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ALBERTO CAEIRO e vinhos do Ribatejo...

eucharistia viajando Repugna toda religião e toda a metafísica, descreve o mundo sem
com o argonauta das sensações verdadeiras... pensar nele e criou um conceito do universo que não contém uma
interpretação.
Alberto Caeiro é heterônimo ou personagem do poeta português
Fernando Pessoa. “ O argonatura das sensações verdadeiras”, que nos restituiu ,
cantando ao nada luminoso que somos; que nos arrancou à morte
Os heterônimos refletem a sua consciência da pluralidade e assim e à vida, deixando-nos entre as simples coisas, que nada
justifica-os: conhecem, em seu decurso, de viver nem de morrer; que nos
livrou da esperança e da desesperança, para que nos não
“ Não sei quem sou, que alma tenho. Quando falo com sinceridade consolemos sem razão nem nos entristecemos sem causa; convivas
não sei com que sinceridade falo. Sou variamente outro do que um com ele, sem pensar, na necessidade objetiva do Universo.
eu que não sei se existe.
Tinha o conceito direto das coisas. Com olhos azuis de criança que
Sinto-me múltiplo. Como o panteísta se sente e até a flor, eu não tem medo, “via que nem um danado”, porquanto acreditava
sinto-me vários seres. Sinto-me viver vidas alheias, em mim, que “tudo é diferente de nós, e por isso é que tudo existe.”
incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os
homens, incompletamente de cada, por uma suma de não-eus Acreditava que
sintetizados num eu postiço.
“ toda a coisa que vemos, devemos vê-la sempre pela primeira
Sê plural como o universo!” vez, porque realmente é a primeira vez que a vemos.”

Alberto Caeiro nasceu em 1889 em Lisboa, decorreu quase toda Ensina-nos que “pela emoção somos nós; pela inteligência somos
sua vida numa quinta do Ribatejo e morreu em 1915. Não teve alheios. A inteligência dispersa-nos... Viver é pertencer a
profissão, nem educação quase nenhuma. outrem...Exprimir-se é dizer o que se não sente... Estar é ser...
Fingir é conhecer-se.
Assim o descreve Ricardo Reis: “ ignorante da vida e quase
ignorante das letras, quase sem convívio nem cultura, fez Caeiro a FRAGMENTOS DE SUAS POESIAS
sua obra por um progresso imperceptível e profundo... Foi um
progresso de sensações, ou, antes, de maneira de as ter e uma O meu olhar é nítido como um girassol.
evolução íntima de pensamentos derivados de tais sensações Tenho o costume de andar pelas estradas
progressivas. Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,

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E eu sei dar por isso muito bem... E sobre a criação do Mundo?
Sei ter o pasmo essencial Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
Que tem uma criança se, ao nascer, E não pensar. É correr as cortinas
Reparasse que nascera deveras... Da minha janela (mas ela não tem cortinas).
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo... O mistério das coisas? Sei lá o que é mistério!
Creio no mundo como num malmequer, O único mistério é haver quem pense no mistério.
Porque o vejo. Mas não penso nele Quem está ao sol e fecha os olhos,
Porque pensar é não compreender... Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas coisas cheias de calor.
O Mundo não se fez para pensarmos nele Mas abre os olhos e vê o sol,
(Pensar é estar doente dos olhos) E já não pode pensar em nada,
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo... Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos... A luz do sol não sabe o que faz
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é, E por isso não erra e é comum e boa.
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
Nem sabe por que ama, nem o que é amar... A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
Amar é a eterna inocência, A nós, que não sabemos dar por elas.
E a única inocência é não pensar... Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
08.03.1914 Nem saber que o não sabem?

Há metafísica bastante em não pensar em nada. «Constituição íntima das coisas»...


«Sentido íntimo do Universo»...
O que penso eu do mundo? Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
Sei lá o que penso do mundo! É incrível que se possa pensar em coisas dessas.
Se eu adoecesse pensaria nisso. É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das
Que ideia tenho eu das coisas? árvores
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos? Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma

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Pensar no sentido íntimo das coisas E por isso eu obedeço-lhe,
É acrescentado, como pensar na saúde (Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?),
Ou levar um copo à água das fontes. Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
O único sentido íntimo das coisas Como quem abre os olhos e vê,
É elas não terem sentido íntimo nenhum. E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
Não acredito em Deus porque nunca o vi. E penso-o vendo e ouvindo,
Se ele quisesse que eu acreditasse nele, E ando com ele a toda a hora.
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!
VI
(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as coisas, Pensar em Deus é desobedecer a Deus,
Não compreende quem fala delas Porque Deus quis que o não conhecêssemos,
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.) Por isso se nos não mostrou...

