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somanc'f ae sito SUMARIO. Apresentgao, Jeane Marie Gagnebin Advercéneta 19 1A testemunha. 2 2 © “mugulmane” 49 3. A vergonha, ou do sujeito 93 4 © arquivo ¢ 0 restemunho . 139 Ribliografia poe 71 Copyright Cougs Agamben Copyright © eitenpo Eaieorl, 2008 Chandnapin iit rasa Skog edteeetenc: a Pa Camin {ge Heres Fb Aviom atrial Laan Lin Tego Selina J, Asean Prpargto Naboo Moulin Revisie Rom Kurhnit ape Guiherne Kier ‘se ou de Miche Ranse ‘Bdtaap earioe Civ se Cerqutes Coit ‘Predgéo. Mazel tha CCIP-BRASIL. CATALOGACAO NA FONTE. SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DELIVROS, R} Aggmben, Gla, 1902 quent du Anche: yauvo ea cetera Homo Sct 11 {cig Ape sao Sn Asian So Ps Hae (ado de toy “indus de: Quel che ves dt Anschwer Incl ka ISBN 978 95-7559.120.8 1, Auschoitefamapa de concentajt), 2 Holocaust jade (1999 1943) " Noten posnie Minera ert. Holocaust ude 11539-1515)" Arpoctor outs «eeeon 4 Poesrucarlme. IT 98.3658 cop 9405318 DU. Sanio0) 193911945" “Taos op dees reer: Nenhurma pate deste po pode er Tula ou rpredsida ser expe aowiaag da ear 1 edi: outubro de 2008, BOITEMPO EDITORIAL Jinkings Edicores Arocindes Leda Rua Bucides de Andrale, 27” Perdizes (05030-030 So Paulo SP Teles (11) 3875-7250 / 3872-6869 ecicon@boitempoed.orial.com.be ‘ronehoieempoeditnral corabr Bianca Casalini Agamben (in memoriam). “star ao alcance de tudo significa ser capaz de tudo.” Para Andzea, Daniet e Guido, os quais, 20 discutirem comigo estas iginas, permitiram que viessem A luz, Copyright Cougs Agamben Copyright © eitenpo Eaieorl, 2008 Chandnapin iit rasa Skog edteeetenc: a Pa Camin {ge Heres Fb Aviom atrial Laan Lin Tego Selina J, Asean Prpargto Naboo Moulin Revisie Rom Kurhnit ape Guiherne Kier ‘se ou de Miche Ranse ‘Bdtaap earioe Civ se Cerqutes Coit ‘Predgéo. Mazel tha CCIP-BRASIL. CATALOGACAO NA FONTE. SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DELIVROS, R} Aggmben, Gla, 1902 quent du Anche: yauvo ea cetera Homo Sct 11 {cig Ape sao Sn Asian So Ps Hae (ado de toy “indus de: Quel che ves dt Anschwer Incl ka ISBN 978 95-7559.120.8 1, Auschoitefamapa de concentajt), 2 Holocaust jade (1999 1943) " Noten posnie Minera ert. Holocaust ude 11539-1515)" Arpoctor outs «eeeon 4 Poesrucarlme. IT 98.3658 cop 9405318 DU. Sanio0) 193911945" “Taos op dees reer: Nenhurma pate deste po pode er Tula ou rpredsida ser expe aowiaag da ear 1 edi: outubro de 2008, BOITEMPO EDITORIAL Jinkings Edicores Arocindes Leda Rua Bucides de Andrale, 27” Perdizes (05030-030 So Paulo SP Teles (11) 3875-7250 / 3872-6869 ecicon@boitempoed.orial.com.be ‘ronehoieempoeditnral corabr Bianca Casalini Agamben (in memoriam). “star ao alcance de tudo significa ser capaz de tudo.” Para Andzea, Daniet e Guido, os quais, 20 discutirem comigo estas iginas, permitiram que viessem A luz, APRESENTAGAO, Jeanne Marie Cagnebin Dentro da vasta obra de Giorgio Agamben, este livro ocupa lugar intermediario e singular. Publicado em. 1998, retoma a problemética de Homo sacer (1995)' e de Mezzi senza fine (1996), em particular a dis- ‘ngio entre vida nua (208) ¢ forma de vida, propriamente humana (608), desde a elaboragio dessa distingio por Aristételes até a transformagio, tna época moderna, da politica em biopolitica (na esteira das reflexbes de Michel Foucault). O nome “Auschwitz” ndo € simplesmente o simbolo do horror € da crueldade inéditos que marcaram a Historia contempo- ‘inea com uma mancha indelével: “Auschwitz” também é a prova, por assim dizer, sempre viva de que o nomas (a lei, a norma) do espago polf- ‘deo contemporineo ~ portanto, nao sé do espago politico especifico do reyime nazista — no é mais a bela (¢ idealizada) construgio da cidade ‘comum (pal), mas sim o campo de concentragso: (O campo ¢0expago gue se abre quando 0 extado de excerlo omega a tornar-se rege [..}, Na medida em que os seus habitantes foram despojados de todo cestatuto politico e redusidos invegralmente vida nua, o campo é também. © mais absoluto espago biopolitico jamais realizado, no qual © poder nao tem diante de si sendo a pura vida sem qualquer mediagio.* "Flom acer ipotr sounona ele nde vita Tm, Einaul, 1995); ea. bras: Homo saer0 poder anberine ea vide nua (Belo Horizonte, Edtora UFMG, 2002) Moai senca fine: note sulla polities Tarim, Bolla Borknghiest, 1996) (sem ‘radigso em poregts). Home sacer: poder soberane evils nua cit, p. 175, 177-8, Not aes respelto vo livre de Peter Pal Pelbare, Vide capital (Sto Paulo, Tinueas, 2003) 10 + © que rest de Auschwice [Assim afirma Agamben em Homo sacer ¢ ipsi lettre, em Mezzi senza _fine, antecipando uma reflexio sobre o estado de exceciio como norma, que seri 0 cixo de Eitado de excepto (2003)*. Mas O que rerea do Auschwitz cambém anuncia wma cemdica teo- Idgico-politica que deverd se desenvolver no livro seguinte, If tempo che esta (2000)°, uma bela e erudita incerpretagio da dimensio messianica das Ep{stolas de s4o Paulo, em particular da Epistola aos Romanos, texto fandante da teologia moderna de Lutero a Karl Barth ¢ Jakob Taubes. A lilkima publicagso de Giorgio Agamben, Il nagno la glovid!, 6 vern refor= sar essa vertente do pensamento de Agamben, vertente pouco recebida cc comentada no Brasil. Aliés, embora O que resta de Auschwitz sa clas- sificado sob a numeragio Home sacer II, 0s livros subseqiientes — Estado de excegao e It regno ¢ la gloria ~ trazem, respectivamente, os niimeros 11, Ze, 2,0 que causa no leitor cerea confusto, no melhor dos casos uma expectativa inerigada por um Horo sacer III, 2 0u caver IV. Se a palavra "Auschwitz" remete, entio, 4 problemdtica do Home sacer, do estado de excecio ¢ da biopolitica, a expressio enigmitica “O que festa" reenvia a um nticleo tealégico © mess co, parente nas duas tages biblicas em epigrafe ao capitulo 1 (“A reseemunha’) © nas breves afirmagées finais do capitulo 4 (“O arquivo eo testemunho”) sobre 0 cos, Agamben desenvolve essa nogio bastante peculiar de “resto” a partir daquilo que ele chama, lendo sto Paulo, de “contragao do tempo", de “situago messidnica por exceléncia", numa lei- ura muito livre da passagem da Primeita Epistola aos Corintios, na qual Paulo declara: “Eis 0 que vos digo, iemaos: 0 tempo se fez curto””, e numa Reino ¢ o tempo messi ‘Seats di ccesione: home eacer Il, 1 Tasien, Bol Estado de excepto: homo ster Il, 1 (S50 Pauly Boringhiers, 2003); ed. bes. tempo, 2004), tempo che resea: uo commento alla Leters ai Roman (Tati, Bollati Borin tier, 2000) (sem eraducao em pores) veg ela gloria: per una genealogia tolgica dell economia « dal governo: homie acer II, 2 Wicensa, Neri Bossa, 2007). Agradego a indicagse deat livro a Jon sefer E Barbors. 