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A CRIAÇÃO CULTURAL DAS IDENTIDADES

NACIONAIS NA EUROPA
Anne-Marie Thiesse

RESUMO
Aborda a concepção moderna da nação como resultado da
junção de um princípio político - universal e abstrato - e uma
determinação cultural - singular e concreta -, e a elaboração
do modelo de construção das identidades nacionais, no século
XIX. Destaca a dificuldade de considerar novos fundamentos
para a organização política sem ter por base uma comunidade
cultural e, nesse sentido, a relação entre o político e o cultural
permanece como um dos pontos cruciais da reflexão sobre o
nacional, inclusive na perspectiva de sua superação no global.
Palavras-chave: nação – política - cultura
ABSTRACT
The origins of the modern idea of nation and national identity
in the 19th century reveal the conjunction of a political
principle – universal and abstract – and a cultural
determination – singular and concret. In the absence of a
cultural community difficulties will arise to consider new
fundaments for the political organization. In this sense, the
relationships between the political and cultural remain as one
of the crucial aspects in the analysis of the national sphere,
even in the perspective of its suppression by the global.
Key words: nation – politics - culture

As pesquisas sobre a questão nacional multiplicaram-se de maneira considerável


nos últimos anos, principalmente devido aos questionamentos levantados pela
globalização e por algo que se manifesta como uma crise do Estado-Nação. Porém, os
estudos recentes sobre o tema não são privilégio dos cientistas políticos ou dos
historiadores da política. Eles destacam-se mais comumente de um universo de estudos
transdisciplinares e mobilizam em grande medida as ciências da cultura. Isto se deve à
dupla natureza da nação, ao mesmo tempo, política e cultural.

De acordo com um lugar comum intelectual, criado ao final do século XIX,


existiriam duas concepções antagônicas de nação. A concepção “política”, dita francesa,
teria saído da Revolução e faria da pertença à nação a expressão de uma escolha
racional e contratual de adesão a uma comunidade. A concepção “orgânica”, qualificada
como alemã e vinculada ao romantismo, determinaria a pertença à nação por critérios
étnicos e culturais. Tal oposição é enganosa, pois a nação, em sua concepção moderna, é
definida concomitantemente a partir dos espaços da cultura e da política. A idéia de
nação, no sentido que damos atualmente ao termo, saiu da grande revolução ideológica
iniciada ao final do século XVIII, a qual transferiu a legitimidade da soberania para o

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povo e rechaçou a divisão da sociedade em estamentos distintos. A Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, proclamada no início da Revolução francesa (26 de
agosto de 1789) enuncia de forma efetiva esta definição política da nação:

“O princípio de toda soberania origina-se essencialmente na nação. Nenhum grupo ou


indivíduo pode exercer uma autoridade que não proceda expressamente dela.” (Artigo
3º da Declaração). “Os homens nascem e morrem livres e iguais em direitos. As
distinções sociais somente podem ser baseadas na utilidade comum.” (Artigo 1º da
Declaração).

Essa definição revolucionária da nação opõe-se claramente aos princípios


fundamentais do Antigo Regime: monarquia de direito divino – ou de conquista – e
sociedade de estamentos com direitos e deveres distintos. Porém, ela é enunciada como
um universal abstrato e impede, de maneira decisiva, a definição dos critérios
constituintes de uma nação determinada. É no domínio cultural, então, que serão
estabelecidas as bases das diversas nações e os critérios de distinção entre as nações
francesa, alemã, espanhola, italiana, húngara etc. A concepção moderna da nação
resulta, portanto, do emparelhamento entre um princípio político – universal e abstrato –
e uma determinação cultural – singularizante e concreta.

