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Gustavo Corção que não quer que o autor seja lido.
se
tante dos dois extremos. Essa maneira de in- caracteriza por um transbordamento. Em ou-
terpretar o fato da virtude ser um justo meio tras palavras, chamaremos de exagêro, pejo-
têrmo é grosseiramente defeituosa e tem con- rativamente, o acréscimot não simplesmente por
tribuído em larga medida para reforçar as cô- ser acréscimo e sim por ser uma excrescência
modas posições. da mediocridade porque ne~- que rompe o equilíbrio e que arruína O crité-
sa interpretação
cão que é correlata à da virtude. °
não cabe a idéiade,perfe,-
,indivíduo
que procurasse a perfeição na linha prolonga-
rio. Em matéria de crença, por exemplot O cri-
tério é ciquêle' que nos é dado pela revelação
divina e que é em nós recebido pela razão ilu-
da da virtude estaria arriscado a tornqr-se um minada pela fé. Admitida a verdade católica,
viciado se ultrapassasse a linha mediemo tão eu direi que crê com justeza quem adere às
cômod~ e tão apreciada pela maioria dos ho- verdades reveladas por Deus e ensinadas pela
mens. Igreja, nem mais nem menos. Se recusa um dos
artigos peca por deficiência, por incredulida-
Ir à missa aos domingos, já que ossim o
de, mas convém notar cuidadosamente que
preceitua a Igreja, será bom. Mas ir à missa
não é pelo fato de crer em menos um artigo
todos os dias será um exagêro, e portanto um
que peca, e sim pelo fato de pôr em dúvida o
comêço de vício. critério fundamental que é a revelação divina
Convém esclarecer melhor o sen.tido em e a infalibilidade da Igreja. Mas também peca
que a virtude é um justo meio têrmo para que, se por sua conta acrescentar, como artigo de
com êsse instrumento aprimorado, não engrosse- fé, o temor no saleiro entornado; e peca pelo
mos nós a propaganda da mediocridade que mesmo motivo, ou seja, porque viciou, com
mata nos corações dos homens o gôsto pela êsse acréscimo, o critério fundamental.
perfeição. Há porém uma linha em que se pode e
A virtude é um equilíbrio, que pode ser se deve crescer sem que essa extensão seja
rompido por um desv~o num e n?utro:~entido, um vício. Ao contrório será uma perfeição. E
mas o que a caracteriza como virtude e a re- a linha que se oriento fielmente, inflexlvelmen-'
tidão, a conformidade com o que é certo, a te pelo critério da reveloção divinat mas vai
t
vertical que aponta para o zênite de uma ver- mais longe em fõrçot em profundidadet em con"
sequencia. o santo, por exemplo, fica rigoro- dia, e que a virtude consiste no baixo meio tê r-
samente adstrito àquele depósito de fé a que mo das coisas e não no elevado equilíbrio da
nada se pode tirar e nada se pode acrescen- razão. Sociólogos e psicólogos de renome, se-
tar, mas constrói mais alto, por êsse mesmo guindo consciente ou inconscientemente as
prumo comum, a tôrre de sua alma. idéias de Durkheim expressa em "Regles de
Não é mais religioso quem crê em mais Ia Methode Sociologique", alimentam êsse
coisas; mas é mais religioso quem crê melhor côro já volumoso do hino à mediocridade e,
nas coisas críveis. valendo-se de estatísticas, estabelecem a equi-
paração entre o conceito de normalidade e de
E nesse sentido que a virtude é um meio média.
têrmo, sendo um equilíbrio entre duas tendên-
cias viciadas mas equilíbrio de uma vertical Voltando ao nosso tema, depois dessa di-
que pode e deve crescer na sua justa direção. gressão provocada pela existência muito difun-
De outro modo, definida a virtude pelo meio dida dêsse êrro, diremos que à virtude do pa-
têrmo medido no nível das coisas sôbre as triotismo se opõem dois vícios, um por exces-
quais se aplica, haveria oposição entre o con- so, o nacionalismo, outro por carência, o in-
ceito de virtude e o conceito de perfeição, que ternacionalismo. Mas teremos todo o cuidado
se traduziria concretamente por um universal de não dizer, e sobretudo de não pensar que
apêlo à mediocridade. o nacionalismo é um exagêro de patriotismo.
Ninguém se arrisca a se tornar nacionalista
E é nesse sentido que a virtude se opõe por se tornar mais patriota. Mas qualquer um
ao vício como a vertical, a retidão do crité- se arrisca a se tornar nacionalista se deixar
rio, se opõe ao desvio. Nós diremos pois as- entortar-se o critério justo do patriotismo.
sim: o vício da superstição se opõe à virtude
da religião por excesso. Mas não diremos: a
superstição é excesso de religião. Porque nes-
ta última fórmula a idéia principal de oposição
fica eclipsada deixando crer que é na mesma
linha, na mesma escala prolongada que a virtu-
de se transforma em vício.
E curioso notar, entretanto, que êsse êrro é
hoje divulgadíssimo. Numerosas pessoas, não
somente contadas entre as de cultura menor,
pensam que a normalidade é sinônimo de mé-
ciddde .é bem limitada e distinta de outra ci-
dade; um país é uma realidade que tem fron-
teiras nítidas; fronteiras geográficas, lingüísti-
cas, históricas e culturais. O que porém im-
porta assinalar é que êsses limites da família,
da cidade, da nação, não podem ser barrei-
o patriotismo é uma virtude moral anexa ras morais que confiram ao grupo assim defi-
da justiça. Como tõdas as virtudes morais, tem nido o direito de procurar o bem próprio em
a universalidade que não conhece fronteiras, detrimento da justiça. Este é o ponto capital.
mas deve exercer-se concretamente no desejo e E é aqui, neste ponto, que melhor se eviden-
na promoção do bem comum de uma determi- cia a radical oposição entre o nacionalista e
nada comunidade humana definida por fron- o patriota.
teiras culturais, geográficas, lingüísticas e his- O patriota deseja a nitidez de suas fron-
tóricas. O homem procura o bem sob o duplo teiras; cultiva-a, exalta-a; mas ao mesmo tem-
ângulo do universal e do concreto. Se a idéia po, num aparente paradoxo, é capaz de com-
de justiça manda que se dê a cada um o que preender o patriotismo dos outros. Ele sabe
lhe é devido, de um modo geral, a virtude da perfeitamente que suas muralhas são porosas
justiça é inclinada ao exercício, ao particular, para o sentimento universal da justiça.
ao concreto, ao próximo. Segue-se então que
O nacionalista, ao contrário, se caracte-
o homem precisa de grupos que se escalonem
riza por um isolamento moral, e portanto imo-
em zonas concêntricas de densidade crescen-
ral. Ele deseja fronteiras refratárias, onde se
te. Em cada um dêsses grupos concêntricos -
detenham, como inúteis para aquela comuni-
nação, província, cidade, paróquia, família -
dade à parte, as lendas dos heroísmos distan-
há limites para mais intensa concretização da
tes, as histórias de homens como Kosciusko
vida moral, e em cada um dêsses grupos a
que lamentaram em polonês a servidão de sua
mesma idéia geral de justiça se manifesta de
terra natal.
um modo particular que vai mudando de as-
pedo de uma para outra dessas zonas da hu- Um patriota brasileiro, sendo realmente
manidade. O homem precisa dêsses limites e patriota, é capaz de chorar de emoção ouvin-
dessa descontinuidade, para a aplicação dos do contar histórias de patriotismo húngaro ou
mesmos princípios de justiça. chinês. Simpatiza intensamente com a dor de
Kosciusko ainda que. não saiba pronunciar o
Uma família é um todo bem definido e
esquisito :nome' d!'l sua cidade natal.
perfeitamente destacado de outra família; uma
E sabe, sendo realmente patriota, que po- meu coração de menino queria ser no meu
derá lucrar, e traduzir no coração as lágrimas Brasil como aquêles meninos da Florença e da
húngaras e o sangue polonês; e sabe que as- Lombardia.
sim, nesse exercício, pode tornar-se mais pa- Quando porém meus filhos tinham sete
triota e mais brasileiro. anos "O Coração" de D'Amicis tinha sido afas-
O nacionalista ao contrário, não achará tado das escolas. Haviam descoberto que o
graça nenhuma no heroísmo húngam ou chi- livro italiano Ihes impediria o desenvolvimen-
nês que lhe parecerá um cômico equívoco. O to da brasilidade. Haviam decretado que as
verdadeiro nacionalista, de um daqueles tipos tabuletas dos colégios fôssem traduzidas para
que há pouco enumeramos, achará esquisitís- o português - ou para a língua brasileira co-
simo e inteiramente incompreensível o amor de mo quiseram alguns. Depois mandaram distri-
um polonês pela Polônia. E nos advertirá, com buir nas escolas públicas o Sorriso do Presi-
sua ênfase peculiar, que a formação de um dente e a História do Menino de S. Boria.
