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Max Weber

A ética protestante e o “espírito” do capitalismo

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Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS

Reitor
Aloysio Bohnen, SJ

Vice-reitor
Marcelo Fernandes Aquino, SJ

Instituto Humanitas Unisinos – IHU

Diretor
Inácio Neutzling, SJ

Diretora Adjunta
Hiliana Reis

Gerente Administrativo
Jacinto Schneider

Cadernos IHU em formação


Ano 1 – Nº 3 – 2005
ISSN 1807-7862

Editor
Prof. Dr. Inácio Neutzling – Unisinos

Conselho Editorial
Profa. Esp. Águeda Bichels – Unisinos
Profa. Dra. Cleusa Maria Andreatta - Unisinos
Prof. MS Dárnis Corbellini – Unisinos
Prof. MS Gilberto Antônio Faggion – Unisinos
Prof. MS Laurício Neumann – Unisinos
MS Rosa Maria Serra Bavaresco – Unisinos
Esp. Susana Rocca – Unisinos
Profa. MS Vera Regina Schmitz – Unisinos

Responsável Técnico
Laurício Neumann

Revisão
Mardilê Friedrich Fabre

Secretaria
Camila Padilha

Projeto gráfico e editoração eletrônica


Rafael Tarcísio Forneck

Impressão
Impressos Portão

Universidade do Vale do Rio dos Sinos


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Av. Unisinos, 950, 93022-000 São Leopoldo RS Brasil
Tel.: 51.5908223 – Fax: 51.5908467
www.unisinos.br/ihu

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Sumário

Max Weber
Vida e obra ........................................................................................................................... 4

Weber, a hermenêutica e as ciências humanas


Por Ivan Domingues.............................................................................................................. 9

Em defesa da pluralidade e da multicausalidade


Entrevista com Antônio Flávio Pierucci ................................................................................. 17

Reler Weber no contexto atual, promovendo uma atualização metodológica e epistemológica


Entrevista com Almiro Petry.................................................................................................. 23

Max Weber hoje


Entrevista com Richard Swedberg......................................................................................... 28

Meu clássico
Depoimento de José Ivo Follmann ........................................................................................ 32

Novos conceitos em permanente gestação


Entrevista com Wolfgang Schluchter ..................................................................................... 33

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Os Cadernos IHU em formação são uma publicação do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, que reú-
ne, num caderno, entrevistas e artigos sobre o mesmo tema, já divulgados no Boletim IHU On-Line.
Deste modo, queremos facilitar a discussão na academia e fora dela, em torno de temas considerados
de fronteira, relacionados com a ética, trabalho, teologia pública, filosofia, política, economia, literatura,
movimentos sociais, etc. que caracterizam o Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Max Weber – vida e obra

IHU On-Line fez uma síntese sobre a vida modernos fundadores da sociologia. É conhecido
e a obra de Max Weber. As informações foram sobretudo pelo seu trabalho sobre a sociologia da
retiradas dos sítios www.antroposmoderno.com/ religião.
biografias/Weber.html, http://pt.wikipedia.org/wiki/ De 1897 a 1903, sua atividade científica e di-
Max_Weber, e www.culturabrasil.pro.br/weber.htm. dática ficou bloqueada por causa de grave doença
Elas foram extraídas, basicamente, da introdução nervosa. Nesse meio tempo, em 1902, juntamen-
do livro de Max Weber Textos selecionados. São te com Werner Sombart, tornara-se co-diretor da
Paulo: Abril Cultural, 1980. 2.ed. (Coleção Os prestigiosa revista Archiv für Sozialwissenschaft
pensadores). Seleção, consultoria e traduções de und Sozialpolitik. Em 1904, realizou viagens aos
Maurício Tragtenberg. Essa introdução também Estados Unidos. Durante a Primeira Guerra Mun-
foi escrita por Maurício Tragtenberg, grande estu- dial, defendeu as “razões ideais” da “guerra ale-
dioso e autodidata brasileiro, que pesquisou, estu- mã” e prestou serviço como diretor de hospital mi-
dou e escreveu sobre Weber durante sua vida, en- litar. Seguiu, com angustiada preocupação, a ruí-
cerrada em 1998. Tragtenberg escreveu diversos na moral e cultural da Alemanha, jogada pelo
artigos sobre Weber. Ele é autor de Planificação: Imperador e por seus ministros no beco sem saída
Desafio do século XX. São Paulo: Senzala, 1967; da pura política de poder. Depois da guerra, parti-
Burocracia e ideologia. São Paulo: Ática, 1974; e cipou da redação da Constituição da República de
Administração, poder e ideologia. São Paulo: Edi- Weimar. Morreu em 14 de junho de 1920, em
tora Moraes, 1980. Munique, para onde fora chamado, a fim de ensi-
nar economia política.
Maximillion Weber nasceu em Erfurt, em 21 A obra de Weber, complexa e profunda,
de abril de 1864. Pelo pai, que foi deputado do constitui um monumento da compreensão dos fe-
Partido Nacional Liberal, Weber teve oportunida- nômenos históricos e sociais e, ao mesmo tempo,
de de entrar bem cedo em contato com ilustres da reflexão sobre o método das ciências histórico-
historiadores, filósofos e juristas da época. Estu- sociais.
dou história, economia e direito nas universidades Historiador, sociólogo, economista e político,
de Heidelberg e Berlim. Laureou-se em Göttin- Weber trata dos problemas metodológicos com a
gen, em 1889, com uma tese de história econômi- consciência das dificuldades que emergem do tra-
ca sobre a História das sociedades comerciais na balho efetivo do historiador e do sociólogo, mas
Idade Média. Em 1892, conseguiu a livre docên- sobretudo com a competência do historiador, do
cia com A história agrária romana em seu signifi- sociólogo e do economista. Crítico da “escola his-
cado para o direito público e privado. Em 1894, tória” da economia (Roscher, Knies e Hilde-
tornou-se professor de economia política na Uni- brandt), Weber reivindica, contra ela, a autono-
versidade de Freiburg. Em 1896, passou a ensinar mia lógica e teórica da ciência, que não pode se
em Heidelberg. submeter a entidades metafísicas, como o “espíri-
Era o mais velho dos 7 filhos de Max Weber e to do povo” que Savigny, nas pegadas de Hegel,
sua mulher Helene. Ele foi, juntamente com Karl concebia como criador do direito, dos sistemas
Marx, Vilfredo Pareto e Emile Durkheim um dos econômicos, da linguagem e assim por diante.

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Para Weber, o “espírito do povo” é produto de Essencial na sua análise das doutrinas da fé,
inumeráveis variáveis culturais e não o fundamen- é a confiança na “magia” em sermões e na fé em
to real de todos os fenômenos culturais de um geral. Muito resumidamente, os protestantes tor-
povo. naram-se ricos porque não têm nenhuma mão
Por outro lado, o pensamento de Weber ca- mágica que os leve para o céu. Os protestantes
racteriza-se pela crítica ao materialismo histórico, têm de trabalhar constantemente e de forma con-
que dogmatiza e petrifica as relações entre as for- sistente para assegurar um lugar no céu. Por outro
mas de produção e de trabalho (a chamada “es- lado, os católicos invocam muitos rituais mágicos,
trutura”) e as outras manifestações culturais da so- cânticos encantados, um pouco de água e uma
ciedade (a chamada “superestrutura"), quando, reza tipo Abracadabra. E logo as almas dos cren-
na verdade, se trata de uma relação que, a cada tes ficam purificadas para a ascensão ao céu.
vez, deve ser esclarecida segundo a sua efetiva Ele também é conhecido pelo seu estudo da
configuração. E, para Weber, isso significa que o burocratização da sociedade. No seu trabalho,
cientista social deve estar pronto para o reconhe- Weber delineia a famosa descrição da burocrati-
cimento da influência que as formas culturais, zação como uma mudança da organização basea-
como a religião, por exemplo, podem ter sobre a da em valores e ação (a chamada autoridade tra-
própria estrutura econômica. dicional) para uma organização orientada para os
De importância extrema, Max Weber escre- objetivos e ação (chamada lega-racional). O resul-
veu a Ética protestante e o espírito do Capi- tado, segundo Weber, é uma “noite polar de frio
talismo. Este é um ensaio fundamental sobre as glacial” na qual a crescente burocratização da vida
religiões e a afluência dos seus seguidores. Subja- humana o coloca numa gaiola de metal de regras
cente a Weber está a realidade econômica da Ale- e de controlo racional.
manha do princípio do séc. XX. Max Weber morreu de pneumonia em Muni-
Significante, também, é o ensaio de Weber que, Alemanha, a 14 de Junho de 1920. Seus se-
sobre a política como vocação. Weber postula ali guidores foram Ernest Gellner e David Landes
a definição de estado que se tornou essencial no A família de Max Weber definia-se pelo pro-
pensamento da sociedade ocidental: que o estado testantismo. Os antepassados de seu pai foram re-
é a entidade que possui o monopólio do uso legíti- fugiados luteranos do Império Austríaco que se
mo da ação coerciva. A política deverá ser enten- instalaram em Bielefeld e se tornaram importantes
dida como qualquer atividade em que o estado comerciantes de tecidos.
tome parte, de que resulte uma distribuição relati-
va da força.
A política obtém assim a sua base no concei- O capitalismo é protestante?
to de poder e deverá ser entendida como a produ-
ção do poder. Um político não deverá ser um ho- As soluções encontradas por Weber para os
mem da “verdadeira ética católica” (entendida intrincados problemas metodológicos que ocupa-
por Weber como a ética do sermão da montanha, ram a atenção dos cientistas sociais do começo do
ou seja, oferece a outra face). Um defensor de tal século XX, permitiram-lhe lançar novas luzes so-
ética deverá ser entendido como um santo (na bre vários problemas sociais e históricos, e fazer
opinião de Weber esta visão só será recompensa- contribuições extremamente importantes para as
dora para o santo e para mais ninguém). A esfera ciências sociais. Particularmente relevantes nesse
da política não é um mundo para santos. O políti- sentido foram seus estudos sobre a sociologia da
co deverá esposar a ética dos fins últimos e a ética religião, mais exatamente suas interpretações so-
da responsabilidade, e deverá possuir paixão pela bre as relações entre as idéias e atitudes religiosas,
sua atividade e a capacidade de se distanciar dos por um lado, e as atividades e organização econô-
sujeitos da sua governação (os governados). micas correspondentes, por outro.

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Esses estudos de Weber, embora incomple- luz, com notável freqüência, um fenômeno que já
tos, foram publicados nos três volumes de sua So- tem provocado repetidas discussões na imprensa
ciologia da Religião. A linha mestra dessa obra é e literatura católicas e em congressos católicos na
constituída pelo exame dos aspectos mais impor- Alemanha: o fato de os líderes do mundo dos ne-
tantes da ordem social e econômica do mundo gócios e proprietários do capital, assim como os
ocidental, nas várias etapas de seu desenvolvi- níveis mais altos de mão-de-obra qualificada,
mento histórico. Esse problema já se tinha coloca- principalmente o pessoal técnica e comercialmen-
do para outros pensadores anteriores a Weber, te especializado das modernas empresas, serem
dentre os quais Karl Marx (1818-1883), cuja obra, preponderantemente protestantes”.
além de seu caráter teórico, constituía elemento A partir dessa afirmação, Weber coloca uma
fundamental para a lufa econômica e política dos série de hipóteses referentes a fatores que poderi-
partidos operários. Por essas razões, a pergunta am explicar o fato. Analisando detidamente esses
que os sociólogos alemães se faziam era se o ma- fatores, Weber elimina-os, um a um, mediante
terialismo histórico formulado por Marx era ou exemplos históricos, e chega à conclusão final de
não o verdadeiro, ao transformar o fator econômi- que os protestantes, tanto como classe dirigente,
co no elemento determinante de todas as estrutu- quanto como classe dirigida, seja como maioria,
ras sociais e culturais, inclusive a religião. Inúme- seja como minoria, sempre teriam demonstrado
ros trabalhos foram escritos para resolver o pro- tendência específica para o racionalismo econô-
blema, substituindo-se o fator econômico como mico. A razão desse fato deveria, portanto, ser
dominante por outros fatores, tais como raça, cli- buscada no caráter intrínseco e permanente de
ma, topografia, idéias filosóficas, poder político. suas crenças religiosas e não apenas em suas tem-
Alguns autores, como Wilhelm Dilthey, Ernst porárias situações externas na história e na
Troeltsch (1865-1923) e Werner Sombart (1863- política.
1941), já se tinham orientado no sentido de res- Uma vez indicado o papel que as crenças reli-
saltar a influência das idéias e das convicções éti- giosas teriam exercido na gênese do espírito capi-
cas como fatores determinantes, e chegaram à talista, Weber propõe-se a investigar quais os ele-
conclusão de que o moderno capitalismo não po- mentos dessas crenças que atuaram no sentido in-
deria ter surgido sem uma mudança espiritual bá- dicado e procura definir o que entende por “espí-
sica, como aquela que ocorreu nos fins da Idade rito do capitalismo”. Este é entendido por Weber
Média. Contudo, somente com os trabalhos de como constituído fundamentalmente por uma éti-
Weber foi possível elaborar uma verdadeira teoria ca peculiar, que pode ser exemplificada muito niti-
geral capaz de confrontar-se com a de Marx. damente por trechos de discursos de Benjamin
A primeira idéia que ocorreu a Weber na ela- Franklin (1706-1790), um dos líderes da indepen-
boração dessa teoria foi a de que, para conhecer dência dos Estados Unidos. Benjamin Franklin,
corretamente a causa ou as causas do surgimento representante típico da mentalidade dos colonos
do capitalismo, era necessário fazer um estudo americanos e do espírito pequeno-burguês, afir-
comparativo entre as várias sociedades do mundo ma em seus discursos que “ganhar dinheiro den-
ocidental (único lugar em que o capitalismo, tro da ordem econômica moderna é, enquanto
como um tipo ideal, tinha surgido) e as outras civi- isso for feito legalmente, o resultado e a expressão
lizações, principalmente as do Oriente, onde nada da virtude e da eficiência de uma vocação”. Se-
de semelhante ao capitalismo ocidental tinha apa- gundo a interpretação dada por Weber a esse tex-
recido. Depois de exaustivas análises nesse senti- to, Benjamin Franklin expressa um utilitarismo,
do, Weber foi conduzido à tese de que a explica- mas um utilitarismo com forte conteúdo ético, na
ção para o fato deveria ser encontrada na íntima medida em que o aumento de capital é considera-
vinculação do capitalismo com o protestantismo: do um fim em si mesmo e, sobretudo, um dever
“Qualquer observação da estatística ocupacional do indivíduo. O aspecto mais interessante desse
de um país de composição religiosa mista traz à utilitarismo residiria no fato de que a ética de ob-