A nação – em conformidade com a etimologia do termo - é pensada como uma


comunidade de nascimento, constituída por indivíduos que partilham ancestrais comuns
e uma mesma cultura, patrimônio coletivo transmitido ao longo dos séculos pela
tradição. Mas tal definição cultural da nação, em fins do século XVIII, não é menos
revolucionária que a definição política. De maneira totalmente contraditória em relação
à realidade cultural da Europa das Luzes, ela postula a existência de culturas comuns a
indivíduos cujos estatutos sociais diferem por completo. Como sublinhou Ernst
Gellner 1 , a heterogeneidade cultural era a regra nos impérios, reinos e principados da
era pré-nacional. A cultura das elites, freqüentemente transnacional, diferia de maneira
radical das culturas populares, plenas de particularismos de toda espécie. Quase tudo, no
século XVIII, separava um fidalgo de Frankfurt e um camponês da Bavária, um burguês
de Milão e um pastor siciliano, um aristocrata de Versalhes e um pescador da Bretanha.
Se as identidades nacionais alemã, italiana ou francesa etc. não deixam atualmente
margem à dúvida, é porque, entrementes, foi realizado um trabalho muito grande de
criação e de difusão das culturas formadoras de identidades nacionais. Os artistas,

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intelectuais e escritores participaram, de maneira patriótica, na elaboração dos
patrimônios culturais nacionais cujo conhecimento e culto foram difundidos de forma
progressiva entre a população.

É notável que tais patrimônios culturais nacionais apareçam como variações de


um único modelo. Todas as identidades nacionais são distintas, mas manifestam-se
através das mesmas categorias. Qualquer nação conhecida possui, efetivamente,
ancestrais fundadores, uma história multissecular e contínua estabelecendo a ligação
entre as origens e o presente, uma língua, heróis, monumentos culturais, monumentos
históricos, lugares da memória, tradições populares, paisagens emblemáticas. A escola
elementar ensina a composição deste patrimônio coletivo, do qual fazemos, com
freqüência, um uso banalizado. O primeiro capítulo de um guia de viagens apresentando
um país retoma de maneira fiel este modelo descritivo de uma nação. O patrimônio
cultural serve também como base à iconografia do dinheiro das diferentes nações e às
celebrações festivas da nação.

Para utilizar a expressão provocativa do sociólogo sueco Orvar Löfgren 2 ,


podemos falar de um “check-list identitário” para essas “comunidades imaginadas”
(Anderson), 3 que são as nações modernas. Esta lista tem um valor prescritivo: as nações
constituídas recentemente e, mais ainda, os grupos populacionais que aspiram ao
reconhecimento como nações, manifestam de maneira ostensiva ser dotados de todos os
elementos de uma identidade nacional semelhante. Atualmente, podemos vê-lo, por
exemplo, nos novos Estados nascidos do esfacelamento das extintas União Soviética ou
Iugoslávia. Até a nação da Padânia (portanto, o território correspondente ao norte da
Itália) é, de acordo com seus militantes, provida de todos os elementos dessa check-list
que presumidamente justificam sua existência e seu direito à autonomia, embora a tal
Padânia, cuja existência foi proclamada a partir de 1995 por Umberto Bossi e o
movimento da Liga Norte, não tenha outra justificativa que o desejo de algumas
camadas sociais recentemente enriquecidas de se livrar da solidariedade fiscal com o sul
da Itália, claramente mais pobre.

1
Cf.: GELLNER, Ernst. Nations et Nationalismes. Paris: Payot, 1989 (ed. original: Oxford, 1983).
2
Ver: LÖFGREN, Orvar. The Nationalization of Culture. In? National Cultere as Process Ethnologica
Europea XIX, 1, 1989.
3
Ver: ANDERSON, Benedict. Imagined Communauties. London: Verso, 1983.

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Foi no século XIX que se elaborou, em sua essência, o modelo transnacional de
construção de identidades nacionais, a partir da recomposição e reorganização dos
elementos culturais pré-existentes e de seu enriquecimento através de novas criações. E,
efetivamente, foi em uma escala transnacional que este trabalho gigantesco se realizou,
por uma série de intercâmbios, observações cruzadas, transferências de idéias e de
conhecimentos entre os vários “edificadores” de cultura nacional.

