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UM LIVRO PERENE
Fernando Henrique Cardoso discute o trajeto da obra sob os olhares dos
críticos, que destaca as contradições ali procedentes, porém, destaca que “Casa
grande & senzala foi, é e será referência para compreensão do Brasil”. Sua analise
é de que a obra apresenta “construções hiper-realistas mescladas com
perspectivas surrealistas que tornam o real fugidio. (...) essas caracterizações,
embora expressivas, simplificam e podem iludir o leitor. Mas, com elas, o livro não
ganha apenas força descritiva como se torna quase uma novela, e das melhores já
escrita e ao mesmo tempo, ganha força explicativa”. (p. 20).
“Casa grande & senzala eleva à condição de mito um paradigma que mostra
o movimento da sociedade escravocrata e ilumina o patriarcalismo vigente no Brasil
pré-urbano-industrial”. Considera que “Gilberto Freyre inova nas análises sociais da
época: sua sociologia incorpora a vida cotidiana. Não apenas a vida pública ou o
exercício de funções sociais definidas (...), mas a vida privada”, posto que na época
do escrito descrever hábitos e costumes, “e, sobretudo, a vida sexual, era
inusitado”. (p.21).
“a obra é eterna?”, “Talvez porque ao enunciar tão abertamente como
valiosa uma situação cheia de aspectos horrorosos, Gilberto Freyre desvende uma
dimensão que, gostemos ou não, conviveu com quase todos os brasileiros até o
advento da sociedade urbanizada, competitiva e industrializada. (...) a história que
ele conta era a história que os brasileiros, ou pelo menos a elite que lia e escrevia
sobre o Brasil, queria ouvir. (...). A história que está sendo contada é a história de
muitos de nós, de quase todos nós, senhores e escravos”. (p. 22).
“Gilberto Freyre seria o mestre do equilíbrio dos contrários. Sua obra está
perpassada por antagonismos. Mas dessas contradições não nasce uma dialética,
não há superação dos contrários, nem por conseqüência se vislumbra qualquer
sentido da História. Os contrários se ajustam frequentemente de forma ambígua, e
convivem em harmonia.” (p.23).
Destaca que Gilberto Freyre “não visava propriamente demonstrar, mas
convencer. (...) vencer junto, autor e leitor”. Fernando Henrique prossegue
enfatizando que “essa característica vem sendo notada desde as primeiras edições
de Casa grande & senzala”, em que o autor “não conclui. Sugere, é incompleto, é
introspectivo, mostra o percurso, talvez mostre o arcabouço de uma sociedade.
Mas não ‘totaliza’. Não oferece, nem pretende uma explicação global. Analisa
fragmentos e com eles faz-nos construir pistas para entender partes da sociedade e
da história.” (p.24).
No que se refere às “oposições simplificadoras, os contrários em equilíbrio,
se não explicam logicamente o movimento da sociedade, servem para salientar
características fundamentais. São, nesse aspecto, instrumentos heurísticos cuja
fundamentação na realidade conta menos do que a inspiração derivada delas, que
permite captar o que é essencial para a interpretação proposta. (...) E como, apesar
disso, a obra de Freyre sobrevive, e suas interpretações não só são repetidas (...),
como continua a incomodar muitos, é preciso indagar mais o porquê de tanta
resistência para aceitar e louvar o que de positivo existe nela”. (p. 25).
Quanto à visão da evolução política do país, observa que na obra gilbertiana
“a grande eloqüência, o tom exclamatório dos ‘grandes ideais’, messiânicos, (...) é
posto à margem e substituído pela valorização das práticas econômicas e humanas
que (...) refletem a experiência comprovada de muitas pessoas”. Observa que ”com
as características culturais e com a situação social dos habitantes do latifúndio, não
se constrói uma nação, não se desenvolve capitalísticamente um país e, menos
ainda, poder-se-ia construir uma sociedade democrática”. Diferentemente da
“intelectualidade universitária e dos autores, pesquisadores e ensaístas pós-Estado
Novo (...) que queriam construir a democracia, Gilberto Freyre foi, repetindo José
Guilherme Merquior, ‘nosso mais completo anti-Rui Barbosa’”. (p.26).
