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† O Despertar do Urso†

Capítulo-2

Eu acordei e levantei após o dono da taberna, mas antes dos outros


hóspedes. Passei minha manhã verificando meus pertences. Removi três elos
enferrujados da cota de malha, afiei a espada, impermeabilizei a corda do arco
com cera de abelha, troquei as pontas quebradas de algumas flechas e na hora
apropriada, saí do quarto. Não levei comigo a espada nem o arco, apenas a
faca de caça.
Cheguei à praça pouco antes do horário combinado e notei que fazia
uma bela manhã. Casais de pássaros voavam em espirais ascendentes sobre
mim, enquanto outros machos cantavam nas árvores próximas. As nuvens
seguiam altas em tiras ao longo do vale. As vozes das pessoas e os sons da
Natureza abafavam o Rio lá embaixo, e a fonte resplandecia com a luz vinda do
Leste.
Eu fui até o parapeito e admirei o vale. A pouca neblina fluía vale
acima para revelar as árvores umedecidas. No leste, o Rio resplandecia,
quando uma árvore balançava e deixava-o à mostra. Na estrada vinda do
Oeste, para descer até o vale, uma comitiva de meia dúzia de cavaleiros
trotava carregando lanças e escudos.
Sentei-me no mesmo banco, onde na noite anterior a moça sentara-
se, para esperar por ela. Um sino soou para assinalar às onze horas enquanto
eu cantava baixinho alguma canção que surgira-me sobre o distante Mar. Eu
não lembrava onde a ouvira, provavelmente de um bêbado numa taberna.
Vinte minutos se passaram e eu pensei se a filha do Conde viria mesmo.
Ponderei até sobre ir embora porque, na verdade, será que ela se lembrava de
mim? – Sim! – pensei. Ela aparentara gostar de mim e aparentava ser honesta;
viria.
Foi quando vi uma figura graciosa surgir de uma curva da avenida
principal, escoltada por dois soldados armados. Era ela. Eles caminharam até
mim. Os soldados pararam na entrada da praça e a moça seguiu até mim.
Vestia um vestido azul claro que ia até logo abaixo do joelho. Flores brancas
enfeitavam a barra do vestido e a faixa que a envolvia sob os seios. Os cabelos
cacheados estavam bem presos em rabo de cavalo altos na cabeça. Enquanto
se aproximava ela sorriu amplamente e o sol tocou o lado de seu rosto quando
ela saiu da sombra de uma árvore ao se aproximar da fonte.
Eu me levantei e aproximei-me dela. Ela olhou-me ainda sorrindo e
demoramos um pouco para falar. E eu disse – Bom dia! E beijei-lhe a mão,
respeitosamente.
– Bom dia! Demorei muito? – Ela replicou.
– Não. Eu me entretive olhando a manhã e cantando.
Ela abriu mais o sorriso com aquelas palavras e eu achei graça daquilo.
Não havia dito nada demais! Mostrei o banco e ela sentou-se. Eu me recostei
na mureta a certa distância com os pés cruzados.
– Então onde paramos? – ela perguntou.
Eu pensei em fazer o convite que pensara na noite anterior. Mas pareceu-
me precipitado desta vez. Eu poderia apenas conversar com ela e os passeios
poderiam esperar. Tive a impressão que ela poderia contribuir com meus
desejos sem que eu a levasse ao vale imediatamente.
– Estavas aconselhando-me! – eu disse.
Ela riu de olhos fechados.
– Pois é! Quem sou eu para isso?
Sério eu respondi:
– És alguém que pode ver uma verdade que eu não esteja vendo. E se a
uma voz tem razão, de quem ela é, pouco importa.
Ela escondeu o sorriso, mas fitou-me ainda com uma expressão alegre.
Ela pareceu pensar sobre o que eu dissera, virou os olhos em outra direção e
então sua face se formou numa expressão triste. Eu pensei que talvez ela
estivesse lembrando que alguém usa essa navalha contra ela: desconsiderar o
que ela diz sem que ouça. Eu procurei mudar de assunto, pois não me
conformei com uma boca, cujo sorriso era tão lindo, voltar-se de maneira tão
melancólica.
– Não falemos disso se faz com que tu fiques assim.
Ela ia dizer algo, talvez me confortar a continuar, mas eu a interrompi,
– Tu gostarias, senhorita, de ouvir alguma história?
Ela olhou-me, então, com uma expressão ansiosa.
– Tens, acredito, muitas histórias emocionantes em tuas memórias,
senhor Gilroben.
– Tenho bastante, – disse eu – algumas boas, algumas não terminaram
tão bem...
Silenciei-me e depois disse baixinho, como que para mim mesmo:
– Mas a maioria é muito triste.
– O que disseste? – ela indagou.
– Nada!
– Disseste algo, entre dentes. – ela insistiu.
– Não disse!
– Disseste!
– Tudo bem, disse! – desisti – Eu disse que a maioria das histórias é triste,
desapropriadas para contar para ti.
– Por que seriam?
– Eu não quero passar-lhe as minhas experiências melancólicas em nosso
primeiro encontro, talvez algum outro dia.
Então ela me olhou com uma súbita dor, como se tivesse se arrependido
por ter me perguntado. Ergui minha cabeça e comecei a procurar por algum
