Eu acordei e levantei após o dono da taberna, mas antes dos outros
hóspedes. Passei minha manhã verificando meus pertences. Removi três elos enferrujados da cota de malha, afiei a espada, impermeabilizei a corda do arco com cera de abelha, troquei as pontas quebradas de algumas flechas e na hora apropriada, saí do quarto. Não levei comigo a espada nem o arco, apenas a faca de caça. Cheguei à praça pouco antes do horário combinado e notei que fazia uma bela manhã. Casais de pássaros voavam em espirais ascendentes sobre mim, enquanto outros machos cantavam nas árvores próximas. As nuvens seguiam altas em tiras ao longo do vale. As vozes das pessoas e os sons da Natureza abafavam o Rio lá embaixo, e a fonte resplandecia com a luz vinda do Leste. Eu fui até o parapeito e admirei o vale. A pouca neblina fluía vale acima para revelar as árvores umedecidas. No leste, o Rio resplandecia, quando uma árvore balançava e deixava-o à mostra. Na estrada vinda do Oeste, para descer até o vale, uma comitiva de meia dúzia de cavaleiros trotava carregando lanças e escudos. Sentei-me no mesmo banco, onde na noite anterior a moça sentara- se, para esperar por ela. Um sino soou para assinalar às onze horas enquanto eu cantava baixinho alguma canção que surgira-me sobre o distante Mar. Eu não lembrava onde a ouvira, provavelmente de um bêbado numa taberna. Vinte minutos se passaram e eu pensei se a filha do Conde viria mesmo. Ponderei até sobre ir embora porque, na verdade, será que ela se lembrava de mim? – Sim! – pensei. Ela aparentara gostar de mim e aparentava ser honesta; viria. Foi quando vi uma figura graciosa surgir de uma curva da avenida principal, escoltada por dois soldados armados. Era ela. Eles caminharam até mim. Os soldados pararam na entrada da praça e a moça seguiu até mim. Vestia um vestido azul claro que ia até logo abaixo do joelho. Flores brancas enfeitavam a barra do vestido e a faixa que a envolvia sob os seios. Os cabelos cacheados estavam bem presos em rabo de cavalo altos na cabeça. Enquanto se aproximava ela sorriu amplamente e o sol tocou o lado de seu rosto quando ela saiu da sombra de uma árvore ao se aproximar da fonte. Eu me levantei e aproximei-me dela. Ela olhou-me ainda sorrindo e demoramos um pouco para falar. E eu disse – Bom dia! E beijei-lhe a mão, respeitosamente. – Bom dia! Demorei muito? – Ela replicou. – Não. Eu me entretive olhando a manhã e cantando. Ela abriu mais o sorriso com aquelas palavras e eu achei graça daquilo. Não havia dito nada demais! Mostrei o banco e ela sentou-se. Eu me recostei na mureta a certa distância com os pés cruzados. – Então onde paramos? – ela perguntou. Eu pensei em fazer o convite que pensara na noite anterior. Mas pareceu- me precipitado desta vez. Eu poderia apenas conversar com ela e os passeios poderiam esperar. Tive a impressão que ela poderia contribuir com meus desejos sem que eu a levasse ao vale imediatamente. – Estavas aconselhando-me! – eu disse. Ela riu de olhos fechados. – Pois é! Quem sou eu para isso? Sério eu respondi: – És alguém que pode ver uma verdade que eu não esteja vendo. E se a uma voz tem razão, de quem ela é, pouco importa. Ela escondeu o sorriso, mas fitou-me ainda com uma expressão alegre. Ela pareceu pensar sobre o que eu dissera, virou os olhos em outra direção e então sua face se formou numa expressão triste. Eu pensei que talvez ela estivesse lembrando que alguém usa essa navalha contra ela: desconsiderar o que ela diz sem que ouça. Eu procurei mudar de assunto, pois não me conformei com uma boca, cujo sorriso era tão lindo, voltar-se de maneira tão melancólica. – Não falemos disso se faz com que tu fiques assim. Ela ia dizer algo, talvez me confortar a continuar, mas eu a interrompi, – Tu gostarias, senhorita, de ouvir alguma história? Ela olhou-me, então, com uma expressão ansiosa. – Tens, acredito, muitas histórias emocionantes em tuas memórias, senhor Gilroben. – Tenho bastante, – disse eu – algumas boas, algumas não terminaram tão bem... Silenciei-me e depois disse baixinho, como que para mim mesmo: – Mas a maioria é muito triste. – O que disseste? – ela indagou. – Nada! – Disseste algo, entre dentes. – ela insistiu. – Não disse! – Disseste! – Tudo bem, disse! – desisti – Eu disse que a maioria das histórias é triste, desapropriadas para contar para ti. – Por que seriam? – Eu não quero passar-lhe as minhas experiências melancólicas em nosso primeiro encontro, talvez algum outro dia. Então ela me olhou com uma súbita dor, como se tivesse se arrependido por ter me perguntado. Ergui minha cabeça e comecei a procurar por algum conto em minhas lembranças para