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

tenção de mais e mais dinheiro é combinada com mente a aquisição de bens da ética tradicional,
o estrito afastamento de todo gozo espontâneo da rompendo os grilhões da ânsia de lucro, com o
vida. que não apenas a legalizou, como também a con-
A questão seguinte colocada por Weber diz siderou como diretamente desejada por Deus”.
respeito aos fatores que teriam levado a transfor- Em síntese, a tese de Weber afirma que a conside-
mar-se em vocação uma atividade que, anterior- ração do trabalho (entendido como vocação
mente ao advento do capitalismo, era, na melhor constante e sistemática) como o mais alto instru-
das hipóteses, apenas tolerada. O conceito de vo- mento de ascese e o mais seguro meio de preser-
cação como valorização do cumprimento do de- vação da redenção da fé e do homem deve ter
ver dentro das profissões seculares Weber encon- sido a mais poderosa alavanca da expressão des-
tra expresso nos escritos de Martinho Lutero sa concepção de vida constituída pelo espírito do
(1483-1546), a partir do qual esse conceito se tor- capitalismo.
nou o dogma central de todos os ramos do protes- É necessário, contudo, salientar que Weber,
tantismo. Em Lutero, contudo, o conceito de vo- em nenhum momento, considera o espírito do ca-
cação teria permanecido em sua forma tradicio- pitalismo como pura conseqüência da Reforma
nal, isto é, algo aceito como ordem divina à qual protestante. O sentido que norteia sua análise é,
cada indivíduo deveria adaptar-se. Nesse caso, o antes, uma proposta de investigarem que medida
resultado ético, segundo Weber, é inteiramente as influências religiosas participaram da molda-
negativo, levando à submissão. O luteranismo, gem qualitativa do espírito do capitalismo. Percor-
portanto, não poderia ter sido a razão explicativa rendo o caminho inverso, Weber propõe-se tam-
do espírito do capitalismo. bém a compreender melhor o sentido do protes-
Weber volta-se, então, para outras formas de tantismo, mediante o estudo dos aspectos funda-
protestantismo diversas do luteranismo, em espe- mentais do sistema econômico capitalista. Tendo
cial para o calvinismo e outras seitas, cujo elemen- em vista a grande confusão existente no campo
to básico era o profundo isolamento espiritual do das influências entre as bases materiais, as formas
indivíduo em relação a seu Deus, o que, na práti- de organização social e política e os conteúdos es-
ca, significava a racionalização do mundo e a eli- pirituais da Reforma, Weber salientou que essas
minação do pensamento mágico como meio de influências só poderiam ser confirmadas por meio
salvação. Segundo o calvinismo, somente uma de exaustivas investigações dos pontos em que re-
vida guiada pela reflexão contínua poderia obter almente teriam ocorrido correlações entre o movi-
vitória sobre o estado natural, e foi essa racionali- mento religioso e a ética vocacional, Com isso, “se
zação que deu à fé reformada uma tendência poderá avaliar” – diz o próprio Weber – “em que
ascética. medida os fenômenos culturais contemporâneos
Com o objetivo de relacionar as idéias religi- se originam historicamente em motivos religiosos
osas fundamentais do protestantismo com as má- e em que medida podem ser relacionados com
ximas da vida econômica capitalista, Weber anali- eles”.
sa alguns pontos fundamentais da ética calvinista,
como a afirmação de que “o trabalho constitui,
antes de mais nada, a própria finalidade da vida”. Cronologia
Outra idéia, no mesmo sentido, estaria contida na
máxima dos puritanos, segundo a qual “a vida 21 de Abril de 1864 – Max Weber nasce em
profissional do homem é que lhe dá uma prova de Erfurt. Os pais são o jurista e mais tarde depu-
seu estado de graça para sua consciência, que se tado do parlamento imperial (Reichstag) pelo
expressa no zelo e no método, fazendo com que partido nacional-liberal, Max Weber e Helene
ele consiga cumprir sua vocação”. Por meio des- (nascida na família Fallenstein).
ses exemplos, Weber mostra que o ascetismo se- 1869 – Muda-se para Berlim com a família.
cular do protestantismo “libertava psicologica-

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

1882-1886 – Estudos de Direito, Economia Na- des dos Junker, sobre a objetividade nas ciên-
cional, Filosofia e História. cias sociais e a primeira parte de A Ética Pro-
1883 – Transfere-se para Estrasburgo, onde pres- testante e o Espírito do Capitalismo.
ta um ano de serviço militar. 1905 – Parte para os Estados Unidos, onde pro-
1884 – Reinicia os estudos universitários. nuncia conferências e recolhe material para a
1888 – Conclui seus estudos e começa a traba- continuação de A Ética Protestante e o
lhar nos tribunais de Berlim. Espírito do Capitalismo.
1889 – Escreve sua tese de doutoramento sobre a 1906 – Redige dois ensaios sobre a Rússia: A Si-
história das companhias de comércio durante a tuação da Democracia Burguesa na Rússia e A
Idade Média. Transição da Rússia para o Constitucionalismo
1891 – Escreve a tese A História das Instituições de Fachada.
Agrárias. 1909 – É co-fundador da sociedade Alemã de
1892 – Habilitação em direito canônico romano Sociologia.
e direito comercial (em Berlim). 1914 – Início da Primeira Guerra Mundial. We-
1893 – Casamento com Marianne Schnitger ber, no posto de capitão, é encarregado de or-
(1870-1954), que será, mais tarde, ativista pe- ganizar e administrar nove hospitais em
los direitos da mulher e socióloga. Heidelberg.
1894 – É chamado para ser professor da cadeira 1917 – Nos Colóquios de Lauenstein, apela para
de Economia Nacional na Universidade de a continuação da guerra, ao mesmo tempo de-
Freiburg em Breisgau fendendo o retorno ao parlamentarismo
1897 – Professor de Economia Nacional na Uni- 1918 – Co-fundador do partido democrático ale-
versidade de Heidelberg. mão (DDP). Transfere-se para Viena, onde dá
1898 – Consegue uma licença remunerada na um curso sob o título de Uma Crítica Positiva
universidade, por motivo de saúde. da Concepção Materialista da História.
1899 – É internado numa casa de saúde para 1919 – Convocado como conselheiro para a de-
doentes mentais, onde permanece algumas legação alemã na conferência do contrato de
semanas. Versailhes. Pronuncia conferências em Muni-
1903 – Participa, junto com Sombart, da direção que, que serão publicadas sob o título de Histó-
de uma das mais destacadas publicações de ria Econômica Geral.
ciências sociais da Alemanha. 14 de Junho de 1920 – Max Weber faleceu em
1904 – Atividade redatorial. Publica ensaios so- Munique, em conseqüência de uma pneumo-
bre os problemas econômicos das proprieda- nia aguda.

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Weber, a hermenêutica e as ciências humanas

Por Ivan Domingues

Ivan Domingues é professor titular no Depar- losofia da UFMG. A tese apresentada recobre as
tamento de Filosofia da Universidade Federal de obras de Weber e Durkheim e faz parte de um pro-
Minas Gerais (UFMG). Na sua formação acadêmi- jeto mais amplo que deverá ser concluído daqui a
ca, o professor é bacharel e mestre em Filosofia três anos, envolvendo outros autores e outros as-
pela UFGM, bem como doutor em Filosofia, pela suntos, e tendo por âmbito a epistemologia das
Université de Paris I (Sorbonne). O professor é ciências humanas. Com o término da revisão con-
também pós-doutor pela École Normale Supérie- ceptual dos capítulos, o trabalho foi publicado
ure Fontennay/Saint-Clud, em Paris, na França. É como livro em 2004, pela Editora Loyola, o que
autor de vários livros, entre os quais destacamos: permite o acesso dos interessados ao conjunto do
Epistemologia das ciências humanas: positi- material trabalhado, tanto no tocante a Weber,
vismo e hermenêutica – Durkheim e Weber. quanto com respeito a Durkheim.
Tomo 1. São Paulo: Loyola, 2004; O fio e trama Quanto ao presente artigo, consagrado às re-
– reflexões sobre o tempo e a história. Belo lações entre Weber e a hermenêutica, na época
Horizonte/São Paulo: Ed. da UFMG/Huminuras, em que estávamos preparando a palestra que lhe
1996; Le fil et la trame – réflexions sur le deu origem, ficamos indecisos sobre o melhor
temps e l´hitoire. L´Harmattan: Paris, 2000; O modo de tratar o assunto, ficando claro que mais
Grau zero do conhecimento: o problema da de um caminho era possível: num extremo, uma
fundamentação das ciências humanas. São exposição mais técnica, voltada para um público
Paulo: Loyola, 1999. de especialistas; noutro extremo, uma exposição
mais abrangente, visando a um público mais am-
O tema do presente artigo visa a elucidar as plo de não iniciados.
relações entre Weber, a hermenêutica e as ciênci- Tendo optado pela segunda via, ao levarmos
as humanas. Três pontos são examinados: 1) a em conta a natureza do evento, procuraremos, na
idéia de hermenêutica e seus três campos de atua- seqüência da exposição, a exemplo da palestra,
ção: arte ou técnica, filosofia e ciência; 2) o pro- elucidar as relações de Weber com a hermenêuti-
grama científico da hermenêutica ao se estender ca, mediante o exame de três tópicos: 1) a idéia de
às ciências humanas, em especial à sociologia e à hermenêutica e seus três campos de atuação: arte
história; 3) a conveniência de enquadrar ou não a ou técnica, filosofia e ciência; 2) o programa cien-
obra de Weber na hermenêutica - hermenêutica tífico da hermenêutica ao se estender às ciências
científica, no caso. No final, com algumas reser- humanas, em especial à sociologia e à história; 3)
vas, é efetuado o enquadramento. a conveniência de enquadrar ou não a obra de
Trabalhamos o assunto em nossa tese de titu- Weber na hermenêutica - hermenêutica científica,
lar, defendida em 2002, no Departamento de Fi- no caso.

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

1. Sobre a hermenêutica: arte (técni- e por isso a arte de traduzir os textos depende da
ca), filosofia e ciência arte de interpretar, e não é senão um caso da
mesma. Este foi, por exemplo, o caso de São Je-
A palavra “hermenêutica” é uma substanti- rônimo, considerado como um dos pais e emi-
vação do verbo grego hermeneuein, que, em sua nente doutor da Igreja, que, ao se ocupar do livro
origem, significa traduzir, explicar e exprimir santo, ao traduzir o grego e o hebraico para o la-
(Grondin). Nestas três acepções, hermeneuein tim, foi levado a recusar a via da tradução literal
tem o sentido de “trazer à compreensão”, “trazer à (letra), tomando o caminho da tradução segundo
luz”: a passagem obscura de um texto, a mensa- o espírito ou o sentido.
gem cifrada do oráculo, etc. Tal sentido, abarcan- O nome reservado a esta arte e seus variados
do os discursos oral e escrito, sugere que a herme- ofícios, na tradição latina, era ars interpretandi
nêutica tem a ver com a linguagem, e ao que pare- (arte da interpretação), tendo sido o vocábulo
ce já está fixado desde a origem da palavra her- hermenêutica cunhado mais tarde, em diferentes
meneuein, que uma etimologia duvidosa, con- línguas modernas, como o francês, o inglês e o
quanto aceita, deriva sua gênese de Hermes, o alemão, no início dos tempos modernos (O dicio-
deus mensageiro dos gregos, e também dos co- nário Robert data para o francês herméneutique o
merciantes e dos ladrões, ao qual a tradição credi- ano de 1777). Contudo, tanto em sua vertente
ta a invenção da linguagem e da escrita. medieval, quanto em sua versão moderna, a her-
Por seu turno, o adjetivo hermeneutikos menêutica manterá intacto o laço que a liga à lon-
(hermenêutica), ao qualificar a “arte” de interpre- ga tradição de exegese dos textos, iniciada no
tar os textos e também de decifrar as mensagens mundo antigo, especificamente na Grécia e no ve-
divinas e as formulações dos oráculos (téchne her- lho Israel: de um lado, a tradição judaica, ao se
meneutiké), desde sua aparição em solo grego, no ocupar da interpretação do velho testamento, par-
mundo antigo, comporta uma acepção sagrada e ticularmente os livros da Tora, acrescido mais tar-
uma profana. Um sentido sagrado, em vários seg- de dos preceitos do Talmud; de outro, a tradição
mentos do corpus platônico, como no Político e grega, graças aos trabalhos desenvolvidos, com
em Epimonis, voltada para a interpretação dos paciência, pelos eruditos da Biblioteca de Alexan-
símbolos mítico-religiosos; uma acepção profana, dria, ao se ocuparem dos textos literários, filosófi-
voltada para os signos de tipo laico e mais propria- cos e científicos dos antigos helenos.
mente lingüísticos, como na Peri hermeneias (ou A hermenêutica aplicada aos textos profanos
Da interpretação), de Aristóteles. – literários, científicos e filosóficos – é conhecida
Tal partição da antiga hermenêutica em sa- como “hermenêutica filológica” ou simplesmente
grada e profana também era conhecida dos eru- filologia (do grego philo = amigo + lógos = pala-
ditos romanos e dos teólogos medievais, que de- vra ® amigo das palavras, dos estudos e por ex-
dicaram uma atenção especial à tradução dos tensão dos textos). Por sua vez, a hermenêutica
clássicos gregos (Homero, etc., no caso dos ro- aplicada aos textos sagrados é conhecida como
manos), assim como dos textos da tradição judai- exegese ou “hermenêutica bíblica”, com a ressal-
co-cristã, recolhidos pela Bíblia, englobando o va de que também no Islã vamos encontrar algo
Antigo e o Novo Testamento. Cedo esses especia- parecido, não sendo, portanto, uma exclusividade
listas compreenderam o quanto o estabelecimen- nem cristã, nem judaica. Podemos dizer que estas
to do corpus homérico, platônico, aristotélico e são as duas primeiras e mais antigas versões da
dos profetas dependia da remissão ao contexto, hermenêutica na acepção de arte ou técnica (arte
do apelo à história, da saturação das lacunas e da de ler e interpretar os textos), as quais têm em co-
introdução de conjecturas. Compreenderam, mum uma grande dependência das disciplinas
também, que, no fundo, a tradução de qualquer históricas e da erudição. Mais tarde, uma discipli-
texto, sagrado ou profano, é uma interpretação, na da hermenêutica dos textos profanos ganhará

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

autonomia e dará nascimento a uma terceira her- Três são as máximas que vão comandar a
menêutica, que se ocupará das leis e sua interpre- hermenêutica em seu esforço por capturar e deci-
tação: a “hermenêutica jurídica”. frar o sentido no plano da téchne, da filosofia e da
Por fim, já conhecida e legitimada como ciência: 1ª) a distinção entre espírito e letra, esta-
téchne (arte de ler e interpretar os textos), a her- belecida por São Paulo no terreno da exegese bí-
menêutica se expandirá nos tempos modernos em blica, ao dizer contra os judeus “Ministri non litte-
duas direções: 1) em direção à filosofia, onde já se rae sed spiritus; litterae enim occidit, spiritus au-
fazia presente desde os tempos antigos como her- tem vivificat” (“Obedecer não à letra, mas ao espí-
menêutica ou exegese filosófica (arte de ler e inter- rito; a letra mata, o espírito vivifica”); 2ª) o círculo
pretar os textos filosóficos); porém, desta feita, a hermenêutico, celebrizado por Schleiermacher,
partir do século XIX, de uma maneira diferente, porém que se origina de Ernesti no terreno da
além de mais ambiciosa e com maior lastro, ao hermenêutica filológica, segundo o qual, na ope-
dar origem a uma nova doutrina ou corrente de ração de captação do sentido, deve-se remeter o
pensamento, a saber: a “filosofia hermenêutica”, texto ao contexto, a parte ao todo, o sujeito ao
cujos maiores expoentes no século XX são Gada- objeto, e vice-versa (à diferença da lógica, que
mer e Ricoeur, e cujos fundamentos vamos en- falará do círculo vicioso, a hermenêutica falará
contrar nas obras de Schleiermacher, Dilthey, do círculo virtuoso que permite o trabalho da in-
Husserl e Heidegger, conduzindo Ricoeur a pro- terpretação, seguindo Heidegger, que dizia “o
mover o casamento da hermenêutica com a feno- importante não é quebrar ou romper o círculo,
menologia; 2) em direção à “ciência”, vale dizer, mas nele penetrar corretamente”); 3ª) a idéia in-
às ciências humanas, onde vai aparecer como teo- troduzida por Schleiermacher segundo a qual a
ria e método científicos, tendo como precursores hermenêutica começa onde a compreensão
Dilthey e Droysen, e como grandes expoentes na (imediata) pára - em razão de “ruídos” ou “cur-
sociologia, história e antropologia os nomes de to-circuitos”, pode-se dizer, gerando a necessida-
Simmel, Weber, Marrou e Geertz, sendo Weber, de de perguntar pelo sentido e deflagrar o traba-
no nosso entendimento, o maior deles e sendo a lho da interpretação.
Ética o exemplo mais emblemático da aplicação
da hermenêutica às ciências humanas.
Qualquer que seja o domínio (técnica, filoso- 2. Hermenêutica e ciências humanas
fia e ciência), a tarefa da hermenêutica é captar o
sentido, que é procurado onde ele se encontra: Dilthey é o grande responsável pela extensão
na linguagem, ou seja, nas diferentes formas de da hermenêutica às ciências humanas, para além
compreensão da linguagem oral e escrita. Tam- do direito, da exegese bíblica e da filologia. O
bém a lingüística se ocupa do sentido e a ele che- campo privilegiado de seus trabalhos de herme-
ga a dedicar uma disciplina exclusiva: a semânti- neuta foi a história e a psicologia, mas ele estava
ca. A hermenêutica se coloca na extensão da se- convencido de que outras disciplinas poderiam fa-
mântica e se dá por tarefa especial, mais além do zer o mesmo, como no-lo sugere na frase famosa
trabalho de elucidar o significado dos vocábulos conforme a qual “nas pedras, nos mármores, sons
e dos sintagmas, de competência da lingüística musicais, gestos, palavras e letras, nas ações, or-
(semântica), a restituição do sentido daquelas dens e organizações econômicas, nos fala sempre
atividades dos homens que ultrapassam a lingua- o mesmo espírito, o qual requer uma interpreta-
gem ou que a linguagem se limita a ser seu veícu- ção”. Tal interpretação, segundo ele motivada
lo ou suporte. Tal é o caso das leis, dos símbolos pela necessidade de captar as unidades de senti-
religiosos e dos textos filosóficos, científicos e lite- do, só seria levada a bom termo se lográssemos
rários, com seu apelo ao mundo, ao humano e ao introduzir no método uma série de elementos des-
sobre-humano. prezados pelos positivistas, a exemplo da empatia,