A formação das línguas nacionais

Atualmente, os franceses falam francês, os alemães, alemão, os suecos, sueco, os


poloneses, polonês etc. Parece-nos natural que toda nação identifique-se à uma língua
que lhe é, geralmente, específica. Entretanto, a paisagem lingüística da Europa das
Luzes não se assemelhava em nada à nossa, na qual as fronteiras nacionais coincidem,
em grande parte, com os limites lingüísticos. Língua da corte, língua do culto, língua do
ensino ou da administração poderiam, em um mesmo território, ser diferentes e conviver
com diversos dialetos populares. Nos Estados protestantes alemães, a língua do ensino
religioso e primário era o alemão, enquanto o ensino secundário concedia um espaço
maior ao latim e a língua da corte e de expressão cultural era o francês; a Dieta da
Hungria, ainda no século XVIII, deliberava em latim. A monarquia francesa, embora
tenha imposto precocemente o uso do francês nos atos administrativos e criado uma
Academia encarregada de zelar pela pureza e pela propagação da “língua do rei”, não
julgou útil fazê-la ser empregada na totalidade de seus assuntos.

Uma língua nacional, em contrapartida, tem como função assegurar a totalidade


da comunicação no interior da nação: quaisquer que sejam suas origens geográfica e
social, todos os seus membros devem compreendê-la e utilizá-la, em todos os seus usos.
Ela deve permitir a expressão de quaisquer idéias, de quaisquer realidades, das mais
antigas às mais modernas, das mais abstratas às mais concretas. Nela, também, deve a
nação encarnar-se e celebrizar-se. As línguas nacionais atuais nasceram de um trabalho
filológico que, em certos casos, foi considerável e que, ademais, foi conduzido segundo
procedimentos comuns, elaborados pelos contatos entre eruditos. Os irmãos Grimm,
particularmente, exerceram um importante papel na constituição, por toda a Europa, de
um conjunto de referências eruditas que permitiram articular a codificação da língua, o
recolhimento de obras da literatura popular e a constituição do patrimônio cultural
nacional. O trabalho filológico não se limitou à elaboração de gramáticas e dicionários:
freqüentemente, também, foi necessário realizar operações intensas buscando promover

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o uso da nova língua. O “despertar nacional” na maioria dos países eslavos, ou na
Finlândia, foi ligado, dessa maneira, a uma enorme empreitada de reconstrução
lingüística, de produção de obras literárias na nova língua e de fundação de associações
tendo por objetivo financiar e sustentar a impressão de livros e periódicos com o
objetivo de criar um público. Saraus literários e peças de teatro também exerceram,
freqüentemente, um papel importante na elaboração da versão oral da nova língua. A
difusão, no conjunto da população, entretanto, efetuou-se apenas lentamente, pela
instalação de um sistema de educação nacional, pela migração do campo rumo às
cidades e pelos meios de comunicação de massa.

Histórias nacionais

No alvorecer do século XIX, as nações ainda não tinham história. Porquanto a


historiografia de uma nação se distingue, no fundo e na forma, da de uma monarquia,
aquela deve evidenciar a continuidade e a unidade da nação como ser coletivo ao longo
dos séculos, malgrado todas as opressões, todos os revezes, todas as traições. E é o
romance, um gênero literário tão jovem quanto a idéia de nação, quem vai,
concomitantemente, servir de modelo narrativo para as primeiras elaborações eruditas
da escrita nacional e de vetor de difusão de uma visão nova do passado. Os romances
publicados desde 1814 por Walter Scott arrebatam uma jovem geração de letrados, que
neles encontram a inspiração para uma história que é, ao mesmo tempo, ressurreição e
explicação. As primeiras histórias nacionais, freqüentemente de inspiração liberal, e os
romances históricos dão forma a esta nova representação, constituída de uma narrativa
contínua e de cenas isoladas, as quais, ilustrando exemplarmente a alma da nação e seu
combate contra a tirania, resgatam as figuras emblemáticas de heróis e anti-heróis,
fornecendo referências para as lutas contemporâneas. O considerável crescimento da
imprensa permitirá um difusão cada vez maior do passado nacional assim construído,
desenvolvida também pelo teatro e, posteriormente, pela ópera. Paralelamente, se
completa a formação de uma iconografia das grandes cenas do passado nacional, que
vai da pintura histórica às gravuras e até mesmo à decoração de objetos cotidianos,
como a louça. É completamente notável que essas iconografias nacionais sejam bastante
similares entre si, não apenas do ponto de vista estilístico, mas também temático. Uma
exposição realizada, na primavera de 1998, no Deutsches historisches Museum de
Berlim, sob o título de Mythen der Nationen, ein europäisches Panorama, o evidenciou
através da apresentação conjunta da iconografia histórica estabelecida ao longo do

