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A REFORMA DO ESTADO DOS ANOS 90: LOGICA E MECANISMOS DE CONTROLE LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA A grande tarefa politica dos anos 90 é a reforma ou a recons- trugdo do Estado. Entre os anos 30 e os anos 60 deste século, 0 Estado foi um fator de desenvolvimento econdmico e social. Nesse perfodo, e parti- cularmente depois da Segunda Guerra Mundial, assistimos a um perfodo de prosperidade econémica e de aumento dos padroes de vida sem prece- dentes na hist6ria da humanidade. A partir dos anos 70, porém, face ao seu crescimento distorcido e ao processo de globalizagao, o Estado entrou em crise e se transformou na principal causa da redugdo das taxas de cresci- mento econémico, da elevagdo das taxas de desemprego e do aumento da taxa de inflagdo que, desde entdo, ocorreram em todo o mundo. A onda neoconservadora € as reformas econdmicas orientadas para 0 mercado foram a resposta a esta crise — reformas que os neoliberais em um certo momento imaginaram que teriam como resultado o Estado mfnimo. Entretanto, quando, nos anos 90, se verificou a inviabilidade da proposta conservadora de Estado minimo, estas reformas revelaram sua verdadeira natureza: uma condigao necesséria da reconstrugao do Estado — para que este pudesse realizar ndo apenas suas tarefas cldssicas de garantia da pro- priedade e dos contratos, mas também seu papel de garantidor dos direitos sociais e de promotor da competitividade do seu respectivo pais. A reforma do Estado envolve quatro problemas que, embora interdependentes, podem ser distinguidos: (a) um problema econémico- politico — a delimitago do tamanho do Estado; (b) um outro também econémico-politico, mas que merece tratamento especial — a redefinicdio do papel regulador do Estado; (c) um econémico-administrativo - a recupe- ragéio da governanga ou capacidade financeira e administrativa de imple- mentar as decisdes politicas tomadas pelo governo; e (d) um politico — o 50 LUA NOVA N° 45 — 98 aumento da governabilidade ou capacidade politica do governo de inter- mediar interesses, garantir legitimidade, e governar. Na delimitagao do tamanho do Estado estiio envolvidas as idéias de privatizagao, “publiciza- cdo” e terceirizagao. A questio da desregulagdo diz respeito a0 maior ou menor grau de intervengdo do Estado no funcionamento do mercado. No aumento da governanga temos um aspecto financeiro: a superacao da crise fiscal; um estratégico: a redefinigdo das formas de intervencfio no plano econémico-social; e um administrativo: a superagdo da forma burocratica de administrar o Estado. No aumento da governabilidade estado inclufdos dois aspectos: a legitimidade do governo perante a sociedade, ¢ a ade- quacao das instituigdes politicas para a intermediac&o dos interesses. Neste trabalho vou tentar analisar os quatro aspectos bdsicos da reconstrugdo do Estado: a delimitagio de sua abrangéncia institucional ¢ os processos de redug&o do tamanho do Estado, a demarcagiio de seu papel regulador e os processos de desregulamentagdo, o aumento de sua capaci- dade de governanga, e o aumento de sua governabilidade. Nos quatro casos, 0 objetivo nao é enfraquecer o Estado, mas fortalecé-lo, O pressu- posto sera sempre o do regime democratico, no apenas porque a demo- cracia é um valor final, mas também porque, no estdgio de civilizagdo que a humanidade alcangou, é 0 tinico regime que tem condigées de garantir estabilidade polftica e desenvolvimento econémico sustentado. Deixarei em segundo plano a questiio do porqué da crise do Estado, e farei apenas uma breve referéncia & discussao teérica sobre o problema das limitagdes da coordenagao pelo mercado que tornam imperativa a intervengao com- plementar do Estado. O tema central deste artigo é 0 processo de reforma do Estado em curso e a sua fundamentagio pratica e teérica. E a andlise dessa reforma e das instituigdes que dela derivam a partir de uma légica de controle econémico e social. Partirei da premissa de que o Estado é funda- mental para promover o desenvolvimento, como afirmam os pragmaticos de todas as orientagdes ideolégicas, bem como uma maior justiga social, como deseja a esquerda, € néo apenas necessério para garantir o direito de propriedade e os contratos — ou seja, a ordem —, como quer a nova dire- ita neoliberal. Como € mais apropriado para a anélise dos problemas econémicos e politicos, usarei essencialmente o método histérico. Nao examinarei a crise do Estado e as reformas decorrentes em abstrato, mas a partir da realidade desta segunda metade dos anos 90. Utilizarei, entretan- to, instrumentos légico-dedutivos e gerais sempre que forem titeis para a andlise. Nesse sentido desenvolverei alguns modelos: a distingdo das ativi- dades exclusivas de Estado dos servigos sociais ¢ cientfficos; a definigao de uma propriedade publica ndo-estatal entre a propriedade estatal e a pri- A REFORMA DO ESTADO DOS ANOS 90 51 vada; a conceituagao das novas instituig6es que definirdo 0 novo Estado que est4 surgindo; as principais formas de controle ou coordenagao econémica e social existentes no capitalismo contemporaneo; e, final- mente, 0 que chamarei de a “I6gica do leque de mecanismos de controle”, que fundamenta a escolha de instituigdes e formas de atuagiio do Estado. CRISE E REFORMA A Grande Crise Econémica dos Anos 80 reduziu a taxa de crescimento dos paises centrais & metade do que foram nos vinte anos que se seguiram a Segunda Guerra Mundial, levou os pafses em desenvolvi- mento a terem sua renda por habitante estagnada por 15 anos, e implicou no colapso dos regimes estatistas do bloco soviético. Quando dizemos que esta Grande Crise teve como causa fundamental a crise do Estado — uma crise fiscal do Estado, uma crise do modo de interveng’o do Estado no econémico e no social, e uma crise da forma burocrdtica de administrar 0 Estado — est pressuposto que o Estado, além de garantir a ordem interna, a estabilidade da moeda e o funcionamento dos mercados, tem um papel fundamental de coordenagao econémica.! Ou, em outras palavras, estd implicito que a coordenagdo do sistema econémico no capitalismo con- temporfneo é, de fato, realizada ndo apenas pelo mercado, como quer 0 neoliberalismo conservador de alguns notdveis economistas neoclassicos,2 mas também pelo Estado: o primeiro coordena a economia através de tro- cas, 0 segundo, através de transferéncias para os setores que o mercado nao logra remunerar adequadamente segundo o julgamento politico da sociedade. Assim, quando hé uma crise importante no sistema, sua origem deverd ser encontrada ou no mercado, ou no Estado. A Grande Depressao dos anos 30 decorreu do mal funcionamento do mercado, a Grande Crise dos anos 80, do colapso do Estado Social do século vinte. O mercado é 0 mecanismo de alocaciio eficiente de recursos por exceléncia, mas mesmo nesta tarefa sua agdo deixa muitas vezes a desejar, dada nao apenas a formagao de monopélios, mas principalmente a existén- cia de economias externas que escapam ao mecanismo dos pregos. O Estado moderno, por sua vez, é anterior a0 mercado, na medida em que | Examinei inicialmente a crise do Estado em “O Cardter Ciclico da Intervengao Estatal” {1988) e nos ensaios publicados em A Crise do Estado (1991), Refiro-me a economistas como Friedrick Hayek, Milton Friedman, James Buchanan, Mancur Olson ¢ Anne Krueger. 52 LUA NOVA N° 45 — 98 Hobbes e 0 contrat social precedem Adam Smith e o principio indivi- dualista de que, se cada um defender seu préprio interesse, o interesse cole- tivo estard garantido através da concorréncia no mercado. O Estado mo- derno € anterior ao mercado capitalista porque é o Estado que garantiré os direitos de propriedade e a execugao dos contratos, sem 0 que 0 mercado nao poder se constituir. Mas é também contempordneo e concorrente do mercado, porque cabe a ele o papel permanente de orientar a distribuigio da renda, seja concentrando-a nas maos dos capitalistas nos perfodos de acumulagao primitiva, seja distribuindo-a para os mais pobres, de forma a viabilizar a emergéncia de sociedades civilizadas e modernas, que, além de ricas, demonstraram ser razoavelmente eqiiitativas. A grande crise dos anos 30 originou-se no mal funcionamento do mercado. Conforme Keynes tao bem verificou, o mercado livre levou as economias capitalistas & insuficiéncia cronica da demanda agregada. Em conseqiiéncia entrou também em crise o Estado Liberal, dando lugar & emergéncia do Estado Social-Burocrético: social porque assume o papel de garantir os direitos sociais e 0 pleno-emprego; burocrdtico, porque o faz através da contratagdo direta de burocratas. Reconhecia-se, assim, o papel complementar do Estado no plano econémico e social. Foi assim que sur- giram o Estado do Bem-Estar nos pafses desenvolvidos e 0 Estado De- senvolvimentista e Protecionista nos pafses em desenvolvimento. Foi tam- bém a partir dessa crise que surgiu Estado Soviético na Russia transfor- mada em Uniao Soviética ¢ depois em boa parte do mundo — um Estado que tentou ignorar a distingiio essencial entre ele proprio e a sociedade civil, ao pretender substituir 0 mercado ao invés de complementé-lo. Esta distorgao, que alcangou sua forma limite na Unido Soviética, decorreu da superestimagao do papel da classe média burocrti- ca na gestio dos sistemas econdmicos contemporaneos. Com a emergéncia das grandes empresas e do grande Estado, ou mais amplamente, das grandes organizagées publicas e privadas, o capitalismo deixou, neste século, de ser o produto da alianga da burguesia nascente com a aristocra- cia — esse era 0 capitalismo do século dezenove — para se transformar no resultado da alianga dos proprietérios do capital com uma classe média burocratica em expansiio. Esta nova classe média ou tecnoburocracia, que estudei extensamente nos anos 70, detém o monopélio do conhecimento técnico e organizacional, que se tornou crescentemente estratégico & medi- da que o desenvolvimento tecnoldgico se acelerava em todo o mundo.* 3 Meus trabalhos tedricos a respeito siio “A Emergéncia da Tecnoburocracia” (1972) , “Notas Introdutérias a0 Modo Tecnoburocritico ou Estatal de Produgao” (1977), depois reunidos no AREFORMA DO ESTADO DOS ANOS 90 53 Entretanto, daf nao se tornava Iicito supor que seria possfvel ou desejavel substituir os empresdrios pelos administradores na gestéo da economia, nem o capital pela organizagdo na definicio das relagdes basicas de pro- dugiio, muito menos 0 mercado pelo planejamento burocratico na coorde- nagiio da economia. Ao invés disto, bastava admitir que a combinagao ou a complementaridade de mercado e Estado, de capital e organizagio, de empresérios e administradores piblicos e privados, tornara-se essencial para o bom funcionamento dos sistemas econémicos e a consolidagiio dos regimes democriticos. Com a aceleragaio do desenvolvimento tecnolégico ocorrida na segunda metade deste século, o sistema econémico mundial passou por uma profunda transformagiio. Com a redugo brutal dos custos de trans- porte e de comunicagiio, a economia mundial globalizou-se, ou seja, tornou-se muito mais integrada e competitiva. Em conseqiiéncia, os esta- dos nacionais perderam autonomia, e as polfticas econdmicas desenvolvi- mentistas, que pressupunham pajses relativamente fechados e autérquicos, ndo mais se revelaram efetivas. Aos poucos foi se tornando claro que 0 objetivo da intervengao deixara de ser a protegio contra a concorréncia, para se transformar na politica deliberada de estimular e preparar as empré sas € © pais para a competigéio generalizada. Estado e mercado nao mais podiam ser vistos como alternativas polares para se transformarem em fatores complementares de coordenagao econdmica. Em parte em conseqiiéncia da incapacidade de reconhecer os fatos novos que ocorriam no plano tecnolégico, em parte devido & visio equivocada do papel do Estado como demiurgo social, e em parte, final- mente, porque as distorgdes de qualquer sistema de administragiio estatal so inevitaveis 4 medida que transcorre © tempo, o fato € que, a partir dos anos 70 ¢ principalmente nos anos 80, a economia mundial enfrenta uma nova grande crise. No primeiro mundo as taxas de crescimento reduzem-se para a metade em relaciio ao que foram nos primeiros 20 anos apés a Segunda Guerra Mundial, enquanto as taxas de desemprego aumentam, principalmente na Europa, e o milagre japonés que sobrevivera aos anos 80, afinal sogobra nos anos 90. Na América Latina e no Leste Europeu, que se recusam a realizar 0 ajustamento fiscal nos anos 70, a crise se desen- cadeia nos anos 80 com muito mais violéncia. livro A Sociedade Estatal e a Tecnoburocracia (1981), 0 trabalho inédito “As Classes Sociais no Capitalismo Contemporaneo” (1980) € 0 capitulo 10, “Etapas do Desenvolvimento Capitalista", de Lucro Acumulagao e Crise (1986). 