deveres na cidade de Talugond. Procura de deveres, naquele dia. Havia meses que eu parara com minha vida solitária combatendo o Mal sozinho. Eu andava servindo a senhores que precisassem de um soldado para lutar em suas pequenas guerras contra outros nobres. Eu ficava na praça ou andava pela cidade à busca deles. Estranhavam o fato de eu usar o arco e também a espada, mas gostavam de me ver lutar e pagavam de bom grado. Contratavam- me, eu lutava uma ou duas batalhas, eles me saldavam e eu voltava a procura de outro senhor. Uma mudança radical em minha vida e eu começava a sentir isso. Inconscientemente já percebia que me afastara demais daquilo que costumava fazer sempre, como dormir sozinho em clareiras, olhar as Estrelas durante horas ou apreciar os riachos ao Luar. Mas eu também precisava ganhar dinheiro e como a solidão é pouco rentável, sentia motivado a servir. E assim, por bom tempo, eu esqueci, ou escondi de mim mesmo, meu amor pelo Ermo e pela solidão-liberdade, outrora, tão intrínsecos a mim. E foi numa dessas noites em que eu me encontrava frio até comigo mesmo que eu resolvi não ficar no meu quarto na taberna. Assim, uma peça importante no tabuleiro da minha vida foi deslocada. Talugond ficava na encosta sul de uma cadeia de Montanhas que vinha do Oeste e ia para o Leste e um pouco para o Norte. O alto das montanhas, onde a cidade fora erigida, declinava-se levemente de modo que era relativamente plana, mas, no estremo Sul, foi construída um tipo de praça erguida sobre colunas colocadas no súbito declive em direção ao vale. Quem chegasse ao parapeito podia ver um belo vale arredondado e comprido onde corria um Rio muito veloz através de uma floresta sempre verde de árvores meio úmidas e muito vivas. Eu atravessei as ruas numa noite fria em direção ao Sulpara longe do centro. As pessoas me rodeavam enquanto eu andava e sentia que algo novo ocorria em minha cabeça. Sempre a voz dominante na minha mente era a que dizia – Florestas, Campos, Estrada e Liberdade – mas ultimamente esta voz estava silenciada e eu a esquecera. Outra voz surgira para comandar e dizia – Dinheiro e fama. – Sem perceber que não era minha consciência que me guiava, eu me dirigi para a praça suspensa, para tentar sentir novamente o cheiro fresco das folhas, embora esse objetivo estivesse envolto em sombras. Quando cheguei, a praça estava vazia, para a minha sorte. Eu precisava de solidão, queria ouvir bem o que a voz obscura queria me dizer. Andei devagar em direção à fonte no centro e parei ao seu lado, olhando para a água que escorria borbulhando do chafariz. Uma figura negra, encapuzada, apenas parada ali. Eu me ajoelhei à beira da água e estendi meu braço sobre o muro, deixando-o paralelo à água sem me molhar. Então, com a mão esquerda aberta, toquei devagar a água com a palma. A água estava gelada e fresca, apropriada para os salmões, pensei. Inclinei-me mais, de modo a mergulhá-la e fechei meus olhos. Girei meus dedos para sentir o frio, e como uma melodia suave, um sonho ou pensamento meu tocou. – Onde estou? O que faço aqui? Quem sou verdadeiramente? Nessa hora uma brisa vinda do vale me envolveu, e como numa história contada para as crianças dormirem, eu revi partes da minha vida. Um tempo de escuridão que ficava mais profunda. Um Lobo me ofereceu parceria para caçar. Uma Coruja me protegeu em algumas noites. Uma flor amarela...evanesceu. Dois pássaros cantaram muito felizes para mim. Outra flor, agora laranja...traiu-me. E de repente, fogo. Vermelho, forte, vigoroso. E um pássaro flamejante surgiu dele voando para o alto. Abri os olhos, bebi um gole daquela água límpida e fresca e me levantei. Eu ainda sentia o frio das nascentes em meus dedos quando saí e caminhei devagar até o parapeito sobre as rochas íngremes e levei meus os olhos para o céu e depois para baixo. Um telhado de Estrelas vinha do alto das Montanhas atrás de mim e seguia incólume até as colunas das Montanhas do outro lado do vale. A noite era iluminada por lamparinas prateadas eternamente penduradas no firmamento. No Leste, ao lado das Montanhas, uma fina Lua crescente colaborava com as Estrelas e fornecia seu fulgor branco. Indo quase de um lado ao outro, havia um Mar de árvores reluzindo pálidas na noite e espelhando as Estrelas. Eu podia ouvir o sublime chiado do Rio que corria batendo nas pedras e pensei se também não havia, naquele acorde, algumas notas do farfalhar das folhas. Aquele ambiente me fez refletir e eu senti saudades do tempo em que não era comandado, lutava simplesmente a favor do Bem e não a favor de quem me pagava mais. Senti saudades dos bosques, dos riachos e de toda aquela magia simples que era tão presente em minha vida. Mas não houve uma força suficiente em mim para erguer o antigo Cavaleiro das Estrelas. Na atual forma da minha vida havia uma porta a atravessar até a minha antiga vida; Tal porta encontrava-se fechada e seria preciso algo forte para me impelir por ela. Eu abri meus olhos depois de farejar as folhas verdes do vale eu ouvi um pequeno ruído à minha esquerda. Quando me virei, percebi que alguém se sentara num banco junto ao muro baixo. Ele ficava um pouco