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Seminário de Filosofia do Corpo e da Corporeidade

Docente: Luís Umbelino


Discente: Rafael Blanco

Jakob von Uexküll e Merleau-Ponty: uma aproximação

Buscaremos realizar um recorte conceitual da obra de Jakob von Uexküll (1864-


1944), biólogo da Estônia que escreveu em Alemão, principalmente de sua noção de
Umwelt, para compreendermos como esse conceito será apropriado e utilizado pelo
filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (1908-1961).
Uexküll nos convida para uma experiência de pensamento em que adentramos
o mundo perceptivo de, por exemplo, abelhas, cães, etc. O biólogo nos conduz a um
repensar de como vemos a realidade do mundo, não de acordo com as capacidades
de percepção do ser humano, mas, também e sobretudo, a dos animais. Com isso,
Uexküll pretende compreender a “bolha” ambiental que cada animal cria e lida a
todo momento; o mundo natural passará a ser pensado como a justaposição dessas
bolhas ambientais de cada animal. Uexküll não interpreta o animal como um autômato
mecânico, sem alma, totalmente responsivo a uma série de leis físicas. Em vez disso, o
animal é um complexo sistema de percepções e ações sobre uma determinada área do
mundo. Percepções e ações intrínsecas aos organismos, porém que continuamente se
alteram. A esses dois modos fundamentais de um animal ora perceber e ora responder
à percepção do mundo, que estão intimamente ligados, Uexküll chamará de Umwelt.
Os estudos de Uexküll sobre o comportamento de vários animais foram
pioneiros. Porém, em vez de se limitar aos contornos de uma etologia, o que por si só
seria um trabalho de extrema complexidade, Uexküll atinge, também, o horizonte de
uma ontologia. Se aceitarmos seu convite de levar a sério a experiência subjetiva de
cada animal no mundo, teremos ao final uma redescrição completa da realidade.
Analisar o comportamento de um animal é, então, a chave de acesso a sua
bolha, seu Umwelt. Ao alcançarmos tal visão, podemos recolocar um pergunta
fundamental: qual o papel do corpo no processo da vida? É claro que o corpo faz parte
do que Uexküll denomina Umwelt. Entretanto, permanece oculto como esse corpo
interage com o meio, processo que altera a ambos. O grande valor científico da obra de
Uexküll reside exatamente em suscitar questões como esta, ao invés de propriamente
respondê-las.
Merleau-Ponty foi um dos filósofos que teve a obra de Uexküll em grande
relevo. Buscaremos, então, esboçar a bio-filosofia gerada a partir do entrelaçamento
conceitual, empreendida com maestria por Merleau-Ponty, entre etologia e filosofia.
Seguiremos a seguinte ordem de exposição: (I) Adentraremos brevemente na biologia
teórica de Uexküll, com vistas de acompanhar como sua rejeição da natureza com um
sistema teleológico e mecânico o levará a compreensão da vida em conformidade com
um plano, como uma grande sinfonia. Como fundador do que ficou conhecido como
Biosemiótica, Uexküll pensa a natureza como relações significantes e possibilidades de
significações.
Em seguida (II) seguiremos os estudos de Merleau-Ponty em como se dão
as relações entre consciência e mundo natural. Em conformidade com a grande
sinfonia vital intuída por Uexküll, Merleau-Ponty, ao sublinhar que o comportamento
não é fundamentalmente relações de causas e efeitos, considerará o animal como
um todo como sendo maior que a soma de suas partes constitutivas. O animal será
parte da melodia da natureza e isso é visto através da estrutura do comportamento.
O comportamento e a “descoberta” de uma carne que está contida em todos os
corpos e também no mundo, apontará para uma intersubjetividade de Umwelts. O
organismo que se mostra através do comportamento intrinsicamente conectado com
o mundo é o ponto de partida da etologia de Merleau-Ponty. Projeto este que sofrerá
uma alteração de referencial aquando se aprofundarem teses com teor ontológicas: o
mundo, ou melhor, a natureza, será o ponto de partida na qual se encontrarão corpos
intimamentes ligados.