Com relação à visão de pensadores mais democráticos do passado, citando
Sérgio Buarque, Florestam Fernandes, Simon Schwartzman e José Murilo de
Carvalho, estes formulam as suas críticas à obra gilbertiana quanto “ao iberismo e
à visão de uma ‘cultura nacional’, mais próxima da emoção do que da razão”.
Fernando Henrique pensa que “terá sido mais fácil assimilar Weber da Ética
protestante e da crítica ao patrimonialismo do que ver no tradicionalismo um
caminho fiel às identidades nacionais para uma construção do Brasil moderno”.
Infere que “o Brasil (...) vivendo uma situação social na qual as massas estão
presentes e são reivindicantes de cidadania e ansiosas por melhores condições de
vida, vai continuar lendo Gilberto Freyre. Aprenderá com ele algo do que fomos ou
do que ainda somos em parte. Mas não o que queremos ser no futuro.” (p. 27).
A título de conclusão sintetiza que em sua obra, “Gilberto Freyre nos faz
fazer as pazes com o que somos. Valorizou o negro. Chamou atenção para a
região. Reinterpretou a raça pela cultura e até pelo meio físico. Mostrou, com mais
força do que todos, que a mestiçagem, o hibridismo, e mesmo (mistificação à parte)
a plasticidade cultural da convivência entre contrários, não são apenas uma
característica, mas uma vantagem do Brasil”. (p.28).
Prefácio à 1ª Edição
Gilberto Freyre fala das suas viagens, a partir de 1930, começando pela
Bahia; depois para Portugal e África; passando pela Universidade de Stanford,
viagens que caracterizou como “ideal para os estudos e as preocupações que este
ensaio reflete” (p. 29).
Em oportunidade de fazer rota através do Novo México, do Arizona, e do
Texas, considera o reconhecimento “de toda uma região que ao brasileiro do Norte
recorda, nos seus trechos mais acres, os nossos sertões ouriçados de mandacarus
e de xiquexiques. Descampados em que a vegetação parece uns enormes cacos
de garrafa, de um verde duro, às vezes sinistro, espetados na areia seca”. Porém
seu interesse estende-se para além da paisagem sertaneja, voltando-se para o
“velho Sul escravocrata”. Infere que “a todo estudioso da formação patriarcal e da
economia escravocrata do Brasil impõe-se o conhecimento do chamado ‘deep
South’” (p. 30-1).
Freyre avalia a importância do encontro e companhia de estudiosos
(estrangeiros) de assunto correlato, que lhe proporcionaram sugestões valiosas
para seu trabalho. Do seu encontro com Franz Boas, destaca que através de
orientação de estudo antropológico, “me revelou o negro e o mulato no seu justo
valor (...) a considerar fundamental diferença entre raça e cultura; a discriminar
entre os efeitos de relações puramente genéticas e os de influências sociais, de
herança cultural e de meio.” (p. 32).
Do materialismo histórico destaca, “temos que admitir influência considerável
(...) da técnica de produção econômica sobre a estrutura das sociedades: na
caracterização da sua fisionomia moral (...) sujeita à capacidade de aristocratizar ou
de democratizar sociedades; de desenvolver tendências para a poligamia ou a
monogamia; para a estratificação ou a mobilidade”. Considera que ainda que
estudos em desenvolvimento sobre eugenia e cacogenia, estes como que sendo
“resultado de traços ou taras hereditárias preponderando sobre outras influências,
deve-se antes associar à persistência, através de gerações, de condições
econômicas e sociais, favoráveis ou desfavoráveis ao desenvolvimento humano”.
(p. 32).
Freyre considera que, no Brasil, os “europeus e seus descendentes tiveram
(...) de transigir com índios e africanos quanto às relações genéticas e sociais”.