54 LUA NOVA N° 45 — 98 Esta crise, porém, nao tem mais como causa a insuficiéncia crOnica de demanda de que falava Keynes. Esta € a causa da crise do mer- cado nos anos 20 e 30. Muito menos pode ser atribuida & aceleragiio do pro- gresso tecnolégico, que pode causar desemprego transitério, mas na ver- dade € a fonte de todo 0 processo de desenvolvimento. Sua causa funda- mental ser agora a crise do Estado — do Estado Intervencionista, que, de fator do desenvolvimento, se transforma em obstéculo. S6 no Leste e no Sudeste Asidtico a crise nao ocorre, exatamente porque ali foi possfvel evi- tar a crise do Estado. Mas mesmo af, no anos 80, economias como as do Japao e da Coréia j4 comecam a dar sinais do esgotamento do modelo esta- tista de desenvolvimento. A crise do Estado a que estou me referindo nao é um conceito vago. Pelo contrdario, tem um sentido muito especffico. O Estado entra em ctise fiscal, perde em graus variados 0 crédito public, ao mesmo tempo que vé sua capacidade de gerar poupanga forgada a diminuir, sendo a desa- parecer, & medida que a poupanga publica, que era positiva, vai se tornan- do negativa. Em conseqiiéncia, a capacidade de intervengdo do Estado diminui dramaticamente. O Estado se imobiliza. A crise do Estado est4 associada, de um lado, ao carter cfclico da intervengao estatal, e de outro, ao processo de globalizagao, que reduz- iu a autonomia das politicas econémicas e sociais dos estados nacionais. A Grande Depressao, embora uma crise do mercado, foi também uma crise do Estado Liberal. Esta crise provocou o surgimento do Estado Social, que no século vinte procurou proteger os direitos sociais e promover o desen- volvimento econémico, assumindo, na realizagéio desse novo papel, trés formas: a do Estado do Bem-Estar nos paises desenvolvidos, principal- mente na Europa, a do Estado Desenvolvimentista nos pafses em desen- volvimento, e a do Estado Comunista nos pafses em que o modo de pro- dugiio estatal tornou-se dominante. A crise dos anos 30 foi uma crise do mercado — de um merca- do que o Estado nao lograva entdo regular de forma satisfatéria. Por isso, quando as politicas mactoecondmicas keynesianas e as idéias de planeja- mento apareceram nos anos 30, foram logo adotadas e implicaram em uma melhoria consideravel do desempenho das economias nacionais. Nos anos 50 tornou-se um lugar comum a idéia de que o Estado tinha papel estratégi- co na promogiio do progresso técnico e da acumulagio de capital, além de Ihe caber a responsabilidade principal pela garantia de uma razodvel dis- tribuigéio de renda, Entretanto, estes éxitos levaram a um crescimento explosivo do Estado nao apenas na drea da regulacdo, mas também no plano social e no plano empresarial. Para isto cresceu a carga tributéria, AREFORMA DO ESTADO DOS ANOS 90 5S que de 5 a 10 por cento no inicio do século passou para 30 a 60 por cento do Produto Interno Bruto dos pafses, e aumentou o nimero de burocratas publics, que agora nao se limitavam a realizar as tarefas cléssicas do Estado. O Estado tornava-se um Estado Social-Burocratico na medida em que, para promover o bem-estar social e o desenvolvimento econémico, contratava diretamente, como funciondrios ptiblicos, professores, médicos, enfermeiras, assistentes sociais, artistas, etc. Ora, como sempre acontece, com 0 crescimento, com o aumen- to de sua capacidade de arrecadagao de impostos e de suas transferéncias, a0s poucos as distorgdes comecaram a aparecer. As transferéncias do Estado foram sendo capturadas pelos interesses especiais de empresdrios, da classe média, ¢ de burocratas piblicos. As empresas estatais, que ini- cialmente se revelaram um poderoso mecanismo de realizagéo de poupanca forgada, na medida em que realizavam lycros monopolistas ¢ os investiam, foram aos poucos vendo esse papel se esgotar, ao mesmo tempo que sua operacéio se demonstrava ineficiente ao adotar os padrdes buro- crdticos de administragio. Na realizago das atividades exclusivas de Estado e principalmente no oferecimento dos servigos sociais de educagio e satide, a administraco pUblica burocrdtica, que se revelara efetiva em combater a corrupgao e 0 nepotismo no pequeno Estado Liberal, demons- trava agora ser ineficiente e incapaz de atender com qualidade as deman- das dos cidadaos-clientes no grande Estado Social do século vinte, tornan- do necesséria sua substituigdo por uma administragdo publica gerencial.4 Em conseqiiéncia seja da captura do Estado por interesses privados, seja da ineficiéncia de sua administragao, seja do desequilibrio entre as demandas da populagio e sua capacidade de atendé-las, o Estado foi entrando em crise fiscal — uma crise fiscal que, em um primeiro momento, no inicio dos anos 80, apareceu sob a forma da crise da divida externa. Na medida em que o Estado via sua poupanga publica tornar-se negativa, perdia autonomia financeira ¢ se imobilizava. Suas limitag6es gerenciais apareci- am com mais nitidez. A crise de governanga, que no limite se, expressava em epis6dios hiperinflacionérios, tornava-se total: 0 Estado, de agente do desenvolvimento, se transformava em seu obstaculo. Por outro lado, 0 processo de globalizagio — uma mudanga quantitativa gradual que afinal se transformou, neste final de século, em 4 Examinarei o conceito de administragao pablica gerencial mais adiante, na seciio sobre gov- manga ¢ reforma administrativa. Para um aprofundamento do tema ver Bresser Pereira (19966). 56 ‘LUA NOVA N° 45 — 98 uma mudanga qualitativa da maior importancia —, imp6s uma pressdo adi- cional para a reforma do Estado. Decorrente de uma grande diminui¢ao dos custos dos transportes e comunicagGes internacionais, a globalizagao levou a um enorme aumento do comércio mundial, dos financiamentos interna- cionais e dos investimentos diretos das empresas multinacionais. Significou, assim, um aumento da competicao internacional em niveis jamais pensados ¢ uma reorganizagao da produco a nfvel mundial patroci- nada pelas empresas multinacionais. O mercado ganhou muito mais espaco a nivel mundial, rompeu ou enfraqueceu as barreiras criadas pelos estados nacionais, ¢ transformou a competitividade internacional em condigaio de sobrevivéncia para o desenvolvimento econ6mico de cada pais . As conse- qiiéncias foram, como acontece sempre quando mercado prevalece, de um lado, uma melhor alocagao dos recursos e 0 aumento da eficiéncia da produgao; de outro, perda relativa da autonomia do Estado, que viu reduzi- daa sua capacidade de formular politicas macroeconémicas e de isolar sua economia da competigio internacional. Com isso, dado 0 fato que os mer- cados sempre privilegiam os mais fortes, os mais capazes, aprofundou-se a concentracao de renda, seja entre os paises, seja entre os cidadzios de um mesmo pajs. Entre os paises porque os mais eficientes tiveram melhores condigdes de se impor sobre os menos eficientes. Entre os cidadaos de cada pais pela mesma razdo. Entre os trabalhadores de paises pobres e ricos, entretanto, a vantagem foi para os primeiros: dado 0 fato que seus saldrios so consideravelmente mais baixos, os paises em desenvolvimento pas- saram a ganhar espago nas importagdes dos paises desenvolvidos, depri- mindo os salarios dos trabalhadores menos qualificados nesses pafses. A globalizacao impés, assim, uma dupla presstio sobre o Estado: de um lado Tepresentou um desafio novo papel do Estado é proteger seus cidadaos, e essa protegdo estava agora em xeque; de outro lado, exigiu que o Estado, que agora precisava ser mais forte para enfrentar 0 desatio, se tornasse tam- bém mais barato, mais eficiente na realizagdo de suas tarefas, para aliviar 0 seu custo sobre as empresas nacionais que concorrem intérnacionalmente, Em conseqiiéncia da captura por interesses privados, que acom- panhou o grande crescimento do Estado, e do processo de globaliza que reduziu sua autonomia, desencadeou-se a crise do Estado, cujas mani- festagdes mais evidentes foram a crise fiscal, 0 esgotamento das suas for- mas de intervengio e a obsolescéncia da forma burocratica de administr4- lo. A crise fiscal definia-se pela perda em maior grau de crédito publico e pela incapacidade crescente do Estado de realizar uma poupanga piblica que Ihe permitisse financiar polfticas puiblicas. A crise do modo de inter- vengiio manifestou-se de trés formas principais: a crise do welfare state no AREFORMA DO ESTADO DOS ANOS 90 37 primeiro mundo, o esgotamento da industrializagdo por substituigio de importagées na maioria dos pafses em desenvolvimento, e o colapso do estatismo nos pafses comunistas. A superacdo da forma burocratica de administrar 0 Estado revelou-se nos custos crescentes, na baixa qualidade € na ineficiéncia dos servicos sociais prestados pelo Estado através do emprego direto de burocratas estatais. As respostas a crise, que naturalmente ganharam cardter universal dada a difusio muito répida das idéias e politicas publicas que ocorre hoje,s variaram de acordo com a filiagSo ideolégica de cada grupo. Para descrever estas respostas reduzitemos os grupos a quatro — a esquerda tradicional, a centro-esquerda social-democratica e pragmitica, a centro-direita pragmati- ca, € a direita neoliberal — e contaremos uma breve histéria estilizada. A esquerda tradicional, arcaica e populista, entrou em crise e ficou paralisada, Nao poderia ter ocorrido de outra.forma, j4 que diagnos- ticou erroneamente a crise como causada por interesses externos: antes pelo imperialismo, agora pela “globalizagdo”. A centro-direita pragmatica — aqui definida como formada pelo establishment capitalista ¢ burocrati- co nos pases centrais ¢ na América Latina — determinou aos paises alta- mente endividados, primeiro (1982), obediéncia aos fundamentos macro- econémicos, principalmente através do ajuste fiscal e da liberalizagdo dos pregos para garantir 0 equilibrio dos pregos relativos; e, segundo (1985, com 0 Plano Baker), as reformas orientadas para 0 mercado (liberalizagao comercial, privatizagdo, desregulagao), que deveriam ser apoiadas politi- camente por politicas sociais compensatérias direcionadas. A direita neoliberal, por sua vez, que criticara desde os anos 30 0 crescimento do Estado mas ndo tinha audiéncia, agora ganhou adeptos, ¢ assumiu uma atitude triunfante. Entendeu que estas reformas orientadas para © mercado, que apoiou e ajudou a formular, trariam automaticamente o desenvolvimento de volta, desde que estivessem firmemente direcionadas para 0 objetivo do Estado mfnimo e do pleno controle da economia pelo mer- cado. Em decorréncia era necessdrio privatizar, liberalizar, destegular, flexi- bilizar os mercados de trabalho, mas fazé-lo de forma radical, j que para o neoliberal 0 Estado deve limitar-se a garantir a propriedade e os contratos, devendo, portanto, desvencilhar-se de todas as suas fungées de intervengao no plano econémico e social. Sua politica macroeconémica deveria ser neu- 5 Ver a respeito Melo ¢ Costa (1995). Os autores analisam a difusio das politicas neoliberais € mais amplamente o mecanismo de policy bandwagoning, que consiste na emulagio, pelos governos, de politicas piblicas exitosas em outros paises ou regibes. 58 LUA NOVA N? 45 —98 tra, tendo como tinico objetivo 0 déficit publico zero e controle do aumento da quantidade de moeda para que esta cresca de forma constante 4 mesma taxa do crescimento natural do PIB; sua politica industrial, nenhuma, e sua politica social, na verso mais pura do neoliberalismo, também nenhuma, dados os efeitos inesperados e perversos que as politicas sociais teriam.6 A centro-esquerda pragmatica, social-democratica ou social-li- beral, diagnosticou com clareza a Grande Crise como uma crise do Estado, delineou a interpretagao social-democratica ou social-liberal da crise do Estado em substituigao a interpretagao nacional-desenvolvimentista, e ado- tou as propostas da centro-direita pragmatica visando a obediéncia aos fun- damentos macroeconémicos — ou seja, politicas econémicas que envolvem ajuste fiscal, polfticas monetdrias apertadas, pregos de mercado, taxas de juros positivas mas moderadas e taxas de cambio realistas — e a realizagao de reformas orientadas para o mercado. Mas alertou que estas politicas nao bastavam, porque 0 mercado apenas — 0 mercado auto-regulavel do equi- librio geral neocldssico e da ideologia neoliberal — nao garante nem o desenvolvimento, nem o equilibrio e a paz social. Desta forma afirmava que as reformas orientadas para 0 mercado eram de fato necessdrias, mas ndo com radicalismo neoliberal. Eram necessérias para corrigir as distorgdes provocadas pelo excessivo crescimento do Estado e pela interferéncia arbi- tréria na definig¢o dos precos relativos. Mas voltar ao Estado Liberal do século dezenove é definitivamente invidvel. Ao invés do Estado mfnimo, a centro-esquerda social-liberal propés a reconstrugao do Estado, para que este possa — em um novo ciclo — voltar a complementar e corrigir efeti- vamente as falhas do mercado, ainda que mantendo um perfil de intervengao mais modesto do que aquele prevalecente no ciclo anterior, Reconstrugdo do Estado que significa: recuperagao da poupanga puiblica e superagao da crise fiscal; redefinig&o das formas de intervengdo no econdmico e no social através da contratagao de organizagGes ptiblicas nao-estatais para executar 0s servigos de educagiio, satide, e cultura; e reforma da administracio publi- ca.com a implantacdo de uma administragdo publica gerencial- Reforma que significa transitar de um Estado que promove diretamente 0 desenvolvi- mento econdmico e social para um Estado que atue como regulador e faci- litador ou financiador a fundo perdido desse desenvolvimento.” Sobre o cardter reaciondrio do pensamento neoliberal ver Hirschman (1991). 7 Uma apresentagio sistematica dessa perspectiva encontra-se em Bresser Pereira, Maravall © Przeworski (1993). Em termos priticos, a guinada em diregao a politicas econdmicas voltadas para 0 ajuste fiscal ¢ a reforma do Estado em governos social-democriticos, como aconteceu na Franga (1981), na Espanha (1983), no Brasil (1995), sfio manifestagdes dessa nova posigao da centro-esquerda social-liberal AREFORMA DO ESTADO DOS ANOS 90 Bo A centro-direita pragmatica e mais amplamente as elites inter- nacionais, depois de uma breve hesitac%o, perceberam, em meados dos anos 90, que esta linha de ago estava correta, e adotaram a tese da refor- ma ou da reconstrugdo do Estado. O Banco Mundial e 0 Banco Intera- mericano de Desenvolvimento tornaram os empréstimos para a reforma do Estado prioritérios. As Nag&es Unidas promoveram uma assembiéia geral resumida sobre a administrag&o publica. Muitos pafses criaram ministérios ou comissées de alto nivel encarregadas da reforma do Estado. © World Development Report de 1997 tinha originalmente como titulo Rebuilding the State. A reforma do Estado tornou-se 0 lema do anos 90, substituindo a divisa dos anos 80: 0 ajuste estrutural. Uma grande coalizio de centro-esquerda ¢ de centro-direita assim se formou. Uma coalizdo que levou os governos, na América Latina, no Leste Europeu, em um grande ndmero de pafses em desenvolvimento na Asia, e mesmo nos paises desenvolvidos, a promoverem a reforma do Estado para tornd-lo menor, mais voltado para as atividades que Ihe sfio especificas, que envolvem poder de Estado, mas mais forte, com maior governabilidade e maior governanga, com mais capacidade, portanto, de promover e finan- ciar, ou seja, de fomentar a educacdo e da satide, o desenvolvimento tec- nolégico e cientifico, e, assim, ao invés de simplesmente proteger suas economias nacionais, estimuld-las a serem competitivas internacionalmente. Delineia-se, assim, o Estado do século vinte-e-um. Nao serd, certamente, 0 Estado Social-Burocrético, porque foi esse modelo de Estado que entrou em crise. Nao sera também o Estado Neoliberal sonhado pelos conservadores, porque no existe apoio politico nem racionalidade econdmica para a volta a um tipo de Estado que prevaleceu no século dezenove. Nossa previsdo é a de que 0 Estado do século vinte-e-um seré um Estado Social-Liberal: social porque continuard a proteger os direitos sociais e a promover o desenvolvi- mento econ6mico; liberal, porque o fard usando mais os controles de merca- do € menos os controles administrativos, porque realizard seus servigos so- ciais e cientificos principalmente através de organizagdes piiblicas nio- 8 Afinal o WDR recebeu 0 titulo The State in a Changing World, mas conservou sua inspi- ago basica: a reforma ou a reconstrugdo do Estado, Em sua introdugdo o documento afirma: “Desenvolvimento sustentado— econdmico e social — exige um Estado efetivo... Quando as pessoas diziam, cinglienta anos atrés, que o Estado era central para o desenvolvimento econdmico, ela pensavam em desenvolvimento garantido pelo Estado. Hoje nés estamos novamente verificando que o Estado é central para o desenvolvimento econdmico ¢ social, mas principalmente como um sécio, um agente catalisador e facilitador.” 