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Caminhos da Crítica
Literária Brasileira: Roberto
Schwarz e Luiz Costa Lima
THE PATHS OF BRAZILIAN LITERARY
CRITICISM: ROBERTO SCHWARZ AND
LUIZ COSTA LIMA
Resumo A mola crítica de Roberto Schwarz pensa a relação entre o crítico e a obra di-
cotomicamente: racionalidade versus irracionalidade. Luiz Costa Lima, contemporâneo
de Schwarz, pensa o lugar da obra literária e do crítico tomando por base um mesmo
contexto. O fenômeno da mímesis tanto explica o modo de recepção da obra literária
quanto o seu modo de intelecção, pois ela não supõe exatamente a diferença, e sim a
semelhança. Enfim, a concepção crítica de Roberto Schwarz e a de Luiz Costa Lima
se opõem drasticamente. Contudo, tentaremos mostrar, neste artigo, que a atividade
crítica de cada um deles está inserida numa mesma tradição crítica. Assim, faremos
um breve questionamento sobre a existência ou não de um sistema de crítica literária SEBASTIÃO MARQUES
que se consolida no Brasil e, em seguida, trataremos separadamente de Roberto CARDOSO
Schwarz e de Luiz Costa Lima, esforçando-nos em mostrar, quase sempre, a dívida Universidade Estadual do
Centro-Oeste (Unicentro)/PR
que esses críticos têm em relação ao nosso passado crítico.
sebastiaomarques@uol.com.br
Palavras-chave CRÍTICA LITERÁRIA BRASILEIRA – ROBERTO SCHWARZ – LUIZ COS-
TA LIMA – HISTÓRIA LITERÁRIA BRASILEIRA.

Abstract Roberto Schwarz’s critical activity conceives the relationship between the
critic and the work dichotomously: rationality vs. irrationality. Luiz Costa Lima,
contemporaneous with Schwarz, conceives the place of the literary work and the
place of the critic from the same context. The phenomenon of mimesis explains both
the manner the literary work is received and its mode of intellection, because it does
not suppose the différance/difference but the similarity (homoiosis). After all, the
critical conception of Roberto Schwarz and Luiz Costa Lima are opposed drastically.
However, in this article, we attempt to show that their critical activity belongs to the
same critical tradition. Thus, we briefly question whether there is a system of literary
criticism that consolidates in Brazil and, after that, we deal with Roberto Schwarz and
Luiz Costa Lima separately, trying to show, almost always, the debt which these
critics have to our critical past.

Keywords BRAZILIAN LITERARY CRITICISM – ROBERTO SCHWARZ – LUIZ COSTA


LIMA – BRAZILIAN LITERARY HISTORY.

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O canto das sereias transpassava tudo e a paixão dos seduzidos teria arre-
batado mais correntes e mastro. Mas Odisseu nem pensou nisso, embora
talvez tenha ouvido falar disso. Confiava plenamente no punhado de cera e
no emaranhado de correntes e, em inocente alegria quanto a seus meiozi-
nhos, navegou em direção às sereias.
FRANZ KAFKA

D
iante do crítico, a obra literária. O crítico, com seus meio-
zinhos, esquadrinha seu discurso crítico. Como Odisseu,
o crítico acredita que com um punhado de idéias será pos-
sível ouvir o que as obras literárias têm a dizer. Talvez, essa
crença – a tradição que funda o discurso crítico – o impeça
de ouvir o que as obras também silenciam. Esse silêncio
pode significar a insuficiência dos meios críticos: um pu-
nhado de idéias bastaria para ofuscar aquilo que a obras
literárias confiariam em dizer.
Entre o discurso crítico e a obra, a diferença. Essa diferença é sentida
por Roberto Schwarz, ao analisar a obra de Kafka, em duas categorias.
Do lado do discurso crítico, a categoria que o legitima é a inteligibilidade;
do lado da obra literária, a categoria que a condiciona é a irracionalidade:
“o historiador marxista reduz o opaco, fruto da alienação, à essência hu-
mana inteligível, que é a atividade concreta; em outras palavras, compre-
ende o objeto de estudo em termos de sua própria capacidade de expe-
rimentar situações. Kafka, pelo contrário, deve reduzir a prática inteligí-
vel, fátua ilusão do homem, à essência irracional do ser”.1
Não entrando no mérito da leitura realizada por Schwarz acerca de
A Metamorfose, de Kafka, fica evidente que a mola crítica do autor pensa
a relação entre o crítico e a obra dicotomicamente: racionalidade vs. ir-
racionalidade. Luiz Costa Lima, contemporâneo de Schwarz, pensa o lu-
gar da obra literária e do crítico tomando por base um mesmo contexto.
O fenômeno da mímesis tanto explica o modo de recepção da obra lite-
rária quanto o seu modo de intelecção, pois a atitude mimética não supõe
exatamente a diferença, e sim a semelhança:
Seu componente diferença (relativo à mímesis) só se deixa ver por
contraste com o esperado, a semelhança, vê-la não é entendê-la. Sua
compreensão só é atingível por um ato analítico, que, enquanto ana-
lítico, já não é estético. Mas, por não ser estético, não compreende
senão o que se lhe mostra em uma experiência estética. A mímesis
artística, em suma, é a condição para nos compreendermos como su-