Dado à escassez de mulheres, “sem deixarem de ser relações (...) de ‘superiores’
com ‘inferiores’, surgiu a necessidade experimentada por muitos colonos de
constituírem família. (...). A miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a
distância social que de outro modo se teria conservado enorme entre a casa-
grande e a mata tropical; entre a casa-grande e a senzala”. (p. 33).
Nos moldes do sistema patriarcal e escravocrata de colonização, Freyre
estuda a importância do processo alimentar das ‘raças inferiores’, que resulta num
quadro de hiponutrição, ou ‘fome crônica’, decorrente “dos defeitos da qualidade
dos alimentos”. Desse fato decorre “entre as conseqüências (...) a diminuição da
estatura, do peso e do perímetro torácico; deformações esqueléticas;
descalcificação dos dentes; insuficiêcias tiróidea, hipofisária e gonadial
provocadoras de velhice prematura, fertilidade em geral pobre, apatia, não raro
infecundidade”. Lembra também outras influências desse sistema como a sífilis,
destacando que a “economia e organização social (...) às vezes contrariaram não
só a moral sexual católica como as tendências semitas do portugês aventureiro
para a mercania e o tráfico”. (p. 34).
Freyre infere que “o sistema patriarcal de colonização portuguesa do Brasil,
(...) ao mesmo tempo que exprimiu uma imposição imperialista da raça adiantada à
atrasada, (...) de formas européias ao meio tropical, representou um
contemporização com as novas condições de vida e ambiente”. (p. 35).
Nesse prefácio o autor fala da diferença entre o português do reino e o
português do Brasil, tornado luso-brasileiro que, citando Capistrano de Abreu,
provém do ‘transacionismo’ e torna-se “fundador de uma nova ordem econômica e
social; o criador de um novo tipo de habitação”. Este, “na formação brasileira, agiu
do alto das casas-grandes, que foram centros de coesão patriarcal e religiosa: os
pontos de apoio para a organização nacional”. (p. 36).
I.Características gerais da colonização portuguesa do Brasil: formação de
uma sociedade agrária, escravocrata e híbrida
Neste primeiro capítulo de Casa-grande & senzala, Gilberto Freyre faz uma
análise dos fatores que possibilitaram a fixação e colonização portuguesa no Brasil.
Essa análise tem como ponto de partida as características do português que define
como:
“A singular predisposição do português para a colonização híbrida e
escravocrata dos trópicos, explica-a em grande parte o seu passado étnico,
ou antes, cultural, de povo indefinido entre a Europa e a África” (p.66).
Essa posição de “indecisão étnica”, por vezes traduzidos em
“bicontinentalidade” ou “dualismo de cultura e raça”, tornaram-se fatores que
dotaram o português de atributos essenciais à colonização dos trópicos ao delinear
no seu caráter a flexibilidade. Sobre o equilíbrio entre os antagonismos resultantes
das duas culturas, a européia e a africana, Freyre destaca que entre:
“(...) a católica e a maometana, a dinâmica e a fatalista encontrando-
se no português, fazendo dele, de sua vida, de sua moral, de sua economia,
de sua arte um regime de influências que se alternam, se equilibram ou se
hostilizam. Tomando em conta tais antagonismos de cultura, a flexibilidade,
a indecisão, o equilíbrio ou a desarmonia deles resultantes, é que bem se
compreende o especialíssimo caráter que tomou a colonização brasileira,
igualmente equilibrada nos seus começos e ainda hoje sobre
antagonismos.” (p.69).
Freyre chama a atenção para uma das heranças recebidas pelos portugueses:
“(...) gente de uma mobilidade, de uma plasticidade, de uma
adaptabilidade tanto social como física (...). (...) o elemento semita, (...), terá
dado ao colonizador português do Brasil algumas das suas principais
condições físicas e psíquicas de êxito e de resistência.” (p. 60-70).
