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O Surgimento da Clínica
Psicológica: Da Prática
Curativa aos Dispositivos de
Promoção da Saúde
The Beginning of the Psycological Clinic: From the
Healing Practice to the Dispositives to Promote Health
Jacqueline de Oliveira
Moreira,
Roberta Carvalho
Romagnoli &
Edwiges de Oliveira
Neves
Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais
Artigo
Jacqueline de Oliveira Moreira, Roberta Carvalho Romagnoli & Edwiges de Oliveira Neves PSICOLOGIA CIÊNCIA E
PROFISSÃO, 2007, 27 (4), 608-621
início, adverte que muitos médicos desvendar o jogo das forças psíquicas
consideram a psicoterapia um produto do implicadas no processo de adoecimento.
misticismo moderno, se comparada aos Nesse sentido, Freud subverte a lógica do
recursos terapêuticos físico-químicos. Em sua tratamento médico, pois, para ele, a resistência
grande capacidade argumentativa, ele irá é fundamental no processo de cura.
mostrar que a psicoterapia é um recurso
bastante familiar aos médicos, tanto porque Muitos são os avanços introduzidos por Freud
foi utilizada na Medicina antiga quanto pelo na clínica psicológica, tais como: a mudança
fato de que todos os médicos, mesmo os do paradigma da observação para o da escuta,
modernos, utilizam o recurso da psicoterapia a importância da resistência e, em última
através da sugestão de melhora, que se assenta instância, a perspectiva de tratar o cliente
na confiança do cliente no profissional que o como um sujeito de sua história de
trata. adoecimento, e não como mero objeto. No
entanto, a clínica psicanalítica freudiana
Segundo o autor, uma máxima dos médicos introduz a questão do segredo como força
revela que as doenças não são curadas pelo motriz do processo terapêutico; assim, essa
medicamento, mas pelo médico, ou seja, pela clínica se enquadra em moldes individualistas.
personalidade do médico, na medida em que, O paradigma da psicoterapia como espaço do
através dela, ele exerce uma influência segredo fortalece o imaginário de que a clínica
psíquica. A psicoterapia que Freud propõe mais efetiva para tratar os sofrimentos
difere, também, da psicoterapia clássica da psíquicos seja a clínica individual.
Medicina, a da sugestão, que é uma sugestão
hipnótica, pois o paciente se encontra Psicoterapia: campo
“hipnotizado” pelo poder e saber do médico. privilegiado da clínica
A psicoterapia proposta por Freud difere da
psicológica – individualismo e
sugestão porque não deposita “algo” na e
através da relação; pelo contrário, pretende
prática curativa
retirar os possíveis significados dos sintomas.
A terapia analítica, em contrapartida, não A clínica psicológica é herdeira do modelo
pretende acrescentar nem introduzir nada de médico, no qual, como já dissemos, cabe ao
novo, mas antes tirar, trazer algo à tona, e, profissional observar e compreender para,
para esse fim, preocupa-se com a gênese dos posteriormente, intervir, isto é, remediar, tratar,
sintomas patológicos e com a trama psíquica curar. Tratava-se, portanto, de uma prática
da idéia patogênica, cuja eliminação é a sua higienista. Dessa maneira, a clínica psicológica
meta (Freud (1905 [1904]), p. 244). Assim, o esteve, por um bom tempo, distante das
caminho para atingir a meta não segue a questões sociais.
facilidade direta da remoção através da
sugestão, da introdução ou da adição de um Freud e a psicanálise, segundo Guerra (2002),
elemento, mas da subtração, da retirada dos serão responsáveis pelo deslocamento da
elementos formadores do sintoma. prática fundamentada no olhar (sobre o
fenômeno) para a prática fundamentada na
Para Freud (1905 [1904]), a técnica da sugestão escuta (do metafenomenal). Assim, a prática
não possibilita a sustentação da posição de clínica psicológica passa a vincular-se a uma
cura, pois oculta o entendimento do jogo de demanda do sujeito, e não necessariamente
forças psíquicas e não permite identificar a a uma patologia, como no modelo médico.