1 Gor. 7,29, segundo a tradusio cla Biblia de Jerusalém, que tras em nota 0 seguinte comentario sobre o "tempo curto": "Termo téeniea de navegacso. Lit ‘o tempo cobrou as suas velas. Qualquer que sejao ineervalo entre o momento presente € Paroutia, perde a importincla, dado que, no Cristo resuscltado, ‘9 mundo vindouro jf ext presente”. Agamben comenta essa passagem no seu livre Ul rempe che rsa. Apresencagio #11 seapropriagio do concsico de Walter Benjamin, de Jerzzeit, eemporde- ia, simultaneamente cesurs revolucionsria ¢ messitnica, O que resta vie Auschwite néo significa, entso, aquilo que ainda podetia sobran, per tnanecer desseterrfvel acontecimento, algo como um famigerado “dever ‘lememéri’ uma expressio cujos usos e abusos slo conhecidos. O resto ‘nuliea muito mais um hiato, uma lacuna, mas wma lacuna essencial que Tanda a lingua do festemunho em oposicao &s classfcagbes exaustivas do inpuvo. Nas ditimas paginas do lio, Agamben desvia a conhecida cita- ‘ko de Heidegger: "Os poctas ~ as testemunhas ~ fundam a lingua como ‘aque resta, 0 que sobrevive em aro & possbilidade ~ ou & impossibil ‘lade de falar (J. Nao enuneiivel, nfo arquivavel é a lingua na qual o “tor consegue dar testemunho de sua incapacidade de falar. “Assim, podemos entender melhor ese “resto” como aquilo que, No tetemunho, solapa a propria eficcia do dizer e, por iso mesmo, instal a ‘elade de sua falas 6 no tempo fumano, como aquilo que solapa a lines- ‘iddadeinfinita de oronose instiuia plenitude evanescente do tempo-de- iyora como hatros messi, Tasiseo nas dffculdades co ttulo dese ivro porque elas ajudam a en- tender as difculdades de sua leitura, A primeira vista, parece que temos tim mos mais um livro sobre Auschwves, nfo umn liv histbrico — desde "primeira pigina,o autor nos adverre que a questio das “circunstincias Inérieae” ja foi devidamente exlarecida pelo historiadores da Shoah ~ nas unm livro sobre as dificuldades do tertemunho, Iso € verdade: como toxlos os livtos de “testemunhas" da Shoah (citemos, entre outros, Primo {avi Robert Antelme, Jorge Sempran ox Jean Améry). trat-se de nartar \r que aconteceu? e de afirmar, 20 mesmo tempo, que “o que acomte- cu no fiz parte do narrével. Os dois primeiros capitulos de O que nse de Auschwite segacm, gros modo, es tilha j4 conhecida; os dois “ihimos, porém, introduzem refexdes sobre a subjetivacto ea vergonka, ‘sim como sobre a lingwagem, que escapam do género “literanura do ‘estemunho” ou da reflexio teérca a seu respeito. Ow melhor: que de- Sulojam 0 leitor deste rerritsrio jd basrance explorado ¢ o projetam em llnecto a especulagées filos6fico-teolbgicas que podem muito bem néo wt aborrecé-lo, mas também initélo (como se sabe, a recepgio da obra “le Giorgio Agamben € multo controverrda, em particular nos meios Vep ian 12 * © que resea de Auschwitz judaicos alemées ¢franceses). Sem prejulgar nem 0 interes nem o valor dlestarreflexdes, gortaria de, no minimo, assnalar ua presenga e 0 emba- a¢0 que podem provocar num lcitor mais “engajado”, que nio procura por intanmpacties manfiteananen quizes es mer com feuenseande de andlise ede lata. (Ors, neato que emma 1efladex-sejam mais excancaradas now ikimos caplculos, elas subjazen ao live inteize. Segundo o autor olivre niio é urea pesquisa hisérica, seria ras tum pesquisa sobre écica e estemunho ou ainda mais uma ceneaiva de “finear f e I algumas estacas que eventual ‘mente poderio orientar os fiacuros cartégrafos da nova terra étice", cujo primeiro e mator ageimensor, diz Agamben, continua sendo Primo Levi Um paradoxo constitutive rege tal pesquisa. Com efeito, na tradigao. ocidental, flosofia moral © érica foram sempre definidas pela descricao do “reino das norma’ isto é, pela reflexio critica sobre o estabelecimen- to de leis/normas/regras (tomo? comuns que deveriam reger a vida em comm dos homens, 0 dominio dos urot‘e dos costumer comianss tefl so critica sobre a fundamentagio de rais normas, sua eventual univer- salidade, suas posibiidades de validagao e/ou de cransgresséo. Somente assim as normas éticas podem fornecer limites constinutivos A agi. hu ‘mana, no duplo sentido da palavra limitex podem nos obrigar-a obede- cet, mas também nos ajudar a dar uma forma construtiva a0 rurbilhso dle nossos dessjo®, Ora, com a experiéncia dos campos de concentraco aoontece uma devastadora auséncia de normas: a adminitneodo nazise. cstabeloce uma “ordem” «80 rigida quanto aleatéria, os presos sio en segues a um arbitio implacivel. Primo Levi conta, por exemplo, que quando chegsvam 20 campo, ox prisioneitos eram separados em docntes ¢ sios: os primeiros iam dieeamence para as cimaras de gis, mas podia aconcecer também que os vagier repletos de presos forscm abertos dos dois lados dor trilhor: um lado ia para o trabalho, o outro para a morte. ‘Essa auséncia de normas comtins explica também por qu os novos de- centos foram geralmente derrubados jé nos primciros dias de sua estada rho campo. Perdiam tempo e energia em tentar compreender aquilo que thes acontecia, em. querer entender que sistema regia o campo, em ver 3 Vere verbere “Enles” redigida com mutta clareza por Paul Ricoeur no Diciomd- rio de drica ¢ filasyfia moral, org, pot Monique Canto-Sperber (Sio Leopoldo, Unisinos, 2007), 2 ¥. Apreseneagio + 13 dle se concentrat, desde 0 ince, no Unico esforge vilido, a saber: tentar sobrevivera qualquer custo, isto é, ao custo do entendimento e, sambém, «lu comunieago com os outros. ssa auséncia de normas, de nomiot, fz do campo de concentragio, pradoxalmente, 0 “paradigma biopolitico do moderno” (feulo da ter~ ‘ira parte de Homo sacer), umm novo nories, portanto, que solapa as con- clioes de possibilidade de uma construgio érica classic, Solapa igual © cspecialmente a possbilidade de emitir um jufeo tico a respeito daquilo “iwc aconteceu (0 que ndo é sindnimo de concordancia!), Assim, Primo {vl serd sempre uima vestemunha no sentido restrito de superste, aquele «que vivew algo etenta relas-lo; ele nunea se coloca na posicio de resis, de ‘estemunha no sentido de um terceiro entre duas partes, que pode ajudar 1 julgelas, segundo a distingso latina evocada por Agamben. Chama a stongao, realmente, que Primo Levi narra sem cair na tentacio de julgar € de condenas: nao julga os participantes dos Sonderkommandas, no juga «ox Prominenten, nao julga nem 08 soldados naziseas, mas, simplesmente, ‘clasa e descreve numa voz justamente implacivel porque “neutra’, dessa tneutraidade assustadora que o torna semelhante a Kafka. No seu iltimo livro, Os afogadese 08 sobreviventes, Levi forja até 0 termo de impotentia judicandi". Tapouco dé ele receltas de sobrevivencia, em particular nao ‘enriza sobre a necessidade de conservar um minimo (qual?) de “dignida- «lc humana” para sobreviver, como alguns tentaram conjectarar (Bruno Uictretheim e Jean Améry, entre outros). Esse questionamento radical das possibilidades normacivas no tem comente sia forte aa desorieneagio brutal 3 qual foram submetidos os jwisioneiros dos campos. Essa atitude também nasce de uma exigencia {une ealvez passamos, sim, chamar de ética...) de nao excluir ninguém do ‘elaco, em particular nao excluis nenhum “muculmano’, isto é,justamen- tessa “figusa” desprovida de qualquer qualidade geralmente atribuida a0 + humano!, Ardesetigéo exemplar dos “mugulmanos” no capieulo 9 «le F isto wom bomem? (primeiso livro de Primo.Levi) expée sua retrivel Hestigurasios 0 “mugulmano” é o preso sem rosto que abdicou da luta, imo Lav, Or gfogtdes eo sobrevivents (Rio de Janeiro, Paz e'Tera, 1990), p. 32. ' Aetimologia dessa expressto “mugulmano” & obscura; da minha parte no Consiga nfo ouvir, em todas laboriosas explicagées, como que uma certa slesforra de cariver racista na boca das vitimas do anti-semicismo. 