Brasil forte e unido exige que suas crianças
Vejam bem a diferença, não só dos livros,
só conheçam heróis brasileiros, ainda que al-
mas dos dois espíritos.
gum dêles nunca tenha sido heróico.
Quando eu tinha sete anos minha ;mãe
I: claro que, em condições iguais, compre-
ende-se que os meninos devam conhecer me-
ensinava-me o patriotismo num livo italiano,
lhor as coisas de sua terra, da terra dos seus
"O Coração" de D'Amicis. Líamos juntos as
pais, porque é do conhecimento dêsse patri-
histórias do Escrevente Florentino e do Peque-
mônio que procede o amor do patriotismo.
no Vigia Lombardo, e muitas vêzes eu me de-
Mas pensar que o patriotismo só pode ser
tinha na leitura, com um nó na garganta, sen-
aprendido na língua do país e com fatos do
tindo, compreendendo a grandeza, a pureza,
país é tão insensato como pensar que a tem-
a beleza daquela dedicação que chegava ao
perança, a coragem e a castidade só podem
dom de si mesmo naqueles bons meninos de
ser adquiridas no vernáculo e com exemplo da
outras terras. E nesse curto instante de emo-
mais pura brasilidade; e é tão estúpido como
ção havia entre nós dois uma corrente de ge-
pretender que as virtudes domésticas do vizi-
nerosidade. A boa mãe, já ali, naquele instan-
nho sejam um mau exemplo para o desenvolvi-
te, naquele minuto de lição, começava a lon-
mento das virtudes domésticas de minha fa-
ga despedida de seu filho, incitando-o aos jus-
mília.
tos combates, como a romana Cornélia, obs-
cura Cornélia, apagada heroína; como tôdas O ponto central das distinções que esta-
as mães generosas. E eu, naquele tempo, no mos traçando é a radical incapacidade que
tem o nacionalista de opreender o teor moral
do patriotismo e sua dependência da iustiçai
e, por conseguinte, a total incapacidade de
simpatizar com o patriotismo alheio. Falta-lhe
o que Chesterton em Barbaria de Berlim tão
bem chamou senso de reciprocidade.
O nazismo foi sem dúvida a forma mais O patriotismo é uma forma de reverência
exasperada e mais extremada de nacionalis- que tem apoio na tradição. É um sentimento,
mo. Da completa falta de senso de reciproci- raro hoiet de respeito pelos antepassados. É
dade não há talvez melhor exemplo do que a um modo peculiart racional e afetivot de ver
famosa frase de Hitler diante de Varsóvia: no chão de uma terra o sinal de pés antigos.
É um modo especial de adivinhar numa paisa-
"Criminosa loucura a defesa desta cidade!"
gem os sinaist os comoventes sinais de anti-
gas mãos. É um modo sem igual de simpatizar
com dores passadas e de se alegrar com pas~
sadas alegrias. É ter uma história comum que
t
e mais densa, dentro da sociedade maior. Por clon~r as casas internacionalistas, onde entra
isso pede a natureza humana que o mundo e sal quem quer, onde todo o mundo faz o
do homem se divida em nações; que as nações ~ue lhe passa pela cabeça, e onde, em suma,
Impera tamanha tolerância que não seria im-
se dividam em províncias; que as províncias
próprio chamá-Ias casas de tolerância.
se dividam em municípios. E assim, uma suces-
siva contração, com graus de marcado descon- As nacionalistas são aquelas que mais abri-
tinuidade, se processa para que o homem en- gam uma quadrilha do que uma família. Não
contre o homem,e -nessa pequena liça, com porque sejam os seus membros ferozmente
um mundo ao redor inicie o brioso torneio da
l desunidos; antes porque são unidos ferozmen-
convivência. te. Unidos contra as outras casas.
Nesse ambiente, por mais educados que Eem ambasas hipóteses tanto se perde
sejam os hábitos, cor.spira-se contra a cidade. na família como na pátria.
Nesse reduto, nesse covil, em lugar da semen- I: de uma importância capital a compre-
teira cívica, o que se prepara é o favoritismo, ensão do estreito nexo entre os sentimentos fa-
o que se manipula é o pistolão. Nessa casa, miliares e os cívicos, e é essa compreensão
o de que se cuida é de arranjar empregos e que falta em tôdas as teorias, da direita e es-
vantagens para todos, desde que um tio ou um querda, que pretendem resolver o problema
cunhado logrem atingir uma altitude de poder da reestruturacão da sociedade sem a amiza-
que Ihes permita a distribuição privada da coi- de cívica e p~rtanto sem a casa que é a ofi-
sa pública. cina dessa amizade.
I: também postulado nosso que uma so-
ciedade é o que são suas famílias. Ora, é inú-
til disfarçar a situação em que hoje nos en-
contramos sob êsse ponto de vista. De um Io-
do vê-se a vertiginosa decomposição de nos-
sas melhores tradicões.As famílias se desman-
cham. Os casame~tos são cada vez mais efê-
meros. E as casas funcionam apenas como pla-
taforma de estação, como ponto de baldea-
cão entre as correrias do dia e as correrias da
~oite. De outro lado, entretanto, assistimos à
fossilização de nossas piores tradições. As fa-
mílias que resistem ao vento de destruição se
aglutinam com tôdas as fôrças do egoísmo, co-
mo se vivessem em terra de inimigos.
Os moralistas se inquietam com a instabi-
lidade dos casamentos e com as repetidas rei-
vindicações dos divorcistas; mas não se inquie-
tam na mesma proporção com o filhotismo e
com o pistolão. Ora, ambos os fenômenos,
cada um a seu modo, afligem a sociedade e
afligem a família. Escancarada, a casa se di-
lui; isolada da cidade, a casa se perverte.
lado, ferido, exausto, mal se distinguindo do
vencido; nas batalhas morais o vencedor sai
sempre mais forte do que entrou. Não é tro-
féu, botim, prêmio material o que aí se con-
quista, mas um nôvo vigor. Nas lutas morais,
ao contrário das físicas, quem vai resistindo e
Voltemos à nossa idéia de um mundo hu- vencendo, vai se tornando cada vez mais for-
mano formado de zonas concêntricas.· Em con- te, mais armado, mais ágil,. mais pronto. Daí
trações sucessivas chegamos à casa de famí- a imensa utilidade dêsse exercício em ambien-
lia que é (ou deve ser) o lugar onde se destila te fechado onde são múltiplas as oportunida-
a amizade cívica. O ar da amizade está ali des de lucro. E daí o terrível inconveniente de
(ou deve estar) em densidade maior e mais se armar a chamada harmonia familiar em
alta pressão. Por isso a casa se fecha. Escola, têrmos de evasão.
sala de armas onde se exercita a difícil esgri- Os moralistas de convencão referem-se
magem da justiça, a casa tem o recato neces- freqüentemente às doçuras da ~ida familiar e
sário a êsse aprendizado que não deixa de ao suave remanso do lar. I: mentira dêles.
ter o seu ridículo, como todo o aprendizado. São ufanistas da casa. Mentem como os idóla-
Por isso a casa é um segrêdo. Lá dentro, entre tras da Vitória Régia, ou como os locutores de
as quatro paredes bem opacas - contra as rádio pagos para dizer ao microfone, em sete
idéias arquitetônicas do Sr. Niemeyer - a fa- de setembro, que o país inteiro, de norte a
mília aprende e exercita, entre alegrias e afli- sul, está vibrando de ardor cívico.