I - Jakob von Uexküll: Ciência da Vida

A obra de Jakob von Uexküll, desde sua primeira publicação, em 1909, Umwelt
und Innenwelt der Tiere, até sua morte, em 1944, é permeada pela observação e
busca de discernimento dos mundos fenomenais, ou universos subjetivos dos animais.
Através da observação precisa das relações organismo-mundo, Uexküll pôde contrariar
a interpretação mecanicista da biologia de sua época, que basicamente pensava o
animal como um sistema maquínico que se dava num processo de inputs/outputs.
Uexküll recebe com desconfiança a teoria da evolução das espécies de
Charles Darwin. Com várias referências à música em sua obra, Uexküll pensou numa
organização harmônica do mundo, num plano (Planmässigkeit). Cada organismo seria
um tom que ecoa sobre o ambiente e os outros organismos. Daí Uexküll intuir que
a geração e a comunicação de signos, no mundo animal, pode ocorrer numa base
puramente instintual.
A tensão existente na biologia, que opunha uma visão teleológica, herdeira de
Aristóteles, a uma com teor mecanicista, herdeira de Newton e Descartes, é o grande
impasse teórico que chega até o então jovem estudante de biologia, Jakob von Uexküll.
Kant representa o entrelaçamento teórico entre essas duas visões, daí ter influenciado
muito a obra de Uexküll. De fato, o debate entre uma teleologia por um lado, e o
mecanicismo de outro, vai opor Karl Ernst von Baer e Charles Darwin, respectivamente.
Baer estudou as formas embrionárias e viu que as diferenciações ocorriam conforme
a um determinado plano. Por outro lado, Darwin, com a noção de seleção natual,
se alinha entre os mecanicistas, porque a vida seria uma acidental continuidade de
algumas espécies em detrimento a outras. Um cenário em que não se pode vislumbrar
qualquer plano pré-configurado.
Ao longo de sua obra, Uexküll dá cada vez mais importância ao processo de
significação. Este, porém, faz referência a um plano que a vida parece obedecer. Leitor
atento de Kant, Uexküll espalha os a priori da razão humana para todo o reino animal.
Em Kant é vedado o acesso a uma realidade subjacente às percepções subjetivas, a
coisa-em-si permanece incognoscível. Uexküll levará esse insight fundamental para o
estudo das relações animal e meio-ambiente. O que está em causa é que só há acesso
ao mundo através da percepção.
Em seu criticismo contra as tendências mecanicistas da biologia de sua época,
Uexküll cunhou o conceito de arquitetura centrífuga do organismo. Enquanto qualquer
máquina necessita de uma força externa que atue internamente num tipo de arquitetura
centrípeta, os organismos agem de dentro para fora, num tipo de arquitetura centrífuga.
A morfologia de cada organismo é o centro de comando que auto-regula a vida, o que
não impede que agentes externos interfiram no processo. «A força de dentro [...] é
contrabalançada pelos fatores ambientais»1
Essa teoria de arquitetura centrífuga revela que Uexküll recusa-se a aceitar que
os seres vivos respondem a sistemas de leis físicas e macânicas de forma passiva. Os
seres vivos são dotados de poder de engendrarem suas próprias leis e determinações,
por regras autônomas. Em vez de um mundo de leis físicas naturais eternas, Uexküll
faz-nos ver que o sujeito, humano e animal, é, de fato, o legislador do seu mundo. Para
além das leis da física que regulam o mundo “lá fora” deve-se relevar as leis subjetivas
de cada organismo que seguem um plano. E é precisamente a junção desses dois
domínios que Uexküll denomina de Umwelt.
Ao analisar o passado da ciência moderna, Uexküll constata no mínimo três
paradigmas bem definidos: o primeiro o de Kepler, que intuiu uma harmonia cósmica.
Em segundo lugar, Newton, que legou suas leis que tornam o universo um sistema
mecânico. Em terceiro lugar, Darwin, que nos legou a seleção natural que, aos olhos
de Uexküll é um mecanismo aleatório, acidental, de um mundo onde não há planos.
Sobre o darwinismo, Uexküll esboça uma crítica dupla: a teoria de Darwin atribui
um papel fundamental à casualidade, a aleatoreidade da história e, em segundo
lugar, se mantém extremamente materialista ao atribuir somente aos genes herdados
as características da espécie futura. Os seja, as teorias de Darwin são, ao mesmo
tempo: «a liberdade caótica e o materialismo determinista»2, o que soa como um
disparate a Uexküll.
Uexküll pensa em regras e planos que os organismos de alguma forma
obedecem, porém não num sentido teleológico. Para o biólogo, a teleologia fazia
sentido num horizonte teórico em que se buscava atingir a coisa-em-si por trás das
contingências individuais de cada organismo. De fato, a noção de Umwelt busca dar
conta, num sentido holístico, das relações entre o organismo e o mundo. Podemos
pensar, aqui, na noção de ser-no-mundo de Heidegger como um conceito análogo.
E, como veremos, em Merleau-Ponty há vários conceitos irmanados ao Umwelt de