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da revivência e da intuição psicológica, graças às mente a Weber, o nome de Alfred Schutz, que
quais podemos transportar-nos para a alma de promove, no âmbito da sociologia, a fusão da her-
outrem, bem como para uma outra época históri- menêutica e da fenomenologia, assim como a fi-
ca, e assim restituir o sentido, salvando-o da morte gura de Henri-Irenée Marrou, que é uma espécie
e do esquecimento. É com base na incorporação de estrela solitária da hermenêutica na história,
desses elementos ao método que Dilthey propõe a ou, antes, na historiografia francesa, que é domi-
famosa dicotomia entre explicação e compreen- nada pela Escola dos Anais, cuja índole, como é
são, a primeira afeta às ciências naturais, a segun- sabido, é estranha à hermenêutica. Por fim, mais
da, às ciências humanas. A dicotomia transparece recentemente, cabe mencionar o nome de Clifford
numa frase que ficou célebre e que até hoje é in- Geertz no terreno da antropologia, e os de Paul
vocada tanto pelos partidários da hermenêutica, Ladrière e Jean-Luc Boltanski, no plano da socio-
que não estão de acordo com ele, quanto pelos logia, que adotam posições próximas das de Paul
críticos, de outras correntes do pensamento, que Ricoeur.
nela vêem um equívoco lamentável, a saber: Uma coisa digna de nota, nesta tentativa de
“Explicamos a natureza: o calor dilata os corpos; extensão do paradigma da hermenêutica às ciên-
compreendemos a vida psíquica – uma empatia, cias humanas, é a instabilidade de que é vitima
por exemplo”. suas categorias axiais, para além da doutrina, no
Além de Dilthey, que não era cientista social, plano da metodologia. Assim, Droysen, que intro-
mas filósofo, tendo seus trabalhos como historia- duz a distinção entre explicação e compreensão,
dor se resumido à biografia de Schleiermacher, a propõe sua articulação e fala de uma “explicação
qual fez época e deve ser considerada relevante, compreensiva”. Já Dilthey, como foi mencionado,
outro nome importante na extensão da herme- propõe um caminho diferente, ao dicotomizar ex-
nêutica às ciências humanas é o do historiador plicação e compreensão, reservando a primeira às
alemão Droysen, autor da História da política ciências naturais, a segunda às ciências humanas.
prussiana (1855-1886). De fato, é Droysen, e Heidegger, por sua vez, diz que a compreensão
não Dilthey, o responsável pela introdução no vem primeiro e a interpretação, que é uma expli-
campo da hermenêutica da distinção entre expli- cação, instaura-se depois, como algo derivado.
cação e compreensão, abrindo um caminho dife- Gadamer, ao retomar Heidegger, propõe, sem fa-
rente de Dilthey, posto que ele não tratou de dico- lar de método, uma démarche indiferente à distin-
tomizar as duas categorias, mas de articulá-las, ao ção entre explicação e compreensão, entendendo
falar de uma “explicação compreensiva”. Posteri- que são a mesma coisa. Em contrapartida, procu-
ormente, outros nomes importantes se somaram rando fundar a hermenêutica como metodologia
aos de Dilthey e de Doysen no esforço de estender geral das ciências do espírito, Emilio Betti propõe
a hermenêutica às ciências humanas, como Ric- uma teoria geral da interpretação, indiferente à
kert, Simmel e o próprio Max Weber, ao qual vol- distinção entre explicação e compreensão. Por
taremos no terceiro tópico de nosso estudo. fim, Ricoeur toma a interpretação como categoria
Numa época em que o vocabulário da her- abarcante e trata de articular, no mesmo método,
menêutica era bastante instável, e o sentido dos explicação e compreensão. Já Weber se põe na
vocábulos flutuava em demasia, embaralhando as extensão de Droysen, articulando explicação e
correntes de pensamento e testemunhando a ju- compreensão e fala tanto de uma “compreensão
ventude da empresa no campo da ciência, outra explicativa” quanto de uma “explicação compre-
figura importante, no terreno da psicologia, além ensiva” – uma só e mesma coisa.
da filosofia e da psiquiatria, é Karl Jaspers, amigo Por isso, ao examinarmos o paradigma da
de Weber e habitué dos famosos saraus científi- hermenêutica e suas diferentes aplicações às ciên-
co-literários de suas casas em Heidelberg e outras cias humanas, devemos levar em conta esse esta-
cidades alemãs. Acrescentem-se ainda, posterior- do de coisas, marcado pela flutuação conceptual

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no plano da teoria, bem como pela instabilidade de pensamento, ao menos com este nome, no ter-
de procedimentos no plano do método1. reno das ciências humanas - dificuldade que va-
mos encontrar até mesmo em Dilthey, que, muitas
vezes, empregava outro nome e, em mais de uma
3. Weber, a hermenêutica e as ciências ocasião, restringiu o vocábulo hermenêutica à
humanas exegese. Havia também as dificuldades oriundas
dos intérpretes, como Raymond Boudon e Cathé-
Antes de mais nada, gostaríamos de deixar rine Colliot-Thélène, que impugnam a etiqueta de
claro que não foi nada fácil, na redação da tese, o hermenêutica ao se referirem à obra de Weber.
enquadramento de Weber no terreno da herme- Ambas as dificuldades nos obrigaram a empregar
nêutica, pois mais de uma barreira se ergueu no uma dupla estratégia com o intuito de mostrar que
meio do caminho, e tão logo superávamos um aquilo que Weber de fato fazia em suas investiga-
obstáculo era para nos ver diante de outro. Havia ções empíricas era bem hermenêutica, cabendo
as dificuldades terminológicas e conceptuais ori- ao epistemólogo, ao reconhecer o que o cientista
undas do próprio Weber, como veremos, motiva- faz ou fez de fato, elevar o factum ao direito e dar a
das pelo fato de o pensador jamais ter-se reconhe- justificação teórico-conceptual. Tal estratégia im-
cido como membro da escola hermenêutica, que, plicou, por um lado, num paciente trabalho de re-
em sua época, não existia como escola e corrente construção epistemológica, impossível de refa-

1 Por ocasião do evento, quando a palestra foi proferida, fomos interpelados quanto à propriedade de usar o qualificativo de
hermenêutica para designar o pensamento de Weber e de Rickert, cuja influência sobre o sociólogo é reconhecida pelo próprio
e pelos estudiosos.
Um dos pontos evocados no tocante a Rickert é o fato de ele nunca ter-se nomeado hermeneuta. Outro ponto é a ausência de
menção explícita à categoria de compreensão. O terceiro ponto é o papel axial da categoria de valor em seu método, e não da
categoria de sentido. Como estas reservas têm ressonância em mais de um estudioso de Weber e de Rickert, adotamos o
expediente de registrá-las, de modo que o leitor, particularmente aquele que não esteve no evento, possa tomar conhecimento
dos três pontos assinalados, assim como de nossas razões de pensar de outra maneira.
Em primeiro lugar, como deixamos claro naquela ocasião, a questão nominalista simplesmente não faz sentido: à época de
Rickert e de Weber, além da flutuação conceptual, já mencionada, o nome “hermenêutica” sequer existia como vocábulo
epistemológico (salvo para a exegese e à exceção de Dilthey, ainda assim com reservas); dar hoje tal nome ao que eles fizeram,
mais do que anacronismo, significa tão-somente atualizar o léxico, no sentido pragmático de que o nome que damos hoje para
tal coisa é hermenêutica; daqui a cem ou duzentos anos outro nome poderá ser cunhado - nada o impede, em matéria de
questões nominalistas os nomes vão e vêm (como sociologia compreensiva, que tinha a preferência de Weber e ninguém
emprega hoje, salvo os weberianos); todavia, mais do que o nome, o que importa é a idéia ou o conceito.
Em segundo lugar, lembramos na mesma ocasião que Weber, Rickert, Simmel, Windelband, Dilthey e Troeltsch fazem parte de
uma mesma constelação ou de uma mesma família, no sentido de Wittgenstein, a saber: a escola histórica alemã; da mesma
forma que fazem parte da mesma família os vocábulos compreensão, sentido e interpretação, gerados e empregados numa
época de forte instabilidade teórica e num ambiente de grande flutuação conceptual. Uma das características da escola
histórica é sua vizinhança com o romantismo e sua inclinação em reconhecer a ação das potências do coração, do sentimento e
do indivíduo. Diremos, então, que é neste quadro que se inserem Weber e Rickert, ou seja, Rickert, o sucessor de Windelband
em Heidelberg, que tinha introduzido a distinção entre ciências nomotéticas e idiográficas ao se referir às ciências naturais e
humanas; tal distinção é retida e modificada por Rickert, que põe no seu lugar a distinção entre ciências individualizantes e
ciências generalizantes (lembremos que “idiográfico’, formado do radical grego idios = próprio, particular, especial, é relativo
ao indivíduo, como “idioma” e “individualizante” – o que reúne ambos os pensadores numa mesma perspectiva). Demais, se
Rickert, não usa o vocábulo compreensão, emprega o correlato interpretação e o associa ao sentido, como em sua obra tardia
Imediatez e Interpretação do sentido – Ensaios para a estruturação do sistema de filosofia.
Em terceiro lugar, a referência aos valores, além de quebrar as pretensões formalistas em lógica, dando um conteúdo material à
distinção natureza / cultura, pode ser vista como uma ponte daquela disciplina com a hermenêutica, na medida em que é o
valor que permite o laço entre o sentido e a realidade, permitindo tanto a atribuição de significado aos fatos quanto a avaliação
da realidade. Melhor do que Simmel, que buscou, no sentido, a ponte entre o juízo de fato e o juízo de valor, a posição de
Rickert é próxima de um outro nome eminente que, de um modo textual, faz do valor a porta de entrada da hermenêutica:
Emilio Betti. Weber, por seu turno, permanece mais próximo de Simmel, ao tomar o sentido como porta de entrada. Trata-se
mais uma vez de uma grande família, em que os membros se distinguem e discrepam entre si. Sobre as relações de Weber com
a hermenêutica, cf. a próxima seção.

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

zê-la no momento - antes, na palestra, por absolu- dos tipos ideais pensados como constructos ou
ta falta de tempo, agora por falta de espaço. Re- idealidades – coisa que, diga-se de passagem,
metendo o leitor ávido de maiores esclarecimen- Dilthey nunca pensou nem imaginou.
tos à tese defendida, assim como ao futuro livro, Tal discrepância, na visão de muitos estudio-
limitar-nos-emos a dizer tão-somente que a re- sos de sua obra, é suficiente para desqualificar o
construção se resumiu em mostrar, com base no emprego do vocábulo hermenêutica ao se procu-
argumento do criador e suas variantes, que Weber rar nomear-lhe seja a doutrina, seja o método.
é partidário do constructivismo epistemológico, Trata-se de um equívoco, no nosso entender.
adotando, porém, a variante da hermenêutica, à Simplesmente, o que esses estudiosos esquecem é
diferença de Lévi-Strauss, por exemplo, que ado- que a depuração dos elementos psicológicos da
ta a variante estruturalista2. Por outro lado, a es- compreensão em favor dos componentes lógicos,
tratégia empregada implicou - mais além do exa- tal como empreendida por Weber, se serve para
me das ferramentas lógicas e epistemológicas, distanciá-lo da hermenêutica, é para afastá-lo da
como o tipo ideal e o princípio da causalidade - na hermenêutica romântica, cujo exemplo emblemá-
adoção de expedientes pragmáticos, que me leva- tico vamos encontrar na obra de Dilthey. Tal é,
ram a sustentar, seguindo uma sugestão de Julien aliás, o caso de dois outros partidários da herme-
Freund, que muito do que fez e escreveu Weber, nêutica, porém pós-romântica, como Gadamer e
ao atualizar-lhe o léxico, deve ser nomeado, hoje, Ricoeur, que igualmente repudiam o caminho tra-
“hermenêutica”. çado pelo filósofo. Por isso, em que pesem as dis-
Na seqüência, vamos tentar precisar este crepâncias terminológicas e conceptuais patentea-
ponto, antes de concluir a exposição. Comecemos das pela obra weberiana, ao atualizar-lhe o léxico
pelas barreiras erguidas pelo próprio Weber. Nas e reconstruir-lhe a epistemologia, podemos dizer
poucas vezes em que fala explicitamente da her- que Weber não só é um dos grandes expoentes da
menêutica, como em um de seus ensaios de meto- hermenêutica nas ciências humanas, bem como
dologia das ciências da cultura, Weber se lhe refe- que ele, sem dúvida, teve melhor fortuna do que
re como se fosse coisa de Schleiermacher, Dilthey Dilthey, cuja influência se circunscreveu ao campo
e Boeckh, não tendo nada que ver com ele3. E da filosofia. A favor dessa idéia - Weber hermene-
mais: em Economia e sociedade, em vez de uta, para muitos inaceitável –, invocaremos três
hermenêutica, ele fala de compreensão; em vez argumentos: 1) o emprego consciente e nada ale-
de sociologia hermenêutica, sociologia da com- atório do termo “compreensão”, de inegável vo-
preensão ou sociologia compreensiva; em vez de cação hermenêutica (trata-se da Verstehen de
método hermenêutico, método da compreensão Dilthey, de Droysen, de Gadamer e de Ricoeur),
ou da interpretação. E ainda: em vários ensaios bem como do vocábulo “interpretação”, que
metodológicos, ao invés da dicotomia da explica- igualmente integra o campo semântico da herme-
ção / compreensão, propõe um método de inter- nêutica, embora sem exclusividade, e em cuja ori-
pretação que combine os esquemas empíricos da gem vamos encontrar a hermeneía dos antigos; 2)
explicação (causalidade, etc.) com os esquemas o privilégio que confere à captação do sentido,
mentais da compreensão, porém depurados de desta feita junto à ação, como já tinha proposto
seus elementos psicológicos como empatia e revi- Dilthey, atitude igualmente de ressonância herme-
vência, em favor das hipóteses contrafactuais e nêutica; 3) a própria associação entre explicação e

2 O argumento em questão foi formulado por Vico, ao dizer acerca do real que só podemos conhecer plena e efetivamente aquilo
que nós mesmos criamos – quanto às coisas que não foram criadas por nós, como a natureza, só conhecemos indiretamente e por
analogia. Na tese, mostramos que o argumento deu origem, na epistemologia moderna, a um conjunto de vias e variantes: o
constructivismo, o operacionalismo, o instrumentalismo, o pragmatismo, etc. Ao reconstruirmos a epistemologia weberiana, a
enquadramos no constructivismo, conferindo-lhe porém, a título de variante, um viés hermenêutico.
3 Cf., por exemplo, o ensaio Knies e o problema da irracionalidade. In: Metodologia das ciências sociais, p. 66, n. 46 (ver
referências bibliográficas).

