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O Surgimento da Clínica
Psicológica: Da Prática
Curativa aos Dispositivos de
Promoção da Saúde
The Beginning of the Psycological Clinic: From the
Healing Practice to the Dispositives to Promote Health

Jacqueline de Oliveira
Moreira,
Roberta Carvalho
Romagnoli &
Edwiges de Oliveira
Neves

Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais
Artigo

PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2007, 27 (4), 608-621


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PSICOLOGIA CIÊNCIA E
PROFISSÃO, 2007, 27 (4), 608-621

Resumo: O presente artigo pretende trabalhar com o conceito de clínica


psicológica e tenta definir esse campo de atuação do psicólogo através
de uma análise histórica do surgimento dessa prática e de uma reflexão
sobre os limites do modelo de clínica como prática individual de
consultório, em contraposição a um modelo de clínica chamada social,
que sustenta novas atuações no campo da Psicologia, no Brasil. Assim,
iremos, primeiramente, buscar as origens etimológicas, históricas e
reflexivas do termo clínica. Em seguida, pretendemos refletir sobre as
articulações entre a Psicologia e o individualismo moderno, e, ainda,
sobre os limites da clínica entendida como prática liberal, privada e
individualizante. Por fim, defenderemos, para além da cisão entre clínica
e política, presente no modelo tradicional, uma definição de clínica
social como prática ética e política das intervenções, comprometida
com a promoção da saúde e engajada na realidade social brasileira.
Palavras-chave: Psicologia clínica, individualismo, escuta, clínica social.

Abstract: This article intends to work with the clinical psychological


concept trying to define the psychologist field across a historical analysis
of the beginning of this practice and a reflection about the model limits
of clinic as an individual practice at the office, in opposite to a model of
clinic called social, that supports new performances on the Psychology
field in Brazil. First, we will look for the etymological, historical and
reflexive origins of the term clinic. Then, we intend to reflect about the
articulations between Psychology and the modern individualism and
the limits of the clinic understood as a liberal and private practice. In
the end, we will defend beyond the division between clinic and politics,
in the tradicional model, a definition of social clinic as a political and
ethical position of interventions engaged with the promotion of health
and with the Brazilian social reality.
Key words: clinical Psychology, individualism, listening, social clinic.
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O Surgimento da Clínica Psicológica: Da Prática Curativa aos Dispositivos de Promoção da Saúde

Conselho Federal de Psicologia, em recente reflexões acerca da influência do saber médico


pesquisa (Who, 2001, pp. 7-9), apresentou sobre o fazer “psi”.
“(...) um dado significativo sobre a atuação do
originariamente, a psicólogo no Brasil. Entre os psicólogos (75%) No saber médico que sustenta a prática
atividade clínica médica, é impossível diagnosticar sem antes
que estavam exercendo a profissão na data
(do grego klinê –
da pesquisa, a maioria (54,9%) se dedicava à descrever os sintomas/sinais e conhecer os
leito) é a do
médico que, à clínica em consultório, e 12,6% atuava com antecedentes da enfermidade. Do mesmo
cabeceira do modo, não é possível fazer um prognóstico
Psicologia da saúde, sendo que, nesse campo,
doente, examina
a prática, na maioria das vezes, também é sem antes obter um diagnóstico. Entretanto,
as manifestações
da doença para clínica. Mas, anterior à discussão sobre a nem sempre foi assim. Antes de Hipócrates,
fazer um a Medicina estava mais próxima do mágico do
atuação do psicólogo, no Brasil, uma questão
diagnóstico, um
nos parece prioritária: o que é Psicologia que do racional. Ele introduziu uma
prognóstico e
prescrever um clínica? Dutra (2004) revela que alguns transformação na Medicina, na Grécia, há
tratamento” 2.500 anos, na tentativa de compreender a
conceitos são pertinentes à prática clínica,
como escuta clínica, sofrimento psíquico, história da doença que provoca, no paciente,
Doron e Parot
subjetividade. a necessidade de procurar tratamento.

Na trilha de possíveis respostas para a Hipócrates inaugurou a observação clínica e


pergunta “o que é clínica?”, iremos, criou a anamnese, definindo-a como a primeira
primeiramente, buscar as origens etapa do exame médico. Aliás, o próprio
etimológicas, históricas e reflexivas do termo exame médico foi por ele introduzido na
clínica. Em seguida, pretendemos refletir sobre clínica, objetivando a obtenção de dados para
as articulações entre a Psicologia e o a elaboração do diagnóstico e do prognóstico.
individualismo moderno, e ainda sobre os O exame médico hipocrático consistia em
limites da clínica entendida como prática medir a temperatura através da imposição das
liberal, privada e individualizante. Por fim, para mãos, observar cuidadosamente, apalpar o
além da cisão entre clínica e política, presente corpo e auscultar os batimentos cardíacos,
no modelo tradicional, defenderemos uma dentre outras ações. Com esses instrumentos
definição de clínica social como uma prática – observação, anamnese e exame –, o pai da
ética e política de escuta dos sujeitos, Medicina foi capaz de descrever mais de
comprometida com a promoção da saúde e quarenta e cinco enfermidades, que
engajada na realidade social brasileira. prevaleceram até o século XVII.