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século XIX em 17 nações européias. Como indicaram nesta ocasião os historiadores
Etienne François e Hagen Schulze:

"Esses mitos nacionais parecem-nos, de nação a nação, extraordinariamente


semelhantes, se não intercambiáveis. As diferenças de um país a outro, que soariam
intransponíveis aos contemporâneos, parecem-nos atualmente não mais que nuances,
diferenças de grau, variações no interior de uma estrutura perfeitamente coerente”. 4

Não é apenas a concepção da nação que é comum a toda a Europa, mas, também,
sua representação. De fato, os contatos entre eruditos, escritores e artistas engajados na
construção cultural das identidades nacionais, bem como a transferência de idéias e
conhecimentos, são constantes. A observação crítica das iniciativas realizadas aqui ou
ali, a emulação e imitação dos êxitos estão no centro da produção da identidade. Os
intelectuais franceses, aliás, incessantemente lamentam que sua nação esteja atrasada
neste campo; enumerando os avanços ingleses, alemães, russos ou espanhóis,
consideram lamentável que sua nação não ocupe neste campo a primeira posição e
lançam insistentes apelos aos poderes públicos. Entretanto, é principalmente a seus
concidadãos (em especial, certamente, quando a construção da nação precede seu
reconhecimento como Estado) que os militantes endereçam suas exortações.

O estabelecimento de histórias nacionais permite dar um novo impulso a um


movimento nascido na França com a Revolução e também com as guerras napoleônicas:
a proteção dos monumentos nacionais. A emergência da idéia de nação engendra uma
nova concepção: a do patrimônio material coletivo.5 Atentar contra esta herança, é,
como indica perfeitamente o termo "vandalismo", inventado pelo Abade Grégoire, ser
um bárbaro, estranho à nação. Mesmo a propriedade individual, embora seja legítima,
deve, em relação a esta herança, submeter-se ao interesse nacional. Além disso, é
necessário determinar a composição desse patrimônio nacional e fazê-lo conhecer;
realiza-se, para tanto, a tarefa de ligar as edificações à história nacional e investi-las de
um valor específico. Dessa maneira, a série das Voyages pittoresques et romantiques

4
FRANÇOIS, Etienne & SCHULZE, Hagen. Das emotionale Fundament der Nationen. Dans Mythen der
Nationen, ein eurpäisches Panorama. Catálogo da exposição de mesmo nome, do Deutsches Historisches
Museum, 1998, p. 20.
5
Cf.: POULOT, Dominique. Musée, Nation, Patrimoine, 1789-1815. Paris: NRF-Gallimard, 1997.

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dans l'ancienne France, 6 ricamente ilustradas com litografias, produz um vasto resumo
de monumentos históricos e indica, também, quais são os conhecimentos e o olhar a
serem dirigidos a estas edificações. E, em 1831, aparece em Paris um romance histórico
cuja heroína epônima é uma catedral. Nele, o autor ministra um curso de arquitetura e
história nacionais, antes de lançar um apelo à ação e à pedagogia patrimoniais:
“Conservemos os monumentos nacionais. Inspiremos na nação, se for possível, o amor
à arquitetura nacional”. É interessante notar que, no mesmo ano, o erudito Sulpiz
Boisserée tenha publicado seu Domwerk à glória da catedral de Colônia e tenha sido
constituída uma Associação para a conclusão da catedral renana, tornada metáfora da
nação alemã. Efetivamente, em todas as nações européias começa então a formação de
um suntuoso conjunto de monumentos históricos, patriótica e abundantemente
restaurados no século XIX, para tornarem-se mais autênticos, isto é, mais próximos de
suas representações. Por fim, a progressiva definição da arquitetura nacional acaba
fornecendo, também, as referências para a realização de novas edificações.