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

compreensão como pólos da interpretação, asso- Concluindo a exposição, gostaríamos de


ciação que, além de Droysen, é preconizada por acrescentar, sem condições de desenvolver o as-
Ricoeur, ele próprio partidário da hermenêutica e sunto, que em nossa reconstrução da epistemolo-
também ele preocupado com a superação da di- gia weberiana, ao compararmos Weber com Durk-
cotomia demasiadamente rígida entre explicação heim, fizemos uma espécie de brincadeira, ao
e compreensão. modo de um jogo de retórica, mostrando que, em
Assinalemos que, ao se propor como ciência Durkheim, por trás do positivista se esconde um
empírica e se estender a diferentes disciplinas das kantiano, ao passo que, em Weber, ao contrário,
ciências humanas, a idéia axial da hermenêutica é por trás do kantiano se esconde o positivista, que
que, no campo dos fenômenos humano-sociais, o adota o princípio da neutralidade axiológica e
cientista não lida com fatos brutos ou simples coi- mantém o princípio da verificação empírica. Ao
sas, mas fatos ou coisas dotadas de sentido ou de trabalhar a tensão resultante da adoção dessas
significação4. Caberá ao cientista, mais do que duas matrizes de pensamento, fomos levados a
descrever e explicar os fatos, perguntar pelo senti- mostrar a dificuldade de ajustá-la ao tripé episte-
do e procurar compreendê-lo (decifrá-lo) com a mológico de sua metodologia, constituído pelos ei-
ajuda de meios empíricos. O sentido, por sua vez, xos da descrição, da explicação e da interpretação,
é polissêmico, varia no tempo e no espaço, pode tendo como categoria abarcante a compreensão
inflacionar-se, erodir-se e entrar em colapso, ao ou Verstehen. O resultado é que Weber, ao levar
gerar o nihilismo, ficando sua apreensão a depen- até o fim o componente kantiano de seu método,
der do ângulo e da perspectiva do observador. Já tinha tudo para instalar o sujeito epistemológico no
a compreensão, além de perspectivística, se defi- limiar do conhecimento, ele que já tinha introduzi-
ne por dois outros componentes ou aspectos em do o ponto de vista do sujeito, ao falar de seleções,
suas operações cognitivas: trata-se de uma apre- de recortes e de perspectivas do sujeito cognoscen-
ensão (do latim comprehensio, correlato de apre- te ou do cientista. Todavia, não o fez, e como que
hensio = apreensão de algo com as mãos e, por interrompeu suas análises epistemológicas “antes”.
extensão, com a mente); consiste numa “inclu- Ora, o que vai fazer a hermenêutica depois
são”, abarcando a coisa e o sujeito. Desde então, de Weber, e também depois de abandonar o suje-
três notas vão caracterizar a visão de ciência da ito transcendental de Kant no campo da ciência,
hermenêutica: 1) a ênfase no sentido, mais além foi justamente introduzir o sujeito hermenêutico
do fato ou da coisa; 2) o perspectivismo ou a idéia no limiar do conhecimento, tomando-o, a um
de que a ciência fornece uma perspectiva da reali- tempo, como sujeito doador do sentido ou matriz
dade, espacial e temporal; 3) a incorporação do das significações, e sujeito construtor ou sujeito
sujeito no processo cognitivo e na própria opera- epistemológico. Um pouco disso é o que vamos
ção de análise e determinação do sentido (pois o encontrar nas obras de Schutz e de Geertz no
ponto de vista ou a perspectiva é do sujeito), em campo da sociologia e da antropologia. Porém, o
sua dupla condição de matriz ou fonte da signifi- que aconteceu e o modo como aconteceu são
cação (sujeito doador de sentido) e sujeito episte- uma outra história, que deixaremos para uma ou-
mológico ou hermenêutico. tra oportunidade.

4 Sobre a conexão entre o sentido e os fatos, inúmeras são as passagens de Max Weber que nos mostram a existência de uma
verdadeira simbiose. Sobre a natureza do sentido, cujo estatuto é da ordem de uma idealidade, o sociólogo nos oferece em
Economia e sociedade um trecho em que deixa claro o laço entre sentido e ação, bem como evidencia o tipo ou a modalidade
do liame, ressaltando sua natureza consciente ou inconsciente, além de racional ou irracional. O trecho é o seguinte: “a ação
racional sucede, na maioria dos casos, em surda semiconsciência ou inconsciência de seu ‘sentido visado’. O agente mais o
‘sente’, de forma indeterminada, do que o sabe ou tem ´clara idéia’ dele; na maioria dos casos, age instintiva ou
habitualmente. Apenas ocasionalmente e, no caso de ações análogas em massa, muitas vezes só em poucos indivíduos,
eleva-se à consciência um sentido (seja racional, seja irracional) da ação. Uma ação determinada pelo sentido efetivamente,
isto é, claramente e com plena consciência, é na realidade apenas um caso-limite” (WEBER, M. Economia e sociedade, v. 1, p.
13 – Ver referências bibliográficas).

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Referências bibliográficas _______. Herméneutique. In: JACOB, A. (éd.). Encyclopédie


philosophique. Paris: PUF, 1990, p. 1129-34.
DILTHEY, W. Origens da hermenêutica. In: MAGALHÃES, PALMER, R. Hermeneutics. Evanston (II): Northwestern Uni-
R. (org.). Textos de hermenêutica. Porto: Rés-Editora, s/d. versity Press, 1969.
DOMINGUES, I. Paradigmas e modelos das ciências huma- RICOEUR, P. Do texto à ação – ensaios de hermenêutica II.
nas no século XX: as vias de Émile Durkheim e Max Weber. Porto: Rés-Editora, s/d.
Belo Horizonte, mimeo., 2 tomos, 502 p., 2002 (Tese de titu- _______. Teoria da interpretação. Lisboa: Edições 70, 1987.
lar). VVAA. Comprendre et interpréter: le paradigme herméneuti-
GADAMER, H.-G. Verdade e método. Petrópolis: Vozes, que de la raison. Paris: Beauschesne, 1993 (Apresentação de
1998. J. Greisch).
GEERTZ, C. A interpretação das culturas. São Paulo: LTC WEBER, M. Economia e sociedade. 4.ed. Brasília: Editora
Editora, 1989. UnB, 2000. V.1
GRONDIN, J. L’universalité de l’herméneutique. Paris: PUF, _______. Metodologia das ciências sociais São Paulo / Cam-
1993. pinas: Ed. Cortez / Ed. da Unicamp, 1992 / 1993. (2 v).

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Em defesa da pluralidade e da multicausalidade

Entrevista com Antônio Flávio Pierucci

Antônio Flávio Pierucci é professor na Fa- Igreja: contradições e acomodação. São


culdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas Paulo: Brasiliense / Cebrap, 1978; e Ciladas da
do Departamento de Sociologia da USP, em São diferença. São Paulo: Editora 34, 1999. Publi-
Paulo. Graduado em Filosofia pela Pontifícia camos a seguir trechos da entrevista concedida
Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), é por ele ao IHU On-Line, por telefone, na última
mestre em Ciências Sociais pela PUCSP, e sua semana.
dissertação teve o título Igreja Católica e Re- Uma nova tradução do livro A ética protes-
produção Humana no Brasil. O professor tante e o “espírito”5 do capitalismo de Max
também é doutor em Sociologia pela USP, tendo Weber acaba de ser publicada pela Companhia
sua tese o título Democracia, Igreja e voto: o das Letras (Weber, Max. A ética protestante e
envolvimento do clero católico na eleição o “espírito” do capitalismo. Tradução José
de 1982, e livre docente pela USP, com a tese Marcos Mariani de Macedo; revisão técnica, edi-
Desencantamento do mundo: os passos do ção de texto, apresentação, glossário, correspon-
conceito em Max Weber. Esse trabalho trans- dência vocabular e índice remissivo Antônio Flá-
formou-se no livro O desencantamento do vio Pierucci. São Paulo: Cia. Das Letras, 2004). A
mundo: todos os passos do conceito em edição recupera a versão original do ensaio e a
Max Weber. São Paulo: Editora 34, 2003. O apresenta em conjunto com o texto de 1920, re-
professor também é autor de, entre outros, visto e ampliado pelo próprio Max Weber.

5 “Quando, há cem anos, apareceu pela primeira vez nas páginas da revista Archiv für Sozialwissenschaft (1904) o germinal
ensaio de Max Weber sobre a ética ascética do protestantismo puritano como berço da cultura ocidental moderna, seu título
trazia entre aspas – aspas de cautela e ao mesmo tempo de ênfase – a palavra “espírito”. Exatamente como na atual edição.
Com essa marcação diacrítica o autor salientava de imediato aos olhos do leitor o que é que, afinal de contas, pretendia
identificar, ao lado da ética religiosa ali no título, como seu “novo” objeto de análise na busca sociológica de uma relação
causal histórica. E esse novo objeto não era o capitalismo como sistema econômico ou modo de produção. Era, sim, o
capitalismo enquanto “espírito”, isto é, cultura – a cultura capitalista moderna, como tantas vezes ele irá dizer -, o capitalismo
vivenciado pelas pessoas na condução metódica da vida de todo o dia. Noutras palavras, o “espírito” do capitalismo como
conduta de vida: Lebensführung. Para começo de conversa: o mínimo que esperamos desta nova edição em português é
deixar assentado de uma vez por todas que Weber nos legou não somente duas edições d’A ética protestante, mas duas
versões. A primeira, publicada em duas levas, em 1904 e 1905, e a outra, revista em ampliada, editada em 1920. Por isso é que
aqui, com tradução mais atenta a uma correspondência vocabular mínima entre os termos-chave empregados nos dois
idiomas e nas duas áreas de conhecimento mais diretamente mobilizadas no ensaio weberiano (a saber, a nascente sociologia
alemã e a velha teologia protestante), a palavra “espírito” recupera as aspas que o próprio Weber havia cortado para a segunda
edição.” A nota transcreve o trecho inicial da apresentação, assinada por Antônio Flávio Pierucci, da edição d’A ética
protestante e o “espírito” do capitalismo comemorativa ao centenário da primeira publicação (Nota do IHU On-Line).

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

IHU On-Line – “Ética protestante e o espíri- não ali, [na apresentação de “A ética...”] mas no
to do capitalismo” mantém-se atual? livro que eu escrevi no final do ano passado, a no-
Antônio Flávio Pierucci – Sim, na medida em ção de “desencantamento do mundo” [ver a in-
que é uma obra que se colocou como desafio in- trodução desta entrevista]. Que é uma noção tão
terpretar a arrancada do processo de moderniza- central no pensamento do Weber e que, até en-
ção ocidental, e nós ainda estamos vivendo em tão, nós pensávamos que já havia nascido pronti-
pleno processo de modernização, se não mais nos nha, assim como se imaginava o mesmo de “A éti-
países centrais, no Terceiro Mundo, nos países ca...”. Muitos daqueles conceitos foram surgindo
asiáticos, na América Latina. No Brasil, estamos na elaboração da sua sociologia no decorrer des-
vendo isso acontecer nos rincões que a gente ja- ses quinze anos. Em 1920, retoma e recheia, diga-
mais imaginava tão rapidamente modernizados. mos assim, aquela primeira versão com novos
Então a obra é muito atual, nesse sentido. Por conceitos, o que nos dá uma sensação de estar-
que? Porque mostra também que no processo de mos lendo dois livros ao mesmo tempo. Então, é
modernização, que é um processo de racionaliza- neste sentido que eu falo do pós-moderno, no
ção, não basta levar em conta os fatores puramen- sentido de que agora não só o conteúdo do texto é
te econômicos, ou como diríamos um tempo importante, mas a escrita em si mesma, a maneira
atrás, os fatores puramente materiais, mostra que como o texto nasceu, com as suas correções, com
os fatores culturais pesam muito. E entre esses fa- as suas hesitações conceituais, com a troca de pa-
tores culturais tem um peso, cada vez mais pro- lavras, o ajustamento de certas expressões, de cer-
nunciado, o fator religioso. tos conceitos. Isto faz com que agora o texto, mes-
mo, seja alvo de interesse do estudioso, não ape-
IHU On-Line – Na apresentação do livro o nas o que está sendo dito no texto. O texto em si
senhor diz que se oportuniza uma reflexão mesmo, na sua materialidade, digamos assim,
sobre a obra à luz do pós-modernismo. Em passa a ser objeto de atenção6.
que sentido?
Antônio Flávio Pierucci – Me refiro a uma coi- IHU On-Line – A segunda versão apenas re-
sa tipicamente pós-moderna, que é o fato de, ago- força a primeira? Não há mudanças na es-
ra também nas ciências humanas, começarmos a trutura do conteúdo?
dar importância para o texto. A feitura do texto, a Antônio Flávio Pierucci – Não. Na edição de
confecção do texto, agora, também passar a ser 1920 há uma nota de rodapé, que destacamos,
objeto de atenção. E eu digo isto porque na nova onde ele diz que não alterou nada de substantivo,
edição nós procuramos mostrar que o texto tem nada de essencial, e até sugere aos seus críticos e
uma história, em si mesmo. Temos um texto em objetores que cotejem os textos. Weber não mu-
dois momentos: a primeira forma, de 1904 e dou a sua interpretação básica do que é a relação
1905, que é uma primeira versão, que não foi edi- entre uma ética religiosa que, no caso, é a ética de
tada em forma de livro, mas como artigos de uma um tipo de protestantismo, que ele chama de pro-
revista importante, a Archiv für Sozialwissens- testantismo ascético, o puritano, que vai gerar um
chaft, Depois, quinze anos passados, com o We- tipo de comportamento na sociedade capitalista,
ber já munido de um outro aparato conceitual, na atividade econômica. Ou seja: há uma relação
que ele próprio foi desenvolvendo, revendo a pri- de causalidade no nível da cultura. A ética protes-
meira versão, acrescentando muitas coisas. Não tante gera um ethos profissional. Não gera o capi-
apenas informações novas, acrescentando conce- talismo, gera uma “embocadura” profissional,
ituações novas. Entre as quais eu faço sobressair uma forma de encarar a vida, uma maneira de en-

6 Cf. também GAUCHET, Marcel, Le Désenchantement du monde. Une histoire politique de la religion, Paris:
Gallimard, 1985 e GAUCHET, Marcel, La condition historique. Entretiens avec François Azouvi et Sylvain Piron, Paris:
Stock, 2003 (Nota do IHU On-Line).

