Professional Documents
Culture Documents
Fátima Fonseca
Aluna nº 43540
Introdução às Neurociências
1
Considerações Iniciais
2
1. IEED – Transtorno de Expressão Emocional Involuntária
O IEED pode distinguir-se por humor ou afecto, sendo a diferença entre ambos
importante para a compreensão de IEED. O humor reporta-se a um estado de
descontrole emocional por um período de tempo longo (dias, semanas ou meses).
O afecto reporta-se a um estado de descontrole emocional por um período de
tempo curto (minutos ou horas).
- emocionalismo;
- desregulação emocional;
3
ainda evitar confusões conceituais entre afecto e humor.
Em 1924 foram definidos três sintomas que levam a um diagnóstico de IEED por
Wilson, que ainda hoje são tidos em consideração. Os sintomas definidos por
Wilson são:
4
3. Características descritivas: episódio de instalação súbita; duração breve
(segundos a minutos); crises estereótipadas para o mesmo paciente, mas com
variação interpessoal.
5
5. tumores cerebrais, as demências (Starkstein et al, 1995);
As informações disponíveis nesse sentido são ainda muito escassas e pouco claras.
Zeilig et al (1996) e Tateno et al (2004) estudaram o choro e riso patológico em
pacientes que tinham um histórico de traumatismo cranioencefálico. Assim,
chegaram à conclusão que os pacientes com IEED tinham mais propensão a
estados depressivos, ansiosos e agressivos quando comparados com pacientes sem
transtorno.
O IEED associado ao AVE tem uma instalação tardia, causando assim dificuldades
na sua avaliação imediata (Kim, 1997). Em 2000, Kim e Choy-Kwon sugeriram
que o AVE que envolva lesões de estruturas subcorticais, principalmente nas
proximidades da cápsula interna e dos núcleos da base, está mais relacionado com
o aparecimento do choro e riso patológicos.
6
de depressao sobreposta. No mesmo estudo, Ross e Stewart (1987) demonstraram
também que a presença da depressão exacerba as crises de choro, o que dificulta a
realização do diagnóstico diferencial.
Existem alguns aspectos que possibilitam a distinção entre IEED e depressão, dois
transtornos que podem surgir em um mesmo paciente, tais como:
7
enquanto que na depressão tal não acontece;
Segundo Silver et al (2005), devem ser consideradas, para além dos transtornos do
humor, outras patologias para o diagnóstico diferencial, tais como:
8
duplo-cego a sua utilidade no acompanhamento da resposta terapêutica do
transtorno associada ao uso da nortriptilina.
O tratamento do IEED ainda não tem medicação aprovada pela FDA (Food and
Drug Administration) americana. As terapias farmacológicas disponíveis hoje em
dia passam por inibidores selectivos de recaptação de serotonina (ISRSs),
antidepressivos tricíclicos e, em menor extensão, drogas dopaminérgicas.
9
desconhecimento e, muitas vezes, a falta de abordagem e valorização dessa
condição clínica por parte do seu médico-assistente acabam por provocar episódios
de desinibição emocional.
10
2. Memória e Envelhecimento: aspectos neuropsicológicos e
estratégias preventivas
O nosso cérebro é detentor de uma certa plasticidade, que varia com a idade. Isto
é, com o avançar da idade vai diminuindo a capacidade de ocorrer alterações.
Considera-se assim que a memória representa um papel importante como marcador
biológico para o envelhecimento.
11
relativa à memória são mínimas. Na década de vida que se segue as probabilidades
aumentam, podendo assim surgir doenças como o Alzheimer e a arteriosclerose.
Há no entanto uma questão que se levanta. Sabendo que a partir dos 30 anos, o ser
humano começa a perder entre 10.000 e 100.000 neurónios diários e que, por outro
lado, aos 120/125 anos o ser humano possuia ainda metade da sua capacidade
cerebral, permitindo assim continuar a viver e a raciocionar normalmente, por que
motivo algumas pessoas, em idades avançadas, apresentam quadros de demencia?
12
físico, mental e social é um bom método de prevenção e promoção de saúde na
terceira idade podendo assim combater as demências graves e/ou leves. Considera-
se, portanto, que todas as actividades mentais actuam no sentido de protecção às
funções cognitivas.
Velhice não significa doença, mas a ausência desta é um privilégio de poucos nesta
faixa etária. No entanto, o bem-estar pode ser atingido por muitos uma vez que o
fecho de serem portadores de doença não é condicionante para que possam levar
uma vida dita normal.