A natureza nacional

Hoje em dia é bem simples evocar uma nação através de uma paisagem: a
publicidade, os cartazes turísticos o fazem regularmente. 7 Se a leitura é geralmente
imediata e sem ambigüidade, é porque uma codificação da natureza em termos
nacionais foi traçada no último século. O trabalho de elaboração da paisagem nacional é
obra coletiva, conduzida igualmente por poetas e romancistas como por pintores.
Estabelecem, entre os recursos naturais e segundo uma estética coerente, as visões
plenas de sentido e portadoras de sentimento. Mas, para representar a nação, como
escolher entre montanha e planície, mar, lago ou rio, floresta e charneca, sabendo que
todos os países possuem uma gama tão extensa de possibilidades? Com freqüência é só
um princípio de diferenciação que está colocado. Para marcar uma tomada de distância
radical com a Áustria e seus cumes alpinos, pintores e escritores húngaros exaltam a
paisagem, a priori ingrata, da Grande Planície (a Puszta). A Suíça, em contrapartida,
cujo território é pequeno em comparação ao de seus extensos vizinhos, é ilustrada por

6
TAYLOR, Isidore; NODIER, Charles & CAILLEUX, Alphonse de. Voyages pittoresques et
romantiques dans l’ancienne France. Paris: Didot, 1820-1878, 21 t. Pintores como Géricault, Vernet,
Ingres e Daguerre, ou cenográfos foram solicitados para a iconografia dos monumentos.
7
A determinação de uma paisagem como representação de uma nação explica porque o Ministério do
Patrimônio Cultural italiano tenha, há alguns anos, protestado contra a utilização de paisagens da Toscana
numa campanha publicitária de automóveis de marca sueca.

19
cumes prodigiosos e cintilantes. A paisagem nacional norueguesa assume a forma do
fiorde de neve imaculada, cuja brancura e verticalidade contrastam com as verdes
pastagens do antigo dominador dinamarquês e as não menos verdes florestas do novo
dominador sueco. Uma paisagem nacional freqüentemente é associada a uma estação
(os países mediterrâneos são pouco representados no inverno; os do Norte são pintados
principalmente no outono ou inverno). A determinação de uma vegetação nacional
precisa a estereotipa (pinheiros finlandeses, eucaliptos russos, carvalhos alemães,
ciprestes italianos). A paisagem nacional francesa é mais complexa, porquanto aparece
essencialmente sob a forma de um conjunto de paisagens regionais bastante diversas.
Verdadeiramente a França é um grande berço de formação de pintores europeus e
algumas de suas paisagens (floresta de Fontainebleau, costa da Bretanha e, mais tarde, a
costa mediterrânea) serviram de matrizes para a constituição das paisagens nacionais de
outros países. Mas é também no decorrer do século XIX que se põe em prática uma
concepção da especificidade francesa fundada sobre a variedade de recursos naturais do
país. A representação da França como síntese excepcional da diversidade do continente,
resumo ideal da Europa, torna-se, sob a Terceira República, um topos universitário e
político. Aliás, ela tem um corolário: a França, aliança harmoniosa de contrastes é, por
excelência, terreno da moderação. O que, em matéria paisagística, exprime-se por um
vale ligeiramente ondulante, uma aldeia à distância, inteiramente sob um céu sereno
mas sem claridade esmagadora. Será esta a paisagem escolhida para o célebre cartaz do
candidato socialista François Miterrand na eleição presidencial de 1981, intitulado “A
Força Tranqüila”.

