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† Uma Fonte no

Precipício †
Capítulo-1

Eu acordei para mais uma jornada de


deveres na cidade de Talugond. Procura de
deveres, naquele dia. Havia meses que eu
parara com minha vida solitária combatendo o
Mal sozinho. Eu andava servindo a senhores que
precisassem de um soldado para lutar em suas
pequenas guerras contra outros nobres. Eu
ficava na praça ou andava pela cidade à busca
deles. Estranhavam o fato de eu usar o arco e
também a espada, mas gostavam de me ver
lutar e pagavam de bom grado. Contratavam-
me, eu lutava uma ou duas batalhas, eles me
saldavam e eu voltava a procura de outro
senhor. Uma mudança radical em minha vida e
eu começava a sentir isso.
Inconscientemente já percebia que me
afastara demais daquilo que costumava fazer
sempre, como dormir sozinho em clareiras, olhar
as Estrelas durante horas ou apreciar os riachos
ao Luar. Mas eu também precisava ganhar
dinheiro e como a solidão é pouco rentável,
sentia motivado a servir. E assim, por bom
tempo, eu esqueci, ou escondi de mim mesmo,
meu amor pelo Ermo e pela solidão-liberdade,
outrora, tão intrínsecos a mim.
E foi numa dessas noites em que eu me
encontrava frio até comigo mesmo que eu
resolvi não ficar no meu quarto na taberna.
Assim, uma peça importante no tabuleiro da
minha vida foi deslocada.
Talugond ficava na encosta sul de uma
cadeia de Montanhas que vinha do Oeste e ia
para o Leste e um pouco para o Norte. O alto das
montanhas, onde a cidade fora erigida,
declinava-se levemente de modo que era
relativamente plana, mas, no estremo Sul, foi
construída um tipo de praça erguida sobre
colunas colocadas no súbito declive em direção
ao vale. Quem chegasse ao parapeito podia ver
um belo vale arredondado e comprido onde
corria um Rio muito veloz através de uma
floresta sempre verde de árvores meio úmidas e
muito vivas.
Eu atravessei as ruas numa noite fria em
direção ao Sulpara longe do centro. As pessoas
me rodeavam enquanto eu andava e sentia que
algo novo ocorria em minha cabeça. Sempre a
voz dominante na minha mente era a que dizia –
Florestas, Campos, Estrada e Liberdade – mas
ultimamente esta voz estava silenciada e eu a
esquecera. Outra voz surgira para comandar e
dizia – Dinheiro e fama. – Sem perceber que não
era minha consciência que me guiava, eu me
dirigi para a praça suspensa, para tentar sentir
novamente o cheiro fresco das folhas, embora
esse objetivo estivesse envolto em sombras.
Quando cheguei, a praça estava vazia, para
a minha sorte. Eu precisava de solidão, queria
ouvir bem o que a voz obscura queria me dizer.
Andei devagar em direção à fonte no centro e
parei ao seu lado, olhando para a água que
escorria borbulhando do chafariz. Uma figura
negra, encapuzada, apenas parada ali. Eu me
ajoelhei à beira da água e estendi meu braço
sobre o muro, deixando-o paralelo à água sem
me molhar. Então, com a mão esquerda aberta,
toquei devagar a água com a palma. A água
estava gelada e fresca, apropriada para os
salmões, pensei. Inclinei-me mais, de modo a
mergulhá-la e fechei meus olhos. Girei meus
dedos para sentir o frio, e como uma melodia
suave, um sonho ou pensamento meu tocou. –
Onde estou? O que faço aqui? Quem sou
verdadeiramente? Nessa hora uma brisa vinda
do vale me envolveu, e como numa história
contada para as crianças dormirem, eu revi
partes da minha vida. Um tempo de escuridão
que ficava mais profunda. Um Lobo me ofereceu
parceria para caçar. Uma Coruja me protegeu
em algumas noites. Uma flor
amarela...evanesceu. Dois pássaros cantaram
muito felizes para mim. Outra flor, agora
laranja...traiu-me. E de repente, fogo. Vermelho,
forte, vigoroso. E um pássaro flamejante surgiu
dele voando para o alto. Abri os olhos, bebi um
gole daquela água límpida e fresca e me
levantei.