O surgimento da clínica Já a Medicina romana pouco contribuiu para


a clínica médica, embora tenha acrescentado
Primeiramente, faz-se necessário muito aos conhecimentos de anatomia e
compreender o significado do termo clínica fisiologia, graças a Galeno. Na era medieval, a
para, posteriormente, conhecer sua trajetória Europa estagnou nesse campo de
histórica. Segundo Doron & Parot (1998), “(...) conhecimento. As grandes contribuições, nesse
originariamente, a atividade clínica (do grego período, foram da Pérsia e dos países árabes.
klinê – leito) é a do médico que, à cabeceira Surge, na Pérsia, um dos maiores nomes da
do doente, examina as manifestações da doença Medicina clínica de todos os tempos: Abu al
para fazer um diagnóstico, um prognóstico e Hussein ibn Abdallah in Sina, conhecido por
prescrever um tratamento” (Doron e Parot, Avicena (980-1037 d.C.). Segundo Rezende
1998, pp.144-145). Para tal, o médico faria (2006), o Cânon é a maior obra de Avicena;
uso da observação e da entrevista. Esses ela é composta por cinco volumes e contém
procedimentos, inicialmente, já nos suscitam um grande número de histórias clínicas. Na

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obra citada, encontramos descrições precisas tecnológicos e pedagógicos, e que evidencia


de doenças como hidrofobia, nefrite crônica as relações discursivas que “fabricam” a doença
e outras. Depois da magistral obra de Avicena, e seu tratamento. Dessa maneira, o discurso
a história da Medicina vive uma fase de médico recebe uma ordenação estabelecida
pequenos avanços no século XVII e no início pelos critérios de cientificidade e fundamenta
do século XVIII. as práticas que organizam a Medicina
moderna. O corpo torna-se, assim, motivo de
O auge da clínica médica se situa entre o final controle disciplinar e tecnológico.
do século XVIII e o início do século XIX. Esse
último foi, sem dúvida, um dos séculos mais Já na fase seguinte, denominada Genealogia
prósperos para a área, devido às muitas do Poder, o filósofo Michel Foucault lança um
descobertas no ramo da Biologia e às olhar crítico sobre as relações de poder que
invenções que possibilitaram a emergem associadas ao saber. Essa coexistência
instrumentalização médica. Parece-nos de saber e poder faz com que discursos tidos
pertinente ressaltar que, segundo Rezende como verdadeiros sejam ditos sobre algo
“(...) poder que se
(2006), Foucault introduz uma confusão produzido como objeto de saber. Nesse incumbiu tanto do
histórica ao enunciar a origem da clínica no sentido, verdades imutáveis são questionadas corpo como da
fim do século XVIII e início do XIX. Na verdade, e aparecem imbricadas na produção da vida, ou que se
incumbiu, se
a clínica médica surgiu com Hipócrates. O que subjetividade, tendo como função última a vocês preferirem,
ocorre, no período, é um avanço dos recursos monitoração e a ordenação do que escapa à da vida em geral,
técnicos usados nos diagnósticos. Nas palavras norma. Aliás, nesse raciocínio, a subjetividade com o pólo do
corpo e o pólo da
do autor: é constituída através de práticas, e as relações população”.
de poder são processos que incidem sobre os
O filósofo francês Michel Foucault, em seu livro sujeitos e os corpos, o que nos faz pensar sobre Foucault
Nascimento da Clínica, considera o fim do os discursos produzidos pela Medicina e suas
século XVIII e o início do XIX como a época produções de formas de ser.
em que despontou a clínica médica. Creio que
seria mais apropriado falar em crescimento, em De acordo com Foucault (1999), a
lugar de nascimento, pois o método clínico já modernidade – e aí, sim, mais
existia desde Hipócrates. O século XIX foi, sem especificamente, o século XIX – instaurou o
dúvida, o século em que a clínica médica teve poder sobre o homem como ser vivo, e, nesse
o seu período áureo, enriquecendo a Medicina processo, a Medicina teve papel
com numerosas descobertas, fruto de preponderante. Esse poder recebe o nome de
observações cuidadosas e da instrumen- biopoder, poder sobre a vida, e pode ser
talização do médico (Rezende,2006). definido como um “(...) poder que se incumbiu
tanto do corpo como da vida, ou que se
Preocupado, nessa fase, em desenvolver um incumbiu, se vocês preferirem, da vida em geral,
projeto arqueológico que tinha por objetivo com o pólo do corpo e o pólo da população”.
efetuar uma análise histórica da constituição (Foucault, 1999, p. 302).
dos saberes das ciências humanas, o referido
filósofo enfatiza mais as práticas discursivas que Essa forma de poder possui dois eixos, que
fabricam o objeto de estudo da Medicina do atuam, respectivamente, sobre o sujeito e
que propriamente sua história. Nesse sentido, sobre a espécie humana: o poder disciplinar e
Foucault (1977) articula o discurso médico, que a biopolítica. O poder disciplinar, que incide
inaugura e embasa o campo de atuação e de sobre os indivíduos e os corpos, fundamenta-
produção científica da disciplina médica dentro se no sistema racional e científico da sociedade
de fatores sociais, políticos, econômicos, moderna. A biopolítica, por sua vez, tem,
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como área de atuação, a população, e é Nessa perspectiva, cabem as seguintes