ções, as regras dos atritos humanos. I: certo que a casa tem doçuras de mel;
Há muito esbarro no vaivém apertado da como é certo que tem agruras de fel. Tem tudo
vida familiar, muitos cachações, como dirá Ma- o que é do homem em mais espêssa e densa
chado de Assis - mas é nesses mesmos cho- humanidade. Às vêzes a atmosfera fica tão
ques cotidianos, e eu direi até nesse atrito con- sufocante, dentro de casa, que a rua se torna
tínuo, que cada um encontra as mais ricas um paraíso apetecido. Saímos a respirar um
oportunidades de exercer as virtudes. E quem pouco, para gozarmos o descanso das multi-
diz exercer, nessa matéria, diz adquirir. dões indiferentes, da humanidade neutra, dos
vultos que não nos cobram nada, dos rostos
A luta mora. tem uma característica que que não nos dizem respeito. E às vêzes· tem-se
vale a pena encarecer. Enquanto nas lutas fí- a impressão de uma irreparável destruição,
sicas, como nas guerras, o vencedor sai muti- de uma incompatibilidade sem remédio. Pare-
ce inútil lutar, tempo perdido insistir. E êsses
pensamentos uma vez que se instalem, vão
corroendo em nós aquelas mesmas reservas
em que deveríamos buscar a recuperação.
A fragilidade do matrimônio decorre de
uma desmedida exigência de felicidade, ou me- Mas voltemos ao nosso ponto de partida,
lhor, da aplicação dessa exigência a uma coi- à casa, à casa fechada para o exercício da
sa que não suporta tal pressão. Há uma inso- amizade. Disse que a casa é um segrêdo. De
lência nossa nessa impaciente cobrança de ven- fato o é. Ou deve ser. Deve ser uma. interio-
tura, e há sobretudo um equívoco, porque pre- ridade. Uma intimidade. Uma intimidade de
tendemos tirar da casa, do matrimônio, do afeições e uma intimidade de aflições. Um
amor humano, um infinito rendimento, quan- mundo de recato. Uma história escondida.
do é finita e sempre muito exígua a nossa pró- Mas dentro dêsse segrêdo que. abriga uma
pria contribuição. Depositamos com mesqui- família há um outro segrêdo que se escon-
nharia e queremos juros generosos, infinita~ de da família. Naquela gruta de pedra há
mente generosos. E no desejo dêsse absurdo uma concha fechada e dentro dessa concha um
balanço nós somos injustos com o próximo, e segrêdo maior, escondido na intimidade e no
injustos com Deus. Realmente, por mais esque- segrêdo da casa. Os esposos se escondem. Es-
sito que isto pareça, se alguém imagina que condem-se da casa, dentro da casa. Fecham-
a sua noiva, e mais tarde a espôsa, lhe possa se dentro do que já é fechado. Abrigam-se no
dar plena felicidade, não terá direito de quei- interior do que já é abrigado. E assim é que,
xar-se nos dias de decepções, porque foi êle, nesse último reduto, nesse último pôrto, nes-
inicialmente, o primeiro culpado de injustiça. se abrigo, nessa concha, preparam não só o
amor e a justiça, mas também o huto dessa
Só se restabelece o equilíbrio dêsse pro-
justiça e dêsse amor.
blema em que se põe num dos têrmos um de-
sejo aberto para o infinito, quando no outro Vejam, vejam senhores como o mundo do
têrmo se coloca a lembrança muito conscien- homem é feito de sucessivas e concêntricas
te, muito reverente, do depósito de sangue in- fronteiras que vão, desde aquelas que vemos
no mapa com rios e cordilheiras até a porta
infinitamente precioso que um Outro colocou à
fechada da câmara conjugal. Mas agora apre-
nossa disposição, e quando, conseqüentemen-
ciam o reverso do fenômeno: cada uma dessas
te, para êsse Outro orientamos todos os nos- muralhas é sucessivamente superada,' como
sos anseios de felicidade perfeita.
barragem de açude que se quer cheio para so estiver à janela pelas cercanias logo verá
que transborde em serviço. O dinamismo das que alguma coisa aconteceu, naquela casa,
fronteiras está voltado para fora. E agora, ve- naquele navio ancorado: porque no seu exí-
jam, vejam nessa nova direção como se ex- guo convés, em sinal de festa, tremula uma
pande o mundo do homem! carreira de fraldas ao vento - bandeiras bran-
cas de júbilo e de paz.
De fato, se é verdade que os esposos se
escondem, em compensação não há nada me-
nos escondido do que o fruto de seu segrêdo
e não há nada mais apregoado, mais publica-
do, do que a criança que nasce. Toca cem vê-
zes o telefone, êsse pequeno sino familiar do
natal dos homens. I: menino ou menina? Ex-
pedem-se cartões. Abrem-se as janelas. Como
se chama? <!uanto pesa? Com quem se pare-
ce? As vizinhas comentam; as criadas, esque-
cidas de tudo, enternecem-se, e varrem melhor,
lavam melhor, como se o filho, sendo da casa,
fôsse um pouco delas também; e as tias e as
avós emitem vaticínios, ou confirmam profe-
cias de que aliás ninguém mais se recorda.
O segrêdo tornou-se público. A porta mis-
teriosa foi arrombada por um ladrão recém-
nascido. E o aroma de alfazema que sai pe-
las frestas da casa, que se dilui no ar, no ar
da rua, da paróquia, da cidade, já é a primei-
ra suave emanação da amizade cívica, o oxi-
gênio das almas.
A casa nesse dia deu o seu fruto. Fêz a
sua entrega.
Nasceu hoje uma criança. Nem é preciso
telefonar para saber que naqoela casa nasceu
hoje uma criança. Vê-se de longe. Quem aca-
tou aqui desenvolvendo, para salientar a dife-
rença entre patriotismo, nacionalismo e inter-
nacionalismo, tem êsse duplo aspecto. Que-
rem u~s que o homem suba sem o vento da
justiça; querem outros que lá no alto se man-
Há certos fenômenos, de tal modo com- tenha sem cordão. Nós mostramos, de fora
postos, que à primeira vista parecem contra- para dentro, que o homem se prende volun-
ditórios e que, por isso, induzem fàcilmente tàriameilte em células concêntricas e livremen-
em êrro os observadores superficiais. Tomo um te obedece a êsses sucessivos limites. Agora, ao
exemplo tirado de André Gide, embora em contrário, na direção oposta, no sentido do
sentido diferente: o papagaio que o garôto bom vento da justiça, vemos crescer o mundo
empina no fundo do quintal. Papagaio de fle- do homem, da casa para a paróquia, da pa-
cha e papel. Em forma de pipa e com rabo de róquia para a cidade, da cidade para a pro-
duas tiras de pano. Um observador que nun- víncia~ da província para a pátria. E finalmen-
ca tivesse soltado um papagaio, ou que per- te, do pátria para um mundo realmente huma-
tencesse a essa esquisita raça de homens de no, universal, católico.
onde saem certos sociólogos ou certos peda- E em cada um dêsses limites se aplica a
gogos, vendo a pipa lá no alto, gingando ao mesma idéia aparentemente contraditória da
vento como que se debatendo para fugir, se- utilidade do limite e do imperativo do trans-
ria capaz de pensar que é o cordão que im- bordamento. E em cada um dêsses limites há
pede o papagaio de subir mais alto. Ora, é lugar para um dos dois erros que já assinala-
justamente o cordão, ou melhor, a esquisita mos. O nacionalista, por exemplo, pensará
aliança entre o cordão e o vento, que lhe per- que o bairrismo e a emulação entre as pro-
mite subir. O papagaio só consegue subir mui- víncias são ameaças para a unidade nacio-
to alto porque está prêso. Cortado o fio que nal. Se puder, mandará queimar em praça pú-
o retélm, ao contrário do que pensaria o nos- blica as bandeiras estaduais e destruirá a au-
so desvairado filósofo que apostrofa os limi- tonomia dos municípios, como aqui aconteceu
tes, sejam êles fronteiras ou dogmas, a pipa durante a ditadura, sem perceber que está
irá se espetar nas árvores, ou ficar ridiculamen- destruindo a nação.
te pendurada pela cauda nos fios telegráficos. O nacionalismo, de fato, destrói a nação;
Assim é a condição humana. Nós preci- transforma a diferenciada organicidade de um
samos de cordão -e de vento. A idéia que es- país num monólito sem vida; e, o que é pior,
destrói nos homens as suas últimas reservas de
que o patriotismo está para a democracia co-
cIvismo porque, quebrando as célu,las co~cê~-
mo o nacionalismo está para a demagogia.
tricas a autonomia estadual, a vida propna
Permitam-me uma breve análise dêsses dois
dos ~unicípios, e o segrêdo da casa, está .fur-
conceitos, que me parece aqui de alguma uti-
tando ao homem, uma por uma, as sucessl~as
lidade.
oportunidades de exercer o verdadeiro· patno-
tismo, que nasce na casa, qu~ s~ exp;a~de no.s A democracia e a demagogia têm alguma
bairros - amarrando-se em SinaiS proxlmos VI- coisa de comum. Ambas procuram exprimir o
síveis um campanário de igreja, uma paisa- voz do povo. Tonto na democracia como no
gem 'de infância - e que assim se alarg~, .se demagogia o que se procura é um tipo de go- /
dilata, detendo-se um instante em cada limite vêrno, umf formo de sociedade, uma norma. (Jv
que atinge e vence, recuando um POUC? n.as de convivência de acôrdo com os aspirações·
bordas do limite para transpô-Io com mais for- de um povo. Mos agora vejamos a diferença.