desviar da agonia que a atingia. Lembrei da canção que eu cantava ainda há pouco e uma história me veio. – Já conheceste o Mar, Senhorita Galadloth? Ela expressou curiosidade ao me olhar. – Não, senhor, mas adoraria. Ouço tantas belas descrições, li sobre o amor que os Elfos dos Portos sentem por ele, desejo muito vê-lo. – Eu já o conheci, senhorita, viajei por ele até Tôl Narughond, a ilha das Areias Vermelhas, no Sul. – Verdade? Que esplêndido! E viajaste por que motivo? – Em busca de aventuras, mas também porque havia ouvido falar que navios piratas dos homens negros do Sul estavam fazendo surtidas no lado obscuro da Ilha. Chegavam com o nevoeiro, desembarcavam nas praias inóspitas e vagando pela costa, chegavam às casas desprotegidas dos pescadores e os saqueavam. Fui até lá para reforçar os exércitos e enfiar um pouco de flechas nos olhos dos ladrões. Então contei a ela toda a história, como foi difícil conseguir um navio que não me deixasse tão longe do meu destino, porque não levaria meu cavalo. Contei como foi viajar num cargueiro e dormir sobre a carga, fardos de tecido que rolavam sobre mim com o balanço do navio durante a noite. Beber o vinho da carga com os marinheiros durante os jogos de apostas nas quentes e claras noites. Sobre a chegada e a espera pelo exército, minha admissão neste, a marcha até as praias atacadas e a preparação das guarnições. As mortes dos piratas assustados com a emboscada e também a viagem de volta. Enquanto eu falava, ela me dirigia um olhar muito interessado, mas havia algo mais naquele brilho. Quando eu a cumprimentava, ela exibia um sorriso amplo e claro, mas quando ela parecia refletir, sua face demonstrava algum tipo de tristeza tênue, mas muito profunda, como se um veneno ínfimo atacasse um órgão inacessível para qualquer tratamento. Ela parecia até mesmo conseguir conviver com aquela dor. Talvez até mesmo desejando-a. Mas mesmo que ela tivesse esse amor pelo sofrimento eu notava que ela respeitava muito a vida alheia. Ela tinha os olhos de quem deseja o bem para os outros a qualquer custo. E quando eu chegava ao fim de minha história, esse desejo ficou muito claro para mim. – Admirável! Realmente, muito interessante. – Ela disse, com um sorriso, quando eu contei minha volta ao continente. – Se as tuas outras histórias forem tão boas, quero ouvi-las todas. – Eu também gostaria de lhe contar outras, mas acho que tu precisas ir. Veja os teus acompanhantes. Os soldados que haviam ido embora três minutos depois que deixaram a moça na praça, Voltaram para buscá-la, deviam ter passado já metade da hora após o meio-dia. – Meu pai já deve ter chegado e mandou me buscar. Preciso ir – disse ela – mas eu posso ouvir outra história amanhã? – Sim, poderás. – Que maravilha! – ela bateu palmas. – eu poderia estar aqui uma hora antes do que hoje. – Muito bom, então! Por mim, tudo bem. Ela se levantou, sorriu para mim com aquele brilho nos dentes, tão peculiar a ela, piscou devagar – Até amanhã, então, Cavaleiro das Estrelas. Ela procurou me surpreender por saber o que significava meu nome em élfico. Eu fiquei realmente surpreso e a assistia triunfante esperar minha resposta. – Até amanhã, – eu disse devagar – Flor de Luz. Ela havia me assustado, mas devolver a surpresa na mesma moeda a fez ficar mais deslumbrada que eu, pois ela era filha de um nobre, alguém de quem se poderia esperar erudição. Mas eu era um viajante, apesar de ela perceber, que deveria haver um passado um tanto rico por trás da qualidade e dos detalhes bem trabalhados de minhas roupas e arma. Ela abriu a boca, numa brincadeira com a surpresa, mas não respondeu. – Boa Tarde para ti então, Gilroben. – Boa Tarde para ti também, Galadloth. Ela se foi então com seu vestido balançando elegante com o seu andar calmo e eu voltei aos meus pensamentos, sozinho. Nas altas montanhas do meu coração vive um grande Urso, O Urso de um sonho. Ele é antigo, forte e indestrutível, mas uma vez ele foi traído de maneira covarde e então se escondeu numa caverna profunda e hibernou. Enquanto estava lá, adormecido há muito, muito tempo, gotas de vinho quente caíram-lhe à boca e adentraram seu corpo. Ele sentia aquele líquido como se estivesse inundando o fundo de uma câmara, gotas dele caíam em toda a volta e o som delas era uma melodia doce repercutida em estreitas galerias de pedra. Molhando o chão com o tom vermelho. Escalando as paredes. Atingindo o teto. Estourando a câmara. E as veias do urso molharam- se com seu sangue novamente. Seu corpo tornou-se quente. E ele abrira os olhos. Pelas mãos de Galadloth, a taça de vinho havia sido derramada para acordar um sonho.