18
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

carar a atividade econômica inteiramente nova, também na horas vagas ao trabalho. Tudo isso é
inteiramente racional. Isto não muda, da primeira muito importante para – embora Weber não use
para a segunda versão. Mas ele acrescenta coisas essa expressão – “subir na vida”.
muito importantes, como o conceito de “desen-
cantamento”, que é central no seu pensamento. IHU On-Line – O que perdura é a idéia de
“subir na vida”?
IHU On-Line – O capitalismo contemporâ- Antônio Flávio Pierucci – Isto perdura. Não
neo ainda precisa do ethos profissional de- perdura mais para a maioria, porque o capitalis-
senvolvido pela ética protestante? mo não consegue dar emprego, mais, para as pes-
Antônio Flávio Pierucci – Weber é muito claro soas. Entre os empregados existem aqueles que
com relação a isto. O capitalismo não precisa mais são facilmente substituíveis, e aqueles que são de
de uma ética especificamente religiosa, mas preci- mais difícil substituição. Desses, o capitalismo exi-
sa de um ethos racional. A partir do momento em ge o máximo de dedicação. É uma dedicação sem
que o capitalismo se afirma sobre os seus próprios Deus, é uma dedicação de si mesmo, a um funda-
pés, já no final do século 19, quando o capitalismo mento puramente racional que, examinado a fun-
entra na sua fase de indústria pesada, que é a in- do, tem um forte componente irracional. Se per-
dústria da siderurgia, da metalurgia, da produção guntarmos para as pessoas porque elas trabalham
de máquinas, equipamentos, e não mais apenas a tanto, elas não conseguem dizer mais que é por-
produção de bens de consumo, aí já temos a lógi- que Deus quer assim, que é uma missão divina,
ca de um capitalismo autonomizado em relação a que é uma vontade de Deus. Vão tentar dizer que
uma ética religiosa. Ele precisa de agentes racio- é importante ser assim, porque é assim que eles se
nais dispostos ao trabalho. Hoje nós estamos ven- realizam, que é assim que eles garantem o futuro
do que as empresas estão selecionando as pessoas dos filhos, que eles garantem o futuro da pátria,
com hábitos de maior escolaridade, com maior usando esses argumentos para tentar explicar
flexibilidade na sua capacidade de aprender e de uma atitude anti-humana, praticamente.
se reciclar. As pessoas, para serem ajustadas ao
capitalismo, precisam, de alguma forma, ser edu- IHU On-Line – Esta organização racional do
cadas racionalmente. Nesse sentido, a contribui- trabalho propiciada pelo protestantismo, se
ção da obra de Weber é perfeita, é extremamente contrapôs, segundo Weber, a um capitalis-
atual. Sobretudo nos postos de direção, o capita- mo pária, representado pela forma judaica
lismo exige ainda hoje das pessoas uma dedica- de negociar. Mas o capitalismo contempo-
ção ao trabalho extraordinária, como se a realiza- râneo não assumiu as formas de um capita-
ção humana se reduzisse à realização profissional. lismo pária?
Então as pessoas, os famosos workaholics, execu- Antônio Flávio Pierucci – O capitalismo pária
tivos, gerentes, subgerentes, toda essa parcela de referido por Weber era um capitalismo de pessoas
trabalhadores precisa de uma dedicação ao traba- que não criavam raízes. O capitalismo judaico foi
lho que é praticamente puritana. O capitalismo sobretudo um capitalismo de empréstimo de di-
exige uma dedicação e uma capacidade de auto- nheiro. A diáspora judaica desenraizou os judeus,
domínio, autocontrole, de repressão dos instintos os espalhou pelas diferentes nações, onde atua-
de preguiça, de ócio, de prazeres, de vícios... Nós vam em profissões não ligadas à produção, liga-
temos, no Brasil, uma camada de trabalhadores das às transações financeiras. E com isso eles se
qualificados que faz isso com uma dedicação que educavam muito, eram muito dedicados às artes,
parece religiosa. Então, a ênfase que o Weber dá, à produção intelectual, à ciência, onde se destaca-
estudando o protestantismo ascético, vem com ram bastante. Nesse contexto, Weber está dizen-
essa mensagem de que é preciso ascese, de que as do: o capitalismo produtivo exige uma racionali-
pessoas devem levantar cedo e começar a traba- zação cotidiana e incansável, porque o capitalis-
lhar e trabalhar até tarde e se dedicar se possível, mo financeiro não precisa desse tipo de dedica-

19
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

ção, ou não precisa desse tipo de solidez. Por isso Calvino pensou. Não pensou Deus como “Pai de
que ele o chama de capitalismo pária, porque é todos”. Então, isso é tremendamente perverso.
um capitalismo ádvena7, um capitalismo que é Nós vivemos, realmente, num momento da histó-
importante, mas não se aclimata. ria absolutamente execrável, no sentido de que
você vê as pessoas, os jovens criando expectativas
IHU On-Line – Então poderíamos dizer que que não serão concretizadas para todos, nem
estamos a lidar com dois tipos de capitalis- mesmo para a maioria deles.
mo: um que ainda busca essa modernização
típica ocidental, e que se espalha pelo Bra- IHU On-Line – O senhor disse que os elemen-
sil, e um capitalismo financeiro predatório? tos religiosos, a cultura religiosa continua
Antônio Flávio Pierucci – Sim, o capitalismo fi- sendo importante para a expansão capitalis-
nanceiro é um capitalismo que, na realidade, não ta. O senhor está se referindo ao pragmatis-
cria nenhum capitalismo auto-sustentável. Ele mo das vertentes evangélicas, por exemplo?
não produz no Brasil um capitalismo autônomo, Antônio Flávio Pierucci – No que se refere ao
autóctone. Há uma mudança de qualidade do pragmatismo, o protestantismo dos séculos 16 e
tipo de capitalismo, que não leva mais aquilo a 17, tirando o luteranismo, a corrente luterana, o
um processo de modernização produtiva. protestantismo que Weber chama de ascético era
extremamente pragmático. Era uma religião de
IHU On-Line – Uma das dificuldades da ex- homens de negócios, de homens práticos, que fa-
pansão do capitalismo, na análise do We- ziam da sua atividade econômica o lugar, por ex-
ber, foi o tradicionalismo, a idéia de que celência, do seu encontro com Deus. Isso é prag-
bastava ganhar o suficiente para satisfazer mático. Essa é outra coisa que aprendemos relen-
as necessidades básicas, o desapego ao lu- do a “A ética...”: a religião não precisa ser mística,
cro. Se o capitalismo clássico, que ainda se não precisa ser não prática, pelo contrário, ela
expande pelo Brasil, não recorre mais ao pode ensinar as pessoas a organizarem de uma
apelo de uma produção abençoada por maneira mais prática as suas vidas, a terem um es-
Deus, e precisa qualificar seus empregados, pírito prático, a saberem que, fazendo isso, elas es-
como ele os está educando? tarão contribuindo para a glória de Deus. Se você
Antônio Flávio Pierucci – O capitalismo preci- coloca a glória de Deus como o seu objetivo, e o
sa de apenas uma parcela da população que se que você faz é cuidar do seu dia a dia, de garantir o
dedique a ele. O capitalismo não abarca a totali- seu bolso e a sua prosperidade, isto é protestantis-
dade das pessoas, hoje uma grande parte da po- mo do mais legítimo. Não é o protestantismo de
pulação é inteiramente supérflua, inteiramente Lutero, que é o protestantismo do amor, da salva-
descartável. O capitalismo, hoje, não tem mais ção universal, do arrependimento dos pecados...
condições de oferecer pleno emprego. O capitalis-
mo é, hoje, altamente seletivo. Aqueles que senti- IHU On-Line – Pode-se dizer que, de manei-
rem o apelo que o Weber diria, divino, de uma ra geral as manifestações evangélicas cor-
predestinação a serem prósperos numa sociedade respondem modernamente a esse espírito?
como esta, estes são predestinados a se darem Antôno Flávio Pierucci – Não. Weber, quando
bem num sistema como este. Isto é: não está dito fala “ética protestante”, na verdade desconstrói a
que a maioria vai se salvar; salvar-se-á uma mino- idéia de que o protestantismo é um bloco único,
ria. Essa minoria, ninguém sabe quem são. Mas igual. Há protestantismos das mais diferentes es-
eles, os escolhidos, saberão; constroem, para si, a pécies. Há um protestantismo extremamente mís-
sua própria predestinação. Isso é cruel, mas é uma tico, há ênfase no êxtase e na experiência imedia-
coisa que existe, é possível pensar um Deus assim, ta do gozo, da graça no Espírito Santo, ela pode

7 Quem vem de fora; estranho, alienígena. (Nota do IHU On-Line).

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

ter efeitos práticos e pode ter efeitos alienantes. IHU On-Line – Esta acentuada presença dos
Weber vai falar de “desencantamento” mostrando evangélicos nessa região, à parte seu lado
que o protestantismo é um fator importante de mágico, místico, é um braço de desenvolvi-
desmagificação da prática religiosa. Nós estamos mento capitalista?
vendo que algumas vertentes desse nosso protes- Antônio Flávio Pierucci – Não tenha dúvida, é
tantismo, sobre tudo das correntes criadas aqui no um braço de desmatamento, é um braço de de-
Brasil, autóctones, tipo Igreja Universal do Reino senvolvimento do capitalismo em todos os senti-
de Deus, Igreja Renascer, elas têm fortes compo- dos mais perversos, de instalação de grandes pro-
nentes de magia, têm um apego aos objetos sagra- priedades, de corrupção, no sentido capitalista,
dos, a determinados gestos sagrados como se eles das lideranças indígenas, eu não tenho dúvidas
tivessem força salvífica. Na teoria calvinista, isto quanto a isso. É muito intrigante que os estados
vai ser jogado no lixo como sendo idolatria, como mais protestantes do Brasil sejam estados da
sendo divinização das criaturas. Não dá para dizer Amazônia. A taxa de protestantes em Roraima
que o protestantismo que cresce no Brasil é o pro- também é próxima dos 27%.
testantismo ascético do século 17. Há muito pou-
IHU On-Line – A análise de Weber, em “A
co de ascetismo, em algumas coisas. Agora, eu
ética protestante”, alcança a sociedade pós-
acho o seguinte: eu acho que os pastores protes-
industrial?
tantes destas igrejas no Brasil trabalham muito,
Antônio Flávio Pierucci – Isso é uma etapa do
trabalham mais do que muitos padres e do que
capitalismo que a ética protestante de Weber não
muitos pastores mais tradicionais. As igrejas deles
atinge, não alcança. O Weber não tinha idéia de
ficam abertas 24 horas por dia. Há uma idéia de
que o capitalismo chegaria nisso que nós chama-
trabalho pastoral – eu não sei se eles chamam as-
mos de capitalismo pós-industrial, de uma socie-
sim – nessas correntes evangélicas, que é absolu-
dade que nos anos 1970 começamos a chamar de
tamente incansável.
sociedade de consumo, que pede que as pessoas
se divirtam, que as pessoas saiam de casa, que as
IHU On-Line – O senhor diria que a Igreja
pessoas dediquem as suas horas a consumir, se di-
Católica não está conseguindo proporcio-
vertir em grupos, dançar....consumir muito, ir a
nar uma certa “eticização”, como a ofereci-
bares, tudo isso é ócio, é sociedade de consumo,
da pelo protestantismo a uma sociedade
isso não é ética protestante, não é mesmo. Isso é
que se desenvolvia?
uma tendência contrária àquilo que o Weber ima-
Antônio Flávio Pierucci – Um dos problemas
ginava, não é ascético, não é ascese. Aquilo que o
da Igreja Católica é ser uma igreja clerical. É uma Weber dizia ainda se aplicava, eu dizia, a uma
Igreja que tem uma hierarquia e que depende mu- parcela da população, os eleitos, como eu disse
ito, do ritmo dessa hierarquia. Do meu ponto de antes, parafraseando o Weber. Estas pessoas, que
vista, não mais falando em termos weberianos, eu não se dedicam ao trabalho, elas não estão entre
acho esse ritmo da hierarquia paquidérmico. A hi- os ascetas, são pessoas voltadas para o prazer, o
erarquia católica, no Brasil, é muito lenta, nas suas gozo, inclusive do próprio corpo, se submeterem
decisões. As igrejas evangélicas são muitos mais ao desejo, e não mais cuidar dos seus interesses e
ágeis, têm uma estrutura que você pode não con- dos seus valores. Isso o Max Weber não alcançou,
cordar com ela, há uma desintelectualização dos e “A Ética...” tem muito pouco a dizer.
pastores protestantes, dessas igrejas neopentecos-
tais, bastante acentuada. Você sabe qual é o esta- IHU On-Line – “A ética protestante e o espí-
do de maior taxa de evangélicos no Brasil? É Ron- rito do capitalismo”, pode ser considerada
dônia. No censo 2000, já tinha 27% de evangéli- um marco histórico na refutação empírica
cos. Ou seja: também os protestantes crescem no do materialismo histórico, considerando o
Brasil porque a Igreja Católica não consegue pre- estudo que ele faz a partir das religiões e
encher as necessidades espirituais da população. das suas decorrências culturais na evolução
Não tem padres, o que vai fazer? do capitalismo?

21
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Antônio Flávio Pierucci – Weber não tinha vai lembrar em muitas notinhas de rodapé de “A
pretensão de refutar o materialismo histórico, tem Ética...”, fatores políticos, aos quais o materialis-
um momento que ele vai dizer: eu não estou que- mo histórico dava muito pouca ênfase, como sen-
rendo substituir uma visão unilateral, uma visão do tão importantes no seu influxo causal quanto
materialista, por uma outra visão unilateral dando os fatores econômicos. Ele não refuta o materialis-
ênfase ao “espírito”, aos fatores culturais, aos fato- mo histórico simplesmente invertendo-o, como
res ideais, de idéias... Ele fala: na realidade só se Marx teria feito com Hegel. Ele simplesmente diz:
pode entender os fenômenos históricos se nós ti- olha, não dá para ser mono, tem que ser pluri, tem
vermos a capacidade de olhar as diferentes for- que ser multicausal para podermos entender a
mas de causalidade, os diferentes fatores que en- vida humana na sua complexidade.
tram na explicação. Weber era contra a monocau-
salidade, contra o monismo explicativo. Ele acha- IHU On-Line – O senhor diria que para o go-
va que a história é muito mais rica e que, para ex- verno brasileiro atual está faltando um pou-
plicarmos um fenômeno histórico, uma situação co de leitura de Weber?
histórica, um conjunto de fenômenos históricos, Antônio Flávio Pierucci – Eu acho que para o
precisamos levar em conta os vários fatores. Se- governo atual está faltando leitura, não é que este-
jam eles os fatores materiais, no sentido de pura- ja faltando leitura de Weber. As pessoas têm que
mente econômicos, sejam eles os fatores culturais, ler, estudar. O “núcleo duro” do governo não é de
como no caso da ética protestante ou, como ele pessoas estudiosas, nós estamos sentindo que isso
faz falta.

22
Reler Weber no contexto atual, promovendo uma
atualização metodológica e epistemológica

Entrevista com Almiro Petry

Almiro Petry é professor das Ciências Huma- comportamento econômico. Ele examinou as im-
nas da Unisinos. Graduado em Ciências Sociais e plicações das orientações religiosas na conduta
em Filosofia pelas Faculdades Anchieta de São econômica das pessoas. Os estudos clássicos são
Paulo (FASP), é mestre em Sociologia Rural pela o da relação entre a ética protestante e o desen-
Universidade Federal do Rio Grande do Sul volvimento do capitalismo no Ocidente e o do ra-
(UFRGS), com dissertação intitulada Percepção cionalismo confuciano de adaptação ao mundo.
de oportunidades de melhoria de vida de De modo genérico, a discussão sobre esta temáti-
agricultores de uma área minifundiária – ca desdobra-se em três aspectos: um, que se refere
Cruzeiro do Sul/RS, e é doutorando8 em Ciên- àquilo que Weber quis dizer; outro, que trata de
cias Sociais Aplicadas pela Unisinos, com tese inti- ampliar, corrigir e refutar a relação que Weber es-
tulada Modelo planejado de universidade na tabelece entre o domínio da ação religiosa e o
reconfiguração organizacional da Unisinos comportamento econômico; o terceiro, completa
X Modelo jesuíta de universidade: tensões e a tese de Weber ao examiná-la em novos contex-
desvios. O professor é organizador, ao lado de tos. (2) A metodologia weberiana da compreen-
José Odelso Schneider e Matias Martinho Lenz, são através da formulação de categorias de tipo
do livro Realidade Brasileira: Estudo de pro- ideal. É uma ferramenta heurística como caminho
blemas brasileiros. 11 ed. Porto Alegre: Meri- para confrontar o campo empírico com o tipo ideal.
dional EMMA, 1993. Weber, contudo, sinaliza com a contínua necessi-
dade da transformação dos conceitos frente à
IHU On-Line – Qual é, na sua opinião, o apreensão e compreensão da realidade. (3) A bu-
principal legado de Max Weber? rocracia e as organizações, como domínio legal e
Almiro Petry – A obra de Max Weber (1864- racional. O tratamento tipológico de domínio bu-
1920) representa uma inegável contribuição às rocrático é explícito, quando Weber aborda a or-
Ciências Sociais e, de modo particular, à Sociolo- ganização racional da empresa capitalista e do
gia Contemporânea, tanto na esfera da investiga- Estado. As categorias analíticas giram em torno do
ção quanto na teoria. O legado weberiano impul- poder e da dominação. Além desse, os domínios
sionou o desenvolvimento das Ciências Sociais e carismático e tradicional também têm sua impor-
a riqueza de suas abordagens pode ser agrupada tância.Estes destaques do legado weberiano não
nos seguintes principais campos: (1) A religião e o menosprezam a forte presença no Direito, na His-

8 O professor Almiro Petry já concluiu o curso e sua tese de doutorado, porém não obteve o título de doutor ainda, porque
espera a aprovação do Doutorado do PPG em Ciências Sociais Aplicadas da Unisinos para defender sua tese.