auxiliada por mecanismos de regulamentação perguntas: teria ocorrido aqui uma inversão de
da natalidade, da mortalidade, das papéis? Tamanho nível de especialização não
capacidades biológicas e dos efeitos do meio. teria conduzido a um afastamento da
A relação entre esses dois eixos é de perspectiva humanista que também
coexistência e a influência mútua. A fundamenta a Medicina? Embora essas
biopolítica modifica parcialmente o biopoder reflexões sejam interessantes do ponto de vista
e utiliza-o. Entretanto, sua tecnologia não da própria clínica, elas não terão lugar neste
suprime a tecnologia disciplinar. trabalho, já que não é nosso objetivo discutir
os rumos da clínica médica, mas sim, da clínica
A partir desses dois eixos, que evidenciam a psicológica, e a trajetória histórica da Medicina
ligação entre saber e poder, emergem os aqui realizada serve apenas para
sistemas de vigilância da subjetividade. Esses contextualização desse objetivo.
sistemas de controle social são praticados pela
Na era vitoriana, ainda não existia a prática de
Medicina e também pela Psicologia. Ao
o cliente buscar auxilio psicológico por si;
estabelecer o estatuto do homem saudável e
assim, Sigmund Freud, o pai da psicanálise,
“normal”, a Medicina paulatinamente vai
imprime, na História, algumas inovações.
exercendo um controle disciplinar e cada vez
Primordialmente, na clínica psicanalítica, há
mais tecnológico, através de modelos cada
um deslocamento do saber. Não mais o
vez mais refinados, com o intuito de ajustar
médico o detém, mas o cliente. Contudo, é
as distintas materialidades que tem a seu
um saber inconsciente. Nesse processo, o
cargo, atuando no cotidiano dos sujeitos,
analista é um mero facilitador, já que, na
normalizando a população e regulando as
condução do tratamento, ele apenas aponta o
políticas de saúde através de um arsenal
caminho e o paciente não apenas ouve, como
técnico cada vez mais especializado.
se fosse uma prescrição médica, mas elabora
e encontra sua verdade no próprio
Continuando o exame da perspectiva histórica
inconsciente. A cena é ocupada, dessa
da clínica no século XX, a Medicina alia-se
maneira, pelo discurso do paciente, sem o qual
aos conhecimentos acumulados, às novas
não é possível nem mesmo apontar um
tecnologias, o que, por sua vez, revoluciona
caminho. Cabe ao analista apenas mobilizar o
a prática médica. O incremento dos paciente a prosseguir na busca de sua verdade.
dispositivos diagnósticos, a abundância de Portanto, quem trabalha, verdadeiramente, na
tratamentos sofisticados e o elevado nível de análise, é o analisando. É importante fazer uma
especificidade médica conduzem à seguinte diferenciação: enquanto a clínica médica
premissa: quanto maior a complexidade, maior aprimora seus métodos diagnósticos, por via
a necessidade de especializar-se. Aqui, da observação e de complexas tecnologias que
portanto, a clínica médica se perde entre sustentam múltiplas possibilidades de
inúmeras fragmentações e ainda delega ao intervenção na direção da cura orgânica, a
paciente a decisão sobre qual especialista clínica freudiana, embora também se debruce
buscar. É como se a clínica estivesse se sobre o cliente na busca diagnóstica, enfatiza
abstendo do leito, do debruçar-se sobre, uma mais a escuta do sofrimento do que a visão do
vez que o paciente, a partir de seu sintoma, mesmo, e propõe, como método de
avalia a quem deve recorrer. O acamado passa intervenção, a psicoterapia/análise.
a depender de um outro que o faça, já que
não é mais o médico quem vai até o paciente, Freud (1905 [1904]) elabora um texto para
mas é este quem vai até o médico. explicar o método psicoterápico, e, logo no