resistência. A cura alcançada após o Mas a vinculação da Psicologia ao
enfrentamento da resistência permanece, ao individualismo não será superada pelo
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freudismo, pois a Psicologia, em sua origem, perceber a pessoa em sua interioridade, com
inclusive a Psicologia clínica, está atrelada a o intuito de observar e controlar o lado
uma perspectiva individualista. pecaminoso dessa intimidade. Todavia,
somente com o pensamento moderno vamos
O início do pensamento moderno é marcado assistir à valorização da categoria sujeito e da
pelo surgimento do sujeito e do individualismo, experiência de intimidade, de individualidade.
anunciando assim uma nova fonte de Surge, então, a Psicologia, também como
problemas que exigem uma nova ciência para espaço de acolhida para esse ser-sujeito-
pensar sobre eles. Na famosa tese de Dumont individual. O sujeito não tem mais as grandes
(1993), saímos de um modelo holista de estruturas holistas que organizam e oferecem
sociedade para um modelo individualista. sentido a sua existência; cada um tem que
Explicando essa tese, o psicanalista Benilton construir por si seus sentidos subjetivos e
Bezerra Júnior nos revela: individuais. Assim, a clínica do segredo cresce
e floresce na modernidade.
(...) a consciência dos sujeitos de sociedades
“(...) os ritmos hierárquicas, fundada num ideário holista, As mudanças introduzidas pela revolução
impostos pela corresponde a uma imagem de si como industrial na produção de bens influenciaram
produção industrial integrante de uma totalidade, sua identidade profundamente a sociedade e os indivíduos.
e pela vida urbana
destroem ou sendo vivida como a expressão de sua Segundo Laville & Dionne (1999), “(...) os
transformam os vinculação ao todo social. Somente nas ritmos impostos pela produção industrial e pela
modos de vida e sociedades igualitárias, baseadas no vida urbana destroem ou transformam os modos
levam ao
individualismo, individualismo como ideologia hegemônica, de vida e levam ao individualismo, assim como
assim como ao seria possível para os sujeitos aperceberem-se ao isolamento” (p. 53). Além disso, a distância
isolamento” e, mais do que isto, viverem sua natureza como entre a classe detentora dos meios de
sendo de indivíduos, isto é, seres singulares, produção e o proletariado aumentava cada vez
livres, autônomos, dotados de um mundo mais. Aqueles que poderiam tirar proveito
interno próprio, morada de sua verdadeira dessas mudanças “(...) gostariam de propiciar
identidade. (Bezerra Júnior , 1989, p. 223). que a nova ordem se estabelecesse sem
confrontos” (Laville & Dionne, 1999, pp. 53-
Assim, o sujeito moderno se percebe como 54). Surgem, então, as ciências humanas, “(...)
um ser singular, um ser que conquistou o com o objetivo de compreender e intervir na
direito de exercer sua individualidade de ordem social da mesma forma que as ciências
maneira sigilosa, em segredo, de forma a naturais tentavam dominar a natureza” (Laville
resguardar-se da exposição pública. Não é por & Dionne, 1999, pp. 53-54).
acaso que os fenômenos psicológicos, na
Grécia antiga, eram deuses (Phobos, Portanto, o surgimento das ciências humanas,
Mnemosine, Eros, dentre outros). Esse fato inclusive o da Psicologia, esteve ligado aos
indica a que distância se estava da idéia de interesses da nova detentora dos poderes
intimidade, de algo que se dá no interior e político, econômico e social: a burguesia.
pertence secretamente ao sujeito. A dimensão Segundo Guerra (2002), “(...) a história da
da interioridade será introduzida no início da Psicologia nos evidencia uma tradição de
Idade Média, a partir da divulgação, pela Igreja trabalho associada ao controle, à higienização
Católica, das experiências do indivíduo como e à diferenciação, que, desde os primórdios de
ser sexual. Dessa forma, teremos uma seu nascimento, associaram às práticas sociais
intimidade, um segredo, que aponta um e políticas a manutenção do status quo” (p.
indivíduo voltado para suas mazelas sexuais. 29). A prática clínica era, portanto,
O cristianismo introduz a possibilidade de descomprometida com o contexto social, ou,
ao contrário, comprometida com apenas parte capital. Acreditamos que existam outras
dele. intervenções psicológicas, de efeitos
terapêuticos, resultantes de uma escuta clínica.