1 SCHWARZ, 1981, p. 65.

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jeitos fraturados: a experiência estética donado à própria sorte. Portanto, um período


nos faz sentir nosso próprio estado (Zus- cinzento marca a nossa formação intelectual, sem
tand).2 nenhuma gota de sangue derramada. Éramos
órfãos de nós mesmos, tivemos de aprender a ca-
Para Luiz Costa Lima, a atividade crítica
minhar tropeçando em teorias européias, catalo-
consiste em, a partir da experiência estética, ten-
gando escritores nacionais e lendo ou escrevendo
tar dizer analiticamente aquilo que nos foi mos-
artigos para um público seleto: ou era para nossos
trado e reconhecido no discurso ficcional como
próprios amigos ou era para satisfazer nossas
produção de uma nova verossimilhança.
próprias veleidades intelectuais.
Diante do exposto, podemos dizer que a
Nossa atividade intelectual se resumiu a
concepção crítica de Roberto Schwarz e a de Luiz
grupos ou indivíduos isolados entre si que bus-
Costa Lima se opõem drasticamente. Contudo,
caram, com base na filtragem de modelos cultu-
tentaremos mostrar, neste ensaio, que a atividade
rais externos ao País (ou, em muitos casos, à as-
crítica de cada um deles está inserida numa mes-
similação irrefletida de correntes teóricas estran-
ma tradição crítica. No caso de Luiz Costa Lima,
geiras), um olhar específico (ou, na segunda hi-
talvez sua experimentação em outras paragens pótese, estrangeiro) acerca de nossa vida material
críticas se explique por não confiar plenamente no e cultural. Ao que parece, os intelectuais, que es-
punhado de cera e no emaranhado de correntes de tabeleceram um diálogo entre nossa herança po-
nossa tradição crítica. Pensando nisso, faremos lítico-cultural e a relação que essa mantinha com
um breve questionamento sobre a existência ou a conjectura político-cultural internacional, fo-
não de um sistema de crítica literária que se con- ram justamente aqueles que melhor vislumbra-
solida no Brasil e, em seguida, trataremos separa- ram o Brasil contemporâneo, que melhor contri-
damente de Roberto Schwarz e de Luiz Costa Li- buíram para uma re-leitura de nosso passado po-
ma, esforçando-nos em mostrar, quase sempre, a lítico, econômico, social e cultural. Para lembrar
dívida que esses críticos têm em relação ao nosso apenas alguns desses intelectuais da linha de fren-
passado crítico. te, basta consultar os trabalhos de Sérgio Buarque
de Holanda, Caio Prado Júnior, Gilberto Freire,
I. O BRASIL POSSUI UM SISTEMA Celso Furtado e, na crítica literária, de Antonio
CONSOLIDADO DE CRÍTICA LITERÁRIA? Candido.
No Brasil, a atividade intelectual, além de Em face da premente necessidade de auto-
escassa, sempre encontrou fortes resistências. afirmação ou de distinção intelectual perante ou-
Não nos assustemos com o termo empregado tras culturas, espécie de complexo de Édipo da
fortes resistências, pois não fazemos alusão aos pe- cultura brasileira, a atividade intelectual permane-
ríodos negros experimentados pela intelectuali- ceu no País, por um longo período, discutindo
dade ao longo da História, como perseguição po- temas como originalidade, nacionalidade ou bra-
lítica, deportação, exílio, tortura e outras formas silidade, sem, muitas vezes, dar passos maiores
de repressão utilizadas pelos Estados modernos em outros campos teóricos. Recentemente, no
para calar a voz crítica e insatisfeita daqueles que terreno da teoria da literatura, muito se falou, por
os denunciavam. No Brasil, com raras exceções, exemplo, em literatura nacional, influências e em-
as fortes resistências ao pensamento crítico fo- préstimos lingüísticos etc. Como uma leve brisa,
ram tranqüilas como um amanhecer preguiçoso essas discussões, estimuladas por correntes teóri-
em época de férias. São fortes resistências porque cas estrangeiras, mais uma vez se mostraram frá-
o pensamento crítico brasileiro foi mantido, por geis e insuficientes para dar conta de nossa com-
muito tempo, em um estado embrionário, aban- plexidade cultural. O hábito extremamente dano-
so de continuamente virar o pescoço para se
2 LIMA, 2000, p. 394. apropriar de teorias alheias provoca, além de irre-