14 + © que testa de Auselwite que nfio pode mais nem ser chamado de vivo nem de ter uma morte que ‘mereceria esse nome. Figura da extrema desfiguracio, 0 “mugulmano” & © ndo-homem que habita © ameasa todo ser humano, a redusio sinistra da vida humana A vida nua, Dor isso, ele é geralmente exeluido do relato ¢ da reflexdo, jé que stta incluso ameagaria todas as definigées dé hu- manidade vigentes até hoje. Exclusto, lacuna, reivindicada por ninguém menos que Jean Améry quando escreve, citado por Agamben: (© assim chamado Miselmann, como cra denominado, na linguagem do Lages, © prisioneiro que havia abandonado qualquer esperanga © que havia sida abandonado pelos companhelros, jé nfo dispanha de tum ambico de conhecimento capaz de Ihe permitir discernimento en- tre bem ¢ mal, entre nobreza e vileza, entre espiritualidade e nso espiti- tualidade, Era um cadiver ambulante, um felze de fungées fsicas jd em agonia, Devemos, por mais dolorosa que nos paresaa escolha, exclut-lo da nossa consideragao."? Agamben observa que também nos filmes feitos pelos ingleses no (Campo de Bergen-Belsen, logo depois da libertagio e para fins de docu- mentar o horror, os operadores filmaram os caddveres amontoados (um, tapos clissico da representagio do horror desde a antiguidade), mas se desviaram quando esses semimortos sem rosto apareceram de repente no campo de visio da ciimera: os “mugulmanos” sio aqueles que nao podem. rem devem set vistos, tampouco lembrados, porque sua mera existéncia, ameaga nossas representagSes minimas do humano. A grandeza de Primo Levi consiste em ter recusado esses proce mencos de exclusio (em particular a exclusio em nome da “dignidade humana’), isto é, em ter accito colocar em questo at normas éticas € narnativas de sua pritica de cestemunha por meio da irrepresentivel pre- senga do “mugulmano”: © mugulmano penetrou em uma regito do humano ~ pois, negar-the simplesmence a humanidade significarla aceltar o veredicto das SS, re- petindo o seu gesto~ onde dignidade e respeito de si nio sio de nenbu- ma utilidade, como também ndo uma ajuda exterior. Se existe, porém, luma regito do humano em que tais conceitos néo tém sentido, no se Ver p49. Apresencagio * 15 trata de conceitos éricos genufnos, porque nenhuma ética pode ter pretensio de excluir do seu Ambito uma parte do humano, por mais lesageadavel, por mais difieil que seja de ser contemplada,"* Psbosa-se aqui, entre as Hnhas dolorosas de Primo Levi ¢ nos co- ios incisivos de Giorgio Agamben, como uma definiszo de oucra tiva: ndo mais uma doutrina das normas (cuja grandeza, mesmo obso- Jeti ambos reconhecem), mas uma postura firme ¢ a0 mesmo tempo hhesitante, incerta, um encarregar-se de transmitir algo que pertence 10 sofiimento humano, mas cujo nome € desconhecido. Algo que faz imnplodir as definig6es da dignidade humana e as coeréncias discursi- vas, Esse encarregar-se lembra também 0 ato de carregar os mortos, Inesmo andnimos, de enterri-los ou, quando foram reduzidos a cinzas, dle mencioné-los e de lembré-los, mesmo ¢ justamente aqueles que nem ume tém, Tal encargo € altamente arriscado porque ameaga a posigio, } ptimeira vista superior, do sobrevivente. Esse € 0 “paradoxo de Levi” has palavras de Agamben, paradoxo que estrurura toda a sua obra e que cle enunciou com toda a clareza no seu iltimo livro: Repito, nile somos nés, os sobreviventes, as auténticas testemunhas. Es- a é uma nagao incémoda, da qual romei consciéncia pouco a pouco, endo as memérias dos outios € relendo as minhas muitos anos depois. Nés, sobreviventes, somos uma minoria andmala, além de exigua: somos sgqueles que, por prevaricagso, habilidade ou sorte, nao tocamos 0 fundo, Quem 0 fez, quem ficou a gérgons, no voltou para contas, ou voltow mvudlo; mas a6 ees, os “mugulmanos”, os que submergiram ~ sio eles as ‘stemunhas incegrais, ewjo depoimento teria significado gera.'* © patadoxe consiste em afirmar que nao pode haver nem verda- dlcisa testemunha nem verdadeito testemunho, porque os tinicos que Verp 7 Uiscreve Maurice Blanchot sobre 0 live de Robert Antelme, Lespice humaine, Sobte 0 “testemunho” da Shoah “Impossible aussl, quand on en parle, den palet —et finalemene comme il ay a len & dire que cet événement incom= prchensible, Cest la parole seule ql doit le porter sams le dire” Lntreten infix tn Paris, Gallimasd, 1969, p. 200). Tomo emprestada a Blanchot essa metifora the peter/ “oarnegar”. Prime Levi, Or afogadr « ar sobreviventes, lt. p47. 16 * © que resta de Auschwitz poderiam ser testemunhas aurénticas foram mortos — como 0 foram 65 “musulmanos" e tantos outros". Consiste em declarar que o teste- munho do sobrevivente somente repotsa sobre essa impossibilidade de autenticidade e sobre o reconhecimento clessa impossibilidade, sobre a consciéncia aguda de que aquilo que pode—e deve ser narrado nto é essencial, pois o estencial nfo pode ser dito, Agora, esse nfo-dizivel néo remere 4 bela tradigao da teologia negativa ou a cetética do sublime, como as veres alguns teéricos da “liceratura de cestemunho” gostariam de nos convencer © a si mesmos. Quando sio Joao Criséstomo, obser- va Agamben, aficma que Deus é indizivel e inenarrivel, ele glovifiea a grandera de Deus que, mesmo para os anjos, permanece incompreen- sivel. E quando a contemplacao de ina tempesiade deixa sem palavras seu espectador, faltam-lhe az palavras préprias a0 juizo estético sobre © belo, mas ele poderd inventar outras manciras de falar. No paradoxo de Primo Levi, a testemunha nao pode dizer isso que mereceria ser dico, porque cise “isso” pertence & morte. Essa falta, essa lacuna, esse deslocamento, essa nao-coincidéncia (codos termos de Agam= ben) resea de Auschwite, essa marca dolorida que desmancha qual- quer