1 Onto-Ethologies, The Animal Environments of Uexküll, Heidegger, Merleau-Ponty and Deleuze, p.14.
2 Idem Ibidem, p. 19.
Uexküll: estrutura do comportamento, carne, etc.
Um exemplo que Uexküll nos fornece para intuirmos a complexidade dos
Umwelts é o de uma simples flor. Suas funções na natureza dependem do tipo de
animal que interage diretamente com ela. Para um ser humano a flor pode ser um
adorno. Para um inseto, fonte de água e néctar, e assim por diante. Cada organismo
configura um novo mundo, uma nova bolha que delimita suas possibilidades no
mundo. Essa bolha impede o olhar direto do cientista humano sobre o animal, daí a
necessidade de se observar o comportamento do animal dentro da bolha.
Sobre a comparação com a bolha de sabão: «O espaço peculiar a cada animal,
em qualquer lugar que ele possa estar, pode ser comparado a uma bolha de sabão
que envolve completamente a criatura numa distância maior ou menos. Essa bolha
de sabão estendida, constitui o limite do que é finito para o animal, e, por isso, é o
limite do seu mundo; o que há para além da bolha está escondido no infinito»3. O que
está dentro dos limites da bolha é possível de significação sobre, o que está fora é
insignificante, permanece velado.
Um exemplo do esquema que o Umwelt configura, que encontramos em Uexküll,
é o de suas observações de um carrapato (Ixodus rhitinis) que se posiciona numa
vegetação e simplesmente espera pelo momento em que percebe a presença do
ácido butírico, contido no suor dos mamíferos, momento em que o carrapato salta em
busca de se alimentar e finalmente se reproduzir. A “espera” pelo fator significante
(a presença do ácido butírico) que dispara sua ação pode durar até 18 anos. Nesse
intervalo, cego e surdo, o carrapato não considera significante quase nenhum fator
ambiental que o rodeia. Vemos aqui, surpreendentemente, que a rede que interliga
os Umwelts não envolvem propriamente indivíduos e sim relações de significações
elementares. O carrapato não percebe o mamífero por inteiro, percebe a substância
química.
Ao lado do conceito de Umwelt, também vemos em Uexküll a comparação da
vida com a harmonia musical. A célula teria um tom que possibiltaria a comunicação
intracelular através de ritmos e melodias. Assim também os órgãos que uniformizam
as melodias celulares. O organismo seria uma permanente sinfonia de melodias de