23
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

tória, na Economia, na Psicologia e na Política. como empiria a sociedade industrial capitalista do


Em pesquisa feita pela Associação Internacional início do século XX. Sua luta foi na construção de
de Sociologia (disponível no site www.ucm.es/ uma ciência empírica, com um objeto claramente
info/isa/books), sobre o livro mais influente do sé- definido, analisado e interpretado com seu méto-
culo XX, Max Weber é o autor mais destacado. do inovador na construção da teoria social. Hoje
Entre 978 indicações, Economia e Sociedade9 re- pretende-se ver, naqueles procedimentos, alguns
cebeu 95 (9,7%) e A ética protestante e o espírito obstáculos epistemológicos para avançar na teoria
do capitalismo, 47 (4,8%). Entre estas duas apare- social. Talvez a principal restrição seja ao objeto
ceram A imaginação sociológica (W. Mills, com 59 propriamente dito, ou seja, à sociedade nacional,
indicações) e a Teoria social e estrutura social (R. com base em um território, delimitado geografica-
Merton, com 52 votos). Mas, somando as demais mente, habitado por um povo que se caracteriza
obras, Weber recebeu 166 (17%) indicações. A pela cultura, pelo Estado, etc. Frente ao crescente
pesquisa detalha outros aspectos, como o idioma cosmopolitismo, aquela sociologia se apresentaria
com que o sociólogo trabalha (65,3% têm o inglês limitada para a compreensão da ação humana,
como língua de trabalho), a idade e o sexo. Cha- das condutas, das organizações cada vez mais
ma a atenção que Economia e Sociedade recebeu desterritorializadas, desfronteirizadas, em suma,
as primeiras indicações nas três faixas etárias: globalizadas. Mudando o objeto, a exigência seria
18% (até 45 anos), 23% (45-55 anos) e 20% (aci- mudar o método e construir novas teorias. Entre-
ma de 56 anos), empatando, aqui, com Teoria so- tanto, aprofundando mais o pensamento de We-
cial e estrutura social de R. Merton. Na faixa dos ber, fica evidenciado que sua unidade central da
jovens sociólogos, P. Bourdieu (A distinção) apa- análise sociológica é a ação individual e a ação so-
rece em 2º lugar, com 15% dos votos. Em 1999, o cial que se expressam nas relações do indivíduo
jornal Folha de S. Paulo (Caderno Mais! De na ordem econômica, na ordem social, na ordem
11-04-1999) divulgou uma pesquisa feita junto a política e na ordem religiosa. Elabora, então, a
intelectuais brasileiros sobre o livro mais impac- concepção em função do sentido que o indivíduo
tante do século XX. Ficou em 1º lugar A ética pro- atribui às próprias ações, nos diferentes âmbitos
testante e o espírito do capitalismo e, em 3º lugar, da sociedade. Mas isso precisa ser entendido. Essa
Economia e Sociedade. Eis um consenso em tor- é a essência da sociologia compreensiva: o inte-
no da obra de Weber, apontando para a impor- resse da investigação e da construção da ciência
tância e relevância de seu legado. volta-se para a compreensão dos comportamen-
tos, das condutas, das tradições, dos valores e das
IHU On-Line – Quais as principais limita- relações entre os indivíduos, tendo por base empí-
ções apresentadas pela sua sociologia, fren- rica a realidade social concreta. Sendo assim, as li-
te às exigências contemporâneas? Seu “mé- mitações fluem mais das restrições que se fazem
todo compreensivo” perdura? ao método weberiano, à sua abordagem e à pro-
Almiro Petry- Em primeiro lugar, as exigências posta analítica. Em Weber fica muito evidente que
contemporâneas decorrem da configuração da ele constrói sua teoria da sociedade sobre as rela-
sociedade no início do século XXI. Weber teve ções de poder em que dá ênfase às idéias de luta,

9 No Brasil, a Editora da Universidade de Brasília – UnB, publicou, em dois volumes a obra Economia e Sociedade. A
tradução foi revista tecnicamente por Gabriel Gohn. A tradução é feita a partir da quinta edição. A outra importante tradução é
a publicada pelo Editora Fondo de Cultura Económica, do México, intitulada Economia y Sociedad. Esbozo de
sociología comprensiva. Esta tradução é feita a partir da quarta edição alemã (póstuma) que tem uma disposição diferente e
inclui uma série de trabalhos que não aparecem nas três primeiras edições. O título original da obra de Weber é: Wirtschaft
und Gesellschaft. Grundriss der Verstehenden Soziologie, Tübingen: J.C.B. Mohr, (Paul Siebeck), 1922. Para maiores
informações sobre esta obra que é, segundo Raymond Aron, “a construção mais monumental que se tenha tentado nas
ciências sociais”, cf. a introdução à edição brasileira de Gabriel Gohn intitulada Alguns problemas conceituais e de tradução em
Economia e sociedade. (Nota do IHU On-Line)

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

de seleção e de competição. Incorpora em seu es- dos, ou adeptos – os carismaticamente domina-


quema analítico a idéia de luta, não na perspecti- dos – reconhecem a(s) qualidade(s) e tributam-lhe
va darwiniana, mas como um componente funda- veneração de herói e a confiança de um líder.
mental de toda a relação social. Julga que é im- Assim, a dominação carismática sustenta-se pelo
possível eliminar a luta da vida social. Para ele, ela devotamento dos carismaticamente dominados,
se encontra em toda parte e dela resulta uma sele- mas se desvanece quando não há mais provas do
ção. Isso se apresenta como extremamente atual. carisma, ruindo, igualmente, a liderança. A rela-
Em segundo lugar, o método da compreensão ção entre o dominante e os dominados é estrita-
continua atualíssimo. Revistando os textos, fica mente emocional. Não há quadros administrati-
patente que Weber dedica grandes energias para vos, mas discípulos. A dominação carismática
distinguir os enunciados que exprimem um co- opõe-se rigorosamente à dominação racional.
nhecimento empírico dos que exprimem juízos de Sua legitimação está no reconhecimento do caris-
valor. Condena a confusão entre essas duas or- ma pessoal. Pode constituir-se numa grande força
dens. Para ele, a tarefa do conhecimento científico revolucionária. Mas a dominação carismática per-
consiste na compreensão racional da realidade de sua forma genuína de extracotidianidade,
empírica, aquela que está ao nosso redor. Essa é quando ela se rotiniza ou se burocratiza. Nessa
verificável através da observação direta ou medi- perspectiva, parece exagerado atribuir ao Presi-
ante a construção de tipos ideais, que não se en- dente Lula e a seu governo a categoria de domina-
contram empiricamente, mas que possibilitam de- ção carismática, apesar dos 53 milhões de votos.
terminar “a proximidade ou o afastamento entre a Caberia indagar sobre o sentido destes votos. Nas
realidade e o quadro ideal”. A confrontação visa a eleições passadas, afirmava-se que os votos depo-
captar o sentido ou a conexão de sentido, susten- sitados no Collor eram votos anti-Lula. O mesmo
tada pela construção lógica e racional do tipo ideal, se repetiu em relação ao Presidente Fernando H.
permitindo a compreensão do caso particular. Cardoso. Será que em 2002, parcela dos votos
confiados a Lula, não foram votos anti a octaetéri-
IHU On-Line – Segundo os preceitos webe- de de FHC? O marketing do Duda Mendonça,
rianos, pode-se dizer que o atual governo do criando a imagem do Lulinha Paz e Amor, coop-
País exerce uma dominação carismática, a tou parte dos eleitores. Isso não diminui possíveis
partir da figura do Presidente Lula? traços carismáticos que Lula tenha. Sem dúvida,
Almiro Petry – Categoricamente, não. A questão um metalúrgico subir a rampa do Palácio para ser
do poder e da dominação marca a obra de Weber. investido da mais alta magistratura da República,
Ele vê a temática à luz dos dominantes, colocando é inédito e inusitado. Satisfaz, momentaneamen-
a legitimidade como a probabilidade de obter a te, uma série de anseios populares. Mas, instalado
obediência, de forma direta ou através de um no poder central, o Presidente Lula, adotou clara-
quadro administrativo. Considera o poder como mente todas as características da dominação bu-
“toda a probabilidade de impor a própria vontade rocrática. Há, contudo, um detalhe: parte do qua-
numa relação social” e a dominação como “toda dro administrativo hierárquico foi desmantelado
a probabilidade de encontrar obediência a uma para dar chance aos discípulos carismaticamente
ordem de determinado conteúdo”. Para identifi- dominados.
car isso, constrói tipos puros de dominação legíti-
ma, classificando-os em legal, tradicional e caris- IHU On-Line – Quais aspectos da obra we-
mático. A dominação carismática baseia-se no de- beriana deveriam ser mais valorizados pe-
votamento de uma qualificação pessoal extraordi- las universidades?
nária e em virtude da qual se atribuem à pessoa Almiro Petry – Este questionamento nos conduz
poderes ou qualidades sobrenaturais, sobre-hu- a uma seara que é a autonomia da universidade, a
manas. Ela também pode ser vista como enviada autonomia dos campos científicos e a autonomia
por Deus. Disso decorre sua liderança. Os lidera- dos cientistas. Neste caso, a posição weberiana é

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de que os cientistas devem mostrar donde provêm tiva, Weber indaga, fundamentalmente, em que
suas posições e afirmar que estão a “serviço de tal medida as concepções religiosas têm influenciado
deus e ofendendo tal outro”... Da mesma forma, a vida econômica das diferentes sociedades. Ele
Weber julga que “o verdadeiro professor terá es- acredita que o comportamento humano só pode
crúpulos de impor, do alto de sua cátedra, uma to- ser compreendido dentro da concepção de mun-
mada de posição qualquer, tanto abertamente do (Weltanschauung) de cada povo. Nela estão
quanto por sugestões...”. contidos os dogmas religiosos, os valores, os pre-
ceitos sociais, etc. A partir daí ele quer estabelecer
IHU On-Line – Quais ensinamentos a socie- a relação entre o domínio da ação religiosa e a
dade (e as igrejas) podem extrair de “A ética conduta econômica. O ensaio A ética protestante e
protestante...” para enfrentar o século XXI? o espírito do capitalismo contempla esses aspec-
Almiro Petry – A ética protestante e o espírito do tos. Para tanto, Weber traça um ethos do asceta
capitalismo foi publicado em 1904 (1ª parte) e que, em relação à ordem do mundo, vê a vocação
1905 (2ª parte), no periódico Archiv für Sozialwis- (profissão – Beruf) que deve ser exercida racional-
senschaft und Sozialpolitik (v.XX e v.XXI), atingin- mente. Entende o capitalismo como o sistema de
do a 1ª parte, este ano, seu centenário. Em 1920, produção calcado na empresa, cujo objetivo é o
com a revisão, inserções e alterações, do próprio maior lucro possível, cujo meio é a organização
Weber, integra o v. I de Gesammelte Aufsätze zur racional do trabalho e da produção, unindo o de-
Religionssoziologie. Em 1930, T. Parsons traduz a sejo de lucro com a disciplina racional. Na pers-
obra para a língua inglesa, projetando o trabalho pectiva do ascetismo, a vocação (profissão) é tida
de Weber no mundo acadêmico, fora da Alema- como a colaboração racional com os objetivos es-
nha. Em 1967, o público brasileiro teve acesso ao tabelecidos por Deus na criação, configurando
texto pela publicação da Livraria Pioneira Editora. uma ação racional orientada por valores e fins.
Em 2002, surge, em formato “bolso”, pela Editora Disso resulta um modus vivendi racionalizado.
Martin Claret. Em 2004, a Companhia das Letras, Para analisar o nível de racionalização promovida
publica a Edição de Antônio Flávio Pierucci, em por uma religião, Weber aponta dois critérios: o
comemoração ao centenário. A temática da reli- primeiro é o grau em que ela se despoja da magia,
gião, Weber aborda na Sociologia da religião (Die e o segundo, é o grau de coerência sistemática
protestantische Ethik und der Geist des Kapitalis- que ela imprime à relação entre Deus e o mundo.
mus; Wirtschaft und Gesellschaft, cap.V; Gesam- Disso decorre a própria relação ética do crente
melte Aufsätze zur Religionssoziologie – v. I, II e com o mundo (profano). Em relação ao primeiro
III). Seu foco é a análise sociológica da religião critério, o puritanismo, juntamente com o protes-
como categoria de domínio da ação religiosa na tantismo ascético (calvinismo, pietismo, metodis-
regulação das relações entre os poderes supra- mo e as seitas batistas) elimina completamente a
mundanos e os homens e vice-versa. Aceita a pre- magia atingindo o “pleno desencantamento do
missa de que os mundos – o sacro e o profano – se mundo”. O puritano genuíno rejeita todo e qual-
intercomunicam e que a ação religiosa está orien- quer rito para “obter a graça de Deus para aqueles
tada para o mundo profano, através de profissio- a quem Ele a negara”, como estabelece a doutrina
nais específicos (mago, sacerdote, pajé, etc., ma- da predestinação. Essa doutrina dogmatiza que o
nipuladores das forças extraordinárias), que são mundo existe para servir à glorificação de Deus, e
os mediadores, carismaticamente qualificados os eleitos estão no mundo para aumentar a glória
(em oposição aos leigos), visando a obter benefí- de Deus. Então, a certeza da salvação torna-se
cios do ou para o mundo sacro, com presença viva uma necessidade fundamental. Em decorrência, o
no mundo profano. Na prática, o domínio de ação puritanismo diante do dilema liberdade ou desti-
religiosa é uma intervenção no cotidiano das pes- no, trata racionalmente o mundo frente aos desíg-
soas que poderá ser por forças superiores (deus, nios do Deus supramundano. O puritano é impeli-
espírito) ou inferiores (demônios). Nesta perspec- do a transformar o mundo para acumular rique-

26
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

zas, porque desenvolve a convicção no valor ético investimento contínuo do lucro não-consumido,
da riqueza como meio universal de aperfeiçoa- expressão de afinidade entre a ética protestante e
mento moral geral. Nisso Weber vê o seu segundo o espírito do capitalismo, quando se busca maxi-
critério: a coerência sistemática na conduta. O pu- mizar o lucro, não para gozar a vida, mas na inten-
ritano acredita na promessa de que o mundo lhe é cionalidade de produzir cada vez mais. Em suma,
dado porque “ele tinha-se empenhado por Deus e é o que Weber analisa. Entretanto, em 1920, We-
sua justiça”, por isso, ele tem a riqueza como a ber reconhece que o “capitalismo avançado dos
bênção visível de Deus. Ela também significa a dias de hoje tornou-se independente daquelas in-
resposta concreta à pergunta existencial: “serei eu fluências que a religião podia exercer no passa-
um dos eleitos?”. Weber denomina o racionalis- do”. Evidencia, assim, que seus estudos buscaram
mo puritano de dominação racional do mundo, as razões históricas da expansão do capitalismo
porque – além da sobriedade, da frugalidade, do no Ocidente. Encontra-as na Reforma que elimi-
impulso aquisitivo e da valorização da riqueza – a nou a dominação eclesiástica, implantando a do-
ética racional puritana está orientada “para além minação calvinista, uma verdadeira tirania purita-
do mundo” e, para o puritano, “o trabalho intra- na. Por isso, seria muito presunçoso “extrair ensi-
mundano não passava de expressão do esforço namentos” para enfrentar o século XXI. O que po-
por uma meta transcendente”. Daí emerge a im- derá ser feito (quiçá, seja uma exigência), é reler
pulsão para transformar e dominar racionalmente Weber no contexto atual, promovendo uma atua-
o mundo. Assim, o domínio da ação religiosa puri- lização metodológica e epistemológica, para com-
tana, impulsionada pelo êxito econômico, conver- pletar, ou negar definitivamente, a centenária tese
ge para a lógica e a racionalidade capitalista, en- da relação entre a conduta racional religiosa e a
gajando-se no avanço inexorável do capitalismo conduta racional econômica.
ocidental. Nessa convergência, consagra-se o re-