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início, adverte que muitos médicos desvendar o jogo das forças psíquicas
consideram a psicoterapia um produto do implicadas no processo de adoecimento.
misticismo moderno, se comparada aos Nesse sentido, Freud subverte a lógica do
recursos terapêuticos físico-químicos. Em sua tratamento médico, pois, para ele, a resistência
grande capacidade argumentativa, ele irá é fundamental no processo de cura.
mostrar que a psicoterapia é um recurso
bastante familiar aos médicos, tanto porque Muitos são os avanços introduzidos por Freud
foi utilizada na Medicina antiga quanto pelo na clínica psicológica, tais como: a mudança
fato de que todos os médicos, mesmo os do paradigma da observação para o da escuta,
modernos, utilizam o recurso da psicoterapia a importância da resistência e, em última
através da sugestão de melhora, que se assenta instância, a perspectiva de tratar o cliente
na confiança do cliente no profissional que o como um sujeito de sua história de
trata. adoecimento, e não como mero objeto. No
entanto, a clínica psicanalítica freudiana
Segundo o autor, uma máxima dos médicos introduz a questão do segredo como força
revela que as doenças não são curadas pelo motriz do processo terapêutico; assim, essa
medicamento, mas pelo médico, ou seja, pela clínica se enquadra em moldes individualistas.
personalidade do médico, na medida em que, O paradigma da psicoterapia como espaço do
através dela, ele exerce uma influência segredo fortalece o imaginário de que a clínica
psíquica. A psicoterapia que Freud propõe mais efetiva para tratar os sofrimentos
difere, também, da psicoterapia clássica da psíquicos seja a clínica individual.
Medicina, a da sugestão, que é uma sugestão
hipnótica, pois o paciente se encontra Psicoterapia: campo
“hipnotizado” pelo poder e saber do médico. privilegiado da clínica
A psicoterapia proposta por Freud difere da
psicológica – individualismo e
sugestão porque não deposita “algo” na e
através da relação; pelo contrário, pretende
prática curativa
retirar os possíveis significados dos sintomas.
A terapia analítica, em contrapartida, não A clínica psicológica é herdeira do modelo
pretende acrescentar nem introduzir nada de médico, no qual, como já dissemos, cabe ao
novo, mas antes tirar, trazer algo à tona, e, profissional observar e compreender para,
para esse fim, preocupa-se com a gênese dos posteriormente, intervir, isto é, remediar, tratar,
sintomas patológicos e com a trama psíquica curar. Tratava-se, portanto, de uma prática
da idéia patogênica, cuja eliminação é a sua higienista. Dessa maneira, a clínica psicológica
meta (Freud (1905 [1904]), p. 244). Assim, o esteve, por um bom tempo, distante das
caminho para atingir a meta não segue a questões sociais.
facilidade direta da remoção através da
sugestão, da introdução ou da adição de um Freud e a psicanálise, segundo Guerra (2002),
elemento, mas da subtração, da retirada dos serão responsáveis pelo deslocamento da
elementos formadores do sintoma. prática fundamentada no olhar (sobre o
fenômeno) para a prática fundamentada na
Para Freud (1905 [1904]), a técnica da sugestão escuta (do metafenomenal). Assim, a prática
não possibilita a sustentação da posição de clínica psicológica passa a vincular-se a uma
cura, pois oculta o entendimento do jogo de demanda do sujeito, e não necessariamente
forças psíquicas e não permite identificar a a uma patologia, como no modelo médico.
resistência. A cura alcançada após o Mas a vinculação da Psicologia ao
enfrentamento da resistência permanece, ao individualismo não será superada pelo
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freudismo, pois a Psicologia, em sua origem, perceber a pessoa em sua interioridade, com
inclusive a Psicologia clínica, está atrelada a o intuito de observar e controlar o lado
uma perspectiva individualista. pecaminoso dessa intimidade. Todavia,
somente com o pensamento moderno vamos
O início do pensamento moderno é marcado assistir à valorização da categoria sujeito e da
pelo surgimento do sujeito e do individualismo, experiência de intimidade, de individualidade.
anunciando assim uma nova fonte de Surge, então, a Psicologia, também como
problemas que exigem uma nova ciência para espaço de acolhida para esse ser-sujeito-
pensar sobre eles. Na famosa tese de Dumont individual. O sujeito não tem mais as grandes
(1993), saímos de um modelo holista de estruturas holistas que organizam e oferecem
sociedade para um modelo individualista. sentido a sua existência; cada um tem que
Explicando essa tese, o psicanalista Benilton construir por si seus sentidos subjetivos e
Bezerra Júnior nos revela: individuais. Assim, a clínica do segredo cresce
e floresce na modernidade.
(...) a consciência dos sujeitos de sociedades
“(...) os ritmos hierárquicas, fundada num ideário holista, As mudanças introduzidas pela revolução
impostos pela corresponde a uma imagem de si como industrial na produção de bens influenciaram
produção industrial integrante de uma totalidade, sua identidade profundamente a sociedade e os indivíduos.
e pela vida urbana
destroem ou sendo vivida como a expressão de sua Segundo Laville & Dionne (1999), “(...) os
transformam os vinculação ao todo social. Somente nas ritmos impostos pela produção industrial e pela
modos de vida e sociedades igualitárias, baseadas no vida urbana destroem ou transformam os modos
levam ao
individualismo, individualismo como ideologia hegemônica, de vida e levam ao individualismo, assim como
assim como ao seria possível para os sujeitos aperceberem-se ao isolamento” (p. 53). Além disso, a distância
isolamento” e, mais do que isto, viverem sua natureza como entre a classe detentora dos meios de
sendo de indivíduos, isto é, seres singulares, produção e o proletariado aumentava cada vez
livres, autônomos, dotados de um mundo mais. Aqueles que poderiam tirar proveito
interno próprio, morada de sua verdadeira dessas mudanças “(...) gostariam de propiciar
identidade. (Bezerra Júnior , 1989, p. 223). que a nova ordem se estabelecesse sem
confrontos” (Laville & Dionne, 1999, pp. 53-
Assim, o sujeito moderno se percebe como 54). Surgem, então, as ciências humanas, “(...)
um ser singular, um ser que conquistou o com o objetivo de compreender e intervir na
direito de exercer sua individualidade de ordem social da mesma forma que as ciências
maneira sigilosa, em segredo, de forma a naturais tentavam dominar a natureza” (Laville
resguardar-se da exposição pública. Não é por & Dionne, 1999, pp. 53-54).
acaso que os fenômenos psicológicos, na
Grécia antiga, eram deuses (Phobos, Portanto, o surgimento das ciências humanas,
Mnemosine, Eros, dentre outros). Esse fato inclusive o da Psicologia, esteve ligado aos
indica a que distância se estava da idéia de interesses da nova detentora dos poderes
intimidade, de algo que se dá no interior e político, econômico e social: a burguesia.
pertence secretamente ao sujeito. A dimensão Segundo Guerra (2002), “(...) a história da
da interioridade será introduzida no início da Psicologia nos evidencia uma tradição de
Idade Média, a partir da divulgação, pela Igreja trabalho associada ao controle, à higienização
Católica, das experiências do indivíduo como e à diferenciação, que, desde os primórdios de
ser sexual. Dessa forma, teremos uma seu nascimento, associaram às práticas sociais
intimidade, um segredo, que aponta um e políticas a manutenção do status quo” (p.
indivíduo voltado para suas mazelas sexuais. 29). A prática clínica era, portanto,
O cristianismo introduz a possibilidade de descomprometida com o contexto social, ou,