13
Posto isto, justifica-se portanto a necessidade / obrigação de implementar
programas que visem a manutenção das capacidades cognitivas e funcionais dos
idosos, assegurando-lhe uma melhoria na sua auto-estima que levará a uma
qualidade de vida merecida. O convívio inter-geracional deve ser tido em
consideração nos programas implementados por equipas de caracter
multidisciplinar que visem a participação, ocupação e convívio do idoso.
A solução para os problemas dos idosos não passa somente pela criação de leis,
considera-se também importante a sua protecção ser incluída numa política social
mais ampla, de todo um curso de vida. Por outras palavras, pretende-se educar e
sensibilizar a sociedade para as problemáticas do ser humano quando chegado à
velhice.
14
3. Bem-estar e senso de ajustamento psicológico em idosos que
15
O AVC frequentemente provoca incapacidades residuais, tais como a paralisia de
músculos, rigidez das partes do corpo afectadas, perda da mobilidade das
articulações, dores difusa, problemas de memória, dificuldades na comunicação
oral e escrita e incapacidades sensoriais (Skilbeck, 1996). O mesmo autor atestou
que os sobreviventes de um AVC podem sofrer de deterioração da funcionalidade e
melhorar o permanecer estabilizados na condição inicial num período que varia de
um mês a dois anos após o acidente.
Vestling, Tufversson e Iwarsson (2003) reforçaram esta ideia, uma vez que o
trabalho tem importância para a sobrevivência, para o autoconceito, o status social
e as relações sociais. No caso de um sobrevivente de AVC, ficar impossibilitado de
retornar ao trabalho provoca um forte declínio no bem-estar global.
16
sobreviventes de AVC não consegue recuperar completamente a sua
independência. Mesmo assim, aqueles que apresentavam um baixo nível de
sintomas depressivos e alto nível de afectos positivos tinham três vezes mais
chances de recuperação que aqueles altamente deprimidos.
Hopman & Verner (2003) indicaram que a qualidade de vida percebida e o bem-
estar subjectivo são significativamente comprometidos, mesmo depois de um AVC
leve.
Bem-estar subjectivo refere-se à avaliação que a própria pessoa faz sobre sua vida
a partir de seus valores e critérios pessoais. Esta avaliação pode ser feita mediante
dois indicadores:
Diener (2000) defende que as pessoas com graves limitações físicas ficam
extremamente infelizes após o acidente que o causou, adaptando-se rapidamente.
Durante o período de adaptação, experimentam o decréscimo das emoções
desagradáveis e o aumento das emoções agradáveis. Segundo este autor, as pessoas
reagem fortemente aos bons e maus eventos, quando da sua ocorrência, mas
17
tendem a adaptar-se com o tempo e a retornar ao seu nível original de bem-estar.
18
sociais de apoio e de reabilitação, com suporte informal e com a escolaridade mais
alta demonstram maior ajustamento psicológico.
Segundo Antonucci (2001), as pessoas com mais ampla rede social têm mais ajuda
em tempos de doenças e as pessoas, enfrentando assim melhor as enfermidades e o
stress e outras dificuldades da vida, para além de terem mais senso de controle e
de auto-eficácia. O suporte social aumenta a auto-estima, funciona como recurso
de enfrentamento, ameniza o impacto das doenças e modera o efeito das crises
(Handen, 1991).
19
A restrição de fontes de suporte, que acarretam os eventos stressantes, têm um
grande impacto sobre o bem-estar subjectivo e o ajustamento pessoal. O suporte
social é muito importante para o senso positivo do bem-estar psicológico dos
sobreviventes de AVC, uma vez que tendem a perceber grandes oportunidades de
crescimento pessoal, acabando por ter melhor score em relações positivas com os
outros, em auto-aceitação e em senso de domínio sobre o ambiente, o que os ajuda
na adaptação à incapacidade.
20
4. A cognição social e o córtex cerebral
Cognição social define-se como sendo o processo que permite tanto ao ser humano
como aos animais interpretar signos sociais e à posteriori responder de maneira
apropriada. Todo este processo neurobiológico origina a conduta adequada ao
estímulo recebido do outro indivíduo, ou animal da mesma espécie, ou seja,
aqueles processos cognitivos superiores que sustentam as condutas sociais
extremamente diversas e flexíveis (Adolphs, 1999).
21
corresponde neocórtex (Nauta, 1971) e, segundo Cummings (1995), sua lesão
também ocasiona um transtorno nas condutas sociais.