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cuperáveis torcicolos, o vício intelectual de sem- daquela; a existência de uma cidade e nela
pre estar com uma teoria nova, o remédio defini- de uma sociedade bastante culta e opulen-
tivo para os piores males de nossa má formação ta e amiga do grande luxo, que empre-
cultural. guem o artista e lhe remunerem o traba-
lho, é a primeira e indispensável.3
Portanto, as resistências ao pensamento crí-
tico no Brasil não devem ser entendidas como Além de a arte literária ter sobre as belas-ar-
posturas ideológicas contrárias de origem especi- tes a vantagem de dispensar as condições materiais
ficamente políticas. Nem por isso queremos di- de produção indispensáveis a elas, o gosto do bra-
zer que eventos políticos dessa ordem não inter- sileiro pela literatura tem suas raízes na tradição
ferem sub-repticiamente na formação ou de-for- literária portuguesa:
mação de um povo. Contudo, não será essa a
principal questão a ser abordada por nós, haja vis- A causa desta nossa florescência poética
ta que nosso maior interesse concentra-se sobre- não foi a terra, nem essa beleza exagerada
que lhe emprestou o nosso nativismo, de
tudo no terreno da crítica literária brasileira.
que muitos poetas nossos foram os can-
Como entraves à progressão do pensamento crí-
tores conscientes e entusiastas, e que se
tico em nossa gleba, consideraremos, pois, ques- sistematizaria, é quase um dever de patrio-
tões mais elementares, como o nosso atraso ma- tismo reconhecer, em Rocha Pita. Foi a
terial em relação às nações mais desenvolvidas, o herança portuguesa, a tradição literária e
nosso passado colonial e a precariedade de nosso poética de um povo cuja poesia, no século
meio cultural. da conquista, era das mais ilustres da Eu-
Há, hoje em dia, condições favoráveis para ropa.4
o desenvolvimento de diversas artes no País. A
O atraso material pode ter sido positivo
pintura, o teatro, o cinema, a escultura, a arquite-
quanto à produção literária até o momento de sua
tura, a dança, bem como outras formas de ex-
consolidação no Brasil, mas não o foi igualmente
pressão em arte já podem ser produzidas no Bra-
para o campo das idéias. A ausência de bibliotecas
sil por conta de políticas de incentivos financei-
em nosso meio, dificultando a recepção de textos
ros. Um bom exemplo disso foi o projeto Rou-
literários e críticos, obrigava o leitor, quando dis-
anet, lei governamental que permite destinar
punha de condições materiais favoráveis, a recor-
parte das verbas do setor privado à produção ci-
rer a bibliografias estrangeiras. Elas acabavam in-
nematográfica. Mas a arte cultivada em momen-
cidindo na formação teórica de um intelectual,
tos iniciais de nossa formação e que, ao longo do
cujas idéias acerca das condições de produção
tempo, atingiu a maioridade, sendo ainda hoje
literárias brasileiras pouco se diferençavam das
responsável por grande parte de nossa produção
posições críticas estrangeiras, demonstrando
cultural, é, sem dúvida, a arte literária.
quase sempre desconhecimento e preconceito
A arte literária se expandiu pelo País pari quanto às atividades culturais nacionais. Cria-
passu à nossa formação cultural, em decorrência vam-se lentamente um ódio e um desprezo inte-
de nossa herança cultural e de nossa precariedade lectual sem precedentes às coisas do Brasil.
material, como bem atesta José Veríssimo:
Para agravar ainda mais a situação, o Brasil
O próprio aparelho técnico indispensável Colônia deixou-nos uma herança cultural ainda
à produção da obra de arte, seja em mú- forte em nosso meio: a crítica louvaminheira.
sica, seja em pintura, seja em escultura, Essa crítica da corte, para alegrar o paço, impreg-
seja em arquitetura, é muito mais consi- nada de efusivos adjetivos e erudição, que, mais
derável e custoso que o preciso para a tarde passa a ocupar considerável espaço nos jor-
produção da obra literária. Um conjunto
de condições sociais, menos de rigor na 3 VERÍSSIMO, 1977, p. 46.
produção desta, é quase obrigatório na 4 Ibid., p. 48-49.