plenitude discursiva e ameaga 0 logos de desmoronamento: io enunciivel, nfo arquivavel é a lingua na qual o autor consegue dar tes- remunho da sua incapacidade de falar. Nela coincide uma lingua que sobre- vive aos sujeitos que a falam com um filante que fea aquém da linguagem, Ea ‘teva obscura’ que Levi sentia crescer nas piginas de Celan como ‘um ruido de indo’; €a nfo-lingua de Hurbinek (masekla, maciskla), que nao encontra lugar nas bibliotecas de dito, nem no arquivo dos enunciados."" Hurbinek € 0 nome dado pelos sobreviventes recém-libertos a um menino de uns trés anos que se encontra com cles no “campo maior” 5 Nesse contento, Agamben tem rantio de colocar em questi csse pressuposte do paradoxo quando menciana, no fim de O que rena de Auschwlioy aime tie de “testemunhos” esctitos por ex-deporiador que se consideram camber ex-"mugulmanos”, que conseguiram volear desea condigio, Os depolmentos foram publicados depois da morte de Primo Levi, nos Auschwite-Tefie por doi pesquisndores ‘Ver p. 161. Apresentasio + 17 le Auschwitz, depois da libertagzo, um menino sem nome ¢ sem fala. Primo Levi relata suas “experiéncias obstinadas” para aprender a fa- lon, stuas *variagées experimenais sobre um termo, uma raiz, sabre um, some talvez". O menino nio sobrevive, morre “nos primeitos dias de nnrgo de 1945, iberto mas nao redimido”, escreve Levi, que conclu: Nada resea dele: seu testemunho se dé por meio de minhas palavras"! © menine Hurbinek nao conseguiu passar da in-fancla (infans, que no fal), da idade da ndo-fala, a javencude loquaz (puer loguens, coma diz santo Agostinho). Como toda linguagem humana repousa sobre essa se- paragae abissal entre phone e logas, entre vor e linguagem, assim também, \oila vida politica em comum, todo bios, repousa sobre o abismo da zo?, slessa vida nua que nos assemetha aos bichos. O que Auschwitz nos legou cambém é2 exigencia, profundamente nova para o pensamento filosélico © em particular, para a ética, de nao nos exquecer nem da infincia nem ida vida nua: em vez de recalear essa exiseéncia sem fala e sem forma, sem vommunicagio e sem sociabilidade, saber acolher essa indigégncia primeva ‘que habits nossas construgées discursivas e politicas, que s6 podem per- necer incompleras Campinas, junbo de 2008. -A trigue (Sio Paulo, Companhia das Letras, 1998), p. 30-1 ADVERTENCIA, Gragas a uma série de investigagoes cada vez mais amplas e #i- ovosas, entre as quais o livro de Hilberg ocupa lugar especial, 0 problema das circunstdncias histéricas (materials, réenicas, buro- , juridieas..) nas quais ocorreu o exterminio dos judeus foi neemente esclarecido. Investigagées futuras poderio langar s Iuzes sobre cada um dos seus aspectos, mas 0 quadto geral jé we pode considerar estabelecido, lem diferente é a situagao telativa ao significado ético e politico Jo excerminio, ou mesmo 4 simples compreensio humana do que wontecen, 2 saber, em dikima andlise, & sua atualidade. Neste caso, ‘ie 86 falta algo semelhante a uma rentativa de comprecnaio global, ‘onus também 0 sentido € as r2z6es do comportamento das catrascos vas vitimas; muitas vezes, as suas préprias palaveas continuam apa~ revendo como enigma insondavel, reforgando a opinigo de quem ysstavia que Auschwitz ficasse incompreensivel para sempre. Do ponto de vista do historiados, conhecemos, por exemplo, minimos detalhes, © que acontecia na fase final do exterm Auschwitz, a forma como os deportados eram levados As cAma- ‘us le gis por um esquadro composto pelos préprios companhei- (o assim chamado Sonderkommando), que, posteriormente, se de cartegar para fora os cadaveres, de lavé-los, de retirar roduzi-los lentes ¢ cabelos dos corpos, para depois, e por fim, lornos erematérios. Mesmo assim, ais acontecimentos, que po- os deserever ¢ ordenar cronologicamente um apés outro, conti- 20 + © que rests de Auschwier nuam sendo singularmente opacos quando realmente queremos compreendé-los. Talvez ninguém tenha exposto de maneira mais clara essa distancia e esse mal-estar do que Salmen Lewental, mem- bro do Sonderkommando que confiou seu testemunho a algumas folhinhas sepultadas junto ao crematério III, que vieram A luz de- zessete anos depois da libertagto de Auschwitz. Escreve Lewental, no seu ifdliche muito simples: Nenhum ser humana podle imaginar como ocorreram pre fato, & inimagindvel que possam ser descritas exatamente como aconte- cccram nossas experiéncias [..] nés—0 pequeno grupo de gente obscura gue nao dard muico trabalho para os historiadores, samente 0s aconeecimentos, ¢, de Nao se trata aqui, obviamente, da dificuldade que experimenta- mos toda vez que procuramos comunicar a outros as nossas expe- rigncias mais intimas. A dificuldade tem a ver com a prépria estructura do testemunho. Por um lado, 0 que aconteceu. nos campos aparece 20s sobreviventes como a inica coisa verdadeira e, como tal, absoluta- mente inesquecivel; por ourro, tal verdade ¢, exatamente na mesma medida, inimaginaval, ou seja, irgedutivel aos elementos reais que a constituem. Trata-se de fatos tao reals que, comparativamente, nada é mais verdadciro; uma realidade que excede necessariamente 0s seus ‘clementos factuais: ¢ esta a aporia de Auschwirz. Assim est escrito nas folliinhas de Lewental: “a verdade inteira é muito mais trdgica, ainda mais espantosa [...]". Mais trégica, mais espantosa em relagio a qué? Pelo menos por um aspecto, porém, Lewental se havia engana- do. Pode-se ter certeza de que aquele “pequeno grupa de gente obs- cura” (obscura deve ser entendido neste caso também no sentido liceral de invisivel, que nao se consegue perceber) nunca deixard de dar trabalho aos historiadores. A aporia de Auschwitz é realmente a prépria aporia do conhecimento histérico: a néo-coincidéncia entre fatos e verdade, entre constaragio e compreensio, Entre 0 querer entender demais © demasiadamente rapido, por parte de quem tem explicago para tudo, ea recusa de entendes, por parte dos sacralizadores baratos, insistir nessa separagao nos pareceu ser 0 tinico caminho praticdvel. Acrescente-se a tal dificuldade uma outra que tem a ver, especialmente, com quem esté acostumado a Advercéncla © 21 veuparse de textos literdrios ou filosdficos, Muitos eestemunhas — 1 dos catrascos, sejam das vitimas ~ provém de pessoas co- s, assim como era gente “obscura” a grande maioria dos que se encontrayvam nos campos. Uma das licées de Auschwiez. consiste wnente em que entender a mente de um homem comum € amente mais dificil que compreender a mente de Spinoza «le Dante (¢ também nesse sentido que deve ser entendida a nagéo de Hannah Arende, tantas vezes mal-interpretada, sobre “a banalidade do mal”). Vilvex os leitores fiquem desiludidos encontrando neste liveo fruit pouco de