60 LUA NOVA N°45 — 98. estatais competitivas, porque tornaré os mercados de trabalhos mais flexiveis, porque promoverd a capacitagiio dos seus recursos humanos e de suas empresas para a inovacdio e a competicdo internacional.? Mas, afinal, quais so os componentes ou processos basicos da reforma do Estado dos anos 90, que levardo ao Estado Social-Liberal do século vinte-e-um? Sdo a meu ver quatro: (a) a delimitagao das fungdes do Estado, reduzindo seu tamanho em termos principalmente de pessoal através de programas de privatizagao, terceirizacio “publicizacio” (este tiltimo processo implicando a transferéncia para o setor piiblico nao-estatal das servigos sociais e cientificos que hoje o Estado presta); (b) a redugao do grau de interferéncia do Estado ao efetivamente necessdrio através de programas de desregulacéo que au- mentem 0 recurso aos mecanismos de controle via mercado, transformando o Estado em um promotor da capacidade de competi¢ao do pais em nivel internacional ao invés de prote- tor da economia nacional contra a competicao internacional; (c) 0 aumento da governanga do Estado, ou seja, da sua capaci- dade de tornar efetivas as decis6es do governo, através do ajuste fiscal, que devolve autonomia financeira ao Estado, da reforma administrativa rumo a uma administragdo publica gerencial (ao invés de burocrdtica), e a separacdo, dentro do Estado, ao nivel das atividades exclusivas de Estado, entre a formulagao de politicas piiblicas e a sua execugio; e, final- mente, (d) 0 aumento da governabilidade, ou seja, do poder do gover- no, gragas A existéncia de instituigdes politicas que garantam uma melhor intermediago de interesses e tornem mais leg{- timos e democraticos os governos, aperfeigoando a demo- cracia representativa e abrindo espaco para o controle social ‘ou democracia direta. 9 Bob Jessop (1994: 103) afirma que o welfare state keynesiano seri substituido no século vinte-e-um pelo workfare stare shumpeteriano, que promoverd a inovagtio em economias abertas © subordinara a politica social as necessidades da flexibilizagdo dos mercados ¢ das. exigéncias de competicao internacional. Ha uma clara relagdo entre o conceito de Estado Social-Liberal e 0 workfare state shumpeteriano. AREFORMA DO ESTADO DOS ANOS 90. 61 Uma outra forma de conceituar a reforma do Estado em curso, € entendé-la como um processo de criago ou de transformagao de instituigdes, de forma a aumentar a governanga e a governabilidade. A privatizagao é um processo de transformar uma empresa estatal em privada. Publicizagdo, de transformar uma organizacao estatal em uma organizagio de direito privado, mas publica ndo-estatal. Terceirizagdo é o processo de transferir para o'setor privado servicos auxiliares ou de apoio. No seio do Estado estrito senso, onde se realizam as atividades exclusivas de Estado, a clara distingdo entre secretarias formuladoras de politicas piiblicas, agéncias executivas e agén- cias reguladoras auténomas implica em criagdo ou redefinig&o da insti- tuigdes. No plano das reformas, muitas delas implicam a criagio de novas instituigdes, entendidas estas de forma restrita como instituigdes organiza- cionais (isto 6 especialmente verdade para as instituigdes voltadas para o controle social), e todas elas implicam novas instituigdes legais: 0 voto pro- porcional, 0 voto distrital misto, a limitago do niimero de partidos, a fideli- dade partidéria, a propaganda politica gratuita, a garantia de participagdio nas decisées politicas das instituigdes ptiblicas nao-estatais. Nessa linha de raciocfnio, mas de uma forma muito mais abstra- ta, € possivel pensar na reforma do Estado a partir do modelo do principal- agente, como uma forma de criar incentivos e punigdes para que a vontade dos eleitores se realize no Estado. Segundo esse modelo, em sua forma simplificada, os eleitores seriam os principais, os politicos eleitos, seus agentes; estes, por sua vez, seriam os principais dos burocratas ou servi- dores puiblicos.'® A tarefa fundamental da reforma seria a criacdo ou refor- ma de instituigdes de forma que os incentivos e punigdes se tornassem rea- lidade. Nesse nfvel de abstrac&o, n&o tenho objecdo a esta abordagem. Afinal ela codifica 0 ébvio. Entretanto, quando muito dos seus autores, a partir de uma perspectiva da escola da escolha racional, supdem que os politicos 6 se motivam por rent seeking e a vontade de ser reeleito, excluindo o interesse ptiblico como uma terceira motivago, sua capaci- dade explicativa torna-se muito menor. Por outro lado, quando limita a motivagdo dos administradores ptiblicos ao rent seeking e & vontade de ocupar cargos, excluindo a vontade de realizagao ¢ o interesse piiblico, 0 comportamento de um grande ntimero de administradores e 0 sentido das reformas que inspiram a “nova administragao publica” — a administrago publica gerencial — tornam-se incompreens{veis. Nas pr6ximas segSes vamos examinar estes quatro componentes 10. Para a andlise da reforma do Estado sob esta ética ver Przeworski (1996a) e Melo (1996). 62 LUA NOVA N° 45 — 98 basicos da reforma do Estado: (a) delimitagdo de seu papel através dos processos de privatizagao, publicizagdo e terceirizagao; (b) a desregulacio; (©) 0 aumento da governanga; e (d) 0 aumento da governabilidade, Em ou- tras palavras, analisaremos, respectivamente, a légica dos processos de redugo do tamanho do Estado, da diminuigio de sua interferéncia nas atividades econémicas, de aumento de sua capacidade fiscal e administra- tiva, e do aumento do poder politico democratico de seus governantes. E ao fazé-lo estaremos, concomitantemente, examinando as principais insti- tuigGes que esto no centro da reforma do Estado dos anos 90. DELIMITACAO DA AREA DE ATUACAO Areforma do Estado é vista freqiientemente como um proces- so de redugao do tamanho do Estado, envolvendo a delimitagdo de sua abrangéncia institucional e a redefinig&io de seu papel. Dado seu cresci- mento excessivo neste século, as esperancas demasiadamente grandes que foram nele depositadas pelos socialistas, e as distorges de que o Estado afinal foi vitima, essa perspectiva é essencialmente correta. O Estado cresceu em termos de pessoal, e principalmente, em termos de receita e despesa. Em muitos paises, os servidores piiblicos, exclufdos os trabalhadores das empresas estatais, correspondem a cerca de 10 a 20 por cento da forga de trabalho, quando no inicio do século esta cifra estava prxima dos 5 por cento. As despesas do Estado, por sua vez, multi- plicaram-se por trés ou quatro neste século: nos tltimos 30 anos dobraram, variando hoje entre 30 e 50 por cento do PIB. !! Naturalmente esse processo de crescimento ocorria ao mesmo tempo que se ampliavam as fungdes do Estado, principalmente na drea social.!2 O fato de que a relagio entre o niimero de servidores e a forca de trabalho economicamente ativa é sempre consideravelmente inferior & ‘I. Medindo o tamanho do Estado pela sua despesa 0 Banco Mundial (1997: 1.6) verificou gue “em trés décadas e meia, entre 1960 e 1995, 0 Estado dobrou o seu tamanho”. 2 - Os Estados europeus, que desenvolveram um sistema de bem-estar sofisticado, garan- ‘indo um padrio minimo de vida a todos os seus cidadaos, encontram-se proximos do limite Superior, enquanto que os paises de desenvolvimento intermediario e os Estados Unidos, em que as desigualdades so profundas € certos direitos minimos nfo esto assegurados, agrupam-se em torno do limite inferior. Conforme escreveu Adam Przeworski (1995b), para que um pais seja “civilizado”, ou seja, que tenha menos de 10 por cento da sua populagio abaixo da linha de pobreza, € necessdrio que sua carga tributdria esteja em torno de 45 por cento do PIB. Segundo esse critério os Estados Unidos niio sfo civilizados, jé que cerca de 18 por cento da sua populago é pobre. AREFORMA DO ESTADO DOS ANOS 90 63 relagdo entre a carga tributdria e o PIB deriva em parte do fato de que os servidores piblicos tem uma qualificagao e, em conseqiiéncia, uma remu- nerago em média superior & remuneragio do setor privado. O motivo prin- cipal, entretantd, foi um processo gradual de delimitacéo da drea de atuagdo do Estado. Aos poucos foi-se reconhecendo que o Estado nao deve executar diretamente uma série de tarefas. Que reformar o Estado signifi- ca, antes de mais nada, definir seu papel, deixando para o setor privado e para 0 setor piiblico nao-estatal as atividades que ndo Ihe sfo espectficas. Para delimitar com clareza as fungées do Estado € preciso, a par- tir do conceito de Estado, distinguir trés 4reas de atuacdo: (a) as atividades exclusivas do Estado; (b) os servigos sociais e cientfficos do Estado; e (c) a produgio de bens e servigos para o mercado. Por outro lado é conveniente distinguir, em cada uma dessas Areas, quais so as atividades principais (core activities) e quais as auxiliares ou de apoio. A Figura 1 resume, através de uma simples matriz, essas distingdes. Nas suas colunas temos as Atividades Exclusivas de Estado, os Servi¢os Sociais e Cientfficos e a Produgdo de Bens e Servigos para 0 Mercado. A definigaio de quais sejam as atividades exclu- sivas de Estado deriva da propria definigdo do que seja esta instituigao. Politicamente, o Estado € a organizagfo burocrética que detém o “poder extroverso” sobre a sociedade civil existente em um territério. As organiza- oes privadas e as ptiblicas ndo-estatais tem poder apenas sobre os seus fun- ciondrios, enquanto que o Estado tem poder para fora dele, detém o “poder de Estado”: o poder de legislar e punir, de tributar e realizar transferéncias a fundo perdido de recursos. O Estado detém esse poder para assegurar a ordem interna — ou seja, garantir a propriedade e 0s contratos —, defender © pais contra o inimigo externo, e promover o desenvolvimento econdmico e social. Neste ultimo papel podemos pensar o Estado em termos econémi- cos: € a organizagdo burocratica que, através de transferéncias, complemen- ta o mercado na coordenagdo da economia: enquanto o mercado opera através da trocas de equivalentes, o Estado o faz através de transferéncias financiadas pelos impostos. Figura 1: Delimitagao da Area de Atuagao do Estado Atividades Servigos Sociais | Produgdo de Bens e Exclusivas de Estado |e Cientificos | Servigos p/ Mercado | Atividades ESTADO | Principais | Enquanto Pessoal | (Core) Atividades | | | terceirizagao V a i es ra tT i Auxiliares. | 64 LUA NOVA N° 45 — 98 O Estado é uma entidade monopolista por definig&io. Nao foi por outra razio que Weber o definiu como a organizacio que detém o monopélio legitimo da violéncia. Atividades exclusivas de Estado sao, assim, atividades monopolistas, em que o poder de Estado € exercido: poder de definir as leis do pafs, poder de impor a justica, poder de manter a ordem, de defender o pafs, de representé-lo no exterior, de policiar, de arrecadar impostos, de regulamentar as atividades econémicas, fiscalizar 0 cumprimento das leis. S40 monopolistas porque nao permitem a concor- réncia. Imagine-se, por exemplo, um Estado que nomeasse dois embai- xadores para representé-lo em um pais, para ver quem o faria melhor... Ou que permitisse que dois jufzes julgassem concomitantemente a mesma causa... Ou que atribuisse a dois fiscais a tarefa de fiscalizar competitiva- mente o mesmo contribuinte... Estas hip6teses sao obviamente absurdas. Entretanto, além dessas atividades, que caracterizam o Estado classico, liberal, temos uma série de outras atividades que Ihe sdo exclusi- vas correspondentes ao Estado Social. Em esséncia sio as atividades de formular politicas na rea econémica e social e, em seguida, de realizar transferéncias para a educacio, a satide, a assisténcia social, a previdéncia social, a garantia de uma renda minima, 0 seguro desemprego, a defesa do meio ambiente, a protegao do patriménio cultural, o estimulo as artes. Estas atividades no sao todas intrinsecamente monopolistas ou exclusivas, mas na pratica, dado 0 volume das transferéncias de recursos orgamen- tdrios que envolvem, sao de fato atividades exclusivas de Estado. Ha toda uma série de razdes para que o Estado subsidie estas atividades, que nao cabe aqui discutir. O principal argumento econémico que as justifica é o de que estas sio atividades que envolvem externalidades positivas impor- tantes, ndo sendo, portanto, devidamente remuneradas pelo mercado.'3 O argumento ético € 0 de que sao atividades que envolvem direitos humanos fundamentais que qualquer sociedade deve garantir a seus cidadaos. E temos ainda as atividades econémicas do Estado que lhe sao exclusivas. A primeira e principal delas é a de garantir a estabilidade da moeda, Para isto a criagdo dos bancos centrais neste século foi fundamen- tal. A garantia da estabilidade do sistema financeiro, também executada pelos bancos centrais, é outra atividade exclusiva de Estado estratégica. Os investimentos na infra-estrutura e nos servigos ptiblicos nao sao, a rigor, uma atividade exclusiva de Estado, na medida em que podem ser objeto de 13 _ Sobre o argumento econémico, a respeito do qual a literatura é imensa, ver em especial Stiglitz (1989, 1993b, 1994) e Praeworski (1990, 1995a, 1996a). AREFORMA DO ESTADO DOS ANOS 90 65 concessdo. Nao ha diivida, porém, de que a responsabilidade desse setor é do Estado, e de que muitas vezes ele é obrigado a investir diretamente. Na reforma do Estado as atividades exclusivas de Estado devem, naturalmente, permanecer dentro do Estado. Podemos distinguir dentro dela, verticalmente, no seu topo, um nticleo estratégico, e, horizon- talmente, as secretarias formuladoras de politicas piblicas, as agéncias executivas e as agéncias reguladoras. Discutiremos estas instituicées na segdo relativa ao aumento da governanga através de uma administragio publica gerencial. No outro extremo, conforme mostra a Figura 1, temos a pro- dugao de bens e servicos para o mercado. Esta é uma atividade que, exce- to no ef€mero modelo estatista de tipo soviético, foi sempre dominada por empresas privadas. No entanto, no século vinte, o Estado interveio forte- mente nesta rea, principalmente na érea monopolista dos servigos pibli- cos objetos de concessdo, mas também em setores de infra-estrutura e em setores industriais e de minerag&o com elevadas economias de escala. 