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nais republicanos, foi uma tendência e continua to crítico sistematizado. Conseqüentemente, ape-
sendo, infelizmente, o que reduziu o espaço da sar de efervescente, surgiu no Brasil uma crítica
crítica ao comentário elogioso ou, quando não, superficialmente teórica, que demonstrava pro-
impregnado de sentimentalismos e idéias infun- fundo desprezo à produção literária brasileira,
dadas. A bem dizer, a ausência de critérios e a quando não caía simplesmente na moda nacional:
prosa solta são sua marca maior, atestando o seu a crítica louvaminheira, que perdurou até nossos
alto grau de inobjetividade. Comentando a pro- dias.
dução literária e crítica do período modernista de Contra a crítica louvaminheira, uma crítica
nossa literatura, Sérgio Milliet a define, ao mes- empenhada e bastante consciente de seu papel
mo tempo em que levanta os perigos que nossas crítico, uma crítica de pressupostos teóricos mais
letras correm quando estão sob os auspícios des- firmes, uma crítica que representa uma releitura
ses críticos do paço: de nossa incipiente tradição crítica e literária, en-
A grande miséria de nosso romance não
fim, uma crítica literária que se assume como dis-
está no romance mas na crítica. É a crítica curso crítico sistematizado no Brasil. Esse mode-
jornalística e radiofônica publicitária e lo de crítica consolida-se, no País, com a publica-
sem critério, a culpa de todo mal (...). É a ção da Formação da Literatura Brasileira (1959),6
crítica louvaminheira de quaisquer medio- de Antonio Candido. Podemos perceber que, na
cridades bem apadrinhada e ignorante das crítica empreendida por Antonio Candido, con-
obras mais sólidas. É a crítica noticiarista vergem tanto nosso passado crítico (José Veríssi-
empanturrada de adjetivos, sem pondera- mo e Sílvio Romero, por exemplo) quanto a pro-
ção nem convicções. Entre a plêiade de dução crítica posterior a ela (Roberto Schwarz,
bons ensaístas das levas intelectuais surgi-
Luiz Costa Lima e outros).
das em nosso mundo literário depois de
1922, quantos ocupam os rodapés dos Não é possível responder à pergunta “O
jornais? Não são estes entregues quase Brasil tem um sistema intelectual?” por, pelo me-
sempre a gente mais ou menos desclassi- nos, dois motivos. Primeiramente, porque ela é
ficada no mundo das letras, ou por sua in- ampla, o que faz cair numa generalização sem ta-
cultura ou pela sua incapacidade criado- manho. Mesmo que, como Luiz Costa Lima for-
ra?5 mula, em “Da existência precária: o sistema inte-
lectual no Brasil”,7 especifiquemos o conceito de
Podemos concluir, até então, que, no refe-
sistema (termo emprestado de Antonio Candi-
rente à produção literária no Brasil, o atraso ma-
do), a intelectualidade brasileira parece bastante
terial contribuiu para a formação de nossa litera-
dispersa, não podendo, assim, ser considerada sis-
tura, cujas raízes têm a literatura portuguesa
como matriz. Entretanto, no que diz respeito à têmica. Em segundo lugar, falta-nos dados preci-
produção crítica, esse atraso dificultou a leitura e sos acerca do movimento intelectual, desde suas
a recepção de textos literários no País, provocan- origens até os dias de hoje, no Brasil. Desconhe-
do um desconhecimento generalizado acerca da cemos trabalhos que tratam o assunto de maneira
produção literária nacional, e obrigou esses leito- profunda e exaustiva. Rotineiramente, temos
res críticos a importar teorias européias, sem maio- especulações e muitos questionamentos sobre a
res reflexões. Assim, enquanto Machado de Assis inexistência ou não de uma vida intelectual orgâ-
dava o golpe de misericórdia na literatura de fei- nica no País, não chegando a constituir uma mas-
ções ainda portuguesas, Silvio Romero, Araripe 6 Colocamos o ano de 1959 para fazer referência à primeira edição da
Júnior e José Veríssimo davam os passos iniciais, obra crítica de Antonio Candido, servindo-nos apenas como baliza
mas decisivos, para a formação de um pensamen- temporal. Para a demonstração crítica da obra, utilizaremos, neste
ensaio, a oitava edição da Formação da Literatura Brasileira, publicada
pela Editora Itatiaia, em 1997.
5 MILLIET, 1944, p. 21. 7 Cf. LIMA, 1981.

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sa de conhecimento científico consistente, digna Candido. Referimo-nos à leitura dos ensaios e,


de ser apreciada. sobretudo, da Formação da Literatura Brasileira:
Ora, se não é possível responder à pergun- textos de Antonio Candido referentes ao perío-
ta “O Brasil tem um sistema intelectual?”, então, do formativo de nossa literatura. O mestre ime-
a reformulemos, dando-lhe as especificações ne- diato de Roberto Schwarz − Antonio Candido −
cessárias: o Brasil possui um sistema consolidado foi responsável pela exposição de uma tradição
de crítica literária? Para Luiz Costa Lima, o sis- literária nacional cuja figura nevrálgica, tanto no
tema intelectual é incipientemente legitimado quadro gerativo de nossa literatura quanto na
com a independência e a unificação política do concepção teórica do autor, era, sem sombras de
Brasil.8 Restringindo a assertiva do crítico mara- dúvida, Machado de Assis. A prosa machadiana
nhense, talvez pudéssemos melhor dizer que sur- foi tomada por Antonio Candido e, mais tarde,
ge, nessa mesma época, uma crítica literária em- desenvolvida por Roberto Schwarz, nos seus cé-
penhada, diferente daquela praticada anterior- lebres estudos sobre Machado de Assis,10 como
mente − voltada exclusivamente para fora. A mis- uma síntese de tendências universalistas e particu-
são agora é implantar uma crítica notadamente laristas.
brasileira, e diversa da crítica que se seguirá, por- Para fins de análise, recapitulemos um tre-
que ainda não possui um centro decisório pró- cho da Formação da Literatura Brasileira, de An-
prio (síntese das buscas críticas anteriores). tonio Candido, considerando-o como metoní-
Como já salientamos, a força crítica de Antonio mia do seu método crítico:
Candido resulta do esforço analítico dos primei-
ros críticos literários, que procuraram fazer uma Se voltarmos porém as vistas para Macha-
crítica de feições brasílicas.9 do de Assis, veremos que esse mestre
admirável se embebeu meticulosamente
A brevidade deste ensaio não permite uma da obra dos predecessores. A sua linha
análise detalhada do período formativo de nossa evolutiva mostra o escritor altamente
crítica literária, nem dedicar páginas e mais pági- consciente, que compreendeu o que havia
nas sobre a importância que a crítica empreendi- de certo, de definitivo, na orientação de
da por Antonio Candido exerce na crítica literá- Machado para a descrição de costumes,
ria nacional desenvolvida posteriormente, ora por no realismo sadio e colorido de Manuel
uma assimilação quase direta, como aparece em Antônio, na vocação analítica de José de
Roberto Schwarz, ora por uma assimilação indi- Alencar. Ele pressupõe a existência dos
reta ou disfarçada, como se vê em Luiz Costa Li- predecessores, e esta é uma das razões da
sua grandeza: uma literatura em que, a
ma. Nosso intento, a partir de agora, é recuperar
cada geração, os melhores recomeçam da
e tentar descobrir, por meio dos trabalhos críti-
capo e só os medíocres continuam o pas-
cos desses dois últimos autores, os rumos da crí- sado, ele aplicou o seu gênio em assimilar,
tica literária brasileira contemporânea. aprofundar, fecundar o legado positivo
das experiências anteriores. Este é o se-
II. A TEORIA ENTRA PELA PORTA DOS gredo da sua independência em relação
FUNDOS: ROBERTO SCHWARZ E A aos contemporâneos europeus, do seu
alheamento às modas literárias de Portu-
ATIVIDADE CRÍTICA NO BRASIL
gal e França.11
CONTEMPORÂNEO
O caminho crítico adotado por Roberto O filósofo Paulo Eduardo Arantes não só
Schwarz desvela uma leitura atenta e criteriosa reconhece a presença de “Tradição e talento indi-
dos textos críticos mais importantes de Antonio vidual”, de T. S. Eliot, no conceito nutrido por