ça - como o braço do arqueiro recu~ a fim A oposição. Enquanto o democracia procura
de que a flecha vá mais longe -. e assim co~- exprimir e representar um povo por suas virtu-
tinua êsse transbordamento sucessIvo que o di- des, o demagogia procura exprimi-Io e repre-
namismo da justiça impõe. sentá-Io por seus defeitos. Nesse sentido eu po-
Para o verdadeiro patriota, IStO é, para deria dizer, sem falsear a realidade, que hoje
um homem verdadeiramente sensato e retamen- são muitos, em nosso país, os que desejam bem
te afetivo, a tôrre da sua igreja e a paisagem representar o que nós temos de mau.
do seu bairro é o Brasil. E redprocamente, o Como se vê, o combate é desigual. Tôda
Brasil é a igreja e o bairro. Cada coisa é sinal nosso dificuldade - e esta é o nosso grande
da outra, conforme a perspeetiv~. E é_na d~- missão - está em conseguir representar bem o
pIa perspectiva que ambas. as cOisas.. sae;>reC:1s que nós temos de bom. E poro isto, mesmo com
e conexas. l: claro que o lusto equlllbno nao o risco do impopularidade - o que em políti-
é fácil. Essa, aliás, é uma das notas caracte~ís- ca é heroísmo! - e mesmo com a certeza de
OWSnnflll'9'lOl :I OWSIl'9'NOIJ'9'N
A palavra "nacionalismo", antes mesmo
da proliferação de nossos dias, tinha dois sen-
tidos, duas acepções diversas e de origens di-
ferentes. Na primeira acepção, de que já nos
ocupamos, nacionalismo significa exaltação
mórbida do sentimento de nacionalidade, ou
ainda, se me permitem essa abstrusa expres-
são, significa uma espécie de egoísmo coleti-
vo. 1:, como vimos, um vício que se opõe à vir-
tude do patriotismo. Em linguagem filosófica
costuma-se dizer: um vício que se opõe por
excesso, mas não se deve concluir daí que se
trate de um exagêro apenas, ou de um grau
excessivo de sentimento patriótico. Não. Mais
do que isso, é um desvio, uma perversão. Na
segunda acepção, que já basta para trazer
boa dose de ambigüidade aos debates, na~
cionaJismo significa política de socialização
dos meios de produção, sendo sinônimo de
estatismo e oposto de liberalismo. Em outra
oportunidade cuidaremos dessa segunda acep-
ção. Por ora ainda temos alguma. coisa a di-
zer do nacionalismo que se opõe à virtude do
patriotismo.
Mostramos antes que o fenômeno ma-
nifestou seu máximo vigor nas formas po-
líticas totalitárias, e mais particularmente
nas formas totulilíilias de inspiraçõo ou de gralistas do que pelos fautores do Estado Nõ-
tipo fascista. HiIIer e Mussolini foram des- vo, foi o de um naturismo com laivos de india-
vairadamente ~ Entre nós tivemos nismo. Nosso nacionalismo sempre foi mais
o Integralismo e o fsIodo Nôvo de Vargas. uma atitude de isolacionismo emburrado do
No fundo de lodos êmes Wrios fenômenos há que de agressividade belica.
visível conseqiiêDãa de
coletiva. E:sse i E' E f
..-a
sempre um agudo IeSISlE!IInmentocom a pre-
reaçõo neurótica
' • acumula numa co-
Proposto o ideal adequado ao específico
ressentimento, o profeta do nacionalismo trata
de prometer sua realização e a cura dos gran-
letividade cargas - ••••sei,entes de agressi- des males nacionais, desde que a multidão
vidade e de des.. 5FFiiiÇD pora com os outros consinta em se despojar, ao menos provisoria-
grupos nacionais.. I: _ tensão difuso, implí- mente, de certos direitos que não enchem bar-
cita, subjacente. •••••• _ que aparece um riga de ninguém. E aqui se estabelece o nexo
explicitador, Os •••••• SIIIrios de nacionalis- entre o nacionalismo e o totalitarismo.
mo tiveram seanpm • iAlJ técnica: a explo-
Para a reta filosofia política, que em sen-
ração, a exaspea ••••••••• ressentimento coleti-
tido tato chamamos democracia, o têrmo de
vo. O líder nac:ioee 57 .., sempre à mesmo
tõdas as atividades políticas é o bem-estar das
invariável recurso:: I e as multidões de pessoas, bem-estar que inclui, evidentemente,
que seus males •••• , ••••••• das outras na- os elementos econõmicos, mas que só merece
ções. E trata logo ••• ·••••• lIIIII'I ideal a ser rea- o nome de bem-estar humano se começa por
lizado. Se o país •••••• Ios.:::S tradições, co- considerar a humana dignidade. Na base de
mo a Itália, o ideal oovo Império Ro- tal política tem de haver um fundamental e
mano que devol. •• iiiIaIicncs o poder e a integral humanismo. Para o totalitário não é
riqueza de que ~.' E CIfOOcs.No caso da nas pessoas e, sim, no bloco, na nação, e às
Alemanha, o idool ••••••• fa,i também o do vêzes na Idéia, que reside o têrmo de tõdas as
domínio do mu. _ • .arivação buscava atividades políticas. E assim sendo, torna-se
bases na crenca ••• _ ~:oridade racial. admissível que o poder e a riqueza do bloco,
E cumpre not~r •••• _ ím,o:iente afirmação de todo nacional, sejam procurados em detri-
de superioridade •••• lIIiio p<Jssava de um mento da segurança das outras nações, e com
mecanismo psicolétlii'- de u,:lt:-:xorreção de prejuízo da liberdade dos cidadãos da própria
um sentimento de • fiaiall:de. Entre nós, na nação engrandecido. Há, portanto, uma in-
falta de grandezas.Ii"-'· e de uma razoá- trínseca injustiça na estrutura totalitária: injus-
vel base de uma ••• • Sü;::'eriori~ade ra~ tiça agressiva contra as outras nações e injus-
cial, o ideal pro~ __ eúxo pelos inte- tiça humilhante e vergonhosa contra a digni-
nós/proporções alannantes. Somos hoje um alguma coisa ao mundo/ à terra dos homens
País de miséria crescente. O trabalho de mui- a. êss~ te:rível e misterioso grupo de sêres ra~
tos é contrariado pela orientação calamitosa ClonQlS tao. pouco r~zoáveis que talvez seja/
que uns poucos vêm imprimindo aos destinos em todo o Imenso universo/ a única humanida-
do Brasil. Entende-se pois o ardor e o fervor de. O nacionalista/ ao contrário/ pensa que
aplicados na tarefa do recuperação econômi- nada deve ao mundo; ou então/ como se vê
ca que é a saúde físiaJ do País. Mas não se por aqui/ que o mundo lhe deve tudo.