27
Max Weber hoje

Entrevista com Richard Swedberg

Richard Swedberg é professor de Sociologia melhores livros acadêmicos de 1999; Principles


na Universidade de Cornell, Estados Unidos. of Economic Sociology [Princípios de Sociolo-
Nascido em 1948, em Estocolmo, na Suécia, es- gia Econômica]. Princeton: Princeton University
pecializou-se em Sociologia Econômica, incluin- Press, 2003, a ser publicado em italiano (pela
do Economia, Direito e Teoria Sociológica. É EGEA, Universidade de Bocconi), em chinês (pela
graduado e mestre em Direito pela Universidade China Renmin University Press), e em húngaro; e
de Estocolmo, e Ph.D. pelo Departamento de So- autor, com Victor Nee, do livro The Economic
ciologia do Boston College. Antes de trabalhar na Sociology of Capitalism [A Sociologia Econô-
Universidade de Cornell, trabalhou no Departa- mica do Capitalismo], pela Princeton University
mento de Sociologia da Universidade de Estocol- Press, 2004 e com Neil Smelser, de The Hand-
mo. Desde 2002, é diretor associado no Centro book of Economic Sociology s22[Manual de
de Estudos de Economia e Sociedade, na Univer- Sociologia Econômica], 2004.
sidade de Cornell.
É fundador e foi o primeiro editor da Econo- IHU On-Line – Max Weber ainda pode ser
mic Sociology: European Electronic News- considerado um dos paradigmas da sociolo-
letter [Revista Eletrônica Européia de Sociologia gia? Quais os conceitos formulados por ele
Econômica] (1999-2000) e integra os conselhos que ainda mantêm o vigor teórico?
editoriais e é correspondente de publicações espe- Richard Swedberg – Bem, esta é uma pergunta
cializadas em sociologia de vários países. O pro- ampla que poderia levar horas para ser respondi-
fessor Richard é autor de, entre outros, Socio- da. Para resumir o que penso, primeiramente,
logy as Disenchantment: The Evolution of gostaria de salientar que a influência de Weber na
the Work of Georges Gurvitch [Sociologia sociologia moderna é, em geral, considerada mui-
como Desencantamento: A Evolução da Obra de to importante. Quando a teoria sociológica clássi-
Georges Gurvitch] (Humanities Press, 1982. (livro ca é ensinada, por exemplo, são Marx, Weber e
baseado em sua tese de doutorado); Max Weber Durkheim que geralmente estão no centro (en-
Dictionary [Dicionário de Max Weber], com a quanto que Simmel é, de certa forma, marginali-
assistência de Ola Agevall. Stanford: Stanford zado). Conceitos como carisma, status e autorida-
University Press; Max Weber and the Idea of de ou dominação (Herrschaft) também se torna-
Economic Sociology [Max Weber e a Idéia de ram parte da terminologia de sociologia. Existem
uma Sociologia Econômica]. Princeton: Princeton livros sobre cada um desses conceitos e, sem dúvi-
University Press, 1998, a ser traduzido para o ja- da, outros serão escritos. Obviamente, existe,
ponês (Bunka Shobu) e português. Traduzido também, o grande e importante impacto de We-
para o chinês em 2003 (Commercial Press of Bei- ber na teoria da organização, principalmente atra-
jing) escolhido pela Revista Choice como um dos vés de suas idéias sobre burocracia; e sobre estra-

28
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

tificação, através de suas idéias sobre status e fe- pela primeira vez. Contudo, deixe-me fazer refe-
chamento social. Além disso, Weber é sempre a fi- rência a um bom estudo neste assunto: In Search
gura principal na “nova sociologia econômica” of the Spirit of Capitalism [À Procura do Espírito
que está se tornando cada vez mais importante. do Capitalismo] de Gordon Marshall10. Uma das
várias questões que Marshall salientou em seu tra-
IHU On-Line – Qual foi o significado de “A balho foi que muitos aspectos cruciais do argu-
ética protestante e o espírito do capitalis- mento de Weber não podem ser considerados po-
mo” para as ciências sociais”? Sua análise sitivos nem negativos; e a única razão disso é que
pode ser adaptada às relações da sociedade falta evidência empírica para pontos cruciais na
pós-industrial com o aumento das religiões argumentação de Weber. Weber não apresentou
marcadas pelo pragmatismo? evidência empírica em seu estudo, e agora, prova-
Richard Swedberg – O argumento de Weber na velmente, é tarde demais para mudar a situação.
Ética Protestante pode ser resumido da seguinte Pode o argumento de Weber na Ética Protestante
maneira: Protestantismo – principalmente aquelas ser utilizado para a compreensão da sociedade
formas de Protestantismo que Weber denomina pós-industrial? Novamente, uma questão ampla e
de “Protestantismo Ascético” (Calvinismo, Pietis- há muito pouco espaço para respondê-la. Apesar
mo, Metodismo e outras tantas seitas que se deri- disso, uma vez que Weber estabelece uma socio-
vam do Movimento Batista) todas contribuíram logia completa (mais em relação à Economia e
para a erradicação do capitalismo tradicional e Sociedade do que à Ética Protestante!), não pos-
derivaram para um novo tipo de capitalismo: ca- suímos tantas categorias sociológicas e idéias com
pitalismo racional moderno. Este principalmente as quais se pode trabalhar. Conceitos como status,
realizou esta proeza pela introdução de uma atitu- classe social, relacionamentos sociais abertos/fe-
de muito mais metódica em relação ao trabalho e chados, carisma e burocracia podem, na minha
à obtenção de lucros. Pelo fato de ser uma reli- opinião, ser usados para analisar a sociedade atu-
gião, o Protestantismo Ascético também pode re- al. A religião exerce o papel na sociedade
duzir a resistência tradicional da religião para o pós-industrial da mesma forma como o faz na Éti-
trabalho pesado e a obtenção de lucros. Foi quan- ca Protestante? Pode ser tentador pensar que sim;
do emergiu um novo tipo de empreendedor e de por exemplo, os Estados Unidos são, ao mesmo
trabalhador. O modo como este argumento é tra- tempo muito religiosos e muito exitosos como na-
balhado na Ética Protestante é uma questão muito ção capitalista. Todavia, o argumento de Weber
debatida. Por exemplo, o conceito de Lutero de na Ética Protestante foi de que um certo tipo de re-
vocação (Beruf) teve um papel importante no sen- ligião ajudasse a “abrilhantar” o capitalismo racio-
tido de atribuir valor positivo ao trabalho. Tam- nal em um certo momento no passado – e depois
bém existe uma discussão complexa sobre Calvi- caiu no esquecimento. Quando Weber visitou os
no e predestinação. Weber argumenta, com toda Estados Unidos no início do século XX, ele não
brevidade, que a predestinação fez com que os questionou o poder industrial da nação por causa
adeptos do Calvinismo se sentissem inseguros e do papel da religião; havia outros motivos para
que essa insegurança fez com que eles procuras- isso. Dessa maneira, minha resposta é que, sem
sem sinais que não condenassem; a riqueza foi dúvida, deveríamos utilizar algumas das idéias e
vista por alguns seguidores de Calvino como um conceitos de Weber para analisar o papel da reli-
sinal para não ser condenado. Está esse argumen- gião na sociedade pós-industrial – porém, não po-
to correto? Bem, esse tipo de entrevista não é demos simplesmente “traduzir” a tese de Weber
apropriada para discutir essa questão que tem sobre Ética Protestante para os dias de hoje.
sido objeto de ferrenhas discussões desde
1904-1905, quando a tese de Weber foi publicada

10 Gordon Marshall é autor do The Concise Oxford Dictionary of sociology. Oxford, 1996. (Nota do IHU On-Line).

29
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

IHU On-Line – É possível identificar, na so- and Class Theory: A Bourgeois Critique [O Mar-
ciologia contemporânea, teóricos ou esco- xismo e a Teoria de Classes: Uma Crítica Burgue-
las que ampliaram e atualizaram a contri- sa] de Frank Parkin12. Outros sociólogos contem-
buição de Weber, sem descaracterizá-la? porâneos influentes, cujos trabalhos são geralmen-
Richard Swedberg – Primeiramente, deve-se te denominados de neoweberianos, incluem
salientar que não existe uma total equivalência, na Anthony Giddens, Michael Mann e Theda Skocpol.
escola weberiana, em relação ao marxismo, ou
seja, não existem escolas específicas de pessoas IHU On-Line – Qual é, na sua opinião, o sig-
que a vêem como sua tarefa principal de trabalhar nificado da idéia de “desencantamento do
de acordo com o paradigma weberiano e posteri- mundo” presente na obra de Weber?
ormente desenvolvê-lo. Para ser direto: nunca Richard Swedberg – O desencantamento do
existiu escola weberiana de sociologia. O que mundo (Entzäuberung der Welt) é uma expressão
existe, na verdade, é uma grande quantidade de no trabalho de Weber que se refere ao processo
cientistas que utilizam pequenas partes do traba- através do qual as pessoas deixam de explicar o
lho de Weber em suas análises. Há, também, uma mundo e seu cosmos com a ajuda de forças mági-
explicação detalhada, aparentemente sem fim, cas, para acreditar na ciência e nas formas racio-
daquilo que Weber realmente “quis dizer”, bem nais de pensamento. Certamente, os intelectuais
como uma preocupação com particularidades in- exerceram um papel-chave no processo de desen-
tricadas de seu trabalho e vida – o que pode ser cantamento do mundo. De acordo com Science
chamado de weberologia. A categoria que mais se as a Vocation [Ciência como Vocação], na qual
aproxima daquilo que você procura pode ser de- esse tipo de assunto é discutido por Weber, “hoje
nominada de neoweberismo. Esse rótulo é geral- em dia, no essencial, não intervêm forças misteri-
mente colocado em vários trabalhos de sociologia osas incalculáveis, mas, em princípio, podemos
– principalmente na sociologia anglo-saxônica – a controlar todas as coisas mediante o cálculo. Isso
qual tem tentado renovar, desde o final da década significa que o mundo está desencantado”. O pro-
de 1970, várias áreas de estudo, com a ajuda das blema de viver em um mundo moderno desen-
idéias de Weber de forma independente e cantado é que a ciência tornou-se o novo Deus – e
não-dogmática. Alguma inspiração para um pro- isso é problemático porque a ciência não conse-
jeto como o neoweberianismo deve ter-se origina- gue responder os problemas existenciais das pes-
do do neomarxismo e também alguns neoweberi- soas, tais como “Quem somos? De onde viemos?
anos devem, algum dia, ter sido neomarxistas. De Para onde vamos?” O próprio Weber pensou que
qualquer forma, especialmente três áreas têm sido novos deuses apareceriam, de uma forma ni-
o centro da sociologia neoweberiana: estratifica- etzscheriana – hoje, porém, quase um século após
ção, sociologia histórica e a sociologia da situa- sua morte, não vimos nenhum novo Deus surgir.
ção. Talvez a essas possa juntar-se a teoria da or- Estamos “presos” em um mundo sem sentido.
ganização – bem como vários outros temas, tais Weber também pensou que seriam os intelectuais
como educação, religião e saúde. Abordagens ne- que mais sofreriam com o fato de viverem em um
oweberianas também podem ser encontradas na mundo sem sentido; e de uma forma mais geral,
antropologia e na ciência política. Dois dos mais ele freqüentemente enfatizava que o que os inte-
importantes estudos do neoweberianismo são lectuais mais queriam era significado. Eu, pessoal-
Weberian Sociological Theory [A Teoria Socioló- mente, penso que é uma idéia interessante. Às ve-
gica Weberiana] de Randall Collins11 e Marxism zes, brinco com a idéia de que a ciência social

11 Este livro foi publicado pela Cambridge University no ano de 1986. Randall Collins publicou no ano 2000 o livro Sociology of
philosophies pela Harvard University. (Nota do IHU On-Line).
12 Este livro foi editado pela Columbia University Press, 1983. Do mesmo autor, em português, pode ser encontrado o livro Max

Weber editado pela Celta Editora, 1997 (Nota do IHU On-Line).

30
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

pode ser vista como uma enorme tentativa (criada Berger, Peter Blau, Randall Collins, Everett C.
pelos intelectuais!) para encontrar sentido na reali- Hughes, Seymour Martin Lipset, Robert K. Mer-
dade. Certamente, a ciência social não tem êxito ton, Talcott Parsons, Edward Shils, Theda Skoc-
no estabelecimento de explicações causais – tal- pol e Arthur Stinchcombe. Qual é a posição atual
vez, por isso, a ciência social seja mais uma evi- de Weber na sociologia americana? A situação é
dência dessa procura por sentido do que uma ten- um tanto contraditória. Por um lado, ele é respei-
tativa exitosa para explicá-lo... tado como um dos grandes clássicos, e as pessoas
sabem que devem citá-lo e fazer referências ao
IHU On-Line – Na sua opinião, as universi- seu trabalho em seus artigos. Por outro lado, po-
dades norte-americanas destinam ao lega- rém, há uma forte tendência, nos Estados Unidos
do de Weber a atenção que ele merece? de hoje, de ignorar os clássicos e deixar qualquer
Richard Swedberg – Primeiramente, deve ficar um no departamento ensinar teoria sociológica.
bem claro que foram os sociólogos americanos Isso, certamente, significa que as pessoas que le-
que não deixaram Weber ser esquecido. Logo de- ram, pelo menos, A Ética Protestante e algumas
pois de sua morte, em 1920, Weber foi esquecido páginas a mais escritas por Weber, de repente, se
na Alemanha e em outros lugares. Isso, em espe- sintam aptas para introduzir os estudantes num
cial, foi graças ao sociólogo americano Talcott trabalho que é imensamente difícil e desafiador. O
Parsons que liderou a redescoberta de Weber resultado final torna-se um Weber simplificado
como um grande cientista social e sociólogo desde que é muito menos interessante do que o verda-
a década de 1930. Depois de Parsons, um núme- deiro Weber. Isso é uma triste situação. Espera-
ro enorme de sociólogos americanos renomados mos, porém, que seja somente uma fase na socio-
fizeram importantes contribuições para a escola logia americana. Seria irônico se a sociologia
weberiana e/ou utilizaram as idéias de Weber em americana fosse a primeira a redescobrir Weber e,
suas próprias pesquisas: Reinhard Bendix, Peter depois, enterrá-lo.

31
Meu Clássico

Depoimento de José Ivo Follmann

O clássico escolhido pelo Prof. Dr. José Ivo na sociologia, como Guy Bajoit, Jean Remy (que
Follmann é Max Weber. Follmann é doutor em foi meu orientador no doutorado) e outros.
Sociologia, pela Université Catholique de Louvain,
U.C.L., Bélgica; mestre em Ciências Sociais, pela
PUC-SP; especialista em Teologia Pastoral, em Coo- Suas obras
perativismo e em História Contemporânea, pela
As duas obras que eu citaria são: O sábio e a
Unisinos. Atualmente, é diretor de Ação Social e
política e A ética protestante e o espírito do
Filantropia da Unisinos, professor do PPG em Ciên-
capitalismo. Em O sábio e a política, que é a
cias Sociais Aplicadas e responsável pelo Programa
reprodução de uma das grandes conferências que
Gestando o Diálogo Inter-Religioso e Ecumenismo,
ele costumava dar no meio acadêmico, aborda a
GDIREC, do Instituto Humanitas Unisinos.
complicada relação entre o ser militante político e o
ser cientista. Já na obra A ética protestante e o
Max Weber espírito do capitalismo, Weber sintetiza, em um
exemplo paradigmático, a sua contribuição teórica
Eu não me considero um weberiano, mas que quer mostrar o quanto os modelos culturais e
devo dizer que Max Weber influenciou muito mi- determinações éticas (e religiosas) impactam e in-
nha sociologia. Ele é um dos meus clássicos. fluenciam os rumos da economia.
Max Weber é do final do século 19 e inícios Weber é um clássico que muito contribuiu
do século 20. É um dos pais da Sociologia. Ele fez para a minha maneira de fazer sociologia, apesar
escola, combatendo, de certa forma, a grande in- de eu não poder ser considerado um weberiano,
fluência que Karl Marx tinha no meio intelectual. nem poder dizer que ele é meu autor preferido. Eu
Era um homem que congregava, em torno de si, destacaria, na contribuição de Weber para a mi-
um importante debate político e científico. Seus nha vida (de cientista e militante), exatamente a
maiores inspiradores foram, certamente, Rickert, sábia distinção e, ao mesmo tempo, a coerência
Dilthey, Nietzsche, Lamprecht, Schmoller e ou- que ele estabelece entre o cientista e o militante.
tros. Os seus colegas mais próximos foram Sim- Agregado a isso está a distinção que ele faz entre a
mel, Tonnies, Troeltsch e Schumpeter. Ele teve
ética de responsabilidade e a ética de convicção.
fortes embates com o pensamento de Marx, por
Trata-se de duas dimensões que se complemen-
um lado, e de Durkheim, por outro. Criticado por
tam. Quanto mais alguém souber integrar, harmo-
uns e aprofundado por outros, o seu pensamento
nicamente, em sua vida, essas duas dimensões,
marcou a Sociologia.
mais pleno ele se faz como pessoa humana. Devo
Tive muito contato com o modo como We-
dizer, que esta luz de Max Weber, me ajudou mui-
ber é utilizado tanto por Pierre Bourdieu, como
tíssimo, na minha vida pessoal de cientista e mili-
por Alain Touraine e também pelos que hoje tra-
tante; de sociólogo e de religioso jesuíta; de técni-
balham a questão do sujeito e da dinâmica pessoal
co e de humanista.