novo a respeito do testemunho dos sobreviventes. Na sua forma, ele é, por assim dizer, uma espécie de comentitio per- petio sobre o testemunho. Nao nos parece possivel fazer otra coi sw, Contudo, tendo em vista que, a uma certa altura, nos pareceu Idente que 0 testemunho continha como sua parte essencial uma na, ou seja, que os sobreviventes davam restemunho de algo que ser testemunhado, comentar seu testemunho significou jamente interrogar aquela lacuna — ou, mais ainda, centar . Prestar atengdo a uma lacuna ndo se mostrott, para o au wn, ser um trabalho intl. Obrigou-o, antes de mais, a livrar o cam- ju tle quuse todas as doutrinas que, depois de Auschwitz, tiveram a puetensao de definir-se com 0 nome de ética. Conforme veremos, tyme nenhum dos prineipios éticos que o nosso vempo acreditou poder revonhecer como validos resisciu A prova decisiva, a de uma fvhica more Auschwitz demonstrata. Por sua Vee, 0 autor ird se sentir ‘unipensade por seu esforgo se, na tentativa de identificar o lugar ¢ ujetto do testemunho, for minimamente capaz de fincar cé e Mi stacas que eventualmente poderio orientar 0s fucuros car- wiloy «la nova terra ética. Ou entio simplesmente se conseguir Jurct com que alguns termos, com as quais foi registrada a ligao de- civiva dl século, venham a ser retificados, ¢ que algumas palavras a ner esquecidas e outras compreendidas de mancira diferen- fe. Hiunbén esse & um modo — quem sabe, talvex 0 nico modo pos- sivel dle escutar 0 ndo-dito. prec wl jucle dia, reste de Israel e os sobreviventes da casa de Jacé io se apoiaréo mais sobre quem os feriu, inus se apoiaréo no Senhor, no Santo de Israel, lealdade © resto voleard, resto de Jacé, para o Deus forte, Porque. ainda que o teu povo, 6 Israel, fosse como a areia do mar, s6- ny resto se salvard.. Ts. 10, 20-22 Assiny também no tempe atual contituiu-se um resto, weyumdo a eleigéo da graga.. V asim seudo Israel serd salvo. Rat. 11, 5826" naisfelmence a terminologla usada pelo autor, preferimos clar os ts enduizindo a versio apresentada em italiana, em vea de recorrer ftvalugfien exttentes em pornagés: ON.) 1 A TESTEMUNHA, 1.1 No campo, uma das razées que podem impelir um deporta- do a sobreviver consiste em cornar-se uma testemunha: ‘be minha parce, tinha decidido firmemente que, independence do sue me viesse a aconcecer, no me teria tirado a vida. Queria ver Jo, viver tudo, fazer experiéncia de tudo, conservar tudo denceo de mim. Com que objetivo, dado que nunca teria tido a possibi- lide de gritar 20 mundo aquilo que sabia? Simplesmente porque nan queria sair de cena, nfo queria suprimir a testemunha que po- Cortamente nem todos, ou melhor, sé uma parte fafima dos deri- «dos inyoca para si mesma essa razo. De resto, também pode aconte- cer que se trate de uma razdo cémoda (“gostaria de sobreviver por ome on aquele motivo, por esse ou aquele objetivo, ¢ se enconcram nas de prevextos. A verdade é que se gostaria de viver a qualquer peso"). Ou entio pode tratar-se apenas de vinganca Cnaturalmente jwuderia suicidar-me langando-me sobre a cerea elérica, isso sempre jwnlemos fazé-lo. Mas eu quero viver. Quem sabe acontesa um mila ite © seremos libertados. E entio irci me vingar, contarei a todo o ‘nnd 0 que aconteceu aqui dentro”). Justificar a prépria sobrevi- U1 Langbein em Auchuite: Zeugnisve snd Berichte, ong, HD. Adlet, H. Lan- ihoin, F Lingens-Reiner (Hamburg, Europitache, 1994), p. 186, leswenthal, "Gedenkbuel", Hef nm Auachuite; Oxwieca, a. 1, 1972, pe 148, WY Solikey, Loveline del serra: ileampo di concensnamenta (Roma-Bati, Lateras, }995), p77, 26 + © que cesta de Auschwice vencia nao é ficil, menos ainda no campo. Além disso, alguns sobre- viventes preferem ficar em silencio. “Alguns dos meus amigos, amigos que me sio muito earos, nunca falam de Auschwitz.”* No entanto, para outros a tinica razio de viver é nao permitir que a tes- temunha morra. “Outras pessoas, por sua vez, falam disso sem pa- rar, ¢ sou um deles.”* 1.2 Um tipo perfeito de testemunha é Primo Levi, Quando vol- ta para casa, entre os homens, conta sem parar a todos 0 que Ihe coube viver. Faz como 0 Velho Marinheiro da balada de Coleridge: ‘Vocé lembra a cena: © Velho Marinheiro para os convidados 20 matrimd= nnlo, que nio Ihe prestam aren¢io — eles esto pensando no préprio mat mdnio ~, ¢ 08 obriga s excutar 0 seu relato, Pois entio, logo depois de ter voltado do campo de concentrasio, também eu me comportava precisa mente assim, Sentia uma necessdacle irrefrefvel de contar a minha histécia a todo mundol...Toda ocasiéo era boa para contar a todos a minha hiseéra: 420 diretor da fibrica, assim como ao operito, mesmo que eles tivessem ‘outras coisas para fazer. Fiquel precisamente como o Velho Marinheiro. Depois comecei a escrever & méquina durante a noite... Todas as noltes crevia, ¢ isso acabava sendo considerado uma coisa ainda mais lowes! Mas ele no se sente eseritor; torna-se escritor unicamente para tes temunhar. Em certo sentido, nunca se tornou escritor, Em 1963, quan- do 4 havia publicado dois romances e vérios relatos, frente A pergunta se se considerava um quimico ou um escritos, respondeu sem pestanie- jar: “Ah, um quimico, sejamos bem claros, no confundamos as coisas”. (© fato de que com o passar do tempo, ¢ quase apesar dele, tenha acaba- do por tornar-se tal, escrevend lives que nada tém a ver com seu tes- temunho, 0 deixa profundamente mal: “Depois escrevi... adquiti 0 vicio de escrever". “Neste meu iiltimo livro, La chiave a Stella, despi-me ‘completamente da minha qualidade de testernunha... Com isso no re- nego nada; ndo deixei de ser um ex-deportado, uma testemunha...” SP Levi, Gonversasion/ e intervst (Torino, Einaudi, 1997), p. 224 + dem. © Thidem, p. 22455, Atesemunha * 27 Sentindo de perto esse mal-estat, € que eu 0 encontzei nas reunises «la editora Einaudi. Ele podia sentir-se culpado por ter sobrevivido, ndo por ter testemunhado. “Estou em paz comigo porque testemunhei.”” 1.3. Em latim, h4 dois termos para representar a testemunha, O pri- Ieiro, rests, de que deriva 0 nosso termo testemunha, significa eximo- logicamente aquele que se poe como terceira (*Zersti) ern um processo ‘ou em um litigio entre dois contendores. O segundo, superstes, indica acuele que viven algo, atravessou até o final um evento e pode, porcan- to; dar testemunho disso. E evidente que Levi nao € um erceiros ele 6, em todos os sentidos, um supérstive. Mas isso também significa que seu festemunho nao tem a ver com 0 estabelecimento dos fatos ten do em vista um procesto (ele néo é suficientemente neutro para tal, indo é um tests). Em iileima analise, nao é 0 julgamento que Ihe im- porta —_menos ainda o perelio. “Eu nunca compareso como juiz”s “eu hilo tenho aautoridade de concedero perdao... estou sem autoridade.”