3 Streifzüge durch die Umwelten von Tieren und Menschen, p. 5.


órgãos e ritmos celulares. O próximo estágio seria a de uma harmonia entre dois ou
mais organismos, como pode-se ver, por exemplo, numa colmeia. Em último lugar,
a composição musical da natureza, que teria uma harmonia interna. Daí vemos a
fundamentação do que havíamos chamado de plano da natureza, em Uexküll..
Vemos emergir dessa teoria um modelo intersubjetivo da natureza. Perguntar
pelo mundo biológico é considerar as complexas relações entre os Umwelts dos
animais. Ainda mais, em Uexküll, um sujeito que percebe e age no mundo necessita de
um “dueto”, de outro ser vivo que o complemente. Por isso o interesse em signifcação
ser fundamental nas obras tardias de Uexküll, o que o coloca como o principal arquiteto
do que é hoje conhecido com biosemiótica.
A biologia assume então a função de descrever como o significado é gerado
através de interações entre diversos animais. Nesse ponto cabe a observação:
Uexküll conheceu pessoalmente Ernst Cassirer, que pode ter exercido considerável
influência sobra a questão dos signos. Os organismos são sistemas interpretantes e
geradores de signos e a natureza revela a intrincada rede de relações que daí surgem.
No exemplo que demos do carrapato, o mamífero aparece como um signo, que é
interpretado, resultando de uma ação específica. Os tons de ambos os animais se
complementam, gerando significação num dueto. Podemos vislumbrar a ontologia que
se cria como pano de fundo a todas essas análises.
Um exemplo interessantíssimo para concluir nossa aproximação a Uexküll. Num
livro tardio chamado Teoria do Significado, Uexküll toma em consideração uma aranha
que está fazendo sua teia. De alguma forma, diz Uexküll, a aranha prevê o voo de algo,
e, como se voasse ela também, constrói seu aparato de caça. Captando de alguma
forma a melodia do voo, a aranha antecipa-o. A aranha adaptou-se, instintivamente, a
um signo presente em seu Umwelt e, por isso, é bem-sucessida na previsão do voo.
A estrutura do corpo da aranha é capaz de predizer a aparição de um significante. Há
algum tipo de intencionalidade em ação no animal? Sem dúvida, no mínimo ao nível do
movimento do corpo. Nesse cenário, as substâncias inorgânicas também são relevadas
na constituição de cada Umwelt, não somente materialmente falando, mas, também,
como forças: a temperatura, barulhos, etc.
II. Merleau-Ponty e o Umwelt