entende que essa Iorefa se realize com indife-
rença da estrutura poIiIicu. e muito menos que
se faça com declarado sinIpotia/ com evidente
preferência pelos insII FRIos da política totali-
tária. Estamos, nesse CDSO, no êrro oposto ao do
liberalismo econônüc:D que ocredita no automa-
tismo dos fenômenos da -=nnomia/ e que desa-
conselha qualquer ialuwealÇÕO do Estado nes-
se domínio. O dirrJ ~ econômico fundado
na indiferença da __ político é já o primei-
ro passo para o ••••• islrlto, porque nessa
matéria não há equiMwrio possível em situação
intermediária. AüdI •• o fórmula fôsse boa
(mas não foi o que.m h lE" na Alemanha e
decimento material _
-.:I
na Itália)/ um paIriuIu. de alma bem formada
. não pode desejar •••• pcítria um engran:'
delrimento da univer-
sal concórdia e do ••••• Mdude humana. Mui-
to menos pode de •••. êSI5e engrandecimento
em troca de capihA,,"" que despem o ho-
mem de suas in5Ígllil& r.a minha Pátria/ pe-
lo que aprendi no a~ f -Fil!III[) e na democra-
lhos estão em funcionamento na rêde da Com- mada no sentido mais amplo e mais fecundo,
panhia Telefônica Brasileira, no Exército e no :10 sentido de patrimônio cultural capaz de
Departamento de Correios e Telégrafos. Tenho g:mhar raízes e vida própria, e capaz de pro-
portanto os títulos para informar que êsse im- duzir frutos novos com o sabor da terra em
portante ramo da técnica moderna está, em que medrou, o know-how não se compra. Cul-
nosso país, numa situação de total dependên- '":'",a-se. Adquire-se na imanência cultural de
cia. Não digo que esteja pouco desenvolvido uma sociedade estudiosa e operosa. Quando
pelo fato de existirem poucos estabelecimen- :'llu:to podemos admitir que se comprem as se-
tos industriais no ramo, ou por ser diminuta a :'entes.
sua produtividade. Não me refiro ao volume Além disso cumpre notar uma cômica im-
nem à eficiência. Nossa dependência é mais propriedade daquela frase. Faz parte da jac-
cultural do que econômica. Se nos tirassem das roncia dos ricaços a idéia de que tudo se com-
mãos os livros e os catálogos americanos ou pra. Temos todo o direito de rir, ou de zangar,
suecos, nosso trabalho sofreria um instantâneo qiJando ouvimos algum Babbit enunciar que
colapso. Por onde se vê que o estado atual de "udo por dinheiro se obtém. Quando porém a
nossa cultura, nesse como em outros ramos, é ':"':Jse é pronunciada por um pobretão que vive
o da transplantação que ainda não criou raí- = pedir dinheiro emprestado, já não sei qual
zes e não deu frutos próprios.
sé::I então a razoável e adequada reação.
Não podendo desconhecer êsse estado de Torno a dizer: quem trabalha em contato
coisas, que é gritante, o exaltado nacionalis- c:>m alguma das mais modernas técnicas, co-
ta pensa que a técnica fica sendo nossa uma .llnO por exemplo a das telecomunicações, sen-
vez que se comprem, com os equipamentos es- '\e o tremenda dependêncio, a situação real-
trangeiros, as necessárias instruções para uso. IIIIeI1fe colonial de nossa cultura. O que sabe-
mos fazer é de segunda mão. Nossa ciência é crever os segredos das almas torpes. No caso
traduzida, e freqüentemente mal traduzida. vertente entretanto, não consigo entender bem
Na Companhia Telefônica Brasileira, onde há o que se passa no espírito de um jacobino.
dez anos funciono como professor de equipa- Talvez padeça dessa incapacidade pelo fato de
mentos eletrônicos (porque fora da Escola Téc- ter estudado um pouco mais do que os estu-
nica do Exército não existe nenhum curso pa- dantes nacionalistas, e de ter trabalhado efe-
ra formar engenheiros dessa especialidade) ou- tivamente um pouco mais, para o desenvolvi-
vi de um dos alunos uma expressão que tra- mento técnico do país, do que tantos jornalis-
duz bem a nossa dependência técnica. "Nós tas e sociólogos que enchem a bôca, e às vê-
aqui somos tele-guiados", disse-me êle. E é zes a barriga, com o "desenvolvimento econô-
verdade. Quando muito sabemos repetir aqui mico" e com outras fórmulas de garantido su-
o que os outros fizeram em primeira mão. cesso.
Aprendemos a instalar os aparelhos fabrica-
Sempre que olho em volta de mim, mes-
dos fora, e até somos capazes de fabricar apa-
mo em casa e longe da atmosfera mais densa-
relhos semelhantes se tivermos ao nosso alcan-
mente técnica, e sempre que considero os ob-
ce os livros, os catálogos, e boa parte das pe-
jetos que me cercam - o relógio, a caneta, a
ças que outros para nós elaboraram. Alegre-
máquina de escrever, a vitrola Hi-Fi, e os dis-
mo-nos com êsses modestos resultados, recen-
cos, e a música escondida nos discos - um du-
tes; elogiemos os que deram os primeiros pas-
plo sentimento me acomete. O primeiro é de
sos de cada nova técnica; estimulemos os que
gratidão. Tenho vontade de agradecer aos in-
procuram acertar o passo pela marcha dos
visíveis inventores e aos invisíveis obreiros de
países de vanguarda; mas não levemos nos~o
todo êsse confôrto e de tôda a alegria que me
entusiasmo até a insanidade de pensar que já
proporcionaram. O segundo sentimento é o de-
estamos culturalmente independentes e que po-
sejo de retribuir e é nesse desejo que sinto em
demos cultivar o luxo de detestar os nossos
mim alguns ímpetos nacionalistas, pois não se
mestres.
trata de uma retribuição pessoal, de homem
Não consigo entender o mecanismo do para homem, mas de uma retribuição nacio-
sentimento que acompanha a exaltação nacio- nal, de cultura para cultura. E logo, por via de
nalista. Cada um de nós pode encontrar em si conseqüência, assalta-me um terceiro sentimen-
mesmo, nas profundezas da alma, as raízes to de encabulação. Vivemos num dos maiores
dos mais estúpidos e cruéis sentimentos; e é países do mundo. Temos oito milhões de quilô-
por isso que uma alma grande como de Dos- metros quadrados. Sessenta milhões de habi-
toievsky pôde, com tamanha naturalidade, des- ~ontes. Ora, poderemos nós afiançar que essa
gente e êsse enorme espaço tenham sido be- co do país. Há uma outra lei de aspec~o. pa-
néficos para os outros? Haverá pelo mundo radoxal - lei própria do mundo do esplflto -
quem nessas horas esteia agradecendo ao Bra- pela qual quem mais ?á ma.is g,a~ha. E é del~,
sil alguma contribuição cultural, algum benefí- e de suas conseqüências pSlcologlcas e moraIs
cio? Haverá na Alemanha quem esteja conva- que tiro a firme convic~ã~ de q2'e o: melh~res
lescendo de grave enfermidade graças a um incentivos para os brasileiros nao. sao ?q~eles
produto farmacêutico descoberto no Brasil? ditados pelo ressentimento, pelo Isolaclonlsmo
Haverá na França uma dona de casa que se e pela xenofobia. E é tamb_ém. dos mesmos
alegre com um utensílio inventado por nós? princípios que tiro a conclusao dustrad? pelos
Haverá na Groenlândia ou na Patagônia al- fatos e conhecida de todos os verdadeiros so-
guém que sinta engrandecida sua condição hu- ciólogos e economistas contemporâ.neos. Não
mana por obra de nosso gênio? é nas substâncias minerais ou vegetais que con-
siste a principal riqueza das nações. Pode-se
Veiam, amigos, que meu patriotismo, mo- aplicar ao conceito a doutrin~ de. ma!éria e
déstia à parte, é muito mais ambicioso do que forma' e é na forma, na raclonallzaçao dos
todos os programas nacionalistas, porque não bens :nateriais, no domínio que a inteligência
me contento com o desenvolvimento de uso in- exerce sôbre a natureza, é no trabalho huma-
terno. Não me contento com a autonomia. De- no é na competência, na qualidade e nas vir-
seio muito mais para o Brasil. E aqui, onde tudes dos cidadãos que consiste o elemento
parece que começo a delirar, está na verdade primordial da riqueza das nações. E é nesse
falando o mais trivial bom senso. Eu acredito, campo integralmente humano que devemos
e qualquer pessoa normal também acreditará trabalhar se realmente queremos que nossO
que a generosidade e a admiração são mais Brasil chegue a ser, não apenas um país com
estimulantes e fecundas do que a irritação e a divisas e com máquinas, mas uma nação be-
inveja. Essa é uma das leis do mundo do espí- néfica para os que nela habitam e benéfica,
rito. Dizia um velho padre alemão que nós te- por irradiação, para o resto do mundo.
mos poucos padres no Brasil porque não en-
viamos missionários brasileiros para fora. À
primeira vista parece absurda a idéia, porque
se enviarmos nossos padres para fora, pela lei
da quantidade ainda os teremos menos. Mas
o mundo do homem não se rege apenas pelas
leis da quantidade, como pensam os tecnicistas
que tanto falam em desenvolvimento econômi-
(096L-g-L '"OAOd 00 013MMO:>,,)
'V~n.1'n::> OWSI1VNOI::>VN O
Tomando o adjetivo no sentido restrito que
concerne à vida da inteligência coletiva nas
ciências e nas arfes, pode-se dizer, creio eu,
que o nacionalismo cultural, em vez de ser um
setor ou um epifenômeno, como parece que
muitos pensam, é a própria alma dessa atitude
geral, dessa concepção do mundo e da vida
que hoje em dia é o credo das nações subde-
senvolvidas.