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ao contrário, comprometida com apenas parte capital. Acreditamos que existam outras
dele. intervenções psicológicas, de efeitos
terapêuticos, resultantes de uma escuta clínica.
Tendo sido o surgimento das ciências humanas Como breve exemplo das limitações da clínica
vinculado aos interesses da classe dominante quanto ao segredo individual, queremos relatar
e estando a própria Psicologia aliada a práticas um episódio referente à prática de uma
higienistas, fica evidente que o público de sua psicóloga em um hospital público. A psicóloga,
intervenção era aquele que não se enquadrava novata, interroga a coordenação de psicologia
no projeto cartesiano do homem racional, e do hospital sobre a possibilidade de se
que uma de suas tarefas era sustentar e manter oferecerem mais consultórios dentro do
o individualismo. Dessa maneira, a terapia da hospital para estagiários atenderem os
alma se inspiraria no modelo da terapia do pacientes. A coordenadora pergunta por que
corpo, isto é, no modelo médico, a fim de ser não atender as pessoas no leito, pois atender
reconhecida como ciência. Assim, a só aqueles que têm condições médicas de
psicoterapia se tornou um campo privilegiado caminhar até o consultório seria excluir os
da clínica psicológica: ela seria, até então, a acamados. A psicóloga responde que não pode
terapêutica mais adequada para tratar das atender nas enfermarias, porque sempre existe
“mazelas humanas” em que outras tentativas um segredo a ser dito. No nosso entender,
haviam falhado. Os “problemas psicológicos”, manter esse pressuposto é retirar, de alguns
uma vez que são imateriais, só se sujeitos, a possibilidade de acolhimento, de
apresentariam através da fala, sobre a qual o escuta do sofrimento e até de uma nova
psicólogo se “debruçaria” a fim de traçar uma posição subjetiva frente ao sofrimento.
linha de tratamento (diagnóstico, prescrição e
prognóstico). Dessa forma, o contexto social passou a
adentrar os consultórios de forma a convocar
Mas a relação entre a Psicologia e o
os psicólogos a saírem dele, ou seja, para
individualismo é marcada por uma
responder às novas formas de subjetivação e
ambigüidade: se, por um lado, o individualismo
de adoecimento psíquico, o psicólogo deveria
foi condição sine qua non para o surgimento
da Psicologia como ciência, por outro, ele compreender a realidade local. A Psicologia
tomará uma forma tal que denunciará a “tradicional” é “obrigada” a se redesenhar,
necessidade de que essa mesma Psicologia tornando-se mais crítica e engajada socialmente.
reflita sobre seus efeitos, o que mudará
completamente a relação entre ambos. Segundo Moreira (2004), é fácil compreender
a tentação individualista, pois o processo de
Assim, seria possível dar conta de todo tipo constituição da subjetividade só é possível
de “mazela”, nesse modelo? No nosso mediante o encontro intersubjetivo; é o outro
entender, não se pode tratar a psique da
que possibilita ao eu o ingresso no mundo social.
mesma maneira que se trata do soma e
No entanto, o eu vive, primeiramente, um
tampouco manter a neutralidade científica
momento de “não-eu”, de uma consciência em
diante de um objeto que coincide com o
observador. A clínica individual é fundamental, si, sem auto-reflexão, para usar a expressão de
mas não podemos nos perder no Lévinas (1983,1997), uma “consciência-não-
individualismo. Não se pode esquecer que a intencional”. Em sua não-intencionalidade,
ciência expressa e alimenta ideologias; assim, anterior a todo querer e a qualquer falta, a
a idéia de clínica neoliberal alimenta o modelo identidade da “consciência não-intencional”
individualista, por vezes perverso, que se encontra-se exposta, entregue à exterioridade
esquece do homem para manter a lógica do absolutamente estranha e imprevisível.
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Segundo Lévinas (1983, 1997), a consciência, projeto da Psicologia como compromisso social
antes de significar um saber de si, é anuncia a dimensão da consciência-para-si e
apagamento ou discrição da presença, sem para-o-outro, sendo que a condição de ser para
intenção, sem nome, sem situação, sem outro é anterior à consciência de si.
títulos, sem visada e sem a proteção da
máscara protetora do eu. No entanto, quando A Psicologia, ou melhor, as psicologias, devem
essa consciência se torna intencional, quando encontrar seu compromisso social, pois o eu
alcança o estatuto de uma consciência-de-si, não se constitui sem o outro, ou seja, não há
pensa que esse é o ponto zero. A consciência individualismo que se sustente na ausência do
só reconhece como momento inaugural social. Se o paradigma moderno é o da
aquele em que ela possui racionalidade; consciência que propicia o individualismo, o
portanto, é facilmente capturada pelo engodo paradigma contemporâneo é o da linguagem
de pensar que o eu é anterior ao outro. Na que pressupõe o encontro intersubjetivo. O
modalidade voluntária da consciência “paradigma da linguagem” apenas demarca o
intencional, sua atividade é mortífera em campo das teorias que concebem o sujeito
relação à dimensão do outro. No domínio da originariamente como “ser social”, “ser-no-
consciência, o outro é visado para completar. mundo”, “ser comunicacional”, “ser-com”,
O eu prefigurado pela consciência intencional enfim, mergulhado no universo das interações
conhece e representa, e, nesse processo, simbólicas.
conhece a si mesmo refletido na realidade
objetiva que ele próprio constitui. Assim, a As novas modalidades de
falácia individualista é facilmente clínica para além da
compreendida; o eu, em sua arrogância, crê psicoterapia: clínica social e
que é anterior ao outro. De acordo como
Moreira (2004), do ponto de vista lógico, o
promoção da saúde
eu é anterior ao outro, pois só pode haver a
Desde o final do século passado e ainda no
distinção de fronteiras quando os dois
início deste século, presenciamos, no País, um
elementos têm claros, racionalmente
aumento considerável das áreas de atuação
delimitados, seus limites. Mas, do ponto de
da Psicologia, o que evidencia uma ampliação
vista ontológico, o outro é anterior ao eu.
paulatina de seus locais de trabalho: o
Todavia, a consciência-não-intencional não
psicólogo torna-se presença cada vez mais
possui instrumentos racionais para apreender
constante nos sistemas de saúde pública, nos
esse momento de dependência do outro.
centros de reabilitação, nos asilos, nos hospitais
Moreira (2004) defende a tese de que esse psiquiátricos e gerais, no sistema judiciário, nas
ponto pode ser um fundamento, uma creches, nas penitenciárias, nas comunidades.
perspectiva para a Psicologia engajada no Dessa maneira, surgem, para o profissional,
compromisso social. A Psicologia não teria, outras oportunidades de trabalho que escapam
como tarefa, fortalecer a arrogância do eu igual a seus espaços usuais de atuação, restritos até
a eu, nos projetos de busca do “verdadeiro então aos consultórios, às escolas e às
eu”, mas desvelar, para o eu, sua pertinência empresas.
necessária e vital no campo do outro, revelar
sua condição estruturante de “ser com”. O Todavia, cabe ressaltar que o psicólogo se
sujeito percorreria o trajeto de uma depara, portanto, com o desafio de trilhar
consciência-em-si, que se desconhece, para novos caminhos e de sustentar suas conquistas
uma consciência-para-si, que pode se precipitar recentes. Esse desafio pressupõe, de acordo
nas águas do arrogante individualismo. O com Romagnoli (2006/no prelo), não só a