32
Novos conceitos em permanente gestação

Entrevista com Wolfgang Schluchter

O professor Dr. honoris causa Wolfgang volvimento do racionalismo ocidental. Uma análi-
Schluchter, nascido em 4 de abril de 1938 em se da história da sociedade de Max Weber.] Tübin-
Ludwisburg, na Alemanha, concedeu a entrevista gen: Siebeck, 1979. Nova edição sob o título: Die
ao IHU On-Line, por e-mail. Entstehung des modernen Rationalismus.
Tendo estudado nas Universidades de Stutt- Eine Analyse von Max Webers Entwick-
gart, Tübingen e Munique e na Freien Universität lungsgeschichte des Okzidents, [A criação do
Berlin os cursos de Sociologia, Ciências Econômi- racionalismo moderno. Uma análise da história do
cas, Ciências Políticas e Filosofia, o professor desenvolvimento do Ocidente de Max Weber]
Wolfgang diplomou-se e doutorou-se na Freien Frankfurt: Suhrkamp, 1998; Max Weber’s Vision
Universität Berlin, com habilitação na Universida- of History: Ethics and Methods [Visão da His-
de de Mannheim, Alemanha. Atualmente é pro- tória por Max Weber: Ética e Métodos.](junto com
fessor de Sociologia na Universidade de Heidel- Guenther Roth), Berkeley: University of California
berg, desde 1976. Antes disso, foi professor de Press, 1979, 2.ed.1984; Rationalismus der
Ciências Sociais na Universidade de Düsseldorf. Weltbeherrschung,[Racionalismo do domínio
De 1997 até 2002, esteve em missão na Universi- mundial.] Frankfurt: Suhrkamp, 1980; Religion
dade Erfurt, onde foi pró-reitor de Pesquisa e und Lebensführung, [Religião e modo de vida.]
Nova Geração Científica e também foi diretor de Frankfurt: Suhrkamp, 1988, Edição específica
Estudos da Cultura e Ciências Sociais do colégio para estudos acadêmicos 1991. Vol. 1: Studien
Max-Weber. É autor de, entre outros, Entschei- zu Max Webers Kultur- und Werttheorie.
dung für den sozialen Rechtsstaat. Hermann [Estudos sobre a cultura e teoria de valores de
Heller und die staatstheoretische Diskussi- Max Weber.] Vol. 2: Studien zu Max Webers
on in der Weimarer Republik. [Decisão por um Religions- und Herrschaftssoziologie. [Estu-
estado de direito social. Hermann Heller e a dis- dos sobre a sociologia da religião e do domínio de
cussão teórica estatal na República de Weimar]. Max Weber.]; Rationalism, Religion, and Do-
Colônia-Berlim: Kiepenheuer e Witsch, 1968, 2. mination. A Weberian Perspective [Raciona-
ed. 1983; Aspekte bürokratischer Herrschaft. lismo, Religião e Dominação: Uma Perspectiva
Studien zur Interpretation der fortschrei- Weberiana], Berkeley: University of California
tenden Industriegesellschaft. [Aspectos de um Press, 1989; Paradoxes of Modernity. Culture
domínio burocrático. Estudos para a interpretação and Conduct in the Theory of Max Weber
da sociedade industrial em desenvolvimento.], [Paradoxos da Modernidade. Cultura e Conduta
Munique 1985; Die Entwicklung des okziden- na Teoria de Max Weber], Stanford: Stanford Uni-
talen Rationalismus. Eine Analyse von Max versity Press, 1996; Unversöhnte Moderne
Webers Gesellschaftsgeschichte, [O desen- [Modernidade irreconsiliável.], Frankfurt: Suhr-

33
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

kamp, 1996; Neubeginn durch Anpassung? ciais, ao longo de seu desenvolvimento temporal.
Studien zum ostdeutschen Übergang, [Novo Deve-se ressaltar que a teoria de conceituação
começo através da adequação? Estudos sobre a weberiana compromete o pesquisador a criar per-
transição leste alemã.] Frankfurt: Suhrkamp, 1996. manentemente novos conceitos compatíveis com
os fenômenos pesquisados, pois para este tipo de
IHU On-Line – Max Weber ainda pode ser sociologia compreensiva a formação de conceitos
considerado um dos paradigmas da sociolo- jamais poderá ser definitiva. Trata-se de uma soci-
gia? Quais os conceitos formulados por ele ologia que pretende compreender o significado da
que ainda mantêm o vigor teórico? ação social e de suas coordenadas com base em
Wolfgang Schluchter – De fato, existe algo seu processo e em seu efeito para, assim, possibili-
como um “paradigma weberiano”, que se encon- tar uma explicação causal. Isso significa: 1. Razões
tra em concorrência com outros paradigmas da de sentido que motivam o agente, devem ser tra-
sociologia, como, por exemplo, com a teoria sistê- tados como causas; 2. As condições e situações
mica, com a teoria da ação comunicativa, e tam- estruturantes da ação, que a possibilitam e lhe im-
bém com a teoria da escolha racional (RC-Theo- põem limites, devem ser consideradas; 3. Os pro-
rie) que utiliza e amplia, de forma específica, as cessos de transformação, que resultam de uma
possibilidades do enfoque econômico. Colabora- multiplicidade de entrelaçamentos com outras
dores meus publicaram, recentemente, um livro ações, devem ser analisados. Finalmente, esta re-
com este título: O paradigma weberiano (Das We- lação macro-micro-macro precisa ser contempla-
ber-Paradigma, Tübingen: J. C. B. Mohr (Paul Sie- da na perspectiva de um conceito de racionalida-
beck), 2003). Participaram dessa publicação, de pluridimensional, “restringida” por significados
além dos organizadores, 17 cientistas de diferen- subjetivos (bounded rationality, segundo Herbert
tes países e disciplinas. A estrutura do conteúdo Simon). No entanto, não só os processos de racio-
do livro nos dá uma idéia da amplitude do méto- nalização em diversos níveis são objetos interes-
do weberiano: I. O Paradigma Weberiano em He- santes de pesquisa, como também o seu oposto.
idelberg; II. Teoria do Conhecimento científico e
do Valor; III. Ação e Comportamento; IV. Cultura IHU On-Line – Qual foi o significado de A
e Conduta de Vida; V. Instituições e Regimentos. ética protestante e o espírito do capitalismo
Eu, no entanto, evito o conceito paradigma, por- para as ciências sociais?
que este contém, desde os primeiros trabalhos de Wolfgang Schluchter – “A ética protestante e o
Thomas Kuhn, um significado não compatível ‘espírito’ do capitalismo” foi publicada pela pri-
com a situação de concorrência da teorização so- meira vez em 1904/1905, na forma de uma série
ciológica. Em vez disso, utilizo o conceito “progra- de artigos. Depois, em 1920, ela foi inserida no 1.°
ma de pesquisa”, cunhado por Imre Lakatos. O volume da Gesammelte Aufsätze zur Religionsso-
subtítulo do livro mencionado Estudos para o de- ziologie (Coleção de artigos sobre a sociologia da
senvolvimento do programa de pesquisa de Max religião). A obra é, segundo um depoimento do
Weber leva em conta o meu ponto de vista. Tra- próprio Weber, em primeiro lugar, uma análise
ta-se, no meu entender, de uma sociologia com- histórica que reivindica ter apresentado uma atri-
preensiva que procura analisar, no contexto de buição causal válida à origem do novo espírito de
um enfoque individualista-estruturalista, as rela- ascese vocacional que começara a se impor no sé-
ções entre ação, regimento e cultura, numa pers- culo XVII. Esta pretensão de Weber é até hoje con-
pectiva de cotejo e de desenvolvimento histórico. trovertida de forma veemente. É por esta razão
É um programa de pesquisa com um núcleo duro que muitos cientistas têm a tese weberiana por re-
kantiano (segundo Lakatos). Apresenta todo um futada. Eu, no entanto, não vejo que a importân-
acervo de conceitos com os quais podem ser ana- cia dessa obra resultaria, em primeiro lugar na so-
lisados, no micro e no macro, estruturas e proces- lução, bem ou mal sucedida, de uma questão de
sos econômicos, jurídico-políticos, religiosos e so- atribuição histórica. Pelo contrário, ela deve ser

34
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

vista como exemplo de metodologia de pesquisa a ameaça nuclear e ecológica da humanidade, a


de uma sociologia teórica e histórica, que se en- passagem do capitalismo empresarial ao capitalis-
tende como ciência da cultura, para a análise do mo digital, o fundamentalismo vinculado ao terro-
papel das idéias e dos ideais que dão significado à rismo e, enfim, ainda à globalização econômica
vida de seres humanos. O próprio Weber desta- que parece ser seguida de uma globalização social
cou, numa parte central de seu estudo, que ele e cultural. Weber, para permanecer fiel à sua me-
pretendia esboçar este papel de forma diferente todologia, teria que dizer: Comparando com mi-
do costume de materialistas ingênuos mas, sobre- nha época, os grandes problemas culturais muda-
tudo, também de idealistas ingênuos. Pois para ram. Portanto, a sociologia deve mudar seu ângu-
ele não existe a causalidade de idéias, no sentido lo e seu aparelho conceitual. Mas – e este é o meu
de uma downward causation, tão característica do comentário complementar – para isso, ela deve
idealismo ingênuo. Max Weber concentra-se, an- estar embasada no “espírito” de um programa de
tes de tudo, nos efeitos psicológico-pragmáticos pesquisa weberiano.
das idéias e dos ideais. É verdade que estes efeitos
são co-determinados por idéias e ideais, embora IHU On-Line – É possível identificar, na so-
talvez possam encontrar-se dinamizados por inte- ciologia contemporânea, teóricos ou esco-
resses – no caso de seu estudo, por interesses sal- las que ampliaram e atualizaram a contri-
víficos - e, assim, transformados em relação ao seu buição de Weber, sem descaracterizá-la?
conteúdo que, comparado com o ponto de parti- Wolfgang Schluchter – O método de Weber
da da idéia, possa resultar numa concatenação teve muitos efeitos sobre outros teóricos que, fre-
acional totalmente inesperada. Além disso, para qüentemente, o distorciam ou, então, se equivo-
poder perceber e compreender esse efeito, preci- cavam profundamente no seu entendimento.
sa-se de um determinado material de fonte. Deve Para se obter uma visão não apenas superficial,
ser um material que possa espelhar tanto as preo- mas abrangente de sua obra, deve-se realizar um
cupações e necessidades das pessoas submetidas estudo que dure uma vida toda, o que, aliás, vale
àquela visão de mundo quanto as soluções que para as obras de todos os grandes pensadores.
elas encontraram para sua conduta de vida. Em se Justamente por isso, a apropriação e, sobretudo, a
tratando do campo religioso, Max Weber remete atualização e extensão de sua metodologia per-
acertadamente à literatura de responsos como manecem um desejo a ser realizado.
sendo útil para esta finalidade. Essa reflexão sobre
o papel histórico das idéias e dos ideais é, no meu IHU On-Line – Qual é, na sua opinião, o sig-
ponto de vista, válida até hoje. Infelizmente são nificado da idéia de “desencantamento do
raros os estudos históricos que seguem este mundo” presente na obra de Weber?
caminho. Wolfgang Schluchter – O conceito “desencan-
tamento do mundo”, ou melhor, o conceito antô-
IHU On-Line – A “sociologia compreensiva” nimo ao “encantamento do mundo”, tem dois sig-
de Weber é útil à compreensão da sociedade nificados distintos na obra de Weber. O primeiro é
pós-industrial? de natureza histórico-religiosa. Neste caso, desen-
Wolfgang Schluchter – Todo programa de pes- cantamento significa desenfeitiço dos meios salví-
quisa sociológico, que merece este nome, é tem- ficos. É nesse sentido que o conceito é utilizado na
porâneo, mas contém elementos que continuam segunda edição dos estudos sobre a ética protes-
válidos além de sua época. Isso vale naturalmente tante. O segundo significado, entretanto, é de na-
também para Max Weber. Ele escrevia numa épo- tureza histórico-científica e deve ser distinguido ri-
ca na qual lhe era possível ter apenas uma noção gorosamente do primeiro. Aqui, desencantamen-
rudimentar ou totalmente nula dos fenômenos to significa o processo pelo qual o mundo é trans-
que hoje determinam nossa vida. Menciono, a tí- formado, por meio da ciência moderna, sobretu-
tulo de exemplo, o crescente totalitarismo político, do, das modernas ciências exatas, em um meca-

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

nismo causal. Dessa forma, desencantamento é si- com a sociologia de Heidelberg, mas também teve
nônimo de secularização, não se referindo mais a suas irradiações na história social alemã.
um processo intra-religioso, mas sim a um proces-
so que se volta, em parte, também contra a reli- IHU On-Line – Na sua opinião, as universi-
gião. No entanto, nos dois casos o conceito per- dades alemãs destinam à obra de Weber a
manece com aspectos de metáfora que remetem a atenção que ela merece?
processos mais complexos, ainda não “concebi- Wolfgang Schluchter – Não podemos afirmar
dos” e que teriam de ser melhor analisados. que determinadas universidades tivessem se dedi-
cado ao cultivo da obra de Max Weber. Quem fez
IHU On-Line – Qual é o legado de Weber isso foram, antes de tudo, estudiosos individuais
para a formação, consolidação e posterior espalhados por muitas universidades. Há univer-
reunificação da nação alemã? sidades com uma posição especial no cultivo do
Wolfgang Schluchter – Houve algumas tentati- patrimônio científico de Max Weber. São aquelas
vas de analisar o desenvolvimento da Alemanha que disponibilizam cargos para a viabilização da
no século XX – isto é, as duas guerras mundiais, o edição completa das obras e cartas de Max Weber
fracasso da República de Weimar, o regime nacio- que, entrementes, já engloba 20 volumes. Nesse
nal-socialista, a separação em dois países e a reu- sentido, devem ser mencionadas principalmente
nificação – considerando-se a perspectiva webe- as universidades de Heidelberg e Düsseldorf. Em
riana. Esses estudos concentraram-se na análise Heidelberg, são realizadas, além disso, pesquisas
sociológica da cultura e das instituições. Procura- sobre o paradigma weberiano, como já mencio-
vam detectar as forças que estruturaram as ações namos acima. Recentemente, foi me dada a possi-
de constelações institucionais culturalmente con- bilidade de fundar na Universidade de Erfurt o
dicionadas. Essa perspectiva tem laços estreitos Weber-Kolleg para estudos sociológicos e cultu-
rais. Não se trata, no entanto, de uma instituição
comprometida exclusivamente com a herança de
Max Weber.

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