* ‘Alids, parece que the interessa apenas © que torna impossivel o julga~ mento, a zona cinzenta em que as vitimas se tornam cazzascos, € 08 carrascos, vitimas. E sobretudo a respeito disso que os sobrevivences cestio de acordo: “Vitima e carrasco so igualmente igndbeis; a ligio clos campos ¢ a fraternidade da abjecao”. ‘No se trata de nfo se poder ou no se dever emitir um julga- mento. “Se tivesse tido diante de mim um Eichmann, o teria con: denado & morte.” “Se cometeram um crime, entio devem pagat! Decisive ¢ apenas que as duas coisas no sejam confundidas, que o direito nao pretenda esgotar a questo. Ha uma consisténcia no ju- ridica da-verdade, na qual a quaesto fact? nunca poderd ser reduzida A quaestio juris. Cabe ao sobrevivente precisamente isso: tudo 0 que leva uma a¢io humana para além do direito, © que a subsrai radical- mente 20 Proceso. “Cada um de nés pode ser processado, condena- do © execurado sem nem sequer saber 0 porqué.”!? idem, p. 102, 258, 167 ¢ 219, respectivamente Ibidem, p. 77 € 236, respeetivamente, ‘Roussec apual P: Levi, tbidem, p. 216. \\ Thidem, p. 144, 236 € 75, respectivamente 28 + © que resta de Auschwitz 1.4. Um dos equivocos mais comuns ~ € nao sé a propésito do campo ~ é 2 tdcita confusdo entre categorias éticas e categorias ju ridicas (ou, pior ainda, entre categorias juridicas e categorias teo- logicas: a nova teodictia). Quase todas as categorias de que nos servimos em matéria moral ou religiosa sio de algum modo con. taminadas com o dircito: culpa, responsabilidade, inocéncia, jul- gamento, absolvisao... Isso corna dificil usi-las sem precaugoes bem especificas. Como os juristas sabem muito bem, acontece que © direito nfo tende, em diltima andlise, a0 estabelecimento da jus- tiga. Nem sequer ao da verdade. Busca unicamente o julgamen- to. Isso fica provado para além de toda duivida pela forpa da coixa julgada, que diz respeito também a uma sentenga injusta. A pro- dusio da res judicata ~ com a qual a sentenga substitui 0 verda- deiro € 0 justo, vale como verdadeira a despeito da sua falsidade ¢ injustisa — ¢ 0 fim ultimo do direito. Nessa criatura hibrida, a respeito da'qual nao é possivel dizer se é facto ou norma, o direito enconrra paz; além disso ele néo consegue ir Em 1983, 0 editor Binaudi pediu a Levi que traduzisse O proceso, de Kafka, Sobre O proceto jé foram dadas infindas interpretagdes, que sublinham 0 seu caréter profético-politico (a burocracia moderna como mal absoluto) ou rcoldgico (0 tribunal é o Deus desconhecido) ou biogrifico (a condenacio é a doenga de que Kafka sabia estar soften do). Raramente se observou que esse livro, no qual a lei se apresenta tunicamente na forma do processo, traz. uma intuigo profunda sobre a natureza do direito, que aqui nao se apresenta ~ segundo a opiniso comum — tanto como norma, quanto como julgamento e, portanto, processo. Ora, se a esséncia da lei ~ de toda lei ~é 0 processo; se todo direito (¢ & moral que esté contaminada por ele) é unicamente direieo (€ moral) processual, entio execugio e transgressio, inocéncia ¢ cul- Pabilidade, obediéncia ¢ desobediéncia se confuundem e perdem im- Portincia. “O rribunal nao quer nada de ti, Acolhe-te quando vens ¢ te deixas partis, quando vais embors.” A finalidade diltima da norma consiste em produzir um julgamiento; este, porém, 110 tem em vista em punir nem premiar, nem fazer justica nem estabelever a verdade. © julgamento é em si mesmo a finalidade, ¢ isso — jd foi dita — cons. titui o seu mistério, 0 mistério do processo. ‘Avettemunha * 29 Uma das conseqtiéncias que possivel tirar dessa natureza auto- veferencial do julgamento ~ ¢ quem a tirou foi um grande jurisca italiano ~ € quea pena nfo € conseqiiéncia do julgamento, mas que ele mesmo é a pena (nullum judicium sine poend). “Poder-se-ia dizer uué que a pena completa esté no julgamento: que a pena infligida — 0 cere, 0 earrasco — interesse apenas enquanto for, por assim dizer, prolongamento do julgamento (pense-se no termo justigar).""" Isso significa também que “a sentenga de absolvigfo é a confissio de um erro judicial”, que “cada um é intimamente inocente”, mas que o ico verdadeiro inocente “nao é quem acaba sendo absolvido, ¢ sim quem passa pela vida sem julgamento”". 2 sufialia Sorvambile—ansobrentremeasteourd sorta pom sivel que precisamente os processos (os doze processos celebrados em Nuremberg elim de outroe que ae relimararn dantroe fora dos con- fins da Alemanha, até aquele de 1961, em Jerusalém, que se concluiu vom 0 enforcamento de Fichmann e deu inicio a uma nova série de processos na Reptblica Federal) sejam responsdveis pela confusiéo das inteligéncias que, durante decénios, impediu de se pensar Auschwitz, Por mais que tais processos tenham sido necessdtios € para além da sua not6ria insuficiéncia (envolveram, afinal de contas, poucas centenas dle pessoas), contribufram no entanto para difundir a idéia de que o problema jd estivesse superado. As sentengas tinham sido dadas por julgadas, e as provas da culpa estavam definitivamente escabelecidas. A parce alguma mente hicida, muitas vezes Isolada, precisou-se de quase meio século para entender que 0 direito nio havia esgotado 0 problema; mas que, se muito, este era to grande a ponto de pér em qutestdo © proprio dizeito; de levé-lo 4 propria raina. Ha também vitimas ilustres da confusio encie direito ¢ moral assim como entre teologia e direito. Uma delas é Hans Jonas, 0 fil6- sofo aluno de Heidegger, que se especializou em problemas éticos. Em 1984, por ocasiao da entrega do prémio Lucas, ele se ocupou de Auschwitz. E 0 fez formulando uma nova teodieéia, perguncando-se S'S. Satta, I mistero del processo (Milano, Adelphi, 1994), p. 26. 8 Thidem, p.27. 