8 Ibid., p. 12. 10 Cf. SCHWARZ, 1990 e 1977.


9 ARANTES, 1992, p. 236-238. 11 CANDIDO, 1997, p. 104, vol. II.

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Antonio Candido em relação a Machado de As- de literatura como sistema, a entrada na crítica
sis, como também presume que, na própria for- literária pela porta dos fundos, uma forte tendên-
mação teórica do crítico, a fórmula de Eliot tam- cia pelo ensaísmo crítico e um deliberado desas-
bém se aplica: sossego em relação à teoria são as marcas de Can-
dido assimiladas por Schwarz, sem muita resis-
Vê-se (...) que mesmo com a fórmula de tência. Isso decorre, talvez, da exagerada e íntima
Eliot muito presente, Antonio Candido
proximidade intelectual entre um e outro, bem
ajustou-se antes de tudo pela lição de Síl-
vio Romero e José Veríssimo, natural-
como da forte tendência sociológica de Roberto
mente revista e corrigida, como se depre- Schwarz, como bem o declara no prefácio de seu
ende desta reconstituição da carreira de Um Mestre na Periferia do Capitalismo: “Devo
Machado de Assis, que finalmente cum- uma nota especial a Antonio Candido, de cujos
pria o programa de continuidade cultural livros e pontos de vista me impregnei muito, o
por canalização do influxo interno, e cor- que as notas de pé-de-página não têm como re-
respondente desprovincianização da fletir. Meu trabalho seria impensável igualmente
consciência literária, traçado pelos dois sem a tradição − contraditória − formada por
críticos nas linhas tortas que se viu.12 Lukács, Benjamin, Brecht e Adorno, e sem a ins-
A entrada de Antonio Candido na crítica piração de Marx”.13
literária pela porta dos fundos − ao rever o método Isso posto, como Schwarz vai equacionar o
crítico de Sílvio Romero e as concepções literárias problema da teoria? A experiência de Schwarz
de José Veríssimo, por exemplo − possibilitou-lhe com a teoria não está tão distante da experiência
um olhar descurado e profundo acerca de nossa de Antonio Candido, em virtude da proximidade
frágil produção literária e intelectual. Pela porta de ponto de vista. Candido nunca temeu a teoria,
dos fundos, a crítica literária brasileira se conso- temia apenas o ridículo local de confundi-la com
lidou. Contudo, Antonio Candido demonstrou resenha bibliográfica e a habitual colcha de cita-
uma singular desconfiança em relação à teoria (a ções a esmo, no conjunto, involuntariamente pa-
prata da casa) ou, dito de outra maneira, percebeu ródica.14
e procurou purgar tudo aquilo que é acessório em No curso de Letras, Roberto Schwarz as-
literatura, ou seja, tudo aquilo que se passava no siste ao passeio dessas teorias que passam por
País como teoria. Essa aversão à teoria, embora nossa academia sem deixar rastros ou quaisquer
justificável, não deixa de ser polêmica. Como ve- vestígios de proveito em nossa tradição crítica:
remos a seguir, Luiz Costa Lima tocará o dedo na
Nos vinte anos em que tenho dado aula
ferida, não poupando nenhuma crítica que possa
de literatura assisti ao trânsito da crítica
gerar incômodo nos seguidores mais eloqüazes por impressionismo, historiografia positi-
de Antonio Candido. vista, new criticism americano, estilística,
Como já afirmamos anteriormente, Rober- marxismo, fenomenologia, estruturalis-
to Schwarz é o discípulo mais imediato e bem mo, pós-estruturalismo e agora teorias da
comportado de Antonio Candido, pois segue as recepção. A lista é impressionante e atesta
linhas do mestre com muita cautela. Machado de o esforço de atualização e desprovinciani-
Assis, por exemplo, ponto chave da sua Forma- zação em nossa universidade. Mas é fácil
ção da Literatura Brasileira, recebe dois cuidado- observar que só raramente a passagem de
uma escola a outra corresponde, como se-
sos estudos por parte de Roberto Schwarz, o que
ria de esperar, ao esgotamento de um pro-
atesta indiscutivelmente a continuidade do proje- jeto; no geral ela se deve ao prestígio ame-
to de Antonio Candido, agora sob o influxo de ricano ou europeu da doutrina seguinte.
uma pena de outro autor. Em síntese, a concepção
13 SCHWARZ, 1990, p. 13.
12 ARANTES, 1992, p. 240. 14 ARANTES, 1992, p. 245.