0 motivo fundamental pelo qual o Estado interveio nesta drea n&o foi ideolégico, mas sim pratico. E este motivo pratico teve um duplo caréter: de um lado o Estado investiu em setores em que os investimentos eram pesados demais para que o setor privado pudesse fazé-lo; de outro, investiu em setores monopolistas que poderiam ser auto-financiados a partir dos elevados lucros que poderiam ser realizados.!* A recfproca do motivo principal que levou a estatizagiio de cer- tas atividades econémica — a falta de recursos no setor privado — impés, a partir dos anos 80, a sua privatizagdo. Agora era o Estado que estava em crise fiscal, sem condigdes de investir, e, pelo contrério, necessitando dos recursos da privatizagao para reduzir suas dfvidas, que haviam aumentado muito. Por outro lado, ficou definitivamente claro que a atividade empre- sarial nao € prépria do Estado, j4 que pode ser muito melhor e mais efi- cientemente controlado pelo mercado do que pela administragio. Além do controle pelo Estado ser ineficiente quando comparado com 0 mercado, 0 controle estatal tem ainda o problema de submeter a operagdo das empre- sas a critérios politicos muitas vezes inaceitaveis, e a confundir a fungéio da empresa, que é a de ser competitiva e ter lucros, com a do Estado, que na 14 _ No Brasil os investimentos do Estado na siderurgia ¢ na petroquimica incluem-se no primeiro caso; os nas telecomunicagées, no segundo; e os no petréleo e na energia elétrica, nos dois casos. Ver a respeito Bresser Pereira (1977a: Cap.10, “O Estado Produtor”) e Alves dos Santos (1996). 66 LUA NOVA N° 45 — 98 rea econémica pode ser a de distribuir renda. Durante muito tempo esta- tizagdo e privatizagao foram objeto de amplo debate ideoldgico. Hoje esse debate esté superado. Existe um relativo consenso de que é necessério pri vatizar — dada a crise fiscal — e conveniente privatizar, dada a maior efi- cigncia e a menor subordinagdo a fatores politicos das empresas privati- zadas. O tinico setor da produgao de bens e servicos para o mercado onde pode haver diividas legitimas sobre a conveniéncia de privatizar € 0 dos monopélios naturais. Nestes, para se poder privatizar, é necessério esta- belecer agéncias reguladoras auténomas, que sejam capazes de impor os pregos que prevaleceriam se mercado houvesse. No meio, entre as atividades exclusivas de Estado e a produgao de bens e servigos para o mercado, temos hoje, dentro do Estado, uma série de atividades na drea social e cientffica que ndo Ihe sdo exclusivas, que nio envolvem poder de Estado. Incluem-se nesta categoria as escolas, as uni- versidades, os centros de pesquisa cientifica e tecnolégica, as creches, os ambulat6rios, os hospitais, entidades de assisténcia aos carentes, princi- palmente aos menores e aos velhos, os museus, as orquestras sinfénicas, as oficinas de arte, as emissoras de radio e televisio educativa ou cultural, etc., Se o seu financiamento em grandes proporgées é uma atividade exclu- siva do Estado — seria dificil garantir educagio fundamental gratuita ou satide gratuita de forma universal contando com a caridade publica — sua execucao definitivamente nao o €. Pelo contrdrio, estas siio atividades com- petitivas, que podem ser controladas ndo apenas através da administrago publica gerencial, mas também e principalmente através do controle social e da constituigo de quase-mercados. Nestes termos nao h4 razdo para que estas atividades per- manegam dentro do ido, sejam monopdlio estatal. Mas também nao se justifica que sejam privadas — ou seja, voltadas para o lucro e o consumo privado — ja que so, freqiientemente, atividades fortemente subsidiadas pelo Estado, além de contarem com doagdes voluntarias da sociedade. Por isso a reforma do Estado nesta érea nao implica em privatizagdo mas em “publicizagéo” — ou seja, em transferéncia para o setor publico ndo-estatal. Apalavra “publicizagdio” foi criada para distinguir este proceso de reforma do de privatizagao. E para salientar que, além da propriedade privada e da propriedade estatal existe uma terceira forma de propriedade relevante no capitalismo contemporaneo: a propriedade publica nioestatal. Na lin- guagem vulgar 6 comum a referéncia a apenas duas formas de propriedade: a propriedade publica, vista como sinénima de estatal, e a propriedade pri- vada. Esta simplificago, que tem uma de suas origens no caréter dual do Direito — ou temos direito publico ou privado — leva as pessoas a se referirem a entidades de cardter essencialmente ptblico, sem fins lucrativos, AREFORMA DO ESTADO DOS ANOS 90 67 como “privadas”. Entretanto, se definirmos como ptblico aquilo que esté voltado para o interesse geral, e como privado aquilo que € voltado para 0 interesse dos individuos e suas famflias, est4 claro que 0 piiblico no pode ser limitado ao estatal, e que fundagGes e associagGes sem fins lucrativos e ndo voltadas para a defesa de interesses corporativos mas para o interesse geral nado podem ser consideradas privadas. A Universidade de Harvard ou a Santa Casa de Miseric6rdia de Sao Paulo nao sdo entidades privadas, mas ptiblicas. Como, entretanto, no fazem parte do aparelho do Estado, nao esto subordinadas ao governo, néio tém em seus quadros funciondrios ptiblicos, nao so estatais. Na verdade sao entidades publicas nao-estatais (ou seja, usando-se os outros nomes com que so designadas, so entidades do terceiro setor, so entidades sem fins lucrativos, sdo organizagdes naio- governamentais, organizagées voluntérias). Oespago piblico é mais amplo do que o estatal, j4 que pode ser estatal ou néo-estatal. No plano do dever-ser o estatal é sempre ptiblico, mas na prética, nfo 6: 0 Estado pré-capitalista era, em dltima andlise, pri- vado, j& que existia para atender &s necessidades do principe; no mundo contemporaneo 0 piblico foi conceitualmente separado do privado, mas vemos todos os dias as tentativas de apropriacao privada do Estado. E Piiblico 0 espaco que é de todos e para todos. E estatal uma forma especf- fica de espago ou de propriedade publica: aquela que faz parte do Estado. E privada a propriedade que se volta para o lucro ou para 0 consumo dos individuos ou dos grupos. Uma fundacao, embora regida pelo Direito Civil € nao pelo direito administrativo, é uma instituigdo publica, na medida que esté voltada para o interesse geral. Em princfpio todas as organizagdes sem fins lucrativos si0 ou devem ser organizagdes puiblicas ndo-estatais,!5 Poderfamos dizer que, afinal, continuamos apenas com as duas formas classicas de propriedade: a ptiblica e a privada, mas com duas importantes ressalvas: primeiro, a propriedade piblica se subdivide em estatal ndo- estatal, ao invés de se confundir com a estatal; ¢ segundo, as instituigdes de Direito Privado voltadas para o interesse ptiblico e nao para o consumo pri- vado nao sao privadas, mas sim puiblicas nao-estatais, O reconhecimento de um espaco piiblico néo-estatal tornou-se particularmente importante em um momento em que a crise do Estado aprofundou a dicotomia Estado-setor privado, levando muitos a imaginar que a tinica alternativa & propriedade estatal é a privada. A privatizagio é 15 “Sao ou devem sex” porque uma entidade formalmente pablica e sem fins lucrativos, pode na verdade, té-los, Nesse caso trata-se de uma falsa entidade piblica. So comuns casos desse tipo. 68 LUA NOVA N° 45 — 98 uma alternativa adequada quando a instituigao pode gerar todas as suas receitas da venda de seus produtos e servigos, e 0 mercado tem condigdes de assumir a coordenagao de suas atividades. Quando isto nao acontece, estd aberto o espaco para o piblico ndo-estatal. Por outro lado, no momen- to em que a crise do Estado exige o reexame das relagdes Estado- sociedade, o espaco ptiblico ndo-estatal pode ter um papel de intermedi- aco ou pode facilitar o aparecimento de formas de controle social direto e de parceria, que abrem novas perspectivas para a democracia. Conforme observa Cunill Grau (1995: 31-32): “A introdugio do ‘piiblico” como uma terceira dimensio, que supera a visio dicotémica que enfrenta de maneira absoluta o ‘estatal’ com o ‘privado’, est4 indiscutivelmente vinculada & necessidade de redefinir as relagGes entre Estado e sociedade... O publico, ‘no Estado’ nao é um dado definitivo, mas um processo de construgao, que por sua vez supée a ativagiio da esfera publica social em sua tarefa de influir sobre as decisdes estatais”. Manuel Castels declarou em um semindrio no Brasil (1994) que as ONGs eram instituig6es quase-piblicas.'6 De fato siio, na medida em que esto a meio caminho entre o Estado e a sociedade. As organizagées puibli- cas ndo-estatais realizam atividades publicas e sdo diretamente controladas pela sociedade através de seus conselhos de administragao. Existem, no entanto, outras formas de controle social direto e de definigdo de espago publico ndo-estatal. No Brasil, a partir da experiéncia de Porto Alegre, uma instituigdo interessante & a dos orgamentos participativos, através da qual os cidaddios participam diretamente da elaboragiio do orcamento municipal.!7 Conforme observa Tarso Genro (1996), através das organiza- Ges ptiblicas nao-estatais a sociedade encontra uma alternativa para a pri- vatizagdio. Esta pode ser a forma adequada de propriedade quando a empre- sa tem condig6es de se auto-financiar no mercado. Todas as vezes, entre- tanto, que o financiamento de uma determinada atividade depender de doagGes ou de transferéncias do Estado, isto significaré que é uma ativi- dade piiblica, que nao precisando ser estatal, pode ser ptiblica ndo-estatal, 16 . Essas instituigdes so impropriamente chamadas de ONGs — organizages niio-governa- mentais — na medida que os cientistas politicos nos Estados Unidos geralmente confundem govemo com Estado, E mais corre(o falar em organizagdes pablicasnito—estalais - OPNES. 7 - © orgamento participativo foi introduzido pelo prefeito Olivio Dutra (1989-1992) e con- tinuado pelo prefeito Tarso Genro (1993-1996), ambos do Partido dos Trabalhadores - PT. AREFORMA DO ESTADO DOS ANOS 90 69 e assim ser mais diretamente controlada pela sociedade que a financia e dirige. Ora, em uma situagdo em que o mercado é claramente incapaz de realizar uma série de tarefas, mas que o Estado também no se demonstra suficientemente flex{vel e eficiente para realiz4-las, abre-se espago para as. organizagGes piblicas nao-estatais.!8 Nesta segunda metade do século vinte 0 crescimento das organi- zagGes ptiblicas no-estatais tem sido explosivo. As vezes estas organizacdes se confundem com uma quarta forma de propriedade relevante no capitalis- mo contempordneo — a propriedade corporativa, que caracteriza os sindi- catos, associagdes de classe e clubes.! E 0 caso das associagées de bairro, por exemplo, que realizam ao mesmo tempo servi¢gos comunitérios.20 Entretanto, se o crescimento das entidades representativas de interesses tem sido muito grande neste século, e, como demonstrou Putnam (1993), esse crescimento é um fator fundamental para o fortalecimento da sociedade civil e 0 desen- volvimento econémico da regitio ou pats onde isto ocorre, o crescimento das organizagées publicas néo-estatais tem sido tanto ou mais significativo, em- bora menos estudado. Este crescimento decorre da maior adequagao — e por- tanto maior eficiéncia — desse tipo de instituigéo para a realizagdo dos servigos sociais. Servigos que no sfio naturalmente monopolistas, podendo se beneficiar da competicao pelo apoio da sociedade e do Estado. Servigos que, como atendem diretamente a populagio, podem ser efetivamente controlados pelos cidadaos através de mecanismos de controle social. O processo de ampliagao do setor ptiblico nao-estatal ocorre a par- tir de duas origens: de um lado, a partir da sociedade, que cria continuamente entidades dessa natureza; de outro lado, a partir do Estado, que nos processos de reforma deste tiltimo quartel do século vinte, se engaja em processos de publicizagdo de seus servigos sociais e cientificos. Isto ocorreu de forma dramética na Nova Zelandia, na Austrdlia e no Reino Unido. Também estd 18 Examinei originalmente esse assunto em um trabalho sobre a transigdo para o capitalismo das sociedades ex-comunistas. Propus que os grandes servicos piblicos monopolistas no fos- sem, pelo menos inicialmente, privatizados, mas transformados em organizagdes paiblicas ‘nJo-estatais (Bresser Pereira, 1992). 19 As organizagées corporativas defendem interesses dos seus associados, seja no plano palitico (Sindicatos), seja na organizagdo de seu consumo (clubes). -0 Em geral, entretanto, é possivel distinguir com clareza uma organizagdo publica ndo-estatal de uma organizagio corporativa. Também é facil distingui-la de uma organizagao privada, ‘embora, nos paises em que o Estado nio esta devidamente organizado, seja possivel encon- trar muitas organizagdes que, para se beneficiar de isengdes fiscais, se apresentam como pablicas ndo-estatais embora sejam, de fato, privadas. 