O estudo de pacientes lesionados revela que pacientes com lesão pré-frontal têm
dificuldades na tomada de decisões e no raciocínio social. Segundo Damásio
(1994), tomar decisões é escolher uma opção de resposta entre as muitas possíveis
num determinado e numa determinada situação. Supõe conhecer: 1) a situação que
exige tal decisão; 2) as distintas opções de acção; e, 3) as consequências imediatas
ou futuras de cada uma das acções. Realizar estes passos através de uma
perspectiva lógica dedutiva levaria muito tempo.
Por sua vez a falha reutilização de sinais somáticos ou emocionais para guiar a
conduta estão associados a lesão no córtex pré-frontal ventromedial. O paciente
com este tipo de lesões actuam em função das perspectivas imediatas não temendo
qualquer tipo de represálias no futuro em função de acções presentes.
O lobo pré-frontal pode também ter uma dissociação dupla. A lesão pré-frontal
dorso-lateral e a lesão pré-frontal ventromediais bilaterais. Sabendo que a primeira
causa déficits nas tarefas que envolvem a memória de trabalho, mas que teriam
uma resposta electrodérmica antecipatória adequada ante à expectativa de ganhar
ou perder. Por sua vez, a segunda lesão não afecta a memória de trabalho, mas tem
abolido a resposta electrónica antecipatória ante à expectativa de ganhar ou perder.
22
que funciona como meio regulador das condutas sociais e emocionais apropriadas
ao meio. A atenção está virada para componentes emocionais. Se observarmos
anatómicamente a zona pré-frontal ventromedial, podemos deduzir que esta está
ligada aos núcleos basais de Meynert e núcleos de Banda Diagonal de Broca, que
regula e focaliza a atenção para suas referências para o tálamo através de
projecções gabaérgicas e glutamatérgicas e colinérgicas. Está também relacionada
com componentes que regulam o estado afectivo como a amigdala e o córtex
singular subcaloso e com estruturas dorsolaterais executivas e áreas sensoriais.
O raciocínio social é testado, com meios que avaliem o raciocínio dedutivo. Onde
são colocados várias afirmações e o paciente deverá concluir se estas são
verdadeiras ou falsas. Pacientes com lesões pré-frontal ventromedial tem as suas
capacidades afectadas, notando-se alterações das funções executivas, da atenção,
da memória e do movimento, alterações no julgamento social e alteração na gestão
emocional. Nota-se ainda alterações comportamentais de personalidade.
Quando por sua vez o córtex pré-frontal dorsolateral está ileso, o paciente mostra
capacidade de decidir acerca de uma situação abstrata, mostrando assim uma
dissociação (Adolphs, 1999).
A intervenção da amigdala na cognição social, desperta interesse uma vez que esta
intervém fazendo uma avaliação cognitiva do conteúdo emocional de estimulos
perceptivos complexos. Por ser o de maior interconexão com o cortex pré-frontal
ventromedial, o núcleo basal, actua no pareamento de sinais sociais com o
contexto social apropriado, segundo Emery e Amaral(2000). Uma das funções
perceptivas complexas mais estudadas é a do estado emocional de uma face. A
percepção dos aspectos que se alteram na face é processada no sulco temporal
superior e na amigdala sobretudo na direita. A amigdala é capaz de desencadear a
resposta normal e neurovegetativa de stress através das eferências que saem do
23
núcleo central atingindo o hipotálamo e o tronco cerebral.
24
da face no próprio organismo, ou seja, através do córtex somatosensorial direito e
ínsula, o indivíduo que vai interpretar a expressão emocional, reproduz a mesma
em si mesmo.
25
5. Apresentação de casos de Alzheimer
Caso 1
Se bem me recordo, esta doença foi diagnosticada na minha avó logo após o
falecimento do meu avô, seu marido. Talvez tenha sido um pouco antes, não me
recordo da altura certa em que fomos advertidos para esta doença.
Após o falecimento do meu avô, a minha avó veio viver connosco. Apesar de ter 3
filhos, a minha mãe era a única filha (mulher) e a minha avó preferiu ficar com
ela, até porque os meus tios preferiam colocá-la num lar a ter que cuidar dela.
Preparámos um quarto ao lado dos meus pais e assim foi viver connosco. No
início as coisas foram muito mais fáceis, pois apesar de a doença já se manifestar
ainda não estava num estado muito avançado, foi-se agravando aos poucos.