Dessa herança é que Portugal, reino de parco capital humano, enfraquecido
por epidemias, fome e guerras, conseguiu superar-se e impor-se quanto
colonizadores. Assim assinala Freyre a esse ímpeto de superação:
“dominando espaços enormes e onde quer que pousassem, na África
ou na América, emprenhando mulheres e fazendo filhos, em uma atividade
genésica que tanto tinha de violentamente instintiva da parte do indivíduo
quanto de política, de calculada, de estimulada por evidentes razões
econômicas e políticas da parte do Estado. (...) A miscibilidade, mais do que
a mobilidade, foi o processo pelos quais os portugueses compensaram-se
da deficiência em massa ou volume humano para a colonização em larga
escala e sobre áreas extensíssimas.” (p.70-71).
Quando Gilberto Freyre conduz sua análise para a colonização do Brasil,
avalia como outro fator favorável de adaptação do português nesta terra, a
aclimatabilidade:
“Nas condições físicas de solo e de temperatura, Portugal é antes
África do que Europa. O chamado ‘clima português’ de Martone, único na
Europa, é um clima aproximado do africano. Estava assim o português
predisposto pela sua mesma mesologia ao contato vitorioso com os trópicos:
seu deslocamento para as regiões quentes da América não traria as graves
perturbações da adaptação nem as profundas dificuldades de aclimatação
experimentadas pelos colonizadores vindos de países de clima frio.” (p72).
No percurso de avaliação da formação colonizadora portuguesa, Freyre usa
constantemente de comparação com a forma de colonização inglesa, espanhola,
holandesa e outros países europeus. Destes destaca que estudos demonstram que
todas as tentativas de estabelecerem-se nos trópicos resultaram em fracassos.
Além do fator climático, menciona estudos que atribuem esse fracasso em razão
desses europeus terem o objetivo de estabelecer no Brasil uma “colônia
exclusivamente branca”. Outros, por sua vez, discordam desse “caráter de genuína
expansão étnica” atribuindo-lhes antes interesses de “exploração econômica ou
domínio político”. Porém, dentre os aspectos que se fizeram favoráveis ou
desfavoráveis à colonização nos trópicos o autor assinala:
“de formação portuguesa é a primeira sociedade moderna constituída
nos trópicos com características nacionais e qualidades de permanência.”
(p.73).
Quando se refere às condições locais, sejam morfológicas, meteorológicas
ou geológicas, com as quais se deparam o colonizador, Freyre destaca que há que
se considerar o:
“clima irregular, palustre, perturbador do sistema digestivo: clima na
sua relação com o solo desfavorável ao homem agrícola e particularmente
ao homem europeu, por não permitir nem a prática de sua lavoura tradicional
regulada pelas quatro estações do ano nem a cultura vantajosa daquelas
plantas alimentares a que ele estava desde há muitos séculos habituado.”
(p.76).
Prossegue destacando que a realidade que aqui o colonizador encontrou
difere do “entusiasmo do primeiro cronista” (Pero Vaz de Caminha):
“Tudo aqui era desequilíbrio. Grandes excessos e grandes
deficiências, as da nova terra. O solo, excetuadas as manchas de terra preta
ou roxa, de excepcional fertilidade, estava longe de ser o bom de se plantar
nele tudo o que se quisesse, (...). Em grande parte rebelde à disciplina
agrícola. Os rios outros inimigos da regularidade do esforço agrícola e da
estabilidade da vida da família. Enchentes mortíferas e secas esterilizantes –
tal o regime das suas águas. E pelas terras e matagais de tão difícil cultura
como pelos rios quase impossíveis de ser aproveitados economicamente na
lavoura, na indústria ou no transporte regular de produtos agrícolas – viveiros
de larvas, multidões de insetos e de vermes nocivos ao homem.” (p.77).