70 LUA NOVA N° 45 — 98 acontecendo em varios paises europeus e mais recentemente nos Estados Unidos no nivel do ensino fundamental, em que surgem escolas gratuitas de cardter comunitério, financiadas pelo Estado.?! Neste tiltimo pafs, as univer- sidades e hospitais do National Health Service, que eram estatais, foram trans- formadas em quangos (“quasi autonomous non-govemnamental organiza- tions”). No Brasil, 0 programa de publicizagio em curso prevé a transfor- magao desses servicos em “organizag6es sociais” — uma entidade publica de direito privado que celebra um contrato de gestdo com o Estado e assim é financiada parcial ou mesmo totalmente pelo orgamento piiblico. Finalmente, passando da andlise das colunas para a das linhas da Figura 1, temos as Atividades Principais (core functions) e as Atividades Auxiliares ou de apoio. As atividades principais so as atividades propria- mente de governo, so as atividades em que o poder de Estado é exercido. Sao as ages de legislar, regular, julgar, policiar, fiscalizar, definir politicas, fomentar. Mas para que estas fungGes do Estado possam ser realizadas 6 necessério que os politicos e a alta burocracia estatal, no micleo estratégi- co, e também a média administragao ptiblica do Estado,22 conte com o apoio de uma série de atividades ou servicos auxiliares: limpeza, vigilan- cia, transporte, coperagem, servigos técnicos de informatica e processa- mento de dados, etc. Segundo a légica da reforma do Estado dos anos 90, estes servicos devem em princfpio ser terceirizados, ou seja, devem ser submetidos a licitagao publica e contratados com terceiros. Dessa forma, esses servigos, que sao servigos de mercado, passam a ser realizados com- petitivamente, com substancial economia para o Tesouro. Sempre poderd haver excegdes nesse processo de terceirizagao. As areas cinzentas nao faltar’o. E conveniente terceirizar os trabalhos das secretérias? Embora seu papel tenha diminufdo consideravelmente na administragzio moderna, provavelmente ndo é. Haverd outros servicos dessa natureza, em que a proximidade da atividade exclusiva nao recomen- da a terceirizagao. Por isso e porque também haverd éreas cinzentas entre © que deve ser publicizado e 0 que ndo, é adequado, haver dois regimes juridicos dentro do Estado: dos funciondrios estatudrios e 0 dos empre- gados. Essa € uma pratica, de fato, comum nos pafses desenvolvidos, dota- 21. Na Espanha cerca de um quarto dos alunos estudam em escolas comunitérias ‘gratuitas, que recebem do Estado o equivalente ao que o Estado gasta para a manutenedo das escolas estatais. Nos Estados Unidos est havendo recentemente um grande desenvolvimento das Sghartered schools”, que obedecem o mesmo principio de financiamento. 2 - Estamos aqui usando “administragao publica”, acompanhada de “alta” ou de “média”, € “burocracia estatal” como sin6nimos. AREFORMA DO ESTADO DOS ANOS 90 al dos de burocracias desenvolvidas. A condigao de servidores estatutérios fica limitada as carreiras de Estado, sendo considerados empregados — numa situagao intermediéria entre o servidor estatutdrio e 0 trabalhador pri- vado — os demais servidores que exergam atividades auxiliares que se decidiu nao terceirizar ou que nao foi possivel publicizar. Na verdade, 0 processo de terceirizagio de servigos, ora em curso em todos os Estados modernos, é apenas mais um capitulo do proces- so de contratagao de terceiros que ganhou forga em meados do século vinte, quando as obras piiblicas foram terceirizadas. No inicio desse sécu- lo era ainda comum que o Estado realizasse diretamente seus projetos e suas obras de engenharia. Com o surgimento das empreiteiras e das empre- sas e projetos, essa prética desapareceu, De forma semelhante, 0 processo de privatizagao é, em parte, um processo de volta ao principio da concessao de servigos ptiblicos. Nao € apenas isto porque, no auge do Estado Empresdrio, foram estatizadas ou iniciadas pelo Estado empresas indus- triais e de servigos que ndo eram servicos piblicos. O resultado, na reforma do Estado, desse triplice processo de privatizagao, publicizagao e terceirizagao que est ocorrendo nas reformas Figura 2: Instituiges Resultantes da Reforma do Estado ‘Aividades | Servigos Socials | Produgao de Bens e Exclusivas de Estado| _e Cientificos | Servigos p/ Mercado Atividades ESTADO Entidades Publicas Empresas Principais | Enquanto Pessoal | Nao Estatais Privatizadas (Core) | Atividades | Empresas. Empresas Empresas ‘Auxiliares Terceirizadas | Terceirizadas. Terceirizadas do Estado, € 0 de que o Estado Enquanto Pessoal fica limitado a um tinico quadrante na Figura 1. Nos demais quadrantes, como vemos na Figura 2, ficam as Entidades Publicas Nao-Estatais,*3 as Empresas Privatizadas, e as Empresas Terceirizadas. Estado “Enquanto Pessoal” porque € preciso ter claro que o Estado € maior do que o seu pessoal, na medida em que temos um Estado Social e nao um Estado Liberal, como 0 foi o do século deze- nove. Para medirmos o tamanho do Estado em relagio ao pafs ou Estado- 23 . Entidades publicas néio-estatais que, no Brasil, quando publicizadas, estamos chamando de “organizagies sociais”. 72 LUA NOVAN? 45 —98 Nagao do qual faz parte, a melhor forma no é saber qual € a proporcdo de funciondtios em relago ao total de mao de obra ativa, mas qual é a parti- cipagdo da despesa do Estado em relagdo ao Produto Interno Bruto. No Estado Social a segunda taxa (Despesa/PIB ) deverd ser maior do que a primeira (Servidores Estatudrios/Mao-de-Obra Ativa), mesmo que o saldrio médio dos servidores ptiblicos seja maior do que a média nacional de salarios. O Estado Social-Burocrdtico do século vinte, como o Social- Liberal, do século vinte-e-um continuard a ser um forte promotor ou sub- sidiador das atividades sociais e cientificas, com a diferenga que sua exe- cugao no Estado que esta surgindo caberd principalmente a entidades publicas ndo-estatais. Se quiséssemos representar este fato graficamente, 0 Estado Social (Estado enquanto Despesa) ocuparia uma grande parte da coluna dos servigos sociais e cientificos, na medida que estes sio financia- dos a fundo perdido com recursos do Estado provenientes de impostos.24 DESREGULAMENTACAO Além de delimitar a drea de atuagiio do Estado nos termos pro- Postos na seco anterior, a reforma do Estado envolve um processo de delimitagdo de seu papel regulador e portanto dos processos de desregula- mentagao. Uma coisa é definir a abrangéncia institucional do Estado, é saber se 0 Estado deve se ocupar diretamente de uma série de atividades, como ocorreu no Estado Social-Burocrdtico, ou se tenderé a se limitar a suas fung6es especificas, como aponta a reforma do Estado em curso; outra coisa € determinar qual a extensfo do seu papel de regulamentador das atividades privadas. Nao hd duivida de que esta é uma fungdo espectfica do Estado, j4 que Ihe cabe definir as leis que regulam a vida econémica e Social. Mas até que ponto deve ir essa regulagao, especialmente das ativi- dades econdmicas? A medida que a sociedade se torna mais complexa e 0 Estado maior, mais extensa também tenderd a ser sua regulamentagiio. Nao ha duvida, porém, que esta regulagio tendeu, em muitos momentos, a ser excessiva. Para proteger direitos sociais, para garantir padrées de qualidade 24. Observe-se que podemos também medir o Estado incluindo suas empresas estatais. Neste ‘caso, entretanto, incorremos em uma série de dificuldades, na medida em que as empresas niio stio financiadas por impostos, mas por suas vendas, e € impensével somar impostos a vendas, De qualquer forma este tema perdeu relevéincia na medida em que os processos de privatiza- io se generalizaram, AREFORMA DO ESTADO DOS ANOS 90 BB dos bens e servicos, para assegurar 0 bom funcionamento do mercado em Areas monopolistas, como aconteceu principalmente nos Estados Unidos, ou, ao contrario, para promover a cooperacao entre empresas, como ocor- reu no Japdo e na Alemanha (Audretsch: 1989), o Estado tende a regular, e, facilmente, a se exceder na regulagéo. Nos Estados Unidos, conforme observa Audretsch (1989, Cap.5), houve a partir do final do século deze- nove um movimento a favor de maior regulagdo, que teve como principais defensores os consumidores e as pequenas empresas. A partir dos anos 70, entretanto, esses mesmos grupos vio apoiar o movimento inverso em diregiio a desregulagiio. Na verdade, a regulagdo implica um custo para a economia, um imposto que ndo é cobrado, mas que o setor privado é obri- gado a pagar.25 Um custo que em muitos casos é estritamente necessdrio, mas em outros responde simplesmente a interesses isolados. A luta contra os excessos de regulagdo foi sempre a luta dos economistas liberais, armados de sua teoria neocléssica sobre mercados auto-reguladores. A rigor toda a teoria econémica dominante foi desen- volvida a partir do pressuposto de que o mercado tem capacidade de coor- denar a economia de forma étima, de modo que torna-se desnecessdria a intervengao. Nem por isso o Estado deixou de regular intensamente a economia. Verificando este fato, um dos fundadores neoliberais da Escola de Chicago, George Stigler (1975: X-X1), adotou uma nova abordagem para o problema: desenvolver a “economia politica da regulagdo”, ou seja, verificar quem so os beneficidrios da regulagdo, a partir do pressuposto de que existe um mercado politico para a legislagéo reguladora. Quem sio eles? Segundo Stigler (1971: 114), “como regra a regulagdo é uma deman- da do setor econémico ¢ tem como objetivo e é conduzida principalmente em seu beneficio”. Com essa abordagem Stigler fundava a nova economia politica conservadora, que teria no conceito de rent-seeking (Krueger, 1974) e nos trabalhos da escola da escolha racional liderados por Buchanan € Olson, um imenso desenvolvimento. Nao € 0 caso, aqui, de rever a imensa literatura sobre o tema. Literatura que, nos anos 80, a partir do processo de privatizagio no Reino Unido, que depois se universalizaria, sofre uma inversio, na medida em 25 Segundo The Economist (1996: 19), relatando pesquisa realizada por Thomas Hopkins do Rochester Institute of Technology, 0 custo para as empresas de cumprir as leis regulamenta- doras correspondia, em 1995, a 668 bilhdes de délares, enquanto a despesa total do governo federal nesse ano foi de 1,5 tilhGes de délares. 14 LUA NOVA N45 — 98 que os monopélios naturais privatizados exigiam agora redobrada regu- laco.26 Para a agenda liberal tornava-se, agora, necessdrio, a0 mesmo tempo desregular e regular: desregular para reduzir a intervengdo do Estado; regular, para viabilizar a privatizagéo. Em qualquer das circuns- tAncias, o problema continuava o dos limites da intervengao do Estado no mercado. A reforma do Estado que vem ocorrendo nos anos 90 herdou toda essa discussdo, em um momento em que estavam ficando mais claros os limites da proposta neoconservadora de reduzir 0 Estado ao minimo. ‘Ao invés de resenhar todo esse debate — o que fugiria aos obje- tivos deste trabalho — quero propor a légica que esta por tras da reforma em curso que estamos descrevendo. A proposta dos economistas neoclassi- cos, a partir principalmente das contribuigdes de Coase (1937) ¢ Williamson (1985), € a de que a coordenagao das atividades econémicas tmnais eficientes é em principio a do mercado. Entretanto, devido aos custos de transagao, pode se tornar mais eficiente a coordenagdo administrativa de certas atividades. Por isso surgem as empresas, ou, mais amplamente as organizag6es, em cujo interior nao funciona o mercado. Elas s6 esto sub- metidas ao mercado externamente, nao internamente. Esta teoria 6, sem duivida, atraente. Mais do que isto: é uma das descobertas mais estimu- lantes do pensamento econémico do século. Entretanto, é uma teoria pura- mente econémica, que sé limitadamente pode ser aplicada ao campo da politica. Em tltima anélise, ela volta a repetir que 0 mercado é a melhor forma de coordenagio ou controle de um sistema econémico, s6 deixando de sé-lo excepcionalmente, em fungdo dos custos de transacio. Nestes ter- mos, nao nos oferece uma explicagao satisfatéria, nem nos dé critérios claros para se saber quais as dreas de atuacdo do Estado e do mercado. © processo de regulamentagdo ocorrido no século vinte envolveu subsfdios e rentincias fiscais de todos os tipos. As politicas indus- triais, agricolas e de comércio exterior sao atividades exclusivas de Estado de cardter regulamentador, que, em certos casos podem ter sido legitimas. Nao hé dtivida, porém, que nesse campo houve regulamentagao excessiva e atendimento de interesses especiais de todos os tipos, mas daf nao decorre que o Estado possa se retirar completamente dessa atividade. As regula- mentagdes envolvem, geralmente, um pesado custo para as empresas, reduzindo sua competitividade internacional. Por isso a tendéncia é de reduzi-las o mais possfvel. Por outro lado, os subsidios, protegdes e rentin- cias fiscais levam a profundas distorgées nos pregos relativos, estimulam 0 26 . ver, a respeito, Armstrong, Cowan e Vickers (1994), Claudio Frischtak, org. (1995). AREFORMA DO ESTADO DOS ANOS 90 15 rent-seeking, € envolvem custos elevados para o Estado. Por isso a refor- ma do Estado aponta na diregdo de sua substancial reduc, embora, em termos realistas, nao se possa pensar na sua eliminagdo. Em muitas dreas 0 Estado continua a ter um papel regulamentador essencial. As politicas de comércio exterior, por exemplo, continuam hoje mais ativas do que nunca em todo o mundo. E as politicas de controle ambiental nunca foram tio importantes. Diante de um problema to complexo, Cardoso (1995: 15-16) apresenta critérios que nos ajudam a pensar no problema, a partir da com- binagao dos ideais de maior eficiéncia e melhor distribuig&io de renda: problema que se coloca é duplo, o da eficiéncia e o da equidade... Nesse sentido, 0 dilema Estado-mercado € falso. O papel do Estado, como regulador, diante, por exemplo, das questées ecolégicas, s6 fez aumentar. Assim, a proposicao correta, que devemos estudar, é 0 papel do Estado no mercado. O problema 6 como aumentar a competitividade (que levam ao incremento da produtividade e & racionalizagdo das ativi- dades econémicas) e como tornar mais ptiblicas as decisdes de investi- mento € as que afetam o consumo. Isto é, como torné-las transparentes e controlaveis pela sociedade... e nao somente pelas burocracias (do Estado ou das empresas).