Eu ainda sentia o frio das nascentes em
meus dedos quando saí e caminhei devagar até
o parapeito sobre as rochas íngremes e levei
meus os olhos para o céu e depois para baixo.
Um telhado de Estrelas vinha do alto das
Montanhas atrás de mim e seguia incólume até
as colunas das Montanhas do outro lado do vale.
A noite era iluminada por lamparinas prateadas
eternamente penduradas no firmamento. No
Leste, ao lado das Montanhas, uma fina Lua
crescente colaborava com as Estrelas e fornecia
seu fulgor branco. Indo quase de um lado ao
outro, havia um Mar de árvores reluzindo pálidas
na noite e espelhando as Estrelas. Eu podia ouvir
o sublime chiado do Rio que corria batendo nas
pedras e pensei se também não havia, naquele
acorde, algumas notas do farfalhar das folhas.
Aquele ambiente me fez refletir e eu senti
saudades do tempo em que não era comandado,
lutava simplesmente a favor do Bem e não a
favor de quem me pagava mais. Senti saudades
dos bosques, dos riachos e de toda aquela magia
simples que era tão presente em minha vida.
Mas não houve uma força suficiente em mim
para erguer o antigo Cavaleiro das Estrelas. Na
atual forma da minha vida havia uma porta a
atravessar até a minha antiga vida; Tal porta
encontrava-se fechada e seria preciso algo forte
para me impelir por ela.
Eu abri meus olhos depois de farejar as
folhas verdes do vale eu ouvi um pequeno ruído
à minha esquerda. Quando me virei, percebi que
alguém se sentara num banco junto ao muro
baixo. Ele ficava um pouco distante, de modo
que só percebi que a pessoa vestia um blusão
escuro cobrindo todo o corpo e que tinha cabelos
compridos e soltos. Ela se encontrava sentada de
frente para mim, mas torcia a coluna para o
parapeito e apoiava o queixo nos braços
cruzados sobre a mureta. Aparentava algum tipo
de tristeza, mas também podia ser apenas
reverência à paisagem que jazia no Sul.
A tênue alegria que me tocara minutos
antes me levou para próximo da pessoa.
– Bela Noite, não? – Eu arrisquei um
diálogo.
O rosto se voltou para mim e revelou-se
uma mulher. O brilho da Lua negara-me
perceber que era uma moça, pois sua face ficara
na sombra, mas eu me alegrei com aquela
surpresa.
– Sim, muito bonita, eu diria. Esse vale é
mágico. – disse a moça com um sorriso tímido,
mas sincero.
– É sim, mas eu o acho mais encantador lá
debaixo, por entre as árvores... – Eu fiz uma
pausa e continuei vagarosa e contidamente –
...sentindo o Rio com as próprias mãos...e com o
sussurro das árvores falando-me aos ouvidos
permanentemente...
Eu mantinha a cabeça baixa e mexia com
os dedos no punho da faca presa à cintura ...
– ...Com os olhos dos animais vigiando-me
do escuro. Acho que as Estrelas enfeitam bem o
teto de folhas e que a sombra das Montanhas é
acolhedora no crepúsculo. – completei,
lembrando-me do meu a passado, amargando-
me por perdê-lo e envergonhado por não lutar
para que voltasse.
Abri devagar meus olhos e a garota me
olhava, seu rosto erguido para me ouvir e os
olhos brilhando. Percebi que era jovem e,
naquela penumbra prateada, vi, ou pensei ter
visto lágrimas em seus olhos. Aquilo me deixou
incomodado e eu queria confortá-la, mas não
ousaria.
– O senhor o conhece? – perguntou a
donzela.
Ela vestia preto. Julguei assim, pois embora
pudesse ser outra cor, com aquela luz fraca,
acreditei que fosse.