Mas se Deus é as flores e as árvores Sejamos simples e calmos,


E os montes e sol e o luar, Como os regatos e as árvores,
Então acredito nele, E Deus amar-nos-á fazendo de nós
Então acredito nele a toda a hora, Belos como as árvores e os regatos,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa, E dar-nos-á verdor na sua primavera,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos. E um rio aonde ir ter quando acabemos!...

Mas se Deus é as árvores e as flores


E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus? VII
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver, Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo...
Sol e luar e flores e árvores e montes, Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Se ele me aparece como sendo árvores e montes Porque eu sou do tamanho do que vejo
E luar e sol e flores, E não do tamanho da minha altura...
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.

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Nas cidades a vida é mais pequena É assim, azul e calmo,
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro. Porque não interroga nem se espanta...
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de Se eu interrogasse e me espantasse
todo o céu, Não nasciam flores novas nos prados
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos Nem mudaria qualquer cousa no sol de modo a ele ficar mais
podem dar, belo.
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver. (Mesmo se nascessem flores novas no prado
E se o sol mudasse para mais belo,
Se eu pudesse trincar a terra toda Eu sentiria menos flores no prado
E sentir-lhe um paladar, E achava mais feio o sol...
Seria mais feliz um momento... Porque tudo é como é e assim é que é,
Mas eu nem sempre quero ser feliz. E eu aceito, e nem agradeço.
É preciso ser de vez em quando infeliz Para não parecer que penso nisso...)
Para se poder ser natural...

Nem tudo é dias de sol,


E a chuva, quando falta muito, pede-se. XXIV
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha O que nós vemos das coisas são as coisas.
Que haja montanhas e planícies Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra?
E que haja rochedos e erva... Por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir ?
O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade, O essencial é saber ver,
Sentir como quem olha, Saber ver sem estar a pensar,
Pensar como quem anda, Saber ver quando se vê,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre, E nem pensar quando se vê
E que o poente é belo e é bela a noite que fica... Nem ver quando se pensa.
Assim é e assim seja...
Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),
O meu olhar azul como o céu Isso exige um estudo profundo,
É calmo como a água ao sol. Uma aprendizagem de desaprender

4
(Louvado seja Deus que não sou bom, Passa uma borboleta por diante de mim
E tenho o egoísmo natural das flores E pela primeira vez no Universo eu reparo
E dos rios que seguem o seu caminho Que as borboletas não têm cor nem movimento,
Preocupados sem o saber Assim como as flores não têm perfume nem cor.
Só com o florir e ir correndo. A cor é que tem cor nas asas da borboleta,
É essa a única missão no Mundo, No movimento da borboleta o movimento é que se move,
Essa – existir claramente, O perfume é que tem perfume no perfume da flor.
E saber fazê-lo sem pensar nisso.) A borboleta é apenas borboleta
E a flor é apenas flor.
O mistério das coisas, onde está ele?
Onde está ele que não aparece 07.05.1914
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
Que sabe o rio disso e que sabe a árvore? Procuro dizer o que sinto
E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso? Sem pensar em que o sinto.
Sempre que olho para as coisas e penso no que os homens pensam Procuro encostar as palavras à ideia
delas, E não precisar dum corredor
Rio como um regato que soa fresco numa pedra. Do pensamento para as palavras.
Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir.
Porque o único sentido oculto das coisas O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado
É elas não terem sentido oculto nenhum, Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas Procuro despir-me do que aprendi,
E os pensamentos de todos os filósofos, Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
Que as coisas sejam realmente o que parecem ser E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
E não haja nada que compreender. Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,
Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: –
As coisas não têm significação: têm existência.
As coisas são o único sentido oculto das coisas. Ainda assim, sou alguém.
Sou o Descobridor da Natureza.
Sou o Argonauta das sensações verdadeiras.
Trago ao Universo um novo Universo
XL Porque trago ao Universo ele-próprio.

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