(Grifo do autor.) LEQUE DOS MECANISMOS DE CONTROLES Talvez uma teoria geral para delimitar as Areas de atuagdio e 0 grau de regulagdo do mercado pelo Estado nao exista. Quero, entretanto, sugerir que, na reforma do Estado dos anos 90, é possfvel encontrar uma logica para distinguir 0 espago puiblico do privado, e, dentro do espaco ptiblico, 0 espago piiblico estatal do ptiblico ndo-estatal. Proponho chama- la de “Iégica do leque de mecanismos de controles”. Toda sociedade, para se coordenar, usa um conjunto de meca- nismos de controle ou de coordenagéo, que podem ser organizados e clas- sificados de muitas maneiras. Uma simplificagdo, a partir de uma pers- pectiva institucional, é afirmar que temos trés mecanismos de controle fun- damentais: o Estado, 0 mercado ¢ a sociedade civil. No Estado esta incluf- do o sistema legal ou jurfdico, constitufdo pelas normas juridicas e institu- igdes fundamentais da sociedade; o sistema legal é 0 mecanismo mais geral de controle, praticamente se identificando com o Estado, na medida em que estabelece os princfpios bésicos para que os demais mecanismos possam minimamente funcionar. O mercado, por sua vez, é 0 sistema econémico em que © controle se realiza através da competicéo. Finalmente, a 16 LUA NOVA N° 45 — 98 sociedade civil — ou seja a sociedade estruturada segundo o peso relativo dos diversos grupos sociais — constitui-se em um terceiro mecanismo basico de controle; os grupos sociais que a compdem tendem a se organi- zar, seja para defender interesses particulares, corporativos, seja para agir em nome do interesse publico; em qualquer das hipéteses, so um mecan- ismo essencial de controle.27 Ao invés do critério institucional, entretanto, podemos utilizar um critério funcional, que se sobrepde ao anterior, mas nao é inteiramente coincidente. Segundo esse critério temos também trés formas de controle: © controle hierarquico ou administrativo, que se exerce dentro das organi- zagdes piblicas ou privadas, 0 controle democrético ou social, que se exercer em termos politicos sobre as organizagGes e os individuos, ¢ 0 con- trole econdmico via mercado. Este segundo critério é talvez mais geral e nos permite compreender melhor 0 espago que cabe aos mecanismos insti- tucionais: ao Estado, ao mercado e A sociedade civil. A partir do critério funcional podemos dispor os mecanismos de controle relevantes para nossa andlise em um leque que vai do mecanismo de controle mais difuso, automatico ao mais concentrado e fruto de deli- beragao; ou do mais democrdtico ao mais autoritério. Segundo esse critério, e dispostos nessa ordem, temos os seguintes mecanismos de con- trole, além do sistema juridico que antecede a todos: (1) mercado, (2) con- trole social (democracia direta), (3) controle democratico representativo, (4) controle hierdrquico gerencial, (5) controle hierdrquico burocratico (6) controle hierérquico tradicional. O principio geral é 0 de que serd preferfvel o mecanismo de con- trole que for mais geral, mais difuso, mais automatic. Por isso o mercado € 0 melhor dos mecanismos de controle, j4 que através da concorréncia obtém-se, em principio, os melhores resultados com os menores custos € sem a necessidade do uso do poder, seja ele exercido democrdtica ou hie- rarquicamente. Por isso a regra geral € a de que, sempre que for possivel, o mercado deverd ser escolhido como mecanismo de controle. Entretanto, hd muita coisa que escapa ao controle do mercado, seja porque hd outros 27 . Neste trabalho nio estou discutindo a importincia relativa desses trés mec: tucionais de controle. Esté claro que a perspectiva dos economistas neoclissicos, que atribui a0 mercado um papel absolutamente predominante, é reducionista. A perspectiva critica dos economistas evoluciondrios, expressa muito bem por Delorme (1995), € mais instigante. Enfatiza o papel das instituigBes e organizagbes, e 0 cardter dindmico marcado pela diversi- dade dos mecanismos de controle ¢ do contexto sobre o qual eles operam. AREFORMA DO ESTADO DOS ANOS 90 7 valores além do econ6mico (e o mercado s6 controla a eficiéncia econémi- ca), seja porque, mesmo no plano econdémico, o mercado muitas vezes deixa de funcionar adequadamente em fungdo de suas imperfeigdes e da existéncia de externalidades positivas, que ndo so remuneradas pelo mer- cado, ou negativas, que ndo so por ele punidas. Em conseqiiéncia, é necessrio recorrer a outras formas de controle. A democracia direta ou o controle social 6, em seguida, o mecanismo de controle mais democratico e difuso. Através do controle social a sociedade se organiza formal e informalmente para controlar nao apenas os comportamentos individuais, mas — e é isto que importa neste contexto — para controlar as organizag6es ptiblicas. Pode ocorrer também no plano politico, através do sistema de plebiscitos ou referendos. O con- trole social das organizagées piblicas pode ocorrer de duas maneiras: de baixo para cima, quando a sociedade se organiza politicamente para con- trolar ou influenciar instituigdes sobre as quais nao tem poder formal; ou de cima para baixo, quando 0 controle social é exercido formalmente através de conselhos diretores de instituigdes ptiblicas nao-estatais. A democracia direta é a ideal, mas no plano nacional sé pode ser praticada de maneira limitada, através de sistemas de consulta popular sobre temas muito claramente definidos. A consulta visa referendar ou orientar as decisGes dos representante democraticamente eleitos. Em terceiro lugar temos a democracia representativa. Através desse mecanismo a sociedade se faz representar através de politicos eleitos dotados de mandato. O poder legislativo nas democracias modernas é orga- nizado segundo esse princfpio. Através do parlamentarismo procura-se, em parte, transpor para o poder executivo o mesmo principio. As limitagdes desse tipo de controle sio também evidentes, na medida em que s0 é ade- quado para definir leis gerais, ndo para executé-las. Para a execucao das decisdes a sociedade depende do controle hierdrquico, que poderd ser gerencial (racional), burocratico (racional-legal) ou tradicional. Weber definiu com clareza os dois tiltimos tipos de poder hierérquico. O controle tradicional corresponde, na administragio do Estado, ao patrimonialismo; 0 controle burocrético, a administragao publi- ca burocratica, em que os objetivos e os meios mais adequadas para atingi- los so rigidamente definidos na lei; 0 controle gerencial, & administragio publica gerencial que examinaremos com mais detalhe na préxima secao. Estes seis tipos de mecanismos vém geralmente combinados entre si nas formagGes sociais concretas. Em termos histéricos, e a partir de uma perspectiva otimista da hist6ria, podemos pensar que nas sociedades primitivas predominaram o controle hierarquico tradicional e 0 social; nas 18 LUA NOVA NP 45 —98 sociedades pré-capitalistas complexas, o poder hierdrquico tradicional expresso no patrimonialismo; no capitalismo liberal do século dezenove, 0 controle burocratico combinado com a democracia representativa e o mer- cado; no capitalismo burocrdtico do século vinte, 0 controle burocratico combinado com a democracia representativa e um mercado regulado; final- mente, no capitalismo globalizado que esta emergindo conjuntamente com a reforma do Estado dos anos 90, predominaro, combinados, 0 controle hierarquico gerencial, a democracia representativa, a democracia direta ou controle social direto, e 0 mercado. Nas sociedades primitivas e no patrimonialismo, o espaco puibli- co € 0 privado eram confundidos; no capitalismo liberal 0 espaco privado se separa do ptiblico e ganha autonomia; no capitalismo burocrtico, 0 espago ptiblico volta a crescer, mas de forma estatal; no capitalismo do século vinte-e-um 0 espago ptiblico voltaré a crescer, mas agora no plano ndo-estatal do controle social Esta Idgica do leque de controle, que orienta a reforma do Estado, tem portanto, um cardter histérico, ao mesmo tempo que obedece a alguns princfpios gerais: o principio da maior democracia, 0 principio da maior difusdo do poder, o princfpio econémico da eficiéncia, o principio da maior automaticidade dos controles, 0 principio do aumento do espaco pliblico nao-estatal. GOVERNANCA: A REFORMA ADMINISTRATIVA E dentro dessa légica do leque de controles que se insere, como terceiro elemento fundamental da reforma do Estado nos anos 90 0 proble- ma da governanga.28 Um governo pode ter governabilidade, na medida em que seus dirigentes contem com os necessérios apoios politicos para go- vernar, no entanto pode governar mal por Ihe faltar a capacidade da go- vernanga. Existe governanga em um Estado quando seu goyerno tem as condig6es financeiras e administrativas para transformar em realidade as decisdes que toma. Um Estado em crise fiscal, com poupanga publica ne- gativa, sem recursos para realizar investimentos e manter em bom fun- cionamento as politicas ptiblicas existentes, muito menos para introduzir novas politicas ptiblicas, é um Estado imobilizado. A crise do Estado dos 28 - Governanga é um termo relativamente novo, que o Banco Mundial vem usando, Para um livro abrangente sobre o tema ver Frischtak e Atiyas, orgs. (1996). AREFORMA DO ESTADO DOS ANOS 90 9 anos 80 foi antes de mais nada uma crise de governanga porque mani- festou-se, primeiramente, como uma crise fiscal. Por isso as politicas de ajuste fiscal foram colocadas em primeiro plano nessa década. Nos anos 90 © ajuste fiscal continua fundamental — na verdade este é um problema per- manente de todos os pafses — mas foi necessdrio combiné-lo com uma visdo mais ampla da reforma do Estado.29 Nesta visio mais ampla, o problema da capacidade gerencial do Estado, e, portanto, da reforma administrativa, passou a ser fundamental. A reforma administrativa € um problema recorrente. Quase todos os gover- nos, em todos os tempos, falam na necessidade de tornar a administragdo ptiblica mais moderna, mais eficiente. Entretanto, reformas administrativas estruturais s6 houve duas no capitalismo. A primeira foi a da implantacao da administragao publica burocratica, em substituigdo a administragio pat- rimonialista, que ocorreu no século passado nos pafses europeus, na primeira década deste século nos Estados Unidos, nos anos 30 no Brasil. A segunda est sendo a da implantagao da administragdo publica gerencial, que tem seus precedentes ainda nos anos 60, mas que, de fato, s6-comega a ser implantada nos anos 80, no Reino Unido, na Nova Zelandia e na Austrélia, e nos anos 90, nos Estados Unidos, quando o tema ganha a atengao do grande piiblico com a publicagao de Reinventing Government e a adogéio do National Performance Review pelo governo Clinton, ¢ no Brasil, a partir do governo Fernando Henrique Cardoso, com a aprovagiio do Plano Diretor da Reforma do Estado (1995). Até hoje os dois paises em que a administragdo publica gerencial foi mais amplamente implantada foram o Reino Unido e a Nova Zeléndia, no primeiro caso sob um gover- no conservador, no segundo, sob um governo inicialmente trabalhista. Nao cabe aqui repetir 0 que tenho escrito sobre a administra ptiblica gerencial nestes dois tltimos anos. 3° E importante apenas assinalar que a administracao publica burocrdtica, que Weber descreveu como uma forma de dominagao “racional-legal”, trazia embutida uma contradigao intrinseca. A administragdo burocratica é racional, nos termos da raciona- lidade instrumental, na medida em que adota os meios mais adequados (eficientes) para atingir os fins visados. E, por outro lado, legal, na medida 29 . Sobre a natureza da crise atual como essencialmente uma ctise fiscal do Estado, ver Bresser Pereira (1987, 1991, 1993, 1996a). ‘0 - Em janeiro de 1995 assumi o Ministério da Administragdo Federal e Reforma do Estado, no governo Fernando Henrique Cardoso. Além de preparar 0 Plano Diretor da Reforma do Aparetho Estado (Ministério da Administragdo Federal e Reforma do Estado, 1995), Publiquei alguns artigos sobre o tema (Bresser Pereira, 1995, 1996b e 1996c). 80 LUA NOVA N° 45 — 98 em que define rigidamente os objetivos e os meios para atingi-los na lei. Ora, em um mundo em plena transformagio tecnolégica e social, é impos- sivel para o administrador ser racional sem poder adotar decisGes, sem usar de seu julgamento discriciondrio, seguindo cegamente os procedimentos previstos em lei. No século dezenove, quando a administragio ptiblica burocrdtica substituiu a patrimonialista, isto representou um grande avango no cerceamento da corrupgao e do nepotismo. Entretanto, no século vinte, quando 0 Estado cresceu e assumiu novos papéis, ficou patente a inefi- ciéncia inerente a esse tipo de administracio. Ao mesmo tempo que a buro- cracia estatal, ou seja, 0 conjunto de administradores piblicos profissio- nais, via sua posig&o estratégica na sociedade aumentar, ficava claro que se tornava necessdrio adotar novas formas de gestdo da coisa ptiblica, mais compatfveis com os avangos tecnoldgicos, mais Ageis, descentralizadas, mais voltadas para 0 controle de resultados do que o controle de procedi- mentos. E também mais compativeis com o avango da democracia em todo © mundo, que cada vez mais exige uma participagdo mais direta da sociedade na gestdo publica. Nesta diregio, creio ser suficiente, aqui, definir as principais caracteristicas da administragao publica gerencial, que também vem sendo chamada de “nova administracao publica”: a) orientagio da agdo do Estado para o cidadiio-usudrio ou cidadao-cliente; b) énfase no controle dos resultados através dos contratos de gestio (ao invés de controle dos procedimentos); c) fortalecimento e aumento da autonomia da burocracia estatal, organizada em carreiras ou “corpos” de Estado, e valorizacéio do seu trabalho técnico e politico de participar, juntamente com os politicos e a sociedade, da formulagao e gestio das politicas publicas;3! d) separacio entre as secretarias formuladoras-de polfticas ptiblicas, de cardter centralizado, e as unidades descentra- lizadas, executoras dessas mesmas politicas; ¢) distingao de dois tipos de unidades descentralizadas: as agéncias executivas, que realizam atividades exclusivas de 31. Na reforma em curso a administragiio piblica burocritica est sendo substituida pela administrago piblica gerencial. Isto, entretanto, ndo significa em diminuir o papel da buro- cracia estatal, que desempenha um papel cada vez. mais estratégico na administragao do Estado. AREFORMA DO ESTADO DOS ANOS 90. 