Começou por perder a memória de algumas coisas recentes, alguns nomes,
começou a demonstrar pouca iniciativa em tudo. Se lhe perguntávamos, nunca
tinha fome, nunca tinha necessidades, ficava no sofá o dia todo ou ia até à
varanda e lá estava um pouco meio atónica, mas falava e conversava quando
puxávamos por ela. Aos poucos começou a cismar com algumas coisas. Primeiro
cismou em ir à casa de banho de 5 em 5 minutos, mal acabava de se sentar, já se
estava a levantar. Depois, ia até à varanda ou até à rua por uns minutos e voltava
para casa. Conseguia passar o dia assim. Enquanto conseguia andar bem, era
muito mais simples lidar com a situação, pois comia sem a ajuda de ninguém, ia à
casa de banho, vestia-se, deitava-se e levantava-se sozinha, enfim, fazia as coisas
básicas sem precisar de ajuda.
26
Depois desta fase começou o pior... começou a deixar de raciocinar, começou a
perder por completo a memória. Esqueceu-se de nós, das outras pessoas, às vezes
tinha flashes em que se lembrava de alguém, mas na maioria confundia tudo e
muitas das vezes falava de pessoas que nunca existiram ou de pessoas que há
muito tinham desaparecido. Deixou de conseguir ir à casa de banho, sendo
necessário usar fraldas. Às vezes ainda se levantava e lá ia, mas muito raramente.
Deixou de conseguir comer sozinha, perdeu completamente a noção do tempo, do
dia e da noite.
Desde há uns meses que está numa situação muito mais complicada, cansativa e
extenuante, para ela e, principalmente, para nós, pois não tem noção de nada.
Passa o dia no sofá, a pedir que a levantem, que a deitem, que a sentem, a
maioria das vezes já não sabe se está sentada, deitada ou levantada. Cismou com
isto e consegue estar de 2 em 2 minutos, assim, durante todo o dia e toda a noite,
não dormindo, não descansando. Mesmo que estejamos constantemente a fazer o
que ela pede, não pára, nunca está bem de maneira nenhuma. A minha mãe é
quem cuida dela, normalmente, mas todos tentamos ajudar um pouco que seja,
pois não é fácil, para uma só pessoa, aguentar esta pressão. A minha mãe passa
noites em branco, porque a minha avó não pára e passa o tempo a gritar o
mesmo, e se ela não estiver atenta ela vai para o chão e lá fica, porque já não se
consegue levantar. Às vezes torna-se quase doloroso estar perto dela, pois
sabemos que façamos o que quer que seja, nada a ajuda a melhorar e ela não tem
noção de nada, nem do que faz, nem do que diz, nem sequer do que lhe dizemos.
A minha avó tem mais dois filhos, mas eles só a vêm buscar um pouco ao
Domingo, alternadamente, levam-na depois de almoço e trazem-na depois de
jantar. Claro que já se propuseram a colocá-la num lar, mas a minha mãe não
aceitou, e eu concordo com ela, não é justo enviá-la para um lugar que sabemos
muito bem como funciona, nestas doenças a maioria dos doentes são presos às
camas, pois não há quem possa cuidar deles a toda a hora, e dá muito menos
trabalho, é claro.
Onde é que está a humanidade ao colocarmos os nossos pais num lar, a serem
27
cuidados por desconhecidos (muitas vezes descuidados), quando foram eles que
nos deram vida, que nos criaram com amor, carinho e atenção e que nos
ensinaram a enfrentar a vida. Não podemos esquecer que devemos a nossa vida
aos nossos pais, e que eles nunca (com algumas terríveis excepções) se
“livrariam” de nós por darmos mais trabalho do que o normal, ou por sermos
mais complicados, ou por sermos doentes ou até mesmo por sermos diferentes,
pois somos seus filhos, sangue do seu sangue, amam-nos incondicionalmente, e
dependemos deles até sermos capazes de ter uma vida autónoma. O mesmo
acontece ao contrário, quando os nossos queridos pais deixam de conseguir ter
uma vida autónoma, não é justo, nem humano, “livrarmo-nos” deles como se
fossem roupa velha...
Eu escrevi este testemunho para o poder partilhar com outras pessoas que passam
ou passaram por situações idênticas e para poder homenagear a minha querida
mãe que é a melhor mãe do mundo e, ao mesmo tempo, a melhor filha. A minha
mãe tem um coração enorme, não tem ponta de maldade ou egoísmo, trata da
minha avó com tanto carinho como a tratava antes da doença. Não perdeu nem
um pouco a paciência com ela. Quando as coisas estão mais difíceis consegue
passar por cima e continuar em frente, sem fraquejar.