Merleau-Ponty redescreve e alarga o que classicamente era conhecido como


corpo, que se torna uma estrutura sinergética onde estão entrelaçados a presença
encarnada de uma subjetividade, por um lado, e o mundo que a circunda, de outro.
O corpo, um sistema contínuo de equivalências organismo/mundo, revela, através de
seu movimento, as relações entre uma consciência e o mundo a qual ela está imersa.
Observar o comportamento dessa consciência que é corpo é a chave para iluminar o
Umwelt da existência humana. Um dos insights fundamentais que permeará a obra
toda de Merleau-Ponty é que o corpo vivo se expressa através do comportamento.
Seus escritos contribuem para desvelar um novo âmbito do conhecimento, que
podemos chamar de onto-etologia.
Antes de pensar numa mudança radical de Merleau-Ponty entre sua primeira
obra, A Estrutura do Comportamento, e sua última, O Visível e o Invisível, pensemos
numa evolução gradual de seu pensamento, no qual, os conceitos fundamentais
da “juventude” serão a base que possibilita os conceitos de “maturidade” como os
de: carne, ser bruto, nova ontologia, etc. Serão também fundamentais para o nosso
objetivo aqui os seguintes textos: O Conceito de Natureza, O Conceito de Natureza:
Animalidade, o Corpo Humano, e a Passagem à Cultura e O Conceito de Natureza:
Natureza e Lógos: O Corpo Humano, texto que foram notas para o curso oferecido por
Merleau-Ponty no Collège de France, ao longo da década de 1950.
Em vez de se comprometer com uma das várias teorias que buscavam
descrever as relações entre organismo e natureza, Merleau-Ponty escolhe uma
terceira via, qual seja, partir de uma análise neutra do comportamento. A observação
do comportamento poderá revelar os nexos entre organismo e natureza. O que será
fundamental, já n´A Estrutura do Comportamento, é a intuição que considera o corpo
e o ambiente que o envolve como interdependentes e não como partes extra partes.
Assimilando o vocabulário da Gestalt, Merleau-Ponty aponta para a estrutura dos
corpos, que é sempre maior que a soma de suas partes. Há algo único na estrutura do
corpo como um todo que não é passível de redução aos seus órgãos, ou células, etc.
O comportamento é o locus onde se veem o entrelaçamento entre o físico e
o mental, mecanicismo e vitalismo, empirismo e idealismo. O comportamento faz
menção ao corpo como uma unidade, uma totalidade dotada de movimento. Em vez
de buscar uma definição única de comportamento, Merleau-Ponty fornece-nos várias:
comportamento como estrutura, como forma, como significação, etc. Em suma, o
comportamento mostra que o ser vivo está intrinsecamente ligado ao ambiente que o
cerca. Daí os paralelismos entre a noção de comportamento de Merleau-Ponty e a de
Umwelt em Uexküll serem inevitáveis.
Uexküll é citado na Estrutura do Comportamento, porém, através de um
estudioso holandês chama Buytendijk que Merleau-Ponty conhecia. A primeira
ocorrência explícita do nome de Uexküll aparece no segundo curso sobre a natureza
de Merleau-Ponty. A frase de Uexküll que Merleau-Ponty cita na Estrutura do
Comportamento: «todo organismo é uma melodia que canta a si mesma» é importante
para Merleau-Ponty porque dá conta da unidade do organismo e, também, da
ressonância dessa melodia através do ambiente. Numa música, cada nota participa
da melodia e está conectada internamente com todas as outras notas. Cada nota que
compõe uma melodia, ou cada órgão do corpo, ressoa a própria unidade desse corpo.
O que distancia Merleau-Ponty de Uexküll é que, em vez de buscar uma
descrição teórica das intrincadas relações entre organismo e mundo, Merleau-Ponty
se pergunta como nós, seres humanos, percebemos essas relações através de
nosso comportamento. Comportamento que tem na motricidade seu fundamento,
lugar privilegiado onde se mostram intrínsecos corpo e mundo. As estruturas que
identificamos no comportamento, formas, melodias, etc, são, no limite, constructos
humanos. Em vez de estarem ontologicamente no mundo, nossas percepções fundam
esses conceitos. Desse modo, analisar os seres vivos é analisar como os percebemos,
nas obras de “juventude” de Merleau-Ponty.
O conceito de estrutura, que aparece na primeira obra de Merleau-Ponty,
terá ressonância em sua obra de maturidade. Num primeiro momento, como vimos,
o foco da análise se centra na consciência do percipiente. Na obra de maturidade,
veremos um deslocamento no sentido da natureza, em busca de uma ontologia lato
sensu. N´O Visível e Invisível lemos: «Resultados da Fenomenologia da Percepção:
Necessidade de trazê-los à explicitação ontológica»4 e ainda: “Necessidade de um
retorno à ontologia. O questionamento ontológico e suas ramificações: a questão do
sujeito-objeto, a questão da intersubjetividade, a questão da Natureza»5
O Visível e o Invisível será a busca de uma nova ontologia. O conceito de carne,
que engloba o material e o imaterial, corpo e mente, permite um aprofundamento na
relações entre organismo e meio. Tratar o organismo totalmente conjunto com as
coisas do mundo, é isso o que estará em causa em O Visível e o Invisível e já era
prefigurado nas obras anteriores. Merleau-Ponty não pretende, nessa tarefa, assumir
o mundo como um único ser vivo, onde os organismos individuais não teriam papéis
relevantes. Em vez disso, Merleau-Ponty aponta para os quiasmas que permitem a
diferenciação entre cada ser vivo, o invisível que pontua o visível.
No segundo curso sobre O Conceito de Natureza, Animalidade, O Corpo
Humano, e a Passagem à Cultura, de 1957-1958, Merleau-Ponty se aproxima mais da
biologia de sua época e nomeadamente de Uexküll. Merleau-Ponty fará novamente uso
da categoria comportamento, porém já com certa distância das teorias com enfoque
behavioristas que influenciaram a Estrutura do Comportamento. Notamos, nesse ponto,
a influência decisiva de Uexküll. Merleau-Ponty dirá que Uexküll antecipa sua noção de
comportamento precisamente através do conceito de Umwelt. O Umwelt é delineado
através do movimento do organismo, o movimento é o lugar da imbricação entre
organismo e mundo.
Porém, como se produz um Umwelt? Parece haver uma reciprocidade de tal
produção: o organismo produz o meio e este produz o organismo. Merleau-Ponty
recorre a noção de melodia para explicar a criação do Umwelt como que de forma
quase involuntária: «todo organismo é uma melodia que canta a si mesma»6. Esse
Umwelt melódico ressoará no conceito de carne que aparece em O Visível e o Invisível.
Aprofundando suas análises da percepção para as condições de possibilidade
da própria percepção, vemos surgir a última obra de Merleau-Ponty. Em vez de se
situar no âmbito da consciência que percebe, Merleau-Ponty partirá, aqui, da Natureza,