81 Estado, por definigo monopolistas, e as organizagées so- ciais, que realizam os servicos sociais e cientificos de cardter competitivo, em que o poder de Estado nao est envolvido; f) transferéncia para o setor piiblico ndo-estatal dos servicos sociais e cientfficos competitivos; g) adogao cumulativa, para controlar as unidades descentra- lizadas, dos mecanismos (1) de controle social direto, (2) do contrato de gestéio em que os indicadores de desempenho sejam claramente definidos e os resultados medidos, e (3) da formagiio de quase-mercados em que ocorre a competigao administrada; h) terceirizagdo das atividades auxiliares ou de apoio, que pas- sam a ser licitadas competitivamente no mercado.32 O aumento da autonomia da burocracia estatal nao deve ser con- fundido com o insulamento burocrético — ou seja, o isolamento das agéncias estatais das influéncias politicas —, freqiientemente proposto como-solugao para 0 e populismo econdmico e o clientelismo.33 Em sociedades democrati- cas, a alta administragdo publica estd inserida no processo politico e dele faz parte. O tipo ideal de um burocrata estatal puramente técnico nao faz sentido, da mesma forma que nao faz sentido atribuir a ele o papel de garantir a racionalidade da administraco ptiblica e mais amplamente do governo, con- tinuamente ameagada pelos politicos. Esta é uma visio autoritéria, que ainda acredita no monarca esclarecido ou no “bom” ditador — é uma visdo que o avango da democracia neste século vai tornando definitivamente superada. Peter Evans (1995) propde superar essa contradigdo entre a necessidade de burocracias estatais auténomas e democracia através do seu conceito de “autonomia imersa” (embedded autonomy), ou seja, através de uma burocra- cia que seja ao mesmo tempo auténoma e imersa na sociedade.3+ 32 Existe uma ampla literatura sobre a administragdo publica gerencial. Ver, entre outros, Barzelay (1992), Osborne ¢ Gaebler (1992), Fairbrother (1994), Ranson Stewart (1994), Nunberg (1995), Gore (1995), Abrucio (1997), Ferlie et alli (1996). 33 Conforme observam Melo ¢ Costa (1995), “a governanga est associada inter allia & capacidade de insulamento das elites burocréticas profissionalizadas vis-d-vis 0 sistema politi- co-partidério, ¢ de elites governamentais vis-d-vis grupos de interesses particularistas”. 34 Segundo Evans (1995: 248): “Autonomia (da burocracia estatal) € fundamental para a definigaio do Estado voltado para o desenvolvimento (developmental state), mas ndo € sufi- ciente. A capacidade do Estado de realizar transformagdes depende também das relagdes Estado-sociedade. Estados auténomos, completamente insulados da sociedade, podem facil- mente ser Estados predadores. O Estado orientado para o desenvolvimento precisa estar imer- 82 LUA NOVAN? 45 —98 Na execugao das atividades exclusivas de Estado é na verdade necessério distinguir trés tipos de instituigdo: as secretarias formuladoras de politicas piblicas, que, no niicleo estratégico do Estado, em conjunto com os ministros e 0 chefe do governo, participam das decisdes estraté; cas do governo; as agéncias executivas, que executam as politicas definidas pelo governo; e as agéncias reguladoras, mais aut6nomas, que buscam definir os precos que seriam de mercado em situagdes de monopélio natural ou quase natural. As agéncias reguladoras devem ser mais auténomas do que as executivas porque nao existem para realizar politicas do governo, mas para executar uma fungdo mais permanente que € essa de substituir-se aos mercados competitivos. Em s{ntese, a governanga seré alcangada e a reforma do Estado sera bem sucedida quando o Estado se tornar mais forte embora menor: (a) mais forte financeiramente, superando a crise fiscal que o abalou nos anos 80; (b) mais forte estruturalmente, com uma clara delimitagéio de sua drea de atuagdo e uma precisa distingdo entre seu nticleo estratégico onde as decisées so tomadas e suas unidades descentralizadas; (c) mais forte estrategicamente, dotado de elites politicas capazes de tomar as decisées politicas e econémicas necessdrias; e (d) administrativamente forte, con- tando com uma alta burocracia tecnicamente capaz e motivada. GOVERNABILIDADE: A REFORMA POLITICA Finalmente, a reforma do Estado envolve uma reforma politica que Ihe garanta governabilidade. Falou-se muito em governabilidade nos iltimos anos, principalmente quando a Grande Crise dos anos 80 atingiu em cheio a América Latina e 0 Leste Europeu, mas esta crise de gover- nabilidade estava evidentemente imbricada com a crise de governanga, na medida em que sua principal causa era a crise fiscal do Estado.5 Governabilidade e governanga sfo conceitos mal definidos, freqiiente- mente confundidos. A capacidade politica de governar ou governabilidade so em uma densa rede de relagdes sociais que o liga a seus aliados na sociedade a partir de objetivos de transformago, Autonomia imersa, ndo apenas autonomia, dé a0 Estado orienta- do para o desenvolvimento sua eficdcia”. Esta posigdo aproxima-se da que estou apresentan- do, embora o Estado Social-Liberal que estou pressupondo seja menos intervencionista na ea econdmica do que o Estado “developmental” de Evans. ~ Ver a respeito Eli Diniz (1995, 1997), para uma critica das andlises tradicionais de go- vernabilidade baseadas no desequilibrio entre demandas e ofertas de servigos piblicos. Sobre a crise de governabilidade na América Latina ver Ducatenzeiler e Oxhorn (1992). A REFORMA DO ESTADO DOS ANOS 90 83 deriva da relagio de legitimidade do Estado e do seu governo com a sociedade, enquanto que governanca é a capacidade financeira e adminis- trativa em sentido amplo de uma organizago de implementar suas polfti- cas. Sem governabilidade é imposs{vel governanga, mas esta pode ser muito deficiente em situagGes satisfatérias de governabilidade. No con- ceito de governanga pode-se incluir, como 0 faz Reis (1994), a capacidade de agregar os diversos interesses, estabelecendo-se, assim, mais uma ponte entre governanga e governabilidade. Uma boa governanga, conforme observou Fritschtak (1994) aumenta a legitimidade do governo e, portanto, a governabilidade do pais. Se nas democracias avangadas existem muitas vezes problemas de governabilidade, o que dizer das democracias recentes e imperfeitas, onde os governos sio instéveis, perdendo, com facilidade, 0 apoio da po- pulagio. Para o problema da governabilidade, porém, o mais grave — seniio fatal — para os governos é perder 0 apoio da sociedade civil, visto que, em termos prdticos, a governabilidade se confunde com a “legitimi- dade” do governo, ou seja, com 0 apoio de que dispée na sociedade civil. A governabilidade nos regimes democraticos depende (a) da adequagao das instituigdes polfticas capazes de intermediar interesses den- tro do Estado e na sociedade civil; (b) da existéncia de mecanismos de responsabilizagdo (accountability) dos politicos e burocratas perante a sociedade; (c) da capacidade da sociedade de limitar suas demandas e do governo de atender aquelas demandas afinal mantidas; e, principalmente, (d) da existéncia de um contrato social basico. E este acordo social basico, € 0 contrato social hobbesiano, que garante as sociedades avangadas legi- timidade e governabilidade. Nos pafses em desenvolvimento, especial- mente nos pafses da América Latina, que se caracterizam por uma profun- da heterogeneidade, esse acordo est4 muitas vezes ausente ou é imperfeito. Daf a importancia dos pactos politicos orientados para o desenvolvimento. Estes pactos, e 0 projeto de desenvolvimento envolvido, so sempre relati- vamente excludentes, mas dio a sociedade e mais amplamente a populagao um sentido de futuro, viabilizando o governo.36 A dimensao politica da reforma do Estado € a0 mesmo tempo a mais importante, dado que o Estado € 0 ente politico por exceléncia, e a menos clara, porque ndo se pode falar em uma crise politica do Estado nos anos 90. Crise politica é sinénimo de crise de governabilidade. O governo se vé privado de condigdes de efetivamente governar, seja 36 Este assunto foi extensamente analisado em Bresser Pereira e Nakano (1997). 84 LUA NOVA N° 45 — 98 porque perde legitimidade perante a sociedade, seja porque suas insti- tuigdes se demonstram inadequadas para 0 exercicio do poder politico. Nio se pode falar que os governos democrdticos tanto nos pafses desen- volvidos, quanto nos em desenvolvimento, estejam em crise porque perderam legitimidade social ou porque suas instituigdes politicas se deterioraram. Pelo contrério, nos primeiros tem havido um avango gra- dual, mas constante, nessa matéria, enquanto que houve nos tiltimos anos 80 um enorme avango, na medida em que uma onda de transigdes democrdticas ocorreu na América Latina, depois no Leste Europeu, e mais recentemente vem ocorrendo na Asia.37 S6 € possfvel falar em “crise” politica se compararmos a reali- dade com uma situagdo ideal. Se pensarmos, por exemplo, que os regimes democréticos ndo asseguram o “bom governo”: 0 governo que dirige de forma 6tima a sociedade. Este, naturalmente, é 0 centro das preocupacées da escola da escolha racional, que dominou a ciéncia politica norte-ameri- cana nos tltimos 20 anos. E a base fundamental da critica neoliberal & intervengo do Estado. Se, conforme essa visio neoconservadora pretende, no hd forma de assegurar que os governantes governem no interesse dos governados. Se, ao invés, eles tendem a governar no interesse proprio ou de grupos de interesse especfficos. © bom governo seria impossivel, ¢ 0 melhor seria reduzir 0 Estado ao m{nimo, reduzir portanto a necessidade de governar ao estritamente necessério, e deixar que tudo 0 mais fosse coor- denado pelo mercado. equivoco desse tipo de abordagem comega, naturalmente, pelo método utilizado. Ao invés de se pensar na politica como um proces- s0 hist6rico, que evolui no tempo, passa por crises e por transformagées, € jamais alcanca um estado timo, essa perspectiva vé a politica como algo estatico e abstrato. Apoiada na visio microeconémica neoclassica, entende 37 _ Esta onda comecou com a transi¢dio democritica da Espanha, ainda nos anos 70, passou depois pela dos demais paises do sudoeste da Europa, transferiu-se para a América Latina nos anos 80, € continuou com a democratizagiio do ex-paises comunistas no final dessa década, Nos anos 90, estamos tendo as transigBes democréticas no Leste e no Sudeste da Asia, e for- mas tentativas de democracia na Africa. A literatura sobre o tema é imensa. Ver sobre as tran- sigdes democraticas em geral Linz (1982),O'Donnell ¢ Schmitter (1886), O'Donnell, Schmitter e Whitehead, orgs. (1986a) Palma (1990), Przeworski (1991) € Huntington (1991); sobre a transigdo no Brasil, Bresser Pereira (1978, 1985), Martins (1983), Stepan, org. (1989), Lamot (1989), Cardoso (1986); sobre as transigdes no Leste Europeu, Przeworski (1993); € para uma andlise das transigées em curso na Asia, Haggard e Kaufman (1995), que nesse trabalho também apresentam sua visio geral do processo de transigdo a partir de uma pers- pectiva de economia politica. AREFORMA DO ESTADO DOS ANOS 90 85 © processo politico como um processo de otimizaco frustrado. Como uma relaco principal-agente, em que o principal sdo os cidadaos e o agente, 0 governo. Na medida em que o governo € constitufdo por politicos egoistas, voltados exclusivamente para a satisfagdo de suas ambigées politicas e para a busca de rendas (rent seeking), dificilmente haveré um bom governo. A vantagem desse método, porém, é a de que nos permite dis- cutir certos problemas fundamentais, que nas andlises utilizando a pers- pectiva histérico-indutiva, ficam muitas vezes implicitos, e, em conse- qiiéncia, mal discutidos. Adam Przeworski (1995a), adotando essa pers- pectiva, porém de forma critica, escreveu um fascinante ensaio a respeito da reforma do Estado. Depois de resumir a critica interna o pressuposto neoclissico da eficiéncia do mercado, usando para isto principalmente a andlise de Stiglitz (1992, 1993a, 1993b) e dele préprio (1990), 0 trabalho procura responder a duas questdes: (1) quais so as condig6es politicas que permitem ao Estado intervir eficientemente; (2) como é possfvel reformar as instituigdes do Estado, de tal forma que sejam corrigidas as falhas do mercado ao invés de agravadas. Para responder essas questdes, Przeworski critica os modelos neoliberais de Chicago e de Virginia: os eleitores podem ser relativamente ignorantes, mas so “racionalmente ignorantes”, de forma que eles esto infor- mados sobre aquilo que Ihes interessa; por outro lado, o papel da oposigao politica ndo deve ser subestimado: a oposigdo torna os eleitores criticamente informados do desempenho do governo.38 Por isso — e no porque os politi- cos possam estar comprometidos com o interesse ptiblico independentemente das vantagens eleitorais envolvidas — seria possivel o bom governo. Esta € uma critica interna ao modelo neoliberal, que aceita os pressupostos da escola da escolha racional: os governantes so exclusiva- mente motivados pelo desejo de serem reeleitos e pela busca de rendas. Ou, em outras palavras, todas as ac6es dos politicos podem ser explicadas ou pelo apoio que terao nos seus eleitores, ou pelas vantagens extra-mercado (rendas) que o politico obteré para si proprio através do uso do Estado para realizar transferéncias para determinados grupos de interesse. Quando os dois objetivos nao forem compatfveis, 0 governante fard “permutas” (trade-offs) entre ambos. 38 Przeworski identifica o “modelo de Chicago” como aquele em que os politicos buscam apenas serem reeleitos, enquanto que no “modelo de Virginia” os politicos buscam rendas. Em Chicago a contribuigdo original para esse tipo de modelo € de Stigler (1975), embora antes Olson (1965) ja houvesse formalizado 0 ponto de vista a0 procurar demonstrat a inviae bilidade da ago coletiva para os grandes grupos. 