conto em minhas lembranças para desviar da agonia que a atingia. Lembrei da
canção que eu cantava ainda há pouco e uma história me veio.
– Já conheceste o Mar, Senhorita Galadloth?
Ela expressou curiosidade ao me olhar.
– Não, senhor, mas adoraria. Ouço tantas belas descrições, li sobre o
amor que os Elfos dos Portos sentem por ele, desejo muito vê-lo.
– Eu já o conheci, senhorita, viajei por ele até Tôl Narughond, a ilha das
Areias Vermelhas, no Sul.
– Verdade? Que esplêndido! E viajaste por que motivo?
– Em busca de aventuras, mas também porque havia ouvido falar que
navios piratas dos homens negros do Sul estavam fazendo surtidas no lado
obscuro da Ilha. Chegavam com o nevoeiro, desembarcavam nas praias
inóspitas e vagando pela costa, chegavam às casas desprotegidas dos
pescadores e os saqueavam. Fui até lá para reforçar os exércitos e enfiar um
pouco de flechas nos olhos dos ladrões.
Então contei a ela toda a história, como foi difícil conseguir um navio que
não me deixasse tão longe do meu destino, porque não levaria meu cavalo.
Contei como foi viajar num cargueiro e dormir sobre a carga, fardos de tecido
que rolavam sobre mim com o balanço do navio durante a noite. Beber o vinho
da carga com os marinheiros durante os jogos de apostas nas quentes e claras
noites. Sobre a chegada e a espera pelo exército, minha admissão neste, a
marcha até as praias atacadas e a preparação das guarnições. As mortes dos
piratas assustados com a emboscada e também a viagem de volta.
Enquanto eu falava, ela me dirigia um olhar muito interessado, mas havia
algo mais naquele brilho. Quando eu a cumprimentava, ela exibia um sorriso
amplo e claro, mas quando ela parecia refletir, sua face demonstrava algum
tipo de tristeza tênue, mas muito profunda, como se um veneno ínfimo
atacasse um órgão inacessível para qualquer tratamento. Ela parecia até
mesmo conseguir conviver com aquela dor. Talvez até mesmo desejando-a.
Mas mesmo que ela tivesse esse amor pelo sofrimento eu notava que ela
respeitava muito a vida alheia. Ela tinha os olhos de quem deseja o bem para
os outros a qualquer custo. E quando eu chegava ao fim de minha história,
esse desejo ficou muito claro para mim.
– Admirável! Realmente, muito interessante. – Ela disse, com um sorriso,
quando eu contei minha volta ao continente. – Se as tuas outras histórias forem
tão boas, quero ouvi-las todas.
– Eu também gostaria de lhe contar outras, mas acho que tu precisas ir.
Veja os teus acompanhantes.
Os soldados que haviam ido embora três minutos depois que deixaram a
moça na praça, Voltaram para buscá-la, deviam ter passado já metade da hora
após o meio-dia.
– Meu pai já deve ter chegado e mandou me buscar. Preciso ir – disse ela
– mas eu posso ouvir outra história amanhã?
– Sim, poderás.
– Que maravilha! – ela bateu palmas. – eu poderia estar aqui uma hora
antes do que hoje.
– Muito bom, então! Por mim, tudo bem.
Ela se levantou, sorriu para mim com aquele brilho nos dentes, tão
peculiar a ela, piscou devagar – Até amanhã, então, Cavaleiro das Estrelas.
Ela procurou me surpreender por saber o que significava meu nome em
élfico. Eu fiquei realmente surpreso e a assistia triunfante esperar minha
resposta.
– Até amanhã, – eu disse devagar – Flor de Luz.
Ela havia me assustado, mas devolver a surpresa na mesma moeda a fez
ficar mais deslumbrada que eu, pois ela era filha de um nobre, alguém de
quem se poderia esperar erudição. Mas eu era um viajante, apesar de ela
perceber, que deveria haver um passado um tanto rico por trás da qualidade e
dos detalhes bem trabalhados de minhas roupas e arma.
Ela abriu a boca, numa brincadeira com a surpresa, mas não respondeu.
– Boa Tarde para ti então, Gilroben.
– Boa Tarde para ti também, Galadloth.
Ela se foi então com seu vestido balançando elegante com o seu andar
calmo e eu voltei aos meus pensamentos, sozinho.
Nas altas montanhas do meu coração vive um grande Urso, O Urso de um
sonho. Ele é antigo, forte e indestrutível, mas uma vez ele foi traído de maneira
covarde e então se escondeu numa caverna profunda e hibernou.
Enquanto estava lá, adormecido há muito, muito tempo, gotas de vinho
quente caíram-lhe à boca e adentraram seu corpo. Ele sentia aquele líquido
como se estivesse inundando o fundo de uma câmara, gotas dele caíam em
toda a volta e o som delas era uma melodia doce repercutida em estreitas
galerias de pedra. Molhando o chão com o tom vermelho. Escalando as
paredes. Atingindo o teto. Estourando a câmara. E as veias do urso molharam-
se com seu sangue novamente. Seu corpo tornou-se quente. E ele abrira os
olhos.
Pelas mãos de Galadloth, a taça de vinho havia sido derramada para
acordar um sonho.

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