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Resulta a impressão − decepcionante − da colônia, quando não renunciava à criticidade,


mudança sem necessidade interna, e por dava-lhe a sensação de não pertencer a nenhum
isso mesmo sem proveito.15 grupo socialmente definido. Gregório de Matos é
A mudança de uma teoria para outra sem ne- o exemplo desse desconforto.
cessidade interna é uma ideologia, no sentido mar- O Boca do Inferno, como assim o chama-
xista, que merece ser combatida. Essa prática, na vam, não se ligou fidedignamente nem aos rei-
concepção de Schwarz, tem precedentes históricos nóis e nem aos brancos de segunda-classe. Além da
que fazem conviver, no Brasil contemporâneo, literatura cuja expressão era a da classe dominan-
princípios burgueses atrelados a comportamentos te, o que prevaleceu, na produção cultural da era
sociais de nossa vida colonial. A necessidade interna colonial, foi um moralismo crítico simpático ao
em Schwarz constitui uma teia de relações entre o retoricismo e ao nativismo/nacionalismo sem
local e a tradição. Em outras palavras, é a força de maiores reflexões. Mesmo com a vinda da família
um sistema local de problemas e contradições real ao Brasil e, posteriormente, com o advento
que, exigindo mobilidade interna, filtra a oferta das Repúblicas, a situação do intelectual no País
internacional de teorias. Com isso, deixaríamos não se alterou significativamente. Isso posto,
de ser provincianos, no entender de Schwarz, ao Luiz Costa Lima aponta três características que
mesmo tempo em que nossa vida cultural se marcam indelevelmente nosso precário sistema
transforma, rejeitando o caráter postiço, inautênti- intelectual: uma cultura predominantemente au-
co e imitado que nos dominou por longo tempo. ditiva, uma cultura voltada para fora e um sistema
A pungência da experiência local exerceria, então, intelectual que não possui um centro próprio de
um papel decisório nesse processo. decisão.
Em síntese, as teorias internacionais, à luz Como traço da cultura auditiva, devemos
de Roberto Schwarz, serão bem-vindas e incor- entendê-lo como a migração do aspecto oral de
poradas ao nosso meio a partir do momento em nossa cultura para o âmbito das letras, introduzi-
que, estimuladas por nossas necessidades inter- do entre nós pelo ensino jesuítico: “O efeito de
nas, venham a contribuir significativamente para impacto produzido (pelos sermões de Padre An-
a superação prática das arenas locais e nacionais.
tônio Vieira, por exemplo) consistia em impres-
sionar o auditório, em esmagar a sua capacidade
III. A PRATA DA CASA: LUIZ COSTA dialogal, em deixá-lo pasmo e boquiaberto ante a
LIMA E A DISSIDÊNCIA DA CRÍTICA perícia verbal e a teatralização gesticulatória, ma-
LITERÁRIA CONTEMPORÂNEA neiras de rapidamente subjugar o auditório”.17
Para Luiz Costa Lima, há um certo incô- A cultura da persuasão instalou-se também
modo em ser intelectual no Brasil, pois seu ter- em nossa produção intelectual. Ela corresponde a
reno é vago e difuso, por uma série de fatores.16 um entrelaçamento de intuicionismo e culto da
Nossa cultura, diferentemente da dos países his- praticidade, que acaba desembocando, quase
panoamericanos, se impôs de cima para baixo, sempre, num autoritarismo crítico e numa de-
obrigando o intelectual a optar, desde cedo, pela
pendência cultural in continenti.
palavra teatralizada. Essa palavra teatral – retórica
vazia ou restos de janta abaianada – era muito Na produção intelectual domina a preocu-
bem-aceita pelas agências do paço. Em outras pa- pação com a apresentação externa do trabalho
lavras, trata-se da crítica louvaminheira, como vi- crítico, e não a atenção a suas relações internas.
mos no estudo precedente. Contudo, quando Isso, além de ser um traço de nosso precário sis-
esse intelectual não se curvava aos interesses da tema intelectual, tem conseqüências funestas em
nossa cultura. A preocupação com a exteriorida-
15 SCHWARZ, 1987, p. 30.
16 Cf. LIMA, 1981, p. 3-29. 17 Ibid., p. 16.