Tendo sido o surgimento das ciências humanas Como breve exemplo das limitações da clínica
vinculado aos interesses da classe dominante quanto ao segredo individual, queremos relatar
e estando a própria Psicologia aliada a práticas um episódio referente à prática de uma
higienistas, fica evidente que o público de sua psicóloga em um hospital público. A psicóloga,
intervenção era aquele que não se enquadrava novata, interroga a coordenação de psicologia
no projeto cartesiano do homem racional, e do hospital sobre a possibilidade de se
que uma de suas tarefas era sustentar e manter oferecerem mais consultórios dentro do
o individualismo. Dessa maneira, a terapia da hospital para estagiários atenderem os
alma se inspiraria no modelo da terapia do pacientes. A coordenadora pergunta por que
corpo, isto é, no modelo médico, a fim de ser não atender as pessoas no leito, pois atender
reconhecida como ciência. Assim, a só aqueles que têm condições médicas de
psicoterapia se tornou um campo privilegiado caminhar até o consultório seria excluir os
da clínica psicológica: ela seria, até então, a acamados. A psicóloga responde que não pode
terapêutica mais adequada para tratar das atender nas enfermarias, porque sempre existe
“mazelas humanas” em que outras tentativas um segredo a ser dito. No nosso entender,
haviam falhado. Os “problemas psicológicos”, manter esse pressuposto é retirar, de alguns
uma vez que são imateriais, só se sujeitos, a possibilidade de acolhimento, de
apresentariam através da fala, sobre a qual o escuta do sofrimento e até de uma nova
psicólogo se “debruçaria” a fim de traçar uma posição subjetiva frente ao sofrimento.
linha de tratamento (diagnóstico, prescrição e
prognóstico). Dessa forma, o contexto social passou a
adentrar os consultórios de forma a convocar
Mas a relação entre a Psicologia e o
os psicólogos a saírem dele, ou seja, para
individualismo é marcada por uma
responder às novas formas de subjetivação e
ambigüidade: se, por um lado, o individualismo
de adoecimento psíquico, o psicólogo deveria
foi condição sine qua non para o surgimento
da Psicologia como ciência, por outro, ele compreender a realidade local. A Psicologia
tomará uma forma tal que denunciará a “tradicional” é “obrigada” a se redesenhar,
necessidade de que essa mesma Psicologia tornando-se mais crítica e engajada socialmente.
reflita sobre seus efeitos, o que mudará
completamente a relação entre ambos. Segundo Moreira (2004), é fácil compreender
a tentação individualista, pois o processo de
Assim, seria possível dar conta de todo tipo constituição da subjetividade só é possível
de “mazela”, nesse modelo? No nosso mediante o encontro intersubjetivo; é o outro
entender, não se pode tratar a psique da
que possibilita ao eu o ingresso no mundo social.
mesma maneira que se trata do soma e
No entanto, o eu vive, primeiramente, um
tampouco manter a neutralidade científica
momento de “não-eu”, de uma consciência em
diante de um objeto que coincide com o
observador. A clínica individual é fundamental, si, sem auto-reflexão, para usar a expressão de
mas não podemos nos perder no Lévinas (1983,1997), uma “consciência-não-
individualismo. Não se pode esquecer que a intencional”. Em sua não-intencionalidade,
ciência expressa e alimenta ideologias; assim, anterior a todo querer e a qualquer falta, a
a idéia de clínica neoliberal alimenta o modelo identidade da “consciência não-intencional”
individualista, por vezes perverso, que se encontra-se exposta, entregue à exterioridade
esquece do homem para manter a lógica do absolutamente estranha e imprevisível.