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disseminação da especialidade do psicólogo Embora, em nosso entender, essa relação seja


para um número maior de pessoas e de classes intrínseca, presenciamos ainda, na forma
sociais mas também a produção de novos dominante da prática clínica, o perpetuamento
recursos em sua formação e de novas formas da cisão entre clínica e política. Realizando
de exercício profissional, que apostem na uma reflexão acerca da relação entre o
construção de práticas ético-políticas. momento contemporâneo, o exercício da
“(...) mesmo
clínica e a produção da subjetividade,
quando [as
Nesse sentido, concordamos com Figueiredo Benevides de Barros & Passos (2004) insistem questões] surgem
(1996) quando ele afirma que a clínica na articulação desse tripé com o viés político no seio de uma
psicológica se caracteriza não pelo local em que família, numa
e com a necessidade de uma análise das
escola ou numa
se realiza – o consultório –, mas pela qualidade formas instituídas da clínica. Para tal, os autores relação amorosa,
da escuta e da acolhida que se oferece ao examinam as formas de poder da atualidade, trata-se sempre do
sujeito: a escuta e a acolhida do excluído do quanto e de como
que gerenciam a vida e moldam formas de
o desejo pode
discurso. Portanto, ser psicólogo clínico implica existência, como nos propõem as análises produzir e se
determinada postura diante do outro. Nesse foucaultianas, apontadas no início deste texto. expressar diante
sentido, podemos fazer a seguinte observação: das injunções de
Em plena era da globalização, as subjetividades
assujeitamento”
são geridas por controles parciais e instáveis,
Assim, não importa em que lugar ou espaço o que se exercem em redes, que estão em todos (s/p)
ato clínico aconteça, seja no âmbito privado ou os lugares na ordem do dia, e que administram
público, numa relação diádica, grupal ou as formas de vida e seu cotidiano. Vale lembrar
coletiva. Este será sempre um fazer psicológico que esse poder é positivo, direcionado para o
que se pautará em concepções teóricas e consumo e para a serialização, e administra
metodológicas que refletirão essa postura diante maneiras de ser e de viver.
do sofrimento ou fenômeno psicológico que
se coloca diante dele. Melhor dizendo, o ato Frente a essa captura contemporânea da
clínico se pautará muito mais por uma ética do subjetividade, a clínica aflora como
que por referenciais teóricos fechados. (Dutra, possibilidade também de produção, e não
2004, s/p). somente de reprodução; uma forma de
resistência, conforme pontua Romagnoli
É claro que essa postura implica se haver com (2006/no prelo). Nesse espaço, vamos nos
as mudanças provocadas pela relação que ali deparar com modos de produção, de
se trava, relação essa que reflete/remete às subjetivação e de construção, formas de se
outras relações que seus elementos (terapeuta criar a si mesmo e o mundo, que também
e cliente) possuem fora do setting terapêutico, incidem no espaço social. Nesse contexto, é
seja ele qual for. No espaço clínico, estamos necessário que os profissionais que atuam
em contato com modos de subjetivação que nessa área reflitam acerca dos desdobramentos
buscam, de alguma maneira, criar alternativas de suas práticas no campo social. Nem que
de retificação. Isso significa que o fazer clínico seja através dos sintomas de seus clientes que
é, também, um fazer político, uma vez que adentram os consultórios, mantidos e
ele é transformador. Segundo Gondar (2006), sustentados pelo momento contemporâneo,
“(...) mesmo quando [as questões] surgem no o social se faz presente e se faz notar nas
seio de uma família, numa escola ou numa mudanças que emergem nesse cenário,
relação amorosa, trata-se sempre do quanto e criando focos enunciativos frente à
de como o desejo pode produzir e se expressar padronização das subjetividades.
diante das injunções de assujeitamento” (s/p).
Nessa perspectiva, operar mudanças é sempre Mediante essas idéias, acreditamos que o
um fazer político. estado de potência da vida, inerente à
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subjetividade, pode atualizar-se na experiência de sujeito universal e a-histórico, metas e