Este gênero de pintura paralelamente efetiva uma outra determinação da


representação do nacional acentuando, sob um aspecto eminentemente pitoresco,
embora recente, da iconografia: os costumes “tradicionais” dos diferentes países. Além
disso, trata-se de uma modificação da cartografia que estabelece uma codificação nas
vestes não mais social, senão nacional. As “séries” e “coleções” de gravuras sobre os
costumes camponeses se multiplicam a partir da primeira década do século XIX. A
influência da ilustração histórica depois da mise en scène teatral contribui para acentuar
alguns aspectos espetaculares: especialmente a altura ou largura das tocas femininas. Os
ditos costumes camponeses são totalmente impróprios para trabalhos rústicos: a pintura
realista, além disso, continua a representar os trabalhadores da terra em suas vestimentas
singelas e sem originalidade. Mas sua finalidade é mais emblemática do que funcional e

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social. A partir das coleções de costumes pitorescos, alfaiates e costureiras podem
elaborar modelos para uma rica clientela. Entre as nações em construção, o uso desse
tipo de costume “nacional” pode fazer figura de manifesto político, na ocasião, por
exemplo, de “bailes patrióticos”, que são organizados na Europa central e oriental. A
burguesia urbana e até mesmo o campesinato abastado, o adotam progressivamente,
principalmente num contexto festivo. O mais original desses costumes nacionais, o kilt
escocês, foi objeto de uma intensa promoção para a qual Walter Scott contribuiu: 8 a
própria família real inglesa acabou por usá-lo, nas ocasiões de sua estadia em
Balmoral. 9

As coleções de costumes “tradicionais” formam a base das primeiras exposições


etnográficas, tal qual apareceram nas exposições universais. Estes grandes encontros,
que se multiplicam na segunda metade do século XIX, 10 não são unicamente uma
ocasião de mostrar aos compradores e ao grande público as inovações em matéria
tecnológica e os produtos industriais. São também exibições identitárias onde cada
nação valoriza seu patrimônio ancestral. O arcaísmo (de concepção recente) está tão
presente nelas quanto a própria modernidade. Na Exposição Universal realizada em
Paris em 1878, a seção sueca apresentou dezenas de manequins trajados, nas
reconstituições dos interiores aldeães, decorados com pinturas da paisagem nacional
penduradas nas paredes. Obtém enorme sucesso, e a museologia etnográfica européia
das décadas seguintes nela se vai inspirar. O criador desta seção sueca é um filólogo,
Artur Hazelius que, em 1872, abriu sua coleção de costumes e objetos tradicionais ao
público, com um objetivo explícito: “utilizar os objetos do patrimônio para despertar e
estimular os sentimentos patrióticos do visitante”. O Nordiska Museet serve de modelo
para o Museu Nacional de Etnografia dinamarquês, aberto em 1885 por Bernard Olsen,
cenógrafo, ilustrador e diretor artístico de Tívoli à Copenhague. A Sala da França do
Museu do Trocadero, fartamente provida de vestimentas bretãs, foi inaugurada em
1884, o Museu berlinense de costumes alemães e utensílios domésticos populares, em

8
Sobre a criação do kilt e a codificação dos tártaros, ver: TREVOR-ROPER, Hugh. The Invention of
Tradition: The Highland Tradition of Scotland. In: HOBSBAWM, Eric J. & RANGER, Terence (dir). The
Invention of Tradition. Cambridge: Cambrigde University Press, 1983 (já traduzido e publicado no Brasil
pela Editora Paz e Terra).
9
É em 1842 que a rainha Vitória, descendente da dinastia Hannover, e seu marido, o príncipe Albert,
nascido Saxe-Cobourg-Gotha, se apoderam do domínio de Balmoral. O casal real, que insiste em que a
decoração do castelo neo-gótico seja em estilo escocês, igualmente toma lições de dança escocesa.
10
A primeira Exposição Internacional foi inaugurada em Londres no ano de 1851.

21
1889. As capitais européias são rapidamente dotadas de museus nacionais de etnografia.
Oslo (1894) e Praga (1895) são igualmente deles dotadas antes de qualquer
reconhecimento estatal das nações norueguesa e tchecoslovaca. Nesse mesmo tempo
são fundadas as sociedades nacionais de etnografia, com suas revistas que publicam
instruções de coleta e explicam ao público cultivado porque e como se interessar pela
cultura popular numa perspectiva patriótica.