Avalia que foi dentro dessas condições adversas que se empreendeu o
processo civilizador da colonização portuguesa. Também ao português coube a
inovação no processo de exploração dos trópicos que até então se atinha ao
comércio através de feitorias ou extração de riqueza mineral para a criação local de
riqueza. Destaca a diferença política de colonização entre portugueses e espanhóis
e ingleses, sendo que estes adotaram a de “extermínio e segregação” das raças
nativas:
“No Brasil os portugueses iniciaram a colonização em larga escala
dos trópicos por uma técnica econômica e por uma política social
inteiramente novas (...). A primeira: a utilização e o desenvolvimento de
riqueza vegetal pelo capital e pelo esforço do particular; a sesmaria; a
grande lavoura escravocrata. A segunda: o aproveitamento da gente nativa,
principalmente da mulher, não só como instrumento de trabalho, mas como
elemento de formação de família.” (p. 79).
Quanto ao processo de formação social infere:
“A nossa verdadeira formação social se processa a partir de 1532 em
diante, tendo a família rural ou semi-rural por unidade (...). Vivo e absorvente
órgão da formação social brasileira, a família colonial reuniu, sobre a base
econômica da riqueza agrícola e do trabalho escravo, uma variedade de
funções sociais e econômicas. Inclusive, (...), a do mando político: o
oligarquismo ou nepotismo, que aqui madrugou, chocando-se ainda em
meados do século XVI com o clericalismo dos padres da Companhia.” (p.85).
Freyre esclarece que:
“Pela presença de um tão forte elemento ponderador como a família
rural ou, antes, latifundiária, é que a colonização portuguesa do Brasil tomou
desde cedo rumo e aspectos sociais tão diversos da teocrática, idealizada
pelos jesuítas.” (p.85).
Essa mudança de postura saída da base de colonização comercial para a
rural não ocorreu de forma espontânea, mas pelas circunstâncias, dado que no
Brasil “terra e homem estavam em estado bruto”, desfavorecendo-lhes o intercurso
comercial, conforme se procedia no oriente. Assim, definida a base de fixação dos
colonizadores, delinearam o modo de instalação onde:
“Tanto mais rica em qualidade e condições de permanência foi a
nossa vida rural do século XVI ao XIX onde mais regular foi o suprimento de
água; onde mais equilibrados os rios ou mananciais.” (p.88).
Porém, salienta Freyre, “prolongou-se no brasileiro a tendência de derramar-
se em vez de condensar-se. (...) derramamo-nos em superfície antes de nos
desenvolvermos”, referindo-se à expansão colonial através da fundação de
subcolônias na ânsia da extensão populacional aventureira ou em empresa
capitalista. Desta feita Freyre também aponta os antagonismos vividos:
“Se é certo que o furor expansionista dos bandeirantes conquistou-nos
verdadeiros luxos de terras, é também exato que nesse desadoro de
expansão comprometeu-se a nossa saúde econômica e quase se
comprometia a nossa unidade política.”, porém, complementa Freyre: “A
mesma mobilidade que nos dispersa desde o século XVI em paulistas e
pernambucanos, ou paulistas e baianos, e daí ao século XIX em vários
subgrupos, mantém-nos em contato, em comunhão mesmo, através de difícil
mas nem por isso infreqüente intercomunicação colonial.” (p.89).
Freyre argumenta que:
“os portugueses não trazem para o Brasil sem separatismos políticos,
como os espanhóis para o seu domínio americano, nem divergências
religiosas, como ingleses e franceses para as suas colônias”. (p. 90).
Complementado que às autoridades o que importava era a religião. Contato
que fossem cristãos católicos a colônia do Brasil encontrou-se aberta, inclusive a
estrangeiros, em quase todo o século XV. Quanto a esse pressuposto Freyre
coloca que:
“Temia-se no adventício acatólico o inimigo político capaz de quebrar
ou enfraquecer aquela solidariedade que em Portugal se desenvolvera junto
com a religião católica. Essa solidariedade manteve-se entre nós
esplendidamente através de toda nossa formação colonial, reunindo-nos
contra calvinistas franceses, contra os reformados holandeses, contra os
protestantes ingleses. Daí ser tão difícil, (...), separar o brasileiro do católico:
o catolicismo foi realmente o cimento da nossa unidade.” (p.91-92).