86 LUA NOVA N° 45 — 98 Ora, apesar da tentagdo de ficar fiel a critica interna, em certos momentos isto ndo é possfvel. Os politicos so claramente motivados por uma terceira razfio: 0 comprometimento com seus princfpios ideolégicos e morais, ou seja, com sua pr6pria avaliagdo do que seja o interesse publico. Esse tipo de politico - que costumo chamar de “homem puiblico” - no limite se transforma no estadista. Ele também realiza permutas, mas apenas entre 0 desejo de ser reeleito e 0 compromisso com 0 interesse ptiblico. Quando assumimos a existéncia dessa terceira motivagao, o problema imediato que se coloca é 0 do objetivo da reforma politica do Estado. Trata-se de garantir 0 mais possfvel que a vontade dos cidadiios seja obedecida pelos politicos, como afirma Przeworski, ou de assegurar que o interesse publico seja atendido quando este entra em conflito com a avaliagao dos eleitores? Conforme observa Przeworski (1995a: 1): Meu argumento é 0 de que a qualidade da intervengao na econo- mia depende em ampla medida da efetividade do mecanismo através do qual os governos so obrigados a responsabilizar-se perante (account to) 0 piiblico pelos resultados de suas agdes. Sem diivida um objetivo intermediério fundamental em qual- quer regime democratico € aumentar a “responsabilizagdo” (accountabili- ty) dos governantes. Os polfticos devem estar permanentemente prestando contas aos cidadaos. Quanto mais clara for responsabilidade do politico perante os cidadaos, e a cobranga destes em relagao ao governante, mais democratico seré o regime. Entretanto, isto nao significa que todas as von- tades dos cidaddos devam ser aceitas pelos politicos. Ou seja, que o “mandato imperativo” seja um requisito da democracia: o politico seria eleito exclusivamente para cumprir os desfgnios dos seus eleitores, poden- do, inclusive, perder seu mandato no caso de conflito com eles. O manda- to imperativo € antes fruto do democratismo corporativista do que da democracia. Conforme observa Bobbio (1984: 10): A democracia moderna, nascendo como democracia representa- tiva, em contraposigo A democracia dos antigos, deveria ser caracterizada pela representacdo politica, isto é por uma forma de representacilo na qual o representante sendo chamado a bus- AREFORMA DO ESTADO DOS ANOS 90 87 car os interesses da nagdo nao pode estar sujeito a um mandato imperativo.2 No conceito de responsabilizagio jé est implicita a recusa ao mandato imperativo.49 O governante nfo € apenas respons4vel perante os eleitores; 0 é também perante sua pr6pria consciéncia. Foi por isso —- porque essa liberdade est4 implicita no conceito de responsabilizacio — que Stokes (1995) propds 0 conceito de “responsividade” (responsiveness), como uma condig&o adicional da democracia. O governante “responsivo” seria aquele que obedeceria fielmente os desejos ou determinagées dos cidadaos. Ora, nao hé necessidade deste conceito, a nao ser que aceitemos o mandato impe- rativo como uma instituig&o democratica valida. Se concordamos que o mandato imperativo ndo é desejavel, no h4 porque pensar em responsivi- dade; basta pensar na responsabilizagdo do governante perante os cidadios e si préprio. Boas instituig6es polfticas somadas a uma cultura politica cres- cente dos cidadios permitiro que os governos sejam responsabilizados pe- rante 0s eleitores, de forma que estes possam incentivar os bons governos, para que ajam de acordo seus interesses a médio prazo, e punir os maus. Em tiltima andlise 0 homem piblico sera aquele que é capaz de distinguir os interesses de curto prazo de seus eleitores — que eles imediatamente percebem — dos seus interesses de médio e longo prazos, ¢ de ser fiel aos iiltimos e nao aos primeiros.‘! Isto nao o impediré de realizar permutas com seu objetivo de ser reeleito, mas Ihe dar um sentido de prioridades. © mandato imperativo est4 associado a um conceito radical de democracia, que nao faz sentido quando nos lembramos que a politica afi- nal nao € outra coisa senfo a arte do compromisso, a estratégia das con- cessGes miituas, 0 dificil caminho da intermediagao de interesses confli- tantes. Por outro lado, no extremo oposto, 0 conceito do estadista como 39 Bobbio, entretanto, assinala que o principio democratico da recusa ao mandato imperati- vo tem sido sempre violado nas democracias contempordneas, nas quais tendé a predominar © principio corporativo de que aos politicos caberia representar interesses particulares. Nesse modelo a intermediagio, ao invés de ser realizada pelos politicos, seria realizada pela buro- cracia estatal. 40 Przeworski (1995a: 8) tem claro este fato quando recusa o mandato imperativo e também quando observa que os cidadaos podem nfio saber qual € o interesse public, As instituigdes devem premiar os governos ¢ 0s cidadaos que atuem no interesse puiblico e punir os que nao fazem: “Os agentes privados precisam se beneficiar por se comportar de acordo com o inte- resse piblico e precisam sofrer quando ndo agem assim, e 0 mesmo deve acontecer com os govermos”. 1 Para um fascinante conjunto de pequenas biografias de politicos americanos que tiveram essa coragem, ler 0 livro de John F. Kennedy, Profiles in Courage (1956). 88 LUA NOVA N° 45 — 98 aquele homem piiblico que tem a coragem de enfrentar seus eleitores arriscar sua reeleigdo para ser fiel & sua concep¢do do que seja o interesse publico em cada caso est associado ao conceito do monarca esclarecido. Os gregos preferiam a monarquia & democracia porque sabiam da instabi- lidade da democracia naqueles tempos, mas tinham clara a distingdo entre monarquia e tirania, e esperavam que o monarca fosse esclarecido. Ora, no mundo contemporaneo, em que os regimes democraticos lograram se tornar estéveis porque o excedente econdmico nao € mais principalmente apropriado por meios politicos mas através do mercado, nem um extremo, nem outro — nem 0 extremo do mandato imperativo, nem o da dependén- cia do estadista (ou do monarca esclarecido) — fazem sentido. Do ponto de vista da reforma politica do Estado, entretanto, no hd diivida de que & necessArio concentrar a atengo nas instituicées que garantam, ou melhor, que aumentem — jé que o problema é de grau —, a responsabilizagao dos governantes. Reformar o Estado para the dar maior governabilidade € torné-lo mais democratico, é doté-lo de instituigdes politicas que permitam uma melhor intermediagdo dos interesses sempre conflitantes dos diversos grupos sociais, das diversas etnias quando ndo nagées, das diversas regides do pafs. Enquanto o mercado é 0 campo das trocas de equivalentes, que por isso podem ser relativamente impessoais, a politica, do ponto de vista econ6mico, é 0 campo das transferéncias. “Fazer politica” no capitalismo contempordneo é em grande parte lutar por essas transferéncias, que muitas vezes ndo passam de tentativas mais ou menos bem sucedidas de captura privada do Estado, de rent-seeking, mas que em princfpios sdo disputas legitimas que so 0 proprio objeto da politica. O grande desafio da reforma do Estado é ter partidos politicos que corres- pondam a orientages ideoldgicas; 6 desenvolver um sistema eleitoral que permita a formagio de governos ao mesmo tempo representativos e com maiorias estdveis; é contar com uma oposigdo vigorosa mas que lute den- tro de um campo comum de interesses; é dispor de uma imprensa livre responsdvel que reflita mais a opinido de seus leitores, ouvintes ou assis- tentes, do que de seus proprietdrios ou de seus patrocinadores publicitarios; € contar com um sistema judicidrio que nao apenas faga a justiga entre os cidadios ¢ os defenda do Estado, mas que também saiba defender a res publica contra a cobiga dos cidadaos poderosos que querem privatizé-lo; 6 contar com uma burocracia que abandone a prética do segredo e administre a coisa ptiblica com total transparéncia; é contar com um poder legislativo nacional relativamente imune ao clientelismo; é desenvolver sistemas de participagéo dos cidaddos no controle direto do Estado e das entidades publicas nao-estatais; é contar com um sistema mais transparente de finan- AREFORMA DO ESTADO DOS ANOS 90 89 ciamento das campanhas eleitorais; € desenvolver, enfim, sistemas de responsabilizacao dos politicos e da alta burocracia publica. CONCLUSAO A reforma do Estado, que examinamos neste artigo, 6 um processo hist6rico cuja dimensdo é proporcional a da sua crise. Iniciou- se nos anos 70, explodiu nos anos 80, levou ao ressurgimento do libera- lismo, e a uma critica profunda das formas de intervengiio ou de regu- lago do Estado por parte de alguns grandes intelectuais e de uns poucos politicos neoliberais. Poucos porque os politicos sdo mais realistas do que os intelectuais. E foi precisamente esse realismo dos politicos e mais amplamente das classes dirigentes a nivel mundial que os levou, nos anos 90, a abandonar a idéia do Estado minimo e a concentrar sua atengdo na reforma do Estado. J4 que a causa fundamental da Grande Crise econ6mica dos anos 80 foi a crise do Estado, o mais acertado é reconstruf-lo ao invés de destruf-lo. Neste artigo examinamos as linhas fundamentais dessa reforma que ja esté em curso tanto nos paises desenvolvidos quanto nos em desen- volvimento. Dividimos essa reforma em quatro capitulos: delimitagao da area de atuagdo do Estado, desregulagdio, aumento da governanga e con- quista da governabilidade. Para apresentar esses quatro temas desenvolve- mos um modelo baseado na distingdo entre a propriedade estatal, a publi- ca nao-estatal e a privada; baseado no ajuste fiscal e na reforma adminis- trativa para assegurar a governanga; baseado no desenvolvimento de insti- tuigdes politicas que garantam uma melhor intermediago e representagao de interesses. E para fundar esse modelo, desenvolvemos uma explicagao geral que chamamos de “Iégica do leque de controles”, segundo a qual os mecanismos de controle das sociedades capitalistas contemporaneas obe- decem a uma gradagao que vai do controle pelo mercado ao controle hierarquico tradicional. resultado dessa reforma seré um Estado mais eficiente, que responda a quem de fato deve responder: 0 cidadao. Logo, ser4 um Estado que estard agindo em parceria com a sociedade e de acordo com os seus anseios. Serd um Estado menos voltado para a protegdo e mais para a pro- mogio da capacidade de competigéo. Seré um Estado que nJo utilizara burocratas estatais para executar os servicos sociais e cientfficos, mas con- trataré competitivamente organizagées ptiblicas néio-estatais. Sera o que propusemos chamar de um Estado Social-Liberal, em substituigZo ao 90 LUA NOVA N° 45 — 98 Estado Social-Burocratico do século vinte. Um Estado certamente democratico, porque o grande feito polftico do século vinte foi ter conso- lidado a democracia. O regime democritico logrou estabelecer instituigdes razoavelmente estaveis e uma cultura democratica suficientemente sélida para que sua grande limitacdo do passado — a instabilidade politica — fosse superada ou contornada. Era essa instabilidade que levava os fildso- fos politicos gregos a preferirem a “boa” monarquia e “boa” aristocracia & democracia, embora sabendo que o risco da monarquia era a tirania e 0 da aristocracia, a oligarquia. Hoje, dado o desenvolvimento econémico e politico ocorrido, os regimes democraticos so muito mais estaveis do que os regimes autoritédrios.4? ‘A Reforma do Estado nos anos 90 é uma reforma que pressupée cidadaos e para eles esta voltada. Cidadaos menos protegidos ou tutelados pelo Estado, porém mais livres, na medida em que o Estado que reduz sua face paternalista, torna-se ele préprio competitivo, e, assim, requer cidaddos mais maduros politicamente. Cidadaos talvez mais individualis- tas porque mais conscientes dos seus direitos individuais, mas também mais solidarios, embora isto possa parecer contraditério, porque mais aptos & acdio coletiva e portanto mais dispostos a se organizar em instituigdes de interesse ptiblico ou de protecdo de interesses diretos do préprio grupo. Esta reforma em curso, da forma que a vejo, nao parte da premissa buro- cratica de um Estado isolado da sociedade, agindo somente de acordo com a técnica de seus quadros burocrdticos, nem da premissa neoliberal de um Estado também sem sociedade, em que individuos isolados tomam decisdes no mercado econémico e no mercado politico. Por isso ela exige a participago ativa dos cidadaos; por isso 0 novo Estado que esté surgin- do nao serd indiferente ou superior & sociedade, pelo contrério, estard insti- tucionalizando mecanismos que permitam uma participagio cada vez maior dos cidadaos, uma democracia cada vez mais direta; por isso as reformulagGes em curso sio também uma expressio de redefinigdes no campo da prépria cidadania, que vem alargando 0 seu escopo, constituin- do sujeitos sociais mais cientes de seus direitos e deveres em uma 42 Ver a respeito Przeworski e Limongi (1993, 1997). Estes autores contestam a “teoria da modemnizacdo”, que relaciona linearmente desenvolvimento ¢ democracia, e afirmam que a emergéncia de regimes democriticos nao é 0 simples resultado do desenvolvimento, mas est4 relacionada com a agio de atores politicos perseguindo seus objetivos. Nao obstante, basea- dos em ampla evidéncia empirica, admitem, evitando uma total indeterminago, que “uma vez (a democracia) é estabelecida as restrigdes econémicas desempenham um papel: as chances de sobrevivéncia das democracias sio maiores quando 0 pais é mais rico” (1997: 177). AREFORMA DO ESTADO DOS ANOS 90 ce sociedade democrética em que competicao e solidariedade continuarao a se complementar ¢ se contradizer. LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA foi ministro da Administragao e Reforma do Estado (primeiro governo Fernando Henrique Cardoso) e é Professor da Fundagao Getulio Vargas REFERENCIAS ABRUCIO, Fernando Luiz (1997) “O Impacto do Modelo Gerencial na Administragio Pablica: Um Breve Estudo sobre a Experiéncia Internacional Recente”. Brasflia: Escola Nacional de Administragio Publica, Cadernos ENAP, no. 10, 1997. ALVES DOS SANTOS, Ant6nio Carlos (1996) A Economia Politica da Privatizagdo. Sio Paulo: Fundagao Getilio Vargas, Tese de Doutorado, setembro 1996. ARMSTRONG, M., S.Cowan ¢ J. 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