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O Surgimento da Clínica Psicológica: Da Prática Curativa aos Dispositivos de Promoção da Saúde
Segundo Lévinas (1983, 1997), a consciência, projeto da Psicologia como compromisso social
antes de significar um saber de si, é anuncia a dimensão da consciência-para-si e
apagamento ou discrição da presença, sem para-o-outro, sendo que a condição de ser para
intenção, sem nome, sem situação, sem outro é anterior à consciência de si.
títulos, sem visada e sem a proteção da
máscara protetora do eu. No entanto, quando A Psicologia, ou melhor, as psicologias, devem
essa consciência se torna intencional, quando encontrar seu compromisso social, pois o eu
alcança o estatuto de uma consciência-de-si, não se constitui sem o outro, ou seja, não há
pensa que esse é o ponto zero. A consciência individualismo que se sustente na ausência do
só reconhece como momento inaugural social. Se o paradigma moderno é o da
aquele em que ela possui racionalidade; consciência que propicia o individualismo, o
portanto, é facilmente capturada pelo engodo paradigma contemporâneo é o da linguagem
de pensar que o eu é anterior ao outro. Na que pressupõe o encontro intersubjetivo. O
modalidade voluntária da consciência “paradigma da linguagem” apenas demarca o
intencional, sua atividade é mortífera em campo das teorias que concebem o sujeito
relação à dimensão do outro. No domínio da originariamente como “ser social”, “ser-no-
consciência, o outro é visado para completar. mundo”, “ser comunicacional”, “ser-com”,
O eu prefigurado pela consciência intencional enfim, mergulhado no universo das interações
conhece e representa, e, nesse processo, simbólicas.
conhece a si mesmo refletido na realidade
objetiva que ele próprio constitui. Assim, a As novas modalidades de
falácia individualista é facilmente clínica para além da
compreendida; o eu, em sua arrogância, crê psicoterapia: clínica social e
que é anterior ao outro. De acordo como
Moreira (2004), do ponto de vista lógico, o
promoção da saúde
eu é anterior ao outro, pois só pode haver a
Desde o final do século passado e ainda no
distinção de fronteiras quando os dois
início deste século, presenciamos, no País, um
elementos têm claros, racionalmente
aumento considerável das áreas de atuação
delimitados, seus limites. Mas, do ponto de
da Psicologia, o que evidencia uma ampliação
vista ontológico, o outro é anterior ao eu.
paulatina de seus locais de trabalho: o
Todavia, a consciência-não-intencional não
psicólogo torna-se presença cada vez mais
possui instrumentos racionais para apreender
constante nos sistemas de saúde pública, nos
esse momento de dependência do outro.
centros de reabilitação, nos asilos, nos hospitais
Moreira (2004) defende a tese de que esse psiquiátricos e gerais, no sistema judiciário, nas
ponto pode ser um fundamento, uma creches, nas penitenciárias, nas comunidades.
perspectiva para a Psicologia engajada no Dessa maneira, surgem, para o profissional,
compromisso social. A Psicologia não teria, outras oportunidades de trabalho que escapam
como tarefa, fortalecer a arrogância do eu igual a seus espaços usuais de atuação, restritos até
a eu, nos projetos de busca do “verdadeiro então aos consultórios, às escolas e às
eu”, mas desvelar, para o eu, sua pertinência empresas.
necessária e vital no campo do outro, revelar
sua condição estruturante de “ser com”. O Todavia, cabe ressaltar que o psicólogo se
sujeito percorreria o trajeto de uma depara, portanto, com o desafio de trilhar
consciência-em-si, que se desconhece, para novos caminhos e de sustentar suas conquistas
uma consciência-para-si, que pode se precipitar recentes. Esse desafio pressupõe, de acordo
nas águas do arrogante individualismo. O com Romagnoli (2006/no prelo), não só a
mesmo parciais, nos conduzam a outras da prática psicológica também são prisioneiros
práticas clínicas e sociais. dessa forma de conceituação, e propõem,
assim, uma polarização entre intervenção
Por fim, gostaríamos de revelar que muitos clínica e intervenção psicossocial. Faz-se
profissionais entendem a clínica psicológica necessário compreender que a escuta clínica
como prática liberal que acontece apenas no é uma postura ética e política diante do sujeito
consultório particular, atrelada ao modelo humano. Não é o local que define a clínica, e
individualizante. De outro lado, alguns sim, a posição do profissional e os objetivos
profissionais que defendem uma politização de libertação e potencialização dos sujeitos.
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