You are on page 1of 1

O bordado azul

Lavou as mos com um sabonete lquido que, desde a infncia, havia se acostumado a ver sobre a pia do banheiro. Esfregou as palmas, o dorso, os dedos com um cuidado quase ritual. O creme de rosmarinus na pele mida, dizia, dava-se ao encontro das sedas: mo, fio, tecido. Depois caminhou lentamente para a varanda, antecipando o prazer que em breve viria. Parou, olhou o horizonte e sentou-se na cadeira que fora antes de sua av e de sua me. A madeira escura, a palhinha gasta, tramada h muito pelas mos habilidosas do av. Todas as tardes, Ana sentavase para bordar. Na mesinha, ao
Ele: Viu o azul? Quanto h de azul? Ela: azul azul azul azul Lils corpo meu Sem cor... Ele: Estou sob o sol e a infinitude do azul. Neste pequeno conto, paisagens azuis brotam choradas em fios e pontos tecidos por Ana.

pensou furtivamente. No. Reuniu as sedas: mo, fio, tecido. Comeou a trabalhar intensamente. Era a forma que encontrara de esquecer. No. O azul ainda no. A vida dela era assim... Por que havia escolhido aquele motivo? No lembrava mais. Era bonito, porm triste. A vida... Voltou a olhar as cores: trs tons de azul para o cu. No. Deixaria o cu por ltimo, ainda no estava preparada para ele. A...era... Permaneceria nas montanhas e no grande rochedo. Cinzas, ocres, marrons. Cores slidas que traziam a terra para perto de si. Os azuis ainda no, Por um breve instante, ergueu os olhos do bordado e deixouse arder pela tarde. Onde estaria ele naquele momento? No azul? Sob o sol e a infinitude do azul? Balanou a cabea com energia suave. Havia amado. Sim. Havia. Espetou a agulha sobre o risco da rocha. O fio cinza dilacerou o tecido. As lgrimas encharcaram o espao onde um dia bordaria o azul.
www.ninaveiga.com.br

lado da cadeira, a cesta de vime deixava escapar cores. O bastidor, pousado sobre a almofada, mantinha tensionado o risco j traado sobre o tecido. Toda a vida dela era assim, como aqueles dois crculos que se encaixavam perfeitamente, mantendo a tenso do pano. No. No queria pensar nisso. Sentou-se, olhou a paisagem do

costume: telhados, antenas, fachadas. O sol da tarde ardia os olhos. Por um pequeno instante, parou de respirar. Estava ali. Chegara a hora. Abriu a cesta pegou algumas meadas e a pequena tesoura dourada. Colocou o bastidor no colo. A vida...era assim... Com um suspiro, afastou novamente o pensamento que teimava invadir a tarde quente e se concentrou no risco.

You might also like