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de – o ostentatório – acaba gerando, em nosso da teoria. Ou dito de maneira grosseira: na incapa-


meio, a ânsia cultural pela teoria sempre nova. cidade mesmo de teorizar o discurso ficcional.
Com isso, não se produz teoria, importa-a. Em Sílvio Romero, a utilização de concei-
Entre uma importação e outra, esquece-se de eri- tos como fluência, naturalidade, emoção, comuni-
gir uma teoria crítica bem fundamentada, obede- cabilidade, entusiasmo, vida, capacidade de prose-
cendo aos imperativos de nossa cultura e prolon- litismo própria das almas combatentes e naciona-
gando-se lentamente por outros continuadores, lismo obedece aos imperativos da sociologia sem,
exclusivamente brasileiros ou não. Porém, a cul- contudo, uma definição clara e precisa dos ter-
tura ostentatória, orientada por modelos exter- mos. O último desses conceitos – nacionalismo –
nos à nossa cultura, não permite e exclui qualquer é tido por Sílvio Romero como o critério primor-
possibilidade, no Brasil, de teorizar sem medo. dial ao exame crítico. Machado de Assis seria,
Sempre há, na agenda do crítico brasileiro, coisas com certeza, a sua vítima predileta, pois não re-
mais urgentes a realizar! sumia a estreiteza das características nacionais
impostas pelo critério sociológico.
Em decorrência de nossa auditividade e os-
tentação culturais, somos impedidos de ter um Ao reler Sílvio Romero, Luiz Costa Lima
pensamento original. Isso impossibilita escolher obtém a seguinte conclusão:
ou mesmo avaliar a pertinência de certa obra, cor- Notamos primeiro uma marca afirmativa:
rente ou teoria, pois somos incapazes de tomar a busca de entender a obra literária não
decisões sozinhos: “Dizemos que nos falta um como espécie isolada, mas no conjunto
pensamento original, não só por não termos as das transformações sociais. Perfilaram-se
indispensáveis condições materiais (...), como a seguir marcas negativas: a incapacidade
porque as instituições legalmente capacitadas de observar as conseqüências de uma
para julgar as produções intelectuais tendem a anotação capital − impossibilidade de a
trindade taineana explicar as diferenças
não acatar senão os produtos seguidores de uma
das produções individuais − a incapacida-
linhagem já suficientemente legitimada nos cen- de de refletir conceitos utilizados, que en-
tros que reconhecemos”.18 tão passavam ao estado de meras ferra-
Apesar da crítica bastante aguda, Luiz Cos- mentas. Poderíamos resumir o legado ne-
ta Lima não é ortodoxo no que se refere às rela- gativo, declarando-o resultante da incapa-
ções com os grandes centros. Para ele, é impor- cidade de teorizar e da incapacidade de
tante estarmos a par do que se realiza fora do Pa- ler.19
ís, porém, devemos agir com muita cautela no Com relação a José Veríssimo, nele perpas-
momento de decidir acerca de uma metodologia sa a mesma preocupação com as condições sociais
ou de uma teoria. Para não incorrer nos mesmos que circulam a atividade do intelecto brasileiro, a
erros que tradicionalmente a crítica comete quan- mesma preocupação com o caráter nacional da li-
to ao uso da teoria ou do método, é mister reler teratura, a mesma afirmação anti-romântica em
nosso passado crítico com as lentes raras de Luiz favor da objetividade e do realismo, a mesma ca-
Costa Lima. racterização da crítica empenhada no esforço da
Se fizermos um balanço da crítica literária construção nacional. Contudo, o olhar de Verís-
produzida no Brasil a partir do final século XIX, simo é mais penetrante, pois ele percebeu que as
com Sílvio Romero, José Veríssimo e Araripe Jú- amarras de nosso pensamento crítico eram for-
nior, chegaremos à conclusão de que o problema necidas pela sociedade burguesa européia. Em su-
dela está, exatamente, na incapacidade de apreen- ma, os critérios de procedência sociológica e o de
der a especificidade do discurso ficcional por meio proveniência retórica são, guardadas as pro-

18 Ibid., p. 24. 19 Ibid., p. 39-40.

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porções, os traços da crítica literária produzida versificadas, desde a vertente literaria-