Entende-se que num certo ponto de sua
:"istória uma jovem nação tome consciência
mais viva e mais nítida de sua nacionalidade,
como se sabe que na vida individual há uma
estação crítica em que se arma, mais ou
menos aguda, a consciência da personalida-
de. O que não se entende é que seja jul-
gado bom, estimulante, fecundo, ete., o fa-
'0 de se transformar tal visão reflexa, tal
:Jreocupaçõo com a personalidade ou com a
:lccionalidade, uma espécie de narcisismo iris-
~alado e programado. Não há nada mais ridí-
,:ulo do que uma vida polarizada nesse tipo de
oreocupação reflexa, como por exemplo o su-
jeito que compõe um livro de versos para se
realizar, para alcançar sucesso, para afirmar
sua personalidade. Obra feita com tal critério,
orientada portal finalidade vista ao espelho,
do colonialismo cultural que ainda a prende
jamais salra coisa que preste. Em verdade não 00 imperialismo dos Cruzes e dos Chagas, e
há nada mais infecundo do que o amor pró- com tais critérios enveredar na procura das
prioe a vaidade. Podem funcionar como estí- causas do câncer, duvido muito que chegue a
mulo de arrancadas curtas, como as drogas algvm resultado apreciável, e creio que o lei-
com que se obtém de um cavalo uma veloci- tor \rne dá razão. Cientista desta espécie po-
dade maior de curto alcance à custa de sua derá atingir cargos públicos, poderá chegar a
saúde futura; mas para obras de maior alcan- Reitor de alguma Universidade Federal, Esta-
cee maior densidade o amor próprio e a preo- dual ou Municipal, mas a castíssima verdade
cupação do sucesso são venenos mortais. Não que mora nas essências das coisas, que são re-
pretendo, com isso, afirmar que os grandes ar- flexos da divina essência, não dará ao impuro
tistas foram sempre homens despojados de pesquisador o beijo de sua bôca.
egoísmo e totalmente esquecidos de si mes-
mos. Não; ai dêles, em regra geral são po- E o que digo para a esfera do indivi-
bres homens cheios de defeitos e como nós dual, proporções guardadas, vale para o do-
sujeitos aos critérios carnais. Digo, porém, que mínio do social. E: ridículo, sumamente ridí-
a vaidade dêles, se a obra é realmente larga culo, querer fazer, explicitamente, diretamente,
e bela, não entrou no ato criador. Existia an- orte ou ciência brasileiras. Sempre que encon-
tes. Vem depois. Mas estêve suspensa durante tramos numa sociedade esta bandeira do na-
a fecundação, a imposição de uma forma aos cionalismo cultural desfraldada em cada es-
sons ou às côres. No segredo ardente e amo- quina, podemos afirmar com segurança que
roso da criação, o vero artista esqueceu-se de :al país atravessa uma crise de adolescência
sua personalidade, dos prestígios do nome, e e corre o risco de tomar por progresso real o
entregou-se todo, de corpo e alma, à genero- prolongamento da imaturidade e do ressenti-
sidade feita à imagem e semelhança de Deus. mento. Todos os povos passam por experiên-
a que dissemos da arte aplica-se com cias semelhantes, em graus diversos, mas uma
igual rigor à pesquisa e à descoberta científi- coisa temos como certa: só há real e forte
ca. Suponhamos a existência de uma família posse de si mesma, só há real e fecundo pro-
Braga ou Silva preocupada primacialmente gresso, naquela sociedade que deixa esqueci-
com suas glórias passadas e com seus prestí~ do o problema da nacionalidade, e se aplica
gios presentes e futuros. Se algum membro de com todo o vigor nos problemas objetivos, nas
tal família ingressar, por exemplo, na pesqui- obras que a cultura em movimento reclama. A
sa médica, e procurar fazer uma ciência silva- nacionalidade é uma conseqüência, e não um
na ou braguense, ciência própria, emancipada programa cultural. Escrevam-se bons romances,
pintem-se bons quadros, estudem-se os fenôme- o atenção reflexa, o narCISlsmo social, perdu-
nos do mundo físico e do mundo vivo. Se tudo rará a crise, a caimbra, a infecundidade.
isto nascer com fôrça e perfeição nascerá um Aquêles poetas e p'rosadores a que se re-
conjunto de coisas, com certas marcas locais, feria Machado, para se desligarem da arcádia,
mais no domínio da arte do que no da ciência, que na idéia dêles representava a Europa-
que virá a merecer o nome de cultura brasilei- Mãe, ou o jugo da metrópole, caíram no india-
ra ou chinesa. nismo, como se indiano fôsse o fundo e a subs-
Num certo ponto de sua história, admite- tância de nossa civilização. Ou como se o
se, entende-se que uma sociedade faça um es- indio fôsse mais brasileiro, mais genulnamen-
fôrço e deixe de imitar servilmente a metró- -e nacional, do que os filhos dos portuguêses.
. pole colonizadora, passando a olhar em tôrno ~ para um discípulo dos filósofos descenden-
de si e a procurar no seu próprio meio a ma- -es de Aristóteles não deixa de ser cômico
téria que alimente as formas inventadas. "1otar que os tais indianistas serviam-se da ma-
:ériaíndia, mas determinavam-na com a for-
Foi o que aconteceu em nossa literatura ma nacionalista que é puramente européia e
do século passado, e que Machado de Assis, :>ascida com a nova civilização ocidental.
com luminosa argúcia, analisa no ensaio "Ins-
tinto de Nacionalidade" ("Crítica Literária", Há sempre proveito em lembrar a teoria
W. M. Jackson, 1938, pág. 131 e seg.). Quise- ::::ristotélica de matéria e forma, e em lembrar
ram os seguidores de Gonçalves Dias, Pôrto ~ue é sempre a forma o princípio determi-
Alegr~ e Magalhães criar uma literatura inde- -ante. A escolha do material com que o artis-
pendente. Mas "esta outra independência" diz :0 compõe sua obra, seja musicada seja pinta-
Machado de Assis, "não tem Sete de Setem- da ou cantada, não basta de modo algum pa-
bro nem campo do Ipiranga; não se fará num -o determinar um tipo, uma raça espiritual,
dia, mas pausadamente, para sair duradoura; Jma cultura. Virá dêsse material, dessa maté-
não será obra de uma geração nem duas ... ". -ia segunda, algum influxo adjetivo de CÔr ou
Acrescento eu, se me permitem, que não bas- sabor, mas o espírito continua o mesmo en-
ta a pausa e a paciência: para uma cultura quanto permanecem os eixos polarizadores. E
brasileira existir, realmente, é preciso que os enquanto a literatura, a nova e pseudo-inde-
homens desta grande nação se esqueçam da pendente literatura se contenta com trocar "o
/
mágoa da inferioridade, e trabalhem pela pu- ca1adoe a pastôra" dos Gonzagas pela fle-
ra perfeição do objeto, sem a obsessão da na- ch~-e-i>elo tacape, não há mudança de eixos:
cionalidade. Ao contrário, enquanto perdurar há apenas mudança de assunto.
t: claro que será mais genuína a arte que
nascer de uma expenencia própria, e como
não temos entre nós pastôres nem cajados, me-
lhor será que olhemos em tôrno de nós e ob-
servemos com agudeza o que nos está ao al-
cancei desta autenticidade, desta forma de
veracidade nascerá, por via de conseqüência,
a marca da nacionalidade sem ser preciso fo-
calizá-Ia intencionalmente. E não há necessi-
dade, para ser veraz e autêntico, de ir pro-
curar nas selvas o que nos diferencia total-
mente da metrópole. O indianismo, feitas as
contas, é tão ridículo e falso como as faixas
da Arcádia de que desejávamos fugir. Sem fa-
zer apêlo ao hilemorfismo aristotélico, ou usan-
do-o com o instinto do gênio, Machado de
Assis, nas páginas 138 e seguintes do mesmo
estudo, chega à mesma conclusão, com uma
vantagem a seu favor: teve de resistir a uma
tendência que estava na moda, como também
teve de resistir ao realismo dos Flaubert e Zola
que ditavam leis no prestigioso mundo de·
além-mar. Por essas e outras é que Machado.
