: Pan I: Joaguim de Carvalho 000088296 Parte Ile Il: Joaquim Ferreira Gomes Parte IV e V: Anténio Simoes Introducao e Notas: Joaquim de Carvalho Posfécio: Joaquim Montezuma de Carvalho Capa: Femando Mateus sobre Efigie de Espinosa publicada na revista "Archivo Pittoresco”, vol. XI, 1868, Lisboa. © Rel6gio D'Agua Editors, 1992 ‘Composico: Relégio D’Agua. Impresstio: Arco-fris, Artes Grificas, Lda. Depésito Legal n? 3 501/92 . . Filosofia yeneae Seen gtica 17. 02/ESP /ett (2069/74) Spinoza ist Hauptpunkt der modernen Philosophie: centweder Spinozismus oder keine Philosophie. ‘Wenn man anfuingt zu philosophieren, so muss man zuerst Spinozist sein; die Seele muss sich baden in diesem Ather der Einen Substanz, in der alles, was ‘man fir wahr gehalten hat, untergegangen ist. HEGEL A existéncia humana sobrevém num mundo que Ihe € dado ¢ ccuja construtura e fenomenalidade so 0 que so; como pensar ‘em ordem a que o Universo se torne racionalmente explicavel, 0 pensamento se adeque plenamente & razao de ser de tudo o que existe ¢ a vida espiritual se converta em fruigao da beatitude, ou por outras palavras, em plena compreensdo e em inalterdvel Contentamento e paz de consciéncia? Tais so as perguntas capitais a que este Livro procura res- ponder ¢ cujo alcance ¢ fntimo enlace somente se apreendem desde que sejam consideradas como marcos de uma tinica in- quirigo, que ao adentrar-se em si mesma se foi transmudando em teoria do ser, em teoria do saber ¢ em teoria do proceder, Quase tudo o que saiu da pena de Bento de Espinosa! se en- 1 B esta a forma que preferimos, por mais portuguesa, mas € de observar 9 deregou ao esclarecimento destas perguntas, a comecar no seu primeiro escrito filos6fico!, 0 Korte Verhandeling van God de Mensch em deszelfs Welstand (Tratado breve? sobre Deus, 0 Homem e sua Felicidade), publicado pela primeira vez em 1862. Este livro, de alto préstimo para o estudo da génese do espino- sismo e que € anterior as influéncias que as ideias ¢ 0 vocabulério de Descartes exerceram no desenvolvimento do pensamento de Espinosa, d4-nos como que o primeiro esbogo do que viria a ser a Ethica more geometrico demonstrata, mas s6 esta proporciona a resposta definitiva, cujo teor ele se esforgou por pensar e expri- mir com a mente fria de quem somente aceita por verdadeiro o que a humana compreensao demonstra racionalmente, olhos postos na necessidade I6gica da Matemética, mas também com o calor da inquietude emotiva de quem sente apostada na inquirigdo a pulsago dos mais intimos anelos eo risco do proprio destino. A resposta de Espinosa assinala uma das mais profundas e impressionantes criagdes do génio filoséfico de todos os tem- Pos, que cumpre ser presente a quem queira conhecer a histéria ‘que se nfo ha divida quanto 20 aportuguesamento do nome, que aparece gra- fado Baruch (hebraico). Benedictus (latino) ¢ Bento (portugues), nao apare- cendo nunca a forma castelhana Benito, 0 apelido, pelo contrio, apresenta- -se com as variantes: Spifioza; d'Spinoza; de Spinoza: Despinoza. Nos do- ‘cumentos referentes a familia: Despinoza; Espinoza; Spinosa; Espinosa; de Espinosa; de Espinoza; Despinosa; dEspinose, Spinoza; e na pedra tumular dda mie do fil6sofo: Hana Debora dEspinoza mulher D Mikael d'Espinoza, Vid. Freudenthal, Die Lebensgeschichte Spinozas in Quellenschrifien. Urkunden und nichiamalichen Nachrichten, Lipsia, 1899, pig. I, passin; Carl Gebhardt, Der Name Spinoza, in Chronicon Spinozanum, 1 (Haid, 1921), pags. 272-276, 1 Dizemos filosético, porque a Apologia para justficarse de su abdica- cin de la Sinagoga, que Esp. escreveu apés 0 decreto de excomunho ‘Schammata, a mais terrivel das excomunhes, que o expulsou da comuni- dade de Amsterdao (27 de Julho de 1656), embora deva ter sido anterior a0 Korte Verhandeling,€ crivel que tivesse a feigo de uma autobiografia men- tal. E desconhecido o texto da Apologia, que parece ter sido destrufdo, ¢ também se ignora se foi redigido em portugués ou em castelhano, pois a in- dicagao do titulo nfo € prova suficiente de que o houvesse sido nesta lingua. 2 Isto 6, em resumo, Contractus, seria a trad. exacta, no juizo do ed. W. Meijer. 