4 Le Visible et l’Invisible, p. 237.


5 Idem Ibidem, p. 219.
6 La Structure du Comportement, p. 172.
para mostrar a unidade entre percipiente e percebido. Há uma introdução de uma
miríade de novos conceitos tanto para indicar divergência: quiasma, invisibilidade, e um
vocabulário para indicar unidade: carne, sensível, adesão, camadas, etc. Esse novo
vocabulário busca dar conta, mais um vez, da reciprocidade do animal e do ambiente
que o cerca, animal que ora produz o meio, ora é produzido por este.
Em vez de partir do corpo e buscar a compreensão de como este corpo percebe
o mundo, o Merleau-Ponty d´O Visível e o Invisível, se pergunta pela constituição do
mundo que contém vários corpos. O ser como corpo permite o acesso ao mundo,
através da carne que corpo e mundo compartilham. O ser vivo se vê como “um” com
seu Umwelt, ao mesmo tempo que vê o mundo, percebe a si mesmo imerso nesse
mundo através de seu corpo.
Finalmente, o conceito de Umwelt de Uexküll fornece a Merleau-Ponty uma
noção nova para superar a dicotomia sujeito e objeto. Simplesmente porque o Umwelt
é: «Umwelt (isto é, o mundo + meu corpo)»7. As teorias do biólogo se mostraram
úteis para a filosofia de Merleau-Ponty, que parte de uma fenomenologia irmanada da
etologia para alcançar uma ontologia no sentido rigoroso.

BIBLIOGRAFIA

MERLEAU-PONTY, Maurice. Le visible et l’invisible. Paris: Gallimard, 1963.

_______________________, La Structure du Comportement. Paris: Presses


Universitaires de France,1943.

_______________________, La Nature: Notes Cours du Collège de France, ét.


Dominique Séglard.
Paris: Seuil, 1995.

BUCHANAN, Brett. Onto-Ethologies - The Animal Environments of Uexküll, Heidegger,


Merleau-Ponty and Deleuze, Suny Press, 2008.
7 La Nature: Notes Cours du Collège de France, p. 278.
UEXKÜLL, J. von. Streifzüge durch die Umwelten von Tieren und Menschen (with
Georg
Kriszat). Geibungsyoin Verlag, 1934.

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