é o nosso maior valor, e o mais brasileiro dos
nossos autores.
Sem valer-se de Aristóteles, ou usando as
conclusões do gênio com o instinto do gênio,
eis o que dizia Machado de Assis no seu estu-
do sôbre o "instinto de nacionalidade" que no
século passado determinou em nossa cultura
uma orientação naturista, indianista, que por
isso seria mais brasileira: - "Devo acrescentar
que neste ponto manifesta-se às vêzes uma
opinião, que tenho por errônea: é a que só
reconhece espírito nacional nas obras que tra-
tam de assunto local, doutrina que, a ser exa-
ta, limitaria muito os cabedais da nossa litera-
tura. Gonçalves Dias, por exemplo, com poe-
sias próprias, seria admitido no panteon na'
cional; se excetuarmos os "Tymbiras", os ou-
tros poemas americanos, e certo número de
composições, pertencem seus versos pelo assun-
to a tôda a mais humanidade, cuias aspirações,
entusiasmo, fraquezas e dores geralmente can-
tam; e excluo daí as belas "Sextilhas de Frei
Antão", que essas pertencem unicamente à li-
teratura portuguêsa, não só pelo assunto que
Çl poeta extraiu dos historiadores lusitanos,
~as fté pelo estilo que êle hàbilmente fêz an-
tiqutído. O mesmo acontece com seus dramas,
nenhum dos quais tem por teatro o Brasil. Iria
longe se tivesse de citar outros exemplos de
casa, e. não acabaria se fôsse necessano re- na, ampla, elevada, correspondente ao que
correr aos estranhos. Mas, pois que isto vai ser ela é em outros países. Não a temos".
impresso em terra americana e inglêsa, per- Tudo isto que Machado diz em seu notá-
guntarei simplesmente se o autor do "Song of .'el ensaio refere-se à relação que existe entre
Hiawatha" não é o mesmo autor da "Golden ""acionalidade e literatura. Podíamos estender
Legend" que nada tem com a terra que o viu !Jas reflexões aos outros domínios da ar-
nascer, e cujo autor admirável éi e pergunta- -ei mas não cremos que possa existir uma re-
rei mais se o "Hamlet", o "Othelo", o "Júlio ::ção de nacionalidade, uma caracterização
César", a "Julieta e Romeu" tem alguma coi- '::::01, regional, um gôsto da terra, no domínio
sa com a história inglêsa ou com o território ~:Jis universal das ciências. Quem clama por
britânico, se, entretanto, Shakespeare não é, ,rna sociologia brasileira, por exemplo, esta-
além de um gênio universal, um poeta essen- -:: acertado se pede maiores e mais cuidado-
cialmente inglês. Não há dúvida que uma lite- sos estudos sociológicos sôbre os fatos e fenô-
ratura, sobretudo uma literatura nascente, de- -enos locais, se reclama aplicação da univer-
ve principalmente alimentar-se dos assuntos s;:: ciência sociológica à terra brasileira, como
que lhe oferece a região; mas não estabeleça- ~·5s reclamamos, mais de uma vez, o incre-
mos doutrinas tão absolutas que a empobre- -ento dos trabalhos de geografia e cartogra-
çam. O que se deve exigir do escritor, antes .:::: que ainda estão em estado quase embrio-
de tudo, é cerfo sentimento íntimo, que o tor- -,::~io, ou como desejamos, de um modo geral,
ne homem do seu tempo e do seu país, ainda ::.;e surjam matemáticos e físicos entre os nos-
quando trate de assuntos remotos no tempo e s;::s compatriotas. A sociologia brasileira será
no espaço. Um notável crítico da França, ana- :;"':Jsileira pela matéria tratada, pela concreti-
lisando há tempos um escritor escocês, Masson, ::::ção do fato estudado, e não, de forma algu-
com muito acêrto dizia que do mesmo modo -:I pela forma e pelos princípios e leis. De
que se podia ser bretão sem falar sempre do ::Jolquer modo a expressão "sociologia bra-
toio, assim Masson era bem escocês, sem di- s eira" nos parece infeliz, como infeliz, e até
zer palavra do cardo, e explicava o dito acres- ~.eio cômica seriam estas outras: "geometria
centando que havia nêle um "scottismo" inte- ::~osileira", "fisiologia brasileira", 11astronomia
rior, diverso e melhor do que se fôra apenas :;-asileira", etc., embora admitamos a proprie-
superficial". E depois dessas sábias observa- :::,:Jde delas em certos contextos especiais. Se
ções, Machado dizia com certa amargura: i:Jorém a expressão procura exprimir realmen-
"Estes e outros pontos cumpria à crítica esta- "'e~~a espécie brasileira, uma forma brasilei-
·0 de sociologia, como se depreende de alguns
belecê-Ios, se tivéssemos uma crítica doutriná-
sentimento íntimo, que o torne homem de seu
contextos nacionalistas, então elo não posso de tempo e do seu país ... tI
não porque seja es-
uma tolice equiparado o tontos outros produ- ta o suo primeira e dominante preocupação.
zidos em tal atmosfera. O artista verdadeiro é o que mergulha profun.
Em matéria controvertido, onde existem damente na realidade que o envolve, ou o que
diversos correntes, diversos teorias s~bre .0 mergulha profundamente - se me permitem tal
mesmo assunto, pode-se falar de uma filosofia verbo para exprimir tão singular experiência
alemã, pensando em Kant por exemplo, ou - nomeio circundante e no contraparte dêsse
numa sociologia francesa pensando em Dur- meio que já foi inviscerada e que constitui os
kheim. A denominação nacional, nesses casos, profundidades de sua alma. O que importa é
não posso de um recurso de c1assifi~açã<:>e não ser verídico, veraz, verdadeiro nessa experiên-
de uma intenção realmente naclonalJzadora cia de confronto com o realidade singular con-
daquelas ciências, sendo. evidente, ness.es ~a- creto que se oferece como matéria primeiro
sos, o caráter de precariedade ~ue t?IS tltu- paro as elaborações do experiência poético.
los sugerem. Só haverá uma soclologlO fran- Em página admirável sob o ponto-de-vista do
cesa e outro espanhola ou árabe enquanto espiritua!idade, embora discutível sob o pon-
houver divergências e controvérsias quanto to-de-vista da história natural, São Francisco
aos eixos universais de tal ciência human? de Sales se refere às abelhas do Hellesponto
Nesse sentido, sociologia brasile~ra I que~:rla que produziam um mel venenoso por causo dos
dizer ticontribuição de algum not?vel s.~c'olo- flôres mortais que sugavam. O mel e o abe-
go brasileiro, ou de alguns n~t.áv~IS sO~lOlogo; lha são sempre os mesmos, mas há o gôsto
de mesma nacionalidade à ClenCla unlvers~1. que depende dos f1ôres, há o sabor que vem
De modo algum a nacionalidade pe~.etr?ra o do terra, há o timbre, o sotaque, o particula-
âmago da ciência, porque só há clencla do ridade que remonto aos ensaios do infância.
universal. A nacionalidade entro no obro poético invo·
luntàriamente, inconscientemente, como nela
Já com as artes acontece coisa diversa.
entram os coisas profundas, o humus espiritual
Sendo ainda uma pesquisa da ver~ade, mas
dos nossos primeiros ensaios, os primeiros mê-
de uma verdade investida de singularidade co~-
dos, os primeiros amôres. Tudo isto se prende
creta e travestida em esplendor de belez~ nao
à terra, à língua que se falo, ao estilo com qúe
é o côr local o primeiro coisa o s~r :ons,dera-
um povo se alegro ou se queixo. Tudo isso são
da, não é o nacionalidade a pm~elra preo-
joisas que vêm por via de conseqüência, são
cupação nem, como acab~u d:. d,z,~r Macha~
.. coisas que decorrem do tempo e do espaço, e
do de Assis, o assunto obrlgatorlo .. O ~ue se
por conseguinte do matéria de nosso incarna-
deve exigir do escritor, antes de tuClo, e certo
ção. Não devem ser buscadas como fim, não
devem constituir programa, sob pena de cair
num mortal ridículo quem justamente preten-
de ser sublime.