distante, de modo que só percebi que a pessoa vestia um blusão escuro cobrindo todo o corpo e que tinha cabelos compridos e soltos. Ela se encontrava sentada de frente para mim, mas torcia a coluna para o parapeito e apoiava o queixo nos braços cruzados sobre a mureta. Aparentava algum tipo de tristeza, mas também podia ser apenas reverência à paisagem que jazia no Sul. A tênue alegria que me tocara minutos antes me levou para próximo da pessoa. – Bela Noite, não? – Eu arrisquei um diálogo. O rosto se voltou para mim e revelou-se uma mulher. O brilho da Lua negara-me perceber que era uma moça, pois sua face ficara na sombra, mas eu me alegrei com aquela surpresa. – Sim, muito bonita, eu diria. Esse vale é mágico. – disse a moça com um sorriso tímido, mas sincero. – É sim, mas eu o acho mais encantador lá debaixo, por entre as árvores... – Eu fiz uma pausa e continuei vagarosa e contidamente – ...sentindo o Rio com as próprias mãos...e com o sussurro das árvores falando-me aos ouvidos permanentemente... Eu mantinha a cabeça baixa e mexia com os dedos no punho da faca presa à cintura ... – ...Com os olhos dos animais vigiando-me do escuro. Acho que as Estrelas enfeitam bem o teto de folhas e que a sombra das Montanhas é acolhedora no crepúsculo. – completei, lembrando-me do meu a passado, amargando- me por perdê-lo e envergonhado por não lutar para que voltasse. Abri devagar meus olhos e a garota me olhava, seu rosto erguido para me ouvir e os olhos brilhando. Percebi que era jovem e, naquela penumbra prateada, vi, ou pensei ter visto lágrimas em seus olhos. Aquilo me deixou incomodado e eu queria confortá-la, mas não ousaria. – O senhor o conhece? – perguntou a donzela. Ela vestia preto. Julguei assim, pois embora pudesse ser outra cor, com aquela luz fraca, acreditei que fosse. – Se o conheço? – eu disse, ironicamente – Cavalguei por muitos vales, em minha vida, combatendo o Mal e esse é um dos que mais patrulhei. Conheço suas cavernas, onde o rio pode ser atravessado, os melhores lugares para emboscar os Orcs. E meu cavalo ingressa nos atalhos sozinho, para onde quer que eu queira ir, pois ele conhece a região tão bem quanto eu. – Porque dizes “vaguei”, paraste? – perguntou a moça. – Não mais faço isso, hoje sirvo a pequenos nobres e à cidade, que eu evitava, é meu lar agora – contei. – Apreciaste a mudança?—ela insistia nas perguntas, observando-me atentamente. – No começo sim, mas hoje pondero sobre retornar. – Gostavas de teu antigo ofício? – Eu amava – respondi, triste. – E o que te mantém aqui? – ela perguntou devagar, como se fosse a última pergunta. – Não sei, não sei. Nada me prende, mas não tenho força para imprimir a mudança. Ela se levantou e eu vi que se tratava de uma mulher não muito alta, mas isso lhe era próprio e eu não conseguia imaginar seu rosto, que agora se postava numa luz menos suave, num corpo maior. Ela estava séria agora, a boca sóbria, as sobrancelhas rígidas contornavam olhos fixos em mim. – Uma lição que eu aprendi é que a pior traição é aquela dirigida a nossa própria alma. Nunca abandone seus princípios, foi o que me disseram... – Ela virou os olhos e deu uma risada. – Desculpe-me por achar-me digna de lhe dar conselhos, mas eu fascinei-me em saber que tu esteves lá embaixo sozinho...e livre. Sonho em conhecer o Ermo. E não gostei de ouvir que tu o abandonaste. Um choque eu levei com aquelas palavras e depois um estalo trouxe-me idéias freneticamente. Levá-la para visitar o Ermo, sim, apresentá-la a ele. Que ótima chance de ter uma motivação para descer até lá! Forçar a lembrança do passado e voltar a amar a simplicidade. Então eu estendi minha mão e tentei me aproximar dela, mas ela me conteve. – Não te aproximes, os soldados de meu pai me vigiam do muro da casa do Barão Gwytef. Conversa com um estranho ele pode até entender, mas não um toque. Preciso ir, os soldados já devem estar cochichando entre eles e logo devem estar tagarelando para meu pai. – Voltarei a te ver, senhorita? – eu soltei a pergunta que gritava dentro de mim. – Estou com meu pai, o Conde Trignon, a visitar o Barão. Estarei aqui por um tempo, mas não sei até quando. Procure-me de manhã, uma hora antes do meio-dia, aqui mesmo. Mas não depois disso, porque é quando o senhor Gwytef trará meu pai de volta dos campos onde eles estarão negociando gado. – Sim, senhorita, tenhas uma boa noite! – eu disse. – Tenhas tu também uma boa noite, senhor e pense no que eu disse. Com essas palavras, ela subiu as escadas da praça em direção ao Oeste. Quando chegou ao fim dos degraus eu a chamei. – Senhorita! Qual o seu nome? Ela parou. As costas do grande casaco negro exibiam algum desenho prateado, mas as linhas prateadas eram tão finas que eu não distingui o que era. Sem virar o corpo, ela voltou o rosto e só o lado esquerdo deste à mostra. – Chamo-me Galadloth. E tu, senhor? – Gilroben... Até amanhã, senhorita. –Até amanhã, cavaleiro. Eu dirigi-me ao parapeito, aspirei mais um pouco do ar dos bosques abaixo e procurei meu caminho nas escadas para o Norte. Durante aquela noite senti-me menos sozinho, um fio de luz de meu presente iluminou o meu bom passado e eu dormi cedo.