10 do pensamento metafisico ou pretenda tomar posigao reflectida conscienciosa sobre problemas de sempre. Sob dois aspectos diferentes pode ser considerada: epocal e © intemporal Pelo primeiro, representa a concregao do pensamento de um homem que viveu em certa época e em determinado meio, so- freu influéncias vérias, desde o endoutrinamento da Sinagoga & assimilagdo de algumas concepgGes de pensadores ocidentais designadamente Renato Descartes e Tomés Hobbes, ¢ se nao furtou, como ninguém pode furtar-se, & conjuntura hist6rica e &s circunstancias em que Ihe foi dado viver. Pelo aspecto intemporal, é o desenvolvimento de uma intui¢ao do Ser, cuja raiz profunda esté para além da historicidade cir- cunstancial, aparentando-se, por exemplo, com o ser essente de Parménides, com 0 curso eterno da fenomenalidade do Universo, de Heréclito, com a concep¢io estéica do Universo, ‘com o panteismo de Plotino e com a ideia da Natureza una ¢ in- finita de alguns filsofos da Renascenga, especialmente Giordano Bruno, e de uma atitude perante a Vida, que se nutre de anelos ¢ de sentimentos que propendem para o enlevo teopd- tico dos misticos de todos os credos. ‘Sob o primeiro ponto de vista, estudar Espinosa é compreen- der uma manifestagao caracteristica do pensamento do século XVIle, em especial, a projecgio metafisica da entZo nova con- ‘cep¢io meciinica da Natureza, e descobrir alguns impulsos da reflexdo ético-politica de uma consciéncia que com ser solitéria se no sequestrou ao ambiente social da Holanda; sob 0 se- gundo, € tomar contacto com uma das possfveis maneiras de conceber 0 Mundo e a posigio do Homem no Universo; cuja ar- ticulago conceptual e verbal apresenta em Espinosa correspon- déncia com certos dados da Ciéncia coetinea, mas cuja estrutura e alcance so trans-hist6ricos, e, portanto, susceptiveis de serem repensados com dados ¢ ilagdes da Ciéncia contempordnea, do que deu original testemunho Samuel Alexander, o extraordinério metafisico do Space, Time and Deity (1920). Por isso, se compreende que Hegel tivesse afirmado que 0 espinosismo deve ser a filosofia de quem comega a filosofar, ¢ il Bergson tenha escrito que «se Espinosa tivesse vivido antes de Descartes teria escrito, sem davida alguma, coisa diversa do que escreveu, mas vivendo e escrevendo, nao deixamos de estar certos de que terfamos o espinosismo>!, Nao € de acesso fécil um pensador que assim se apresenta com uma explicagdo racional de todas as manifestagdes da exis- téncia e com uma religiéo metafisica, no belo dizer do Dr. Carl Gebhardt? — ou por outras palavras, com um sistema em que a filosofia € conhecimento pleno e norma de vida perfeita, isto é, um sistema de conhecimentos demonstrados e de verdades tidas por necessérias, relativas a0 Mundo, ao Homem e ao seu lugar e destino no Universo, As razdes da dificuldade so varias, procedendo, umas, da forma como Espinosa exprimin o pensamento e derivando ou- tras da propria natureza dos problemas e da conexdo que entre eles 0 Fildsofo estabeleceu. A Etica, com efeito, nao € um livro de leitura facil ¢ 0 que nele hd de profundo somente se oferece a quem o procura com es- forgo de compreensio. Tal como o ser intimo de Espinosa, de seu natural reservado e suspicaz — Caute, foi a divisa que adoptou —, a ponto de um dos seus visitantes, Saint-Evremond (1613-1703), haver dito que ele ne s‘est pas découvert tout d'un coup?, assim também a riqueza interior € a vastido de horizon- tes da sua filosofia somente comegam a avistar-se aps reiterada convivéncia. ‘A exposigdo impessoal, com o aparato proprio de um tratado de Geometria, ndo convida o leitor amimado do nosso tempo; € © primeiro contacto com a desenvolugao de um pensamento que se esforga por nio sair do plano da necessidade, da eternidade da universalidade, gera em mentes apressadas ¢ afeitas ao im- pressionismo das aparéncias a sensagio de uma filosofia drida, g6lida e até inumana, 1 Vid. Lintuition philosophique, in La pensée et le mouvant, Paris, pig. 143. 2 Vid. Spinoza, Lipsia, 1932, pags. 88 € segs. 3 Vid, Freudenthal, Die Lebensgeschichte Spinozas, cit., pag. 238. 12 A primeira dificuldade procede, pois, da forma expositiva, mas esta dificuldade € puramente exterior, ¢ até deixa de ser di- ficuldade para se tornar em atractivo desde que 0 leitor preze a concisio considere que o rigor deve ser a norma de toda qualquer expressao verbal. ‘A segunda dificuldade € bem mais complexa ¢ custosa de vencer, pois consiste em descobrir 0 sentido profundo das pala- ‘ras ¢ a intuicdo que subjaz a construgdo do sistema, ou dito de outra maneira, em apreender o ser real e vivente, a inquietude a certeza, 0 encadeamento I6gico € a evasio afectiva, sob a en- fiada dos axiomas, das definigdes, dos lemas ¢ dos escdlios. ‘Como as recompensas raras e custosas, que s6 se deixam al- cangar por quem se toma digno de as merecer pela tenacidade isengdo do esforgo, assim a apreensdo da intuigao fundamental do sistema de Espinosa e, sobretudo, a compreensdo das nogdes e correlagdes em que ela se diversifica com incompardvel fasci- nagGo, ndo se oferecem com prontidio nem transparéncia. Daf, a diversidade das interpretagdes © modos de ver, derramados por copiosissima literatura! e por juizos antagénicos, que véo desde ©

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