clínica e pode atuar como dispositivo para fundamentos que, sem dúvida, circunscrevem
sustentação de modos de existência que se a clínica como espaço de reprodução e
criam, de maneira singular, e que emergem mantêm a cisão entre clínica e política.
como resistência à reprodução, à massificação,
à gerência da vida. Na verdade, a Psicologia Ainda analisando essa forma dominante,
se dedica à subjetividade em suas mais variadas Ferreira Neto (2004), em sua reflexão sobre a
aparições, mas devemos pensar não somente formação do psicólogo brasileiro, afirma que
no sujeito individual, pois este sempre é fruto outras pesquisas também anunciaram que a
de um encontro social. Para tal, é preciso visão da prática psicológica como clínica dentro
tomar a clínica como plano de produção do do modelo liberal privado predomina entre os
coletivo, como sustentação da alteridade: estudantes e profissionais da Psicologia. Em
clínica social. sua pesquisa, o autor pretende investigar o
processo de mudança desse privilegiado ideal
Ao examinar o uso da expressão clínica social,
para a construção de uma clínica social.
mediante uma perspectiva histórica, Ferreira
Concordamos com o autor no que se refere
Neto (2003) afirma que seu uso se inicia, em
ao esgotamento da clínica liberal curativa
nosso país, na década de 80, em associação a
dentro de um cenário nacional em que os
uma série de transformações, não só nessa
problemas sociais se multiplicam. Também
área, mas na Psicologia como um todo.
estamos de acordo com o deslocamento do
Embora, desde a década de 70, já houvesse,
paradigma da clínica liberal curativa para uma
no Brasil, práticas e grupos “psi” engajados
clínica implicada e aplicada nos processos de
em práticas sociais e com reflexões políticas
promoção da saúde no social.
acerca do que faziam, é necessário frisar que
essa postura não atingia o campo da clínica,
A clínica social nasce como prática que se
que se apresentava, de maneira geral, apolítica
pretende realizar de forma ampla, envolvida
e distante das questões sociais. Em 1984, com
com a construção de novas formas de atuação.
a abertura política, inicia-se o questionamento
A partir da década de 80, como vimos acima,
da neutralidade da clínica, através da
os profissionais “psi” passam a atender a uma
ampliação do conceito de política e da
clientela oriunda das classes populares em que
constatação da força dos movimentos sociais.
Essas alterações confrontam a idéia dominante é inevitável a dimensão social, que, por sua
na prática clínica, até então definida como vez, convoca a necessidade de outra escuta e
atividade liberal e privada, que se desenvolvia de outra intervenção. Todavia, cabe ressaltar
junto às classes médias e altas. que esse tipo de atividade, por si só, não
garante uma prática política e de resistência.
Em pesquisa efetuada nessa mesma época, A ênfase no social, em seu surgimento,
com o intuito de conhecer os campos também era despolitizada, e, como se dedicava
emergentes de exercício dos psicólogos, o às camadas baixas da população, consistia, de
Conselho Federal de Psicologia (1988) maneira geral, em práticas assistencialistas.
denuncia a clínica tradicional como prática Com o intuito de ocupar novos espaços e
hegemônica e centrada no indivíduo. De realizar práticas diversas, os psicólogos
acordo com o órgão, essa atividade tem geralmente utilizavam os mesmos modelos do
objetivos analíticos, psicoterapêuticos e/ou consultório privado. Assim, entendemos que,
psicodiagnósticos, e baseia-se em uma naquele momento histórico, foi fundamental
concepção da clínica como um saber/fazer essa inserção – que, contudo, por si só, não
universalizado, associado a uma concepção garante novas atuações.