Creio que já disse, mais de uma vez, que
a diversidade de grupos humanos, e entre êles
as nações, têm a remota finalidade de expri-
mir tôda a riqueza virtualmente contida na de-
finição do homem. As nações diferenciadas
existem para essa epifania do humano, e sen-
do assim a idéia da unidade domina a idéia
da diversidade. Fazem parte de um concêrto,
onde as nacionalidades entram como tímbres,
e a natureza humana, una, universal, entra co-
mo idéia central da grande sinfonia. Em outras
palavras, as nações existem na linha da gene-
rosidade das naturezas e não na linha da re-
tração, do isolamento, como pretendem os na-
cionalistas.
Já observei que nos lugares onde se dis-
cutem os problemas do Brasil, e onde se co-
mentam os mais graves desatinos e os mais es-
tridentes escândalos, é invariável costume da
maior parte dos homens de responsabilidade
arrematar o rol de crônicas calamitosas com
esta sentença que cobre todos os pecados da
República: liMas eu creio no futuro do Bra-
sil". Todos crêem no futuro e no glorioso desti-
no desta terra, ainda que os sinais de que dis-
põem, no presente, sejam de natureza a indu-
zir outros sentimentos. Todos crêem, ou dizem
crer, porque parece estabelecido, parece uni-
versalmente admitido que seria pecado cívico
não crer ou declarar suas apreensões com ba-
se nos sinais fornecidos abundantemente pelo
noticiário. Já ouvi êste acorde final nos luga-
res em que se reúnem homens conspícuos
e responsáveis, e onde êsses homens, por
diferenças de raça espiritual, de orientação,
de filosofia, divergem ôsperamente em tôr-
no da direção que segue a coisa pública! Na
hora da distenção dos nervos, da pancadinha
no ombro, do arremate da cordialidade esgar-
çada, lá vem a jaculatória cívica: "Creio nos
destinos do Brasil",.
Até ontem, antes de pôr em ordem estas ver, a' falar, a gesticular, a produzir. Poderão
idéias, eu sentia, um mal-estar enorme por me até progredir na arte de fazer foguetes. Pode-
julgar mau patriota, porque não achava em rão construir usinas hidrelétricas mais possan-
mim convicção para pronunciar com os outros tes que a Pátria assassinada até então cons-
a fórmula sacramental, e não a achando não truíra.
a pronunciava, e não a pronunciando ficava
Com o tempo, em cima do mesmo territó-
com aquêle pêso de culpa indefinida que às vê-
rio antigo, mudam-se os costumes, morre o úl-
zes é mais incômodo do que a carga de uma
timo vestígio da piedade com que naquela ter·
culpa nítida. Ontem livrei-me do complexo
ra ainda se reverenciava o Rei do universo, e
quando observei que são os patifes que usam
por fim substitui-se a língua. As Pátrias mor-
com maior galhardia aquela espécie de espe-
rem, de esgotamento natural ou de maus tra-
rança nacional, e que foram êles que espalha-
tos de seus filhos. Morrem e não têm alma imor-
ram a insidiosa doutrina que diviniza a Pátria
tal corno o mais humilde de seus filhos. Sob
e que aproxima a esperança nacional da Espe-
êste ponto-de-vista com os critérios da eterni-
rança teologal infusa, que não pode ser feri-
dade, a história é um sôpro e os grandes dra-
da sem gravíssimo pecado.
mas nacionais são ainda mais efêmeros do que
O bom-senso já me dizia que uma Pátria, /--os dramas pessoais. Há entretanto, mesmo à
como já tem acontecido com muitas pelos sé- luz da eternidade, uma missão, uma função
culos da história, pode dar com os burros '"com que cada coisa efêmera deixa uma mar-
n'água. t claro que o chão, a base territorial, ca eterna. Na minha mais profunda convic-
os rios, e as cordilheiras ficam: mas a pátria, ção, cada grupo humano está aqui neste cor·
se por tal coisa se entende um conjunto histó- roussel planetário para se desincumbir de de-
rico com tais e quais tradições orientado para terminadas coisas relativas à sorte e à nature-
tais e quais missões no mundo, se por Pátria za do homem. E é neste sentido que se torna
entendemos mais êste aglomerado afetivo e particularmente trágico o malôgro de uma na·
moral dotado de certas características que vi- ção. E é neste sentido que me inquieto e que
sam a ser a glória e a beleza do conjunto da não acho em mim voz para acompanhar o cô-
espécie humana, então pode perfeitamente ro cívico que formula seu ato de perfeita es-
acontecer que uma Pátria desapareça, ou se perança depois de ter' mostrado que tudo vai
querem uma imagem mais brutal, pode acon- de mal a pior.
tecer que uma Pótria tombe assassinada numa Por que será que inventaram essa Esperan-
esquina do tempo. Em cima de seu território os ça Nacional com ares de Esperança Teologal?
homens que a assassinaram continuarão o vi- E por que será que são justamente os que mal-
baratam os recursos pátrios que mais enfàtica- destinos gloriosos da Pátria. Pois se são inaba-
mente declamam sua fé cívico? A razão, Jeitor, láveis tais destinos e tais glórias! A Esperan-
é extremamente simples. Escorados nes~ogran- ca Nacional elevada à altura de fé intocável,
de e indefectível esperança nos gloriosos des- transformada em virtude teologal, tem esta
tinos do Brasil, êles podem fazer o que quise- curiosa contradição: tira dos homens públicos
rem sem perigo de falha de tão alevantado qualquer cuidado. A palavra mágica garante
objetivo. Podem roubar em Brasília e no resto o futuro de tudo no Brasil então comamos e
do Brasil, podem entregar o dinheiro da Le- bebamos. E sobretudo, por causa das dúvidas,
gião Brasileira de Assistência aos bancos dos mandemos para os bancos da Europa e da Amé-
cunhados do Presidente da República, podem rica do Norte as prodigiosas somas obtidas
roubar no trigo a ponto de escandalizar o pró- com as metas presidenciais.
prio ministro do sr. Leonel Brizola, podem man- Ao contrário disto, os que não têm confi-
dar para o estrangeiro torrentes de dinheiro, anca inabalável e incondicional nos gloriosos
dêste pobre dinheiro ralo que é o sangue ralo de~tinos da Pátria, êsses tratarão de trabalhar,
do pobre brasileiro, podem gastar come o de- de fazer fôrca, de cumprir o dever, de denun-
putado Joffily em sua amistosa carta ao Pre- ciar os escâ'ndalos, tudo isto com o objetivo
sidente diz que gasta esta nova classe" nas-
II
/patriótico de trazer uma contribuição para a
cida neste nôvo Brasil
II
ll
, podem botar fora ( \
I. glória
.
e para a nqueza d o Brasl.'1 O cunos.o,
.
50000 dólares por mês e por cabeça em gas- 'meus amigos, é que nos chamem de derrotls-
tos de um super-café-society com um requinte tas e de pessimistas! O fato de acharmos ser
de grosseria e de estupidez que só o muito di- preciso trabalhar e vigiar para um dia sermos
nheiro pode dar, podem distribuir cartórios pe- grandes é apontado como derrotismo mórbi-
la família, e empregar centenas de parasitas do pelos que clamam incondicional confiança
nas câmaras municipais e centenas de parasi- nos destinos da Pátria, e desde já sacam por
tas em tôdas as repartições do país, e em tô- conta sua grossa parte da glória e da riqueza.
das as organizações do país, e em tôdas as
Espero que desta vez o leitor entenda bem
organizações estatais, e para-estatais, podem
o pensamento de um pobre escriba que se
delapidar, pilhar, roubar, e ainda por cima
cansa de dizer, como o hino francês, que a
atrapalhar os que desejam trabalhar, desen-
Pátria está em perigo.
corajar os honestos, desanimar os cumprido-
res do dever, e até ridicularizar os que traba-
lham quatro horas por semana. Tudo isto pode
ser feito serenamente, sem remorsos, sem afli-
ções cívicas, por que crê inabalàvelmente nos
(0961-v-vl '"OAOd 00 013~~OJ,,)