30 + O que resta de Auschwitz como foi possivel que Deus tenha tolerado Auschwitz. A teodiegia um proceso que nao procura definir as responsabilidades dos ho- mens, mas aquelas de Deus. Como todas as teodicéias, também esta acaba com uma absolvicio. © infinico (Deus) despiu-se inceiramente da sua onipoténcia no finito, Ao criar 0 mundo, Deus, por assim dizer, Ihe confiow a sua prépria sor te, tornou-se impotente. E depois de ter-se dado totalmente no mur do, nada mais tem a oferecer-nos: cabe agora ao homem dar. © homem. pode fazé-lo cuidando para que néo acontesa, oui no acontesa com. demasiada freqtiéncia que, por causa do homem, Deus deva Jamentar © Faro de ter permitido que o mando exista © vicio conciliatério de toda teodicéia aqui adquire uma evideneia especial. Além de no nos dizer nada de Auschwitz, nem sobre as viti- ‘mas, nem sobre os carrascos, nem sequer consegue evitat final feliz. Por detrés da impoténcia de Deus, aparece a dos homens, que repetem © seu plus jamais cal, quando jA esté claro que o ¢a esté por todo lado. 1.6. Também 0 conceito de responsabilidad esté irremediavelmente contaminado com o diteito. Sabe-o qualquer um que tenha tentado servir-se dele fora do mbito juridico. Em todo caso, a ética, a politica e a religiéo puderam definirse unicamente ao roubarem terreno A respon- sibilidade jusidica, nao, porém, para assumitem fesponsabilidades de outro tipo, mas sim ampliando zonas de ndo-responsabilidade. Isso, a. turalmente, nio significa impunidade, Significa, isso sim —pelo menos 1o caso da érica ~, dar defence com uma resporisabilidade infinitamen- te maior do que aquela que algum dia pudéssemos assumir. No maximo, podemos ser-the fis, ou sea, reivindicar a sua nfo-asssumibilidade. A descoberta inaudita que Levi fez em Auschwitz diz respelto a um assunto refrardtio a qualquer identificagio de responsabilidade: ele consegufu isolar algo parecido com um novo elemento ético. Levi de- niomina-o de “zona cinzenta’, Ela é aquela da qual deriva a “longa ca- deia de conjunsao entre vicimas ¢ algozes”, em que 6 oprimido se torna ‘pressor ¢ 0 carrasco, por sua vez, aparece como vitima, Trata-se de tuma alquimia cinzenta, incessante, na qual o bem eo mal e, com eles, todos os metais da ética tradicional aleangam o seu ponto de fusto. Acestemunha * 31 Traca-se, portanto, de uma zona de itresponsabilidade de “impo- entia judicands” , que ndo se situa além do bem e do mal, mas esté, our assim dizer, aguém dos mesmos. Por meio de um gesto simettica- Imente oposto ao de Nietzsche, Levi deslocou a ética para aquém do Iuyar em que estamos acostumados a pensi-la. E, sem que consigamos diver por que motivo, pereebemos que esse aquém é mais importante ‘lo que qualquer além, que © sub-homem deve interessar-nos bem mais tle que 0 superhomem, Essa infame zona de irresponsabilidade & 0 fhosso primeizo circulo do qual confissio alguma nos conseguiré arran- ‘ar e no qual, minuto apés minuro, é debulhada a ligso da temivel ba- rulidade do mat, que desafia as palavras ¢ 03 pensamentos" 7. © verbo latino spondeo, do qual deriva. nosso termo “respon- sabilidade”, significa “apresentar-se como fiador de alguém (ou de si mesmo) com relagio a algo perante alguém”. Sendo assim, na pro- messa de matriménio, pronunciar a férmula spondeo significa para 0 ui empenhar-se em oferecer ao pretendente, como mulher, a prépria {ilha (que, por isso era chamada sporsa) ou em garantir uma reparagio . isso nao acontecesse. Ali, no direito romano mais antigo. era cos- tame homem livre poder constituit-se como refém — ou seja, em estado de pristo, de onde surge 0 termo obligatio~a fim de garantir a reparagéo de um erro ou o cumprimento de uma obrigagio. (O termo sponsor indicava quem se apresentar como substitute do reus, prome- ‘endo oferecer, em caso de descumprimento, a prestagio devida.) © gesto de assumir responsabilidade & portanto, genuinamente jutidico, ¢ nao ético. Ele néo expressa nada de nobre ¢ luminoso, mas simplesmente © fato de ligar-se em favor de alguém [06-ligar- si), de entregar-se como prisioneiro para garantir uma divida, em condrio no qual 0 vinculo juridico ainda escava ligado intrinseea- mente a0 corpo do responsivel. Como tal, ele estd estreicamente vineulado ao conceito de ciepa que, em sentido lato, indicaa impu- Levi, Or afogados © or sobreviventes 6 deltas, 0 castigo. as penas, a impunt- dades (Sto Paulo, Paz Terra, 1990), p. 32. MEL Arendt, Eichmann oom Jerusalim: wn relate robre a banalidade do mal ($0 Paulo, Companhia das Letras, 2007) 32 + O que resta de Auschwitz tabilidade de um dano (por esse motivo, as romanos exclulany que pudesse haver culpa com respeito a si mesmo: quod quit ex culpa sua damnurs sensit, non intelligitur damnum sentire ~ 0 dano que cada um causa a si proprio por sua culpa nao ¢ juridicamente televance). Responsabilidade € culpa exprimem, assim, simplesmente dois aspectos da imputabilidade jurfdica ¢ 6 num segundo momento forant intetiorizados € transferidos para fora do dircito. Disso nas- em a insuficiéncia ¢ a opacidade de toda doutrina ética que tenha a pretenso de se fundamentar nestes dots conceitos. (Isso vale tanto para Jonas, que procurou formulae un verdadeiro “principio de res- ponsabilidade”, quanto, talvez, para Levinas, que, de maneira muico mais complexa, transformou 0 gesto do spantar no gesto ético por cxceléncia.) Tal insuficiéncia e tal opacidade emergem com clareza cada ver que se trata de delinear as fronteiras que sepatam a ética do direita, Bis dois exemplos, muito distances entre sino que diz res- peito A gravidade dos fatos em jogo, mas que coincidem quanto a0 distinguo que ambos parecems implicar. Durante o ptovesso de Jerusalém, o constante fio conduror da defe- sade Bichmann foi expresso claramente pelo seu advogado, Robert Ser- vatius, com as scguintes palavras: “Eichmann sente-se culpado perante Deus, nao frente 4 lei". De futo, Eichmann (euja participagéo no exter minio dos judeus estava amplimente comprovaca, embora, provavel- mente, com um papel diverso daquele sustentado pela acisagao) chegou até mesmo a declarar que queria “enforcar-se em pitblica” a fim de “li- bbettar os jovens alemies do peso da culpa"; contuco, cle contintou sus- tencandlo aré o fim que sua culpa frente a Deus (que para ele era apenas um Hoheren Sinnestniger, o mais alto portador de sentido) néo eta juri- dicamente identificivel. O tinico sentido possivel para este distinguo, ‘Go insistentemente afirmado, consistia em que, com toda evidencia, 0 faro de assumir uma culpa moral aparecia frente aos othos do imputadio ‘como algo ericamente nobre, enquanto no estivesse disposto a assumir uma culpa juridica (culpa que, do ponto de vista ético, teria podido ser bem menos grave). Recentemente, um geupo de pessoas que fizeram parte de uma or ‘ganizagao politica de extrema direita publicow em jornal um comuni- cado em que declarou a propria responsabilidade politica moral no Acentemunha © 33 aso do assassinaco de um comissério de policta ocorrido hé vinte anos. {il responsabilidade, contudo — dizia 0 communicado — nao pode ser winsformada C.J em responsabilidade de ordem penal.” Imporca lem- bras, nesse caso, que 6 fato de assumir unsa responsabilidade moral 96 {emalgumvalorno casoem quese esti disposto a sofrer suas conseqiién- juridicas. F disso que, de algum modo, os autores do comunicado parece suspeitas, tendo em conta que, em passagem significativa, as- sumem wma responsabilidade que soa como algo inconfundivelmen- \e juridico, 20 afirmarem que coneribuiram “para ctiar um clima que Jevou ao assassinio” (mas 0 delito em questio, a incitagio a0 crime, fica nacuralmente prescrico). Ems todos