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Jacqueline de Oliveira Moreira, Roberta Carvalho Romagnoli & Edwiges de Oliveira Neves PSICOLOGIA CIÊNCIA E
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Atualmente, com as práticas emergentes em descontextualizada, inquestionável e


Psicologia já solidificadas, percebemos uma entendida como verdade.
flexibilização e uma politização cada vez mais
crescentes, que se associam ao Tendo como sustentáculo as idéias discutidas
desenvolvimento do trabalho clínico. Essa acima, ressaltamos que a clínica social não se
conduta emerge como necessária frente à refere somente ao atendimento das camadas
multideterminação de fatores que atravessam pobres da população nem diz respeito apenas
o exercício profissional na diversidade de aos novos espaços de atuação em que os
campos em que o psicólogo se insere. psicólogos estão se inserindo. É, antes de tudo,
Entretanto, vale lembrar que, quanto mais a clínica de qualquer lugar, de qualquer
espaços esse profissional ocupa, mais público, que insiste em combater a
necessária se torna a realização de análises massificação, cada vez mais presente, e buscar
críticas acerca do poder de suas intervenções cada vez mais a invenção, na singularidade de
e da gerência ou não da vida, em prol da cada cliente, na particularidade de cada
reprodução ou da invenção, isso porque um inserção profissional.
trabalho com o social não é, por si só, uma
prática ética e libertária. Propomos, portanto, um trabalho de
intervenção psicológica, seja qual for a vertente
Na verdade, não podemos nos esquecer de teórica escolhida pelo profissional, que associe
que, ultrapassando a homogeneidade e a o sujeito psicológico ao sujeito político, pois
segurança de nossas especializações, acreditamos que, devido ao alto nível de
encontramos um mundo portador de facetas subjetivismo, de atomização, de narcisismo,
variadas. Dinâmico e aberto, esse mundo não um trabalho que possa alcançar algum sucesso
se esgota nem se finaliza em nenhuma deve partir das mazelas íntimas desse sujeito
abordagem; pelo contrário, traduz-se em para depois lançá-lo ao campo político,
diversidades e multiplicidades. Analisando essa transformando-o em um sujeito histórico, no
proposição, Baremblitt (1988) demonstra que sentido de se envolver com sua história, com
o campo de atuação dos trabalhadores na a comunidade, com a humanidade. As
saúde é um espaço de múltiplas produções dominantes no campo da Psicologia
determinações, que configuram linhas de força ainda enfatizam a formação especializada e
e materialidades bastante diferentes entre si, tecnicista e perseguem homogeneizações e
que podem e devem ser consideradas. seguranças ilusórias perante a
multideterminação da realidade.
Ao centrar sua proposta somente no manejo
de classes sociais distintas, em diferentes Em nosso entendimento, essa grande ênfase
espaços de trabalho, o psicólogo corre o risco na formação de especialistas traz, como
de nada mais realizar a não ser a adaptação conseqüência imediata, a cisão entre
maciça de seus clientes ao mercado conhecimento e engajamento social.
globalizado e de distanciar-se da inventividade. Acreditamos que a articulação do uso de nossa
Essa diversificação de usuários de seus serviços formação acadêmica e de seus efeitos no
e esse aumento da demanda de sua atuação campo social, mediante o desenvolvimento
profissional não garantem nenhum avanço, de um conhecimento crítico de nossas práticas,
apenas respondem a um movimento de seja indispensável, sobretudo nesse momento
psicologização dos problemas da vida e podem em que outros espaços de atuação foram
aperfeiçoar os mecanismos de exclusão do conquistados e já se encontram sedimentados.
capitalismo, se o ponto de partida for o de No nosso entender, somente sustentando essa
sujeição a uma prática clínica problemática é possível promover ações que,
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O Surgimento da Clínica Psicológica: Da Prática Curativa aos Dispositivos de Promoção da Saúde

mesmo parciais, nos conduzam a outras da prática psicológica também são prisioneiros
práticas clínicas e sociais. dessa forma de conceituação, e propõem,
assim, uma polarização entre intervenção
Por fim, gostaríamos de revelar que muitos clínica e intervenção psicossocial. Faz-se
profissionais entendem a clínica psicológica necessário compreender que a escuta clínica
como prática liberal que acontece apenas no é uma postura ética e política diante do sujeito
consultório particular, atrelada ao modelo humano. Não é o local que define a clínica, e
individualizante. De outro lado, alguns sim, a posição do profissional e os objetivos
profissionais que defendem uma politização de libertação e potencialização dos sujeitos.

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PROFISSÃO, 2007, 27 (4), 608-621

Jacqueline de Oliveira Moreira


Doutora em Psicologia clínica pela PUC/SP, Mestre em Filosofia pela UFMG,
professora do Mestrado da PUC/MG, psicóloga clínica

Roberta Carvalho Romagnoli


Doutora em Psicologia clínica pela PUC/SP, Mestre em Psicologia social pela UFMG,
professora do Mestrado da PUC/MG, psicóloga clínica

Edwiges de Oliveira Neves


Discente do Curso de Psicologia da PUC/MG – Unidade de Betim

Rua Congonhas, 161 – São Pedro Belo Horizonte – MG. CEP – 30.330-100
E-mail:jackdrawin@yahoo.com.br

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