– Se o conheço? – eu disse, ironicamente –
Cavalguei por muitos vales, em minha vida,
combatendo o Mal e esse é um dos que mais
patrulhei. Conheço suas cavernas, onde o rio
pode ser atravessado, os melhores lugares para
emboscar os Orcs. E meu cavalo ingressa nos
atalhos sozinho, para onde quer que eu queira ir,
pois ele conhece a região tão bem quanto eu.
– Porque dizes “vaguei”, paraste? –
perguntou a moça.
– Não mais faço isso, hoje sirvo a pequenos
nobres e à cidade, que eu evitava, é meu lar
agora – contei.
– Apreciaste a mudança?—ela insistia nas
perguntas, observando-me atentamente.
– No começo sim, mas hoje pondero sobre
retornar.
– Gostavas de teu antigo ofício?
– Eu amava – respondi, triste.
– E o que te mantém aqui? – ela perguntou
devagar, como se fosse a última pergunta.
– Não sei, não sei. Nada me prende, mas
não tenho força para imprimir a mudança.
Ela se levantou e eu vi que se tratava
de uma mulher não muito alta, mas isso lhe era
próprio e eu não conseguia imaginar seu rosto,
que agora se postava numa luz menos suave,
num corpo maior. Ela estava séria agora, a boca
sóbria, as sobrancelhas rígidas contornavam
olhos fixos em mim.
– Uma lição que eu aprendi é que a pior
traição é aquela dirigida a nossa própria alma.
Nunca abandone seus princípios, foi o que me
disseram... – Ela virou os olhos e deu uma risada.
– Desculpe-me por achar-me digna de lhe dar
conselhos, mas eu fascinei-me em saber que tu
esteves lá embaixo sozinho...e livre. Sonho em
conhecer o Ermo. E não gostei de ouvir que tu o
abandonaste.
Um choque eu levei com aquelas
palavras e depois um estalo trouxe-me idéias
freneticamente. Levá-la para visitar o Ermo, sim,
apresentá-la a ele. Que ótima chance de ter uma
motivação para descer até lá! Forçar a
lembrança do passado e voltar a amar a
simplicidade. Então eu estendi minha mão e
tentei me aproximar dela, mas ela me conteve.
– Não te aproximes, os soldados de meu pai
me vigiam do muro da casa do Barão Gwytef.
Conversa com um estranho ele pode até
entender, mas não um toque. Preciso ir, os
soldados já devem estar cochichando entre eles
e logo devem estar tagarelando para meu pai.
– Voltarei a te ver, senhorita? – eu soltei a
pergunta que gritava dentro de mim.
– Estou com meu pai, o Conde Trignon, a
visitar o Barão. Estarei aqui por um tempo, mas
não sei até quando. Procure-me de manhã, uma
hora antes do meio-dia, aqui mesmo. Mas não
depois disso, porque é quando o senhor Gwytef
trará meu pai de volta dos campos onde eles
estarão negociando gado.
– Sim, senhorita, tenhas uma boa noite! –
eu disse.
– Tenhas tu também uma boa noite, senhor
e pense no que eu disse.
Com essas palavras, ela subiu as escadas
da praça em direção ao Oeste. Quando chegou
ao fim dos degraus eu a chamei.
– Senhorita! Qual o seu nome?
Ela parou. As costas do grande casaco
negro exibiam algum desenho prateado, mas as
linhas prateadas eram tão finas que eu não
distingui o que era. Sem virar o corpo, ela voltou
o rosto e só o lado esquerdo deste à mostra.
– Chamo-me Galadloth. E tu, senhor?
– Gilroben... Até amanhã, senhorita.
–Até amanhã, cavaleiro.
Eu dirigi-me ao parapeito, aspirei mais um
pouco do ar dos bosques abaixo e procurei meu
caminho nas escadas para o Norte. Durante
aquela noite senti-me menos sozinho, um fio de
luz de meu presente iluminou o meu bom
passado e eu dormi cedo.

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