A colônia brasileira passa então a ser regionalista, cada qual se adaptando
às características locais, porém mantendo-se a tendência à uniformização. O
antagonismo se manifestaria de outra forma, conforme observa Freyre:
“O antagonismo econômico se esboçaria mais tarde entre os homens
de maior capital, que podiam suportar os custos da agricultura da cana e da
indústria do açúcar, e os menos favorecidos de recursos, obrigados a se
espalhar pelos sertões em busca de escravos – espécie de capital vivo – ou
a ficarem por lá, como criadores de gado. Antagonismo vasto que a terra
pôde tolerar sem quebra do equilíbrio econômico. Dele resultaria, entretanto
o Brasil antiescravocrata ou indiferente aos interesses da escravidão
representados pelo Ceará em particular, e de modo geral pelo sertanejo ou
vaqueiro.” (p.93).
As diferenças econômicas regionais se apresentam com o deslocamento do
cultivo da cana-de-açucar para a exploração de minas na capitânia de Minas Gerais
e cultivo cafeeiro em São Paulo, mantendo-se o primeiro no nordeste. Ao nordeste
coube maior e intensa exploração da mão-de-obra escrava, argumenta Freyre, o
que resultou “em profunda diferença de cultura regional”.
De modo geral, argumenta Freyre:
“Na formação da nossa sociedade, o mau regime alimentar decorrente
da monocultura, por um lado, e por outro da inadaptação ao clima, agiu
sobre o desenvolvimento físico e sobre a eficiência econômica do brasileiro
no mesmo mau sentido do clima deprimente e solo quimicamente pobre. A
mesma economia latifundiária e escravocrata que tornou possível o
desenvolvimento econômico do Brasil, sua relativa estabilidade em contraste
com as turbulências nos países vizinhos, envenenou-o e perverteu-o nas
suas fontes de nutrição.” (p. 96).
Freyre desmistifica de maneira incisiva o país da narrativa de Capistrano de
Abreu:
“País de Cocagne coisa nenhuma: terra de alimentação incerta e vida
difícil é que foi o Brasil dos três séculos coloniais. A sombra da monocultura
esterilizando tudo. Os grandes senhores rurais sempre endividados. As
saúvas, as enchentes, as secas dificultando ao grosso da população o
suprimento de víveres.” (p. 101).
Sob essas condições Freyre infere:
“Não só na Bahia, em Pernambuco e no Maranhão como em Sergipe
del-Rei e no Rio de Janeiro verificou-se com maior ou menor intensidade,
através do período colonial, o fenômeno, tão perturbador da eugenia
brasileira, da escassez de víveres frescos, que animais quer vegetais.”
(p.103).
A exceção Freyre apresenta São Paulo, atribuindo-lhe favoravelmente
condições geológicas e meteorológicas que contribuem para o desenvolvimento
agrícola generalizado, inclusive do trigo, bem como provável superioridade química
do solo, o que propiciam maior enriquecimento na qualidade alimentar. Além
desses fatores o paulista diferencia-se por não ser gente dada ao ruralismo, e sim
“semi-ruralistas e gregária”; ainda, por não se aterem `monocultura latifundiária,
prevalecendo entre eles a atividade tanto agrária quanto pastoril.
Precisamente, na formação nutricional do brasileiro, a melhor influência
Freyre atribui ao africano:
Quanto à mistura de raças, Freyre fala da mistura das três raças, do branco,
do índio e do negro:
“só a partir do século XVI (...) pode considerar-se formada, (...), ‘a primeira
geração de mamelucos’; os mestiços de portugueses com índios, com
definido valor demogênico e social.” (p. 162).