Espero que este testemunho possa ajudar quem precisa de encontrar coragem e
força de vontade para enfrentar uma doença como esta, espero que compreendam
que apesar de ser uma doença complicada para quem cuida é, também, uma
doença incapacitante e penosa para quem a tem, e prova que nós somos apenas
humanos e que de um momento para o outro podemos deixar de ser saudáveis e
capazes para passarmos a precisar de ajuda de outrem para viver, para
sobreviver, para continuar... Sabemos que esta doença não tem cura, e que tem
sempre tendência a piorar, mas gostaria que soubessem que não existe nada mais
gratificante do que saber que ajudámos alguém a viver um pouco melhor os
últimos dias da sua vida...
Patrícia Martins”
(http://www.alzheimerportugal.org/scid/webAZprt/defaultArticleViewOne.asp?articleID=135&categoryID=819 )
28
Caso 2
“Venho trazer-vos um testemunho que gostava muito que ajudasse todos os que,
de uma forma ou de outra, estão a lidar com a doença de Alzheimer.
A doença de Alzheimer era a última coisa que eu e os meus irmãos achávamos que
pudesse alguma vez afectar uma pessoa com o perfil da nossa Mãe.
Para além de linda e de aspecto forte e indestrutível, a nossa Mãe era, realmente,
o baluarte da família. Do Pai aos filhos, todos víamos nela o nosso porto seguro,
a nossa referência, a pessoa que nos passava valores de forma convicta, que nos
orientava, aquela à volta de quem toda a família girava. Uma “generala” para
usar a expressão de alguns dos nossos amigos que sabiam bem o que era ter de
passar a grande prova da sua aprovação.
A nossa Mãe pintava, fazia peças de cerâmica cujas receitas revertiam a favor de
instituições ou pessoas mais carenciadas que acompanhava, diariamente, com
extraordinária dedicação. Tudo isto para vos explicar que a doença de Alzheimer,
pensávamos nós, não podia mesmo acontecer com esta Mãe leoa com uma mente
tão activa, e que achávamos ir cuidar de nós toda a vida.
29
deixaram o senhor a achar deveras estranho o comportamento da mãe da
Francisca, sem qualquer hipótese de pôr termo àquela conversa que ainda
demorou bastante).
Em casa as coisas começaram a ficar difíceis. O nosso Pai dizia que a Mãe não
parecia a mesma, as coisas começam a perder aquela organização rígida
habitual; começam-se a queimar tachos e refeições, a ocorrerem pequenos
acidentes de alguma gravidade; o dinheiro e outros bens começam a aparecer nos
sítios mais inacreditáveis; a carteira torna-se um objecto de culto onde se
esconde tudo desde o relógio despertador a não sei quantas canetas sem tampa,
alimentos, livros, meias, etc... As saídas sozinha começam a ficar desorientadas e
têm de ser suspensas.
A nossa mãe começa também a perder o interesse pelo que se passa no mundo. Diz
que as notícias são sempre iguais, que a deixam triste e lhe fazem mal. Nada lhe
interessa ... adormece em frente à televisão, não lê e deixa de se arranjar. Quando
lhe damos roupa ou uma carteira nova elogia, mas não usa nada, preferindo tudo
o que encontra de mais velhinho e usado, deixando de ter o gosto que tinha para
combinar peças e cores. A nossa Mãe está cada vez mais triste e diferente.
Emagreceu e nós conseguimos encontrar uma médica extraordinária, a Dra.
Maria João Quintela, que a acompanhou e que acompanhou a Família, na fase
pré-diagnóstico, com enorme profissionalismo e humanismo. Depois foi
necessário um neurologista - o Professor Castro Caldas que precisou de,
sensivelmente, um ano e meio para diagnosticar a doença de Alzheimer, tão bem
30
camuflada estava por uma depressão.
Estava a chegar ao fim a doença de Alzheimer para a minha Mãe. Estava a chegar
ao fim uma primeira fase, duríssima para ela, e em que nós (longe como
estávamos de imaginar que aquele mal lhe pudesse acontecer) não reagimos como
devíamos: não fomos tão pacientes como devíamos, não disfarçámos as suas
dificuldades, não a ajudámos, porque não entendíamos nada do que estava a
acontecer. Ficámos revoltados com ela e entre nós, porque nos sentíamos perdidos
com tudo o que estava a acontecer, porque ela começava a fazer-nos falta... muita
falta!