No momento em que termina o século XIX, a maioria das nações européias são
dotadas de identidades e de culturas bem estabelecidas. Os grandes ancestrais são
identificados, a língua nacional estabelecida, a história nacional escrita e ilustrada, a
paisagem nacional descrita e pintada. As grandes músicas nacionais, que em certos
casos se apresentam como ilustrações sinfônicas da história e da paisagem nacional
foram compostas (por exemplo, o conjunto Ma Vlat – Meu País – de Smetana ou
Finlandia de Sibelius). Os grandes monumentos históricos já estão inventariados e
restaurados, as literaturas nacionais em plena atividade e providas de uma história. O
folclore é coletado e museografado. As produções simbólicas e materiais das épocas
pré-nacionais foram alvo de uma nacionalização retroativa. A representação identitária
nacional começa a entrar na era da cultura de massa. Sobretudo, os processos de
constituição de uma identidade nacional são daí em diante bem constituídos, o que
permite às nações emergentes suprir rapidamente seu atraso. E o modelo europeu de
identidades nacionais começa a ser exportado para fora da Europa.

A analogia entre as diferentes identidades nacionais, sua similaridade estrutural


nos pode parecer paradoxal, porque contraria a auto-representação das culturas
nacionais como herdeiras de um passado longínquo e específico. Ela se harmoniza, em
contrapartida, com a percepção das culturais nacionais como construção da
modernidade. Se o particularismo que delimitou em termos culturais as nações
concretas se articula com o universalismo da definição política da nação, é justamente
porque ele é “estandartizado”. “Estandartização” pouco surpreendente na medida em
que ela se aplica à forma política que se desenvolveu na era das revoluções industriais e
da expansão do capitalismo. Essa junção do universal e do particular sem dúvida explica
a generalização do princípio nacional que, no século XX, terminou por se estender sobre
o conjunto do planeta. Pela primeira vez na história da humanidade, uma forma política
precisa se transforma em norma. A nação atualmente é considerada como a única base
legítima de um Estado. A sociedade que agrupa o conjunto dos Estados do planeta se

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chama Organização das Nações Unidas e os movimentos de descolonização do segundo
pós-guerra tiveram que se apresentar como Frentes de Libertação Nacional. A
dificuldade de constituição de culturas nacionais comuns nos Estados saídos da
descolonização resulta aliás, provavelmente, menos da heterogeneidade cultural inicial
das populações reunidas (heterogeneidade muito presente na Europa pré-nacional, e
ainda mais entre as nações de imigração como o Brasil) que de um contexto geopolítico
e limitando fortemente a realização de um projeto político nacional democrático.

Nao é por caso que os questionamentos atuais sobre a forma do Estado-nação,


como um quadro adequado da soberania e da cidadania, coincidam com a emergência
das reflexões sobre a pertinência da relação entre uma comunidade política e uma
comunidade cultural. O termo em voga de multiculturalismo implica efetivamente uma
separação entre a pertença cidadã e a identificação individual e livremente escolhida por
uma, ou até várias culturas. Mas ainda continua difícil considerar novos fundamentos,
estáveis, para uma organização política que não repouse sobre a crença numa
comunidade de cultura. Temos como prova os debates iniciados por ocasião do
alargamento e da reconfiguração da União européia. Alguns políticos ou pensadores,
como Jürgen Habermas, acreditam poder fundar a cidadania européia sobre um
“patriotismo constitucional”. Mas as instâncias européias se envolvem ativamente no
aggiornamento de uma identidade e de uma cultura européia comum, eventualmente
atenuada por invocações à unidade no respeito às diversidades, e a levar em conta as
influências extra-européias. A relação entre o político e o cultural permanece como um
dos pontos cruciais da reflexão sobre o nacional, inclusive na perspectiva de sua
superação no global.

Tradução de Sérgio A. Souza

23

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