No que diz respeito à cultura, Freyre da ênfase aos traços das tribos do
Nordeste do Brasil, por considerar muitos deles extensivos a quase todo o Brasil,
observando, porém, a sua não generalização por existirem singularidades em
outras regiões. Destaca a observação minuciosa de Whiffen que sintetiza as
culturas indígenas com base na cultura das tribos do Nordeste do Brasil, assim
descrita:
“(...) esse de variar marido de mulher e mulher de marido, com o qual não
podia transigir, nem transigia no Brasil , a moral católica (...). (...) o
desregramento do conquistador europeu veio encontrar-se em nossas praias
com a sensualidade (...) da índia (...)” (p.168-9).
“carimã desfeita na água para meninos que têm lombriga ou para indivíduo
tocado por peçonha (...); milho cozido para doentes de boubas; sumo de caju
pela manhã, em jejum, para ‘conservação do estômago’, higiene da boca
(...); olho de embaíba para curar feridas e chagas velhas; emplastros de
almécega para ‘soldar carne quebrada’; petume para mal do sesso e, sorvido
o seu fumo por um canudo de palha, aceso na ponta (...) excelente para
‘todo homem que se toma de vinho’.” (p. 197).
“(...) o Brasil é dos países americanos onde mais se tem salvo da cultura e
dos valores nativos. O imperialismo português (...) se desde o primeiro
contato com a cultura indígena feriu-a de morte, não foi para abatê-la de
repente, com a mesma fúria dos ingleses na América do Norte. Deu-lhe
tempo de perpetuar-se em várias sobrevivências úteis.” (p. 231).
Neste capítulo Freyre irá discorrer sobre seu estudo, de forma mais profunda
e esmiuçada, buscando delinear a figura do colonizador português, já tratada no
capítulo I. Descreve o perfil do colonizador português, usando de parâmetro as
figuras dos espanhóis e ingleses, estes sim manifestamente hegemônicos em
detrimento à postura exagerada e parasitária do primeiro. Porém, apesar dessa
crítica, e da sua postura frouxa e aventureira, de quem valorizava mais o título de
doutor ao de imperador, o português conseguiu imprimir contornos de eficiência no
imperialismo colonizador. O Autor usa de uma linguagem rebuscada e até mesmo
literária para narrar o perfil do português e a sua empreitada colonizadora.
“No Brasil, a catedral ou a igreja mais poderosa que o próprio rei seria
substituída pela casa-grande do engenho. Nossa formação social, tanto
quanto a portuguesa, fez-se pela solidariedade de ideal ou fé religiosa, que
nos supriu a lassidão de nexo político ou de mística ou consciência de raça.”
(p. 271)
Destaca Freyre:
Ainda:
Freyre pontua que com relação a Portugal, que sua formação nacional fora
toda agrária, depois modificada pela atividade comercial dos judeus e pela política
imperialista dos reis. Assim:
Observa que:
Freyre dirige seu olhar para os africanos vindos para o Brasil do início do
século XVI até meados do XIX, considerando a preocupação com o grau e o
momento em que as culturas se comunicaram, levando em conta que:
“Os escravos vindos das áreas de cultura negra mais adiantada foram
um elemento ativo, criador, e quase que se pode acrescentar nobre na
colonização do Brasil; degradados apenas pela sua condição de escravos.
Longe de terem sido apenas animais de tração e operários da enxada, a
serviço da agricultura, desempenharam uma função civilizadora. Foram a
mão direita da formação agrária brasileira, os índios, e sob certo ponto de
vista, os portugueses, a mão esquerda.” (p. 390).
Argumenta, então:
“Nos engenhos, tanto nas plantações como dentro de casa, nos tanques de
bater roupa, nas cozinhas, lavando roupa, enxugando prato, fazendo doce,
pilando café; nas cidades, carregando sacos de açúcar, pianos, sofás de
jacarandá de ioiô brancos – os negros trabalharam sempre cantando: os
seus cantos de trabalho, tanto quanto os de xangô, os de festas, os de ninar
menino pequeno, encheram de alegria africana a vida brasileira.” (p. 551)