Algum tempo depois da sua morte tivemos mais uma prova de como esta fase deve
ter sido difícil para ela, quando encontrámos um bilhetinho com letra frágil que
dizia: “Acho que tenho a doença de Alzheimer”.
Para o meu pai – um “pinga amor” num casamento feliz de 40 anos - tudo estava
a ser ainda mais sofrido, porque foram para ele as primeiras ausências de
reconhecimento, e até medos de que ele lhe fizesse mal, o que o magoava muito
31
profundamente. No entanto Estava na hora de assumir a inversão de parentescos,
de passar da revolta à aceitação, de suavizar ao máximo os sintomas da doença.
Encontrámos conforto na constatação de que a Mãe já não estava a sofrer e
estabelecemos prioridades para que tudo fosse menos difícil:
3ª Prioridade (mas não menos importante): Manter a dignidade até ao fim. Desde
uma cadeira senhorinha na qual o nosso Tio José colocou umas rodinhas
32
escondidas para a deslocarmos sem ser numa cadeira de rodas normal, aos
bonecos de arroz e chorões que arranjámos e que, além de a deixarem feliz, a
impediam de estar sempre a mexer e a tentar tirar a sua própria roupa, a
conversas sem nexo que, enquanto a nossa mãe ainda falava, mantínhamos com
ela para a deixar feliz e não se sentir descabida, à companhia que lhe fizemos
porque os amigos eram muitos mas só uns dois não desertaram entretanto, fomos
entendendo que, com uma doença avassaladora como esta, a dignidade é,
certamente, o valor a preservar.
A nossa mãe podia até ter-se esquecido de nós... mas nós, em momento algum
deixámos de a sentir Pessoa ou esquecemos que ela era a nossa Mãe.
Nunca mais nenhum de nós voltou a ser o mesmo! O meu pai morreu antes da
minha Mãe e eu, a minha irmã Margarida e o meu irmão Luís envelhecemos e
ficámos mais tristes. No entanto, sentimos todo o conforto de termos dado o nosso
melhor e de termos crescido tanto como pessoas com um drama como este. Hoje
sentimos que temos de continuar a ajudar os outros com o nosso testemunho.
Por isso o drama transformou-se numa Causa. Uma Causa na qual está o meu
Marido cuja Mãe - também forte e indestrutível! - foi vítima da doença de
Alzheimer. E foi por isso que durante os últimos dois mandatos integrei a
Direcção da Alzheimer Portugal – um apoio fundamental para as pessoas com
doença de Alzheimer e também para nós Cuidadores que ficamos totalmente
perdidos pelo drama familiar e social que nos bate à porta sem nunca estarmos
preparados.. Ser voluntária da Alzheimer Portugal foi e é uma forma de superar
este luto, esta ausência…
Foi o passar de “ uma doença que nunca vou esquecer “ para o “Não há memória
de uma causa assim” – a assinatura da nossa Associação.
Francisca Távora”
( http://www.alzheimerportugal.org/scid/webAZprt/defaultArticleViewOne.asp?articleID=134&categoryID=819 )
33
Considerações Finais
Imaginolândia, 07.02.2576
Querida Lembrança:
Há muito que te queria enviar esta carta, mas o esquecimento apodera-se de mim
nos momentos em que o poderia fazer. Deve ter-se esquecido de me esquecer hoje.
34
Agora que posso escrever, sem me esquecer, queria pedir-te que, das tuas,
"gavetas memoriais", retirasses a "pasta" da minha infância e juventude.
Sei que já passaram muitos, muitos anos desde essa minha idade de criança,
tantos que já nem eu próprio sei se alguma vez fui miúdo, mas agora que este
maldito esquecimento já consumiu grande parte da minha memória, pedia-te que
me enviasses essas "pastas" ou, se não puderes, os tópicos dos momentos mais
importantes.
Agora que os carros voam e que as pessoas passam as férias em Marte, é-me
necessário recordar os momentos em que o Homem ia só à Lua e em que Marte
era uma ilusão, aqueles tempos em que os carros só andavam na estrada e só
voavam nos filmes americanos, esses anos em que a própria Natureza controlava
a temperatura do planeta, sem ser necessário esta cápsula sufocante que cobre o
planeta...
Bem, está alguém a bater à porta. Deve ser o Esquecimento. Vem tirar Novamente
as ilusões. Antes que arrombe a porta e me assalte a alma, só te peço que faças o
possível para me resolveres este tormento. Não precisa de ser já, tenho tempo.
( http://www.alzheimerportugal.org/scid/webAZprt/defaultArticleViewOne.asp?articleID=138&categoryID=819 )
35