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A obra de Jakob von Uexküll, desde sua primeira publicação, em 1909, Umwelt
und Innenwelt der Tiere, até sua morte, em 1944, é permeada pela observação e
busca de discernimento dos mundos fenomenais, ou universos subjetivos dos animais.
Através da observação precisa das relações organismo-mundo, Uexküll pôde contrariar
a interpretação mecanicista da biologia de sua época, que basicamente pensava o
animal como um sistema maquínico que se dava num processo de inputs/outputs.
Uexküll recebe com desconfiança a teoria da evolução das espécies de
Charles Darwin. Com várias referências à música em sua obra, Uexküll pensou numa
organização harmônica do mundo, num plano (Planmässigkeit). Cada organismo seria
um tom que ecoa sobre o ambiente e os outros organismos. Daí Uexküll intuir que
a geração e a comunicação de signos, no mundo animal, pode ocorrer numa base
puramente instintual.
A tensão existente na biologia, que opunha uma visão teleológica, herdeira de
Aristóteles, a uma com teor mecanicista, herdeira de Newton e Descartes, é o grande
impasse teórico que chega até o então jovem estudante de biologia, Jakob von Uexküll.
Kant representa o entrelaçamento teórico entre essas duas visões, daí ter influenciado
muito a obra de Uexküll. De fato, o debate entre uma teleologia por um lado, e o
mecanicismo de outro, vai opor Karl Ernst von Baer e Charles Darwin, respectivamente.
Baer estudou as formas embrionárias e viu que as diferenciações ocorriam conforme
a um determinado plano. Por outro lado, Darwin, com a noção de seleção natual,
se alinha entre os mecanicistas, porque a vida seria uma acidental continuidade de
algumas espécies em detrimento a outras. Um cenário em que não se pode vislumbrar
qualquer plano pré-configurado.
Ao longo de sua obra, Uexküll dá cada vez mais importância ao processo de
significação. Este, porém, faz referência a um plano que a vida parece obedecer. Leitor
atento de Kant, Uexküll espalha os a priori da razão humana para todo o reino animal.
Em Kant é vedado o acesso a uma realidade subjacente às percepções subjetivas, a
coisa-em-si permanece incognoscível. Uexküll levará esse insight fundamental para o
estudo das relações animal e meio-ambiente. O que está em causa é que só há acesso
ao mundo através da percepção.
Em seu criticismo contra as tendências mecanicistas da biologia de sua época,
Uexküll cunhou o conceito de arquitetura centrífuga do organismo. Enquanto qualquer
máquina necessita de uma força externa que atue internamente num tipo de arquitetura
centrípeta, os organismos agem de dentro para fora, num tipo de arquitetura centrífuga.
A morfologia de cada organismo é o centro de comando que auto-regula a vida, o que
não impede que agentes externos interfiram no processo. «A força de dentro [...] é
contrabalançada pelos fatores ambientais»1
Essa teoria de arquitetura centrífuga revela que Uexküll recusa-se a aceitar que
os seres vivos respondem a sistemas de leis físicas e macânicas de forma passiva. Os
seres vivos são dotados de poder de engendrarem suas próprias leis e determinações,
por regras autônomas. Em vez de um mundo de leis físicas naturais eternas, Uexküll
faz-nos ver que o sujeito, humano e animal, é, de fato, o legislador do seu mundo. Para
além das leis da física que regulam o mundo “lá fora” deve-se relevar as leis subjetivas
de cada organismo que seguem um plano. E é precisamente a junção desses dois
domínios que Uexküll denomina de Umwelt.
Ao analisar o passado da ciência moderna, Uexküll constata no mínimo três
paradigmas bem definidos: o primeiro o de Kepler, que intuiu uma harmonia cósmica.
Em segundo lugar, Newton, que legou suas leis que tornam o universo um sistema
mecânico. Em terceiro lugar, Darwin, que nos legou a seleção natural que, aos olhos
de Uexküll é um mecanismo aleatório, acidental, de um mundo onde não há planos.
Sobre o darwinismo, Uexküll esboça uma crítica dupla: a teoria de Darwin atribui
um papel fundamental à casualidade, a aleatoreidade da história e, em segundo
lugar, se mantém extremamente materialista ao atribuir somente aos genes herdados
as características da espécie futura. Os seja, as teorias de Darwin são, ao mesmo
tempo: «a liberdade caótica e o materialismo determinista»2, o que soa como um
disparate a Uexküll.
Uexküll pensa em regras e planos que os organismos de alguma forma
obedecem, porém não num sentido teleológico. Para o biólogo, a teleologia fazia
sentido num horizonte teórico em que se buscava atingir a coisa-em-si por trás das
contingências individuais de cada organismo. De fato, a noção de Umwelt busca dar
conta, num sentido holístico, das relações entre o organismo e o mundo. Podemos
pensar, aqui, na noção de ser-no-mundo de Heidegger como um conceito análogo.
E, como veremos, em Merleau-Ponty há vários conceitos irmanados ao Umwelt de
1 Onto-Ethologies, The Animal Environments of Uexküll, Heidegger, Merleau-Ponty and Deleuze, p.14.
2 Idem Ibidem, p. 19.
Uexküll: estrutura do comportamento, carne, etc.
Um exemplo que Uexküll nos fornece para intuirmos a complexidade dos
Umwelts é o de uma simples flor. Suas funções na natureza dependem do tipo de
animal que interage diretamente com ela. Para um ser humano a flor pode ser um
adorno. Para um inseto, fonte de água e néctar, e assim por diante. Cada organismo
configura um novo mundo, uma nova bolha que delimita suas possibilidades no
mundo. Essa bolha impede o olhar direto do cientista humano sobre o animal, daí a
necessidade de se observar o comportamento do animal dentro da bolha.
Sobre a comparação com a bolha de sabão: «O espaço peculiar a cada animal,
em qualquer lugar que ele possa estar, pode ser comparado a uma bolha de sabão
que envolve completamente a criatura numa distância maior ou menos. Essa bolha
de sabão estendida, constitui o limite do que é finito para o animal, e, por isso, é o
limite do seu mundo; o que há para além da bolha está escondido no infinito»3. O que
está dentro dos limites da bolha é possível de significação sobre, o que está fora é
insignificante, permanece velado.
Um exemplo do esquema que o Umwelt configura, que encontramos em Uexküll,
é o de suas observações de um carrapato (Ixodus rhitinis) que se posiciona numa
vegetação e simplesmente espera pelo momento em que percebe a presença do
ácido butírico, contido no suor dos mamíferos, momento em que o carrapato salta em
busca de se alimentar e finalmente se reproduzir. A “espera” pelo fator significante
(a presença do ácido butírico) que dispara sua ação pode durar até 18 anos. Nesse
intervalo, cego e surdo, o carrapato não considera significante quase nenhum fator
ambiental que o rodeia. Vemos aqui, surpreendentemente, que a rede que interliga
os Umwelts não envolvem propriamente indivíduos e sim relações de significações
elementares. O carrapato não percebe o mamífero por inteiro, percebe a substância
química.
Ao lado do conceito de Umwelt, também vemos em Uexküll a comparação da
vida com a harmonia musical. A célula teria um tom que possibiltaria a comunicação
intracelular através de ritmos e melodias. Assim também os órgãos que uniformizam
as melodias celulares. O organismo seria uma permanente sinfonia de melodias de
BIBLIOGRAFIA