tanto por José Veríssimo quanto por Sílvio Ro- mente mais revolucionária (Guimarães
mero: “Se em Sílvio Romero a centralidade da Rosa, a poesia concreta, a valorização
preocupação sociológica provoca a primazia do crescente da poesia de Cabral) até a mais
critério nacionalista, em José Veríssimo este se epigônica e previsível (a continuação da
prosa realista, o sentimento sonetizado).
torna pano de fundo, enquanto na cena trabalha-
Na frente propriamente crítica, o salto
vam preocupação gramatical e retórica. Tais crité-
talvez tenha sido menor, pois, embora as
rios, contudo, já são sobredeterminados pelo có- obras de Afrânio Coutinho, Antonio
digo moralizante tanto de Sílvio quanto de Verís- Candido e Haroldo de Campos − com
simo”.20 todas as diferenças internas e de qualidade
Diferentemente de Sílvio Romero e José − apresentam resultados e preocupações
Veríssimo, Araripe Júnior sustentará um forte metodológicas sem paralelo com a crítica
desejo em sua crítica contra o sociologismo cien- que se desenvolvera de Sílvio Romero a
tificista. Entre o objeto e o indivíduo haveria uma Álvaro Lins, a sua novidade está na frente
mediação flutuante: a possibilidade de o objeto metodológica que abrem e não na discus-
provocar impressões. Impressões que se articula- são especificamente teórica. Para que se
riam a partir do gosto e do temperamento do in- entenda o argumento necessitamos ter
bem presente que metodologia não se
térprete, tendo como pontos fixáveis as figuras
confunde com teoria. Não há por certo
de estilo. Assim, a crítica estilístico-psicológica
uma sem a outra, mas podemos desenvol-
de Araripe Júnior aparecia como o instrumento ver um argumento metodológico ou dei-
mais adequado para analisar a individualidade do xando implícito seu embasamento teórico
artista, se não fosse, infelizmente, a precariedade − como é freqüente em Candido − ou o
das metáforas conceituais empregadas. explicitando por repetições do já escrito −
Em síntese, podemos dizer que, ao refazer o caso de A. Coutinho − ou ainda por de-
sucintamente o percurso crítico traçado por Síl- senvolvimentos assistemáticos − a exem-
vio Romero, José Veríssimo e Araripe Júnior, a plo do que sucede em Haroldo de Cam-
razão do discurso ficcional não se justifica apenas pos. Não dizemos portanto que o pensa-
por critérios (muito mal empregados, por sua mento crítico permaneceu parado, mas
vez) apenas sociológicos, apenas retóricos ou sim que, numa escala de ruptura, ele se
manteve mais próximo da situação tradi-
fundados na mera impressão. Isso posto, é preci-
cional que o todo da criação literária.21
so dar continuidade a essa reflexão, e não evitá-la,
mesmo que desagrade ao leitor, por meio de um Ora, o ofuscamento teórico e o esforço
questionamento crítico que, inevitavelmente, co- metodológico de Candido o ligam sensivelmente
locará a Formação da Literatura Brasileira, de An- à tradição crítica iniciada, no final do século XIX,
tonio Candido, no banco dos réus. no Brasil. Esse ofuscamento teórico tem, contu-
Em face do exposto acima, vejamos uma do, razão de ser. As idéias de sistema e de estru-
citação de Luiz Costa Lima muito esclarecedora, tura, intimamente ligadas ao método crítico ado-
que diz respeito à nossa situação crítica e à con- tado por Antonio Candido, são, como na cultura
fusão prolongada na atividade crítica entre méto- auditiva, pouco explicitadas e questionadas diante
do e teoria: do que deveriam ser, já que constituem pilares de
A ampliação da base econômica e o ad- uma teoria crítica que procura reconstituir a his-
vento de um público diversificado permi- tória dos brasileiros no seu desejo de ter uma lite-
tiram, desde fins da década de 50, o sur- ratura. Em resumo, o descritivismo, a idéia de
gimento de uma prosa e uma poesia di- uma literatura nacional, o método crítico empre-

20 Ibid., p. 45. 21 Ibid., p. 194.

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gado e a obnubilação teórica da Formação da Li- Hoje em dia, podemos afirmar que temos
teratura Brasileira atestam o alto grau de compro- um pensamento crítico sistemático e consolidado
metimento do seu autor com a cultura auditiva.22 no Brasil. Guardadas as proporções, o papel de
nossos primeiros mestres (Sílvio Romero, José
PASSADO, PRESENTE E FUTURO CRÍTICO Veríssimo, Araripe Júnior e demais críticos que se
Nossa reflexão partiu do questionamento seguiram) foi decisivo para a formação de um
se havia ou não, no Brasil, um sistema crítico cânone crítico notadamente brasileiro. Tal pensa-
consolidado, e como esse sistema teria se com- mento se firmou com a publicação da Formação
portado durante as nossas primeiras incursões no da Literatura Brasileira, de Antonio Candido:
terreno crítico. Percebemos, então, que a crítica essa obra crítica viria a ser o divisor de águas de
louvaminheira foi a primeira manifestação crítica nossa ainda frágil, porém empenhada, crítica lite-
no Brasil. Trata-se de uma vertente que, ainda ho- rária brasileira. Por um lado, teríamos uma crítica
je, repercute na crítica diletante, com ecos, às ve- ao rés-do-chão, que procura desvendar no loca-
zes, em trabalhos de alguns renomados profissio-
lismo as frinchas mais atávicas do universalismo,
nais da crítica. Contra a crítica da corte: a crítica
empreendida por Roberto Schwarz; por outro,
séria, científica, acadêmica e empenhada. É esse
uma crítica que exige não só o reconhecimento
último modelo que abordamos ao falar da crítica
de nosso debilitado contexto intelectual, como
literária produzida no século XIX, da capacidade
de síntese crítica da Formação da Literatura Bra- também a sua superação por meio de uma tra-
sileira, de Candido, do desdobramento do proje- dição teórica tornada visível a olho nu, empreen-
to desse autor, por força da pena de Roberto dida por Luiz Costa Lima. Assim, partindo do
Schwarz, e da releitura de nosso passado crítico, mesmo punhado de cera e de correntes (nossa tra-
porém não menos compromissada, sob o influxo dição crítica), Schwarz e Costa Lima navegam em
do pensamento de Luiz Costa Lima. direção às sereias (obra literária), esquadrinhando,
com seus meiozinhos particulares, a história da crí-
22 LIMA, 1992, p. 153-169. tica literária brasileira.

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crítica e história literária. Rio de Janeiro/São Paulo: LTC/Edusp, 1977.

Dados do autor
Professor no Departamento de Letras da
Universidade Estadual do Centro-Oeste
(Unicentro), Guarapuava/PR, atuando na área de
literatura brasileira e teoria literária. Doutorando em
letras (teoria e história literária) pela Unicamp e
mestre em letras (teoria literária e literatura comparada)
pela Unesp.

Recebimento artigo: 2/fev./04


Consultoria: 9/fev./04 a 5/mar./04
Aprovado: 18/mar./04

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