os tempos, foi considerado hnobre © gesto de quem assume para si uma culpa juridica de que & inovente Galvo d’Acquisto), enquanto o ato de assumir urna res- ponsabilidade politica ous moral sem conscqtigncias juridicas sempre cancterizou a arrogincia dos poderosos (Mussolini, no caso do delito Mattcoti). Aualmente, na Trilia, tis modelos acabaram invertidos & ato contrite de assumic responsabilidades morais € invocado cm ‘qualquer casio para isencar de responsabilidades juridicas, Acconfustio entre cacegorias éticas ¢ categorias juridicas (com a logi- cr do arrependimento que a mesma implica) é neste caso, absoluta. Pstd na origem dos numerosos suicidios pratieados pata escapar de um processo (€ nao 56 por parte dos criminosos nazistas), em que a ricita assungio cle uma culpa moral teria a ptetenstio de redimirse daquela jueidica. Convém lembrar que a primeira responsivel pot essa confiasio tsio éa douttina catdliea, que, aliés, conhece um sicramento cuja fina- lidade consiste em libertar © pecador com relagio 8 culpa, mas a ética Joica (pa sua versio moderada e farisaica, que é a dominante). Apés ter rigaslo as categorias juridicas a categorias éticas supremas e ver, assim, ‘onfundidlo irremediavelmente os papéis, ela ainda gostatia de recorrer ‘0 Seu distinguo, Mas a ttica é a esfera que nic conhece culpa nem res- ponsabilidade: ela é como 0 sabia Spinoza, » doutrina da vida fell Assumir uma culpa e uma responsabilidade— 0 que, as vezes, pode ser necessirio fazer ~ significa sair do Ambir da ériea para ingressar no do Dineito, Quem procurou dar esse diffell passa nfo pode ser a pretensio devoltar a entrar pela porta que acabou de fechar atris de si 94 + © que rest de Auschwitz 1.8, A figura extrema dla “ona cinzenea" & 0 Sonderkommando. As SS recorriam a esse eufernismo ~ Esquadrio Especial — para nomear 0 grupo de deportados a quem era confiada a gestao das cimaras de gis e dos for hos crematrios. Fles deviam levar os prisioneiros nis & morte nas cama nis de gis e mantera ordem entre os mesmos: depois arcastar para fora os cadéveres, manchados de rosa e de verde em razao do dcido cianfdrico, lavando-os com jatos de agua; verificar se nos orificies dos corpos nd estavam escondides objetos preciosos; arrancar os dentes de our dos ‘maxilares; cortar os cabelos das mulheres e lavé-los com clorero de amé- nia; transportar depois os cacléveres até os fornos crematérios © cuidar da sua combustio; ¢, finalmente, tirar as cinzas residuals dos fornos. Sobre esses Esquadt0es, boatos vagos ¢ eruncados ja cireulavam entre nds durante o confinarhento e foram confirmadas mais varde pelas ou- tras fonces mencionadas anteriormente, mas o horror intrinseco dessa condisicrhumana impés a todos of testemunhas uma expécie de pudor, por isso, ainda hoje é dificil conseruir uma imagem do que “significava” set forgado a exercer esse oficio durante meses. [.n] Um deles declarou “Ao realizar esse trabalho, ou se enlouquece no primeito dia, ou entio se acostuma’, Mas outro disse: “Por certo, tetia podid matar-me ou me deixar matars mas eu queria sobreviver, para vingar-me e para dar teste- munho. Vocés nio clever acreditar que nds somos manstros} somos co- mo woods, 36 que muito mais infelizes”.[..] De homens que conheceram essa destituigio extrema nao se pode esperar um depoimento no sentido juridico do termo, ¢ sim algo que fica encee o lamento, a blasftenia, a ex- plasio ¢ 0 esforco de justifeative, de recuperasio de si mesmos. [.-] Ter concebido ¢ organizado os Psquadrées foi o delico mais demoniaco do ‘nacional-socialismo."* Alids, Levi relaca que uma testemunha, Miklos Nyiszli, um dos poucos sobreviventes do tiltimo esquadrio especial de Auschwitz, contou que assistiu, durante uma pausa do “trabalho”, a um jogo de favebol entre SS e representantes do Sonderkommando, Lu A partida assistem outros soldados SS co resto do Esquadréo, tor- cendo, apostando, aplaudindo, encorajando os jogadores, como se a 5B Levks Or afigadono 0s tbreviventes, cit, po 27-8 Acestemunha * 35 partida se desenrolasse nao diante das portas do inferno, mas num campo de aldeia."® ssa partida poders parecer a alguém como se fosse uma breve pau- sake humanidade em meio a um horror infinieo. Aos meus élhos, po- kém, como aos das testemunhas, tal partida, tal momento de normalidade, é 0 verdadeiro horror do campo. Podemos, talvez, pensar \que os massacres tenham terminado — mesmo que cé ou ld se repitam, tsi muito longe de nés. Mas aquela partida nunca terminou, é como se continuasse ainda, ininterruptamente. Ela é 0 emblema perfeito € eterno da “zona cinzenta” que néo conhece tempo ¢ esti em todos os lugares, Dela provém a angiistia e'a vergonha dos sobreviventes, “a an- {sistia— inserita em cada qual — do #8/ue uavdbu, clo universo deserto wario, esmagado sob 0 espirito de Deus, mas do qual o espirito do ho- mem estd ausente; ainda nao nascido ou jé extinto””. Mas dela também provém a nossa vergonha, de nés que no conhecemos os campos ¢ ‘que, mesmo assim, assistimos, nfo se sabe como, aquela partida que se cepete em cada partida dos nossos estilios, em cada'transmissio televi- siva, em cada normalidade cotidiana. Se néo conseguirmos entender uujuela partida, acabar com ela, nunca mais haverd esperanca. 1.9. No grego, testemunha & martis, mirtix. Os primeiros padres tla Igreja derivaram dai o termo martirium, a fim de indicar a morte sos eristaos perseguidos que, assim, davam rescemunho de sua f, O que aconteceu nos campos pouco tem que ver com o martitio. A respeito disso, os sobreviventes sAo unanimes: “Chamando as viti- mas dos nazistas de ‘mircires’, falsificamos seu destino”"®. Hi, no entanto, dois pontos em que as duas coisas parecem aproximar-se. © Toidem, p. 29. "Tabu vaotbu” & eanscgso do hebrsico do livo do Gnesi (1.2). epee tando a stuagio em que se encontra str "om forma e asi) loge depois deter sido rads por Deus. "No principio criou Denson clase tere, Atma fort, era sem forma evsia [9b a> (Gens 1-2). (ED ° B Levk, Ofte eon obrevivents, ct pe AB " B, Reciclhelm, Sebreoivéncia outs etudor (Posto Alegre, Artes Médicas, 1589), p92 36 + O que resta de Auschwice © primeiro diz respeito a0 proprio termo grego, que deriva de um verbo que significa “recordar”. O sobrevivente tem a vocagao da me- méria, nfo pode deixar de recordar. ‘As recordasdes do meu cativeiro estio muito mais vivas e detalhadas do que qualquer outra coisa que aconteceu antes ou depois Conservo uma meméria visual e aciistica das experitncias de Id que nao consigo explicar [...] icaram-me gravadas na mente, como s¢ e=- tivessem numa fira magnética, frases em linguas que nao conhego, em. polonés ou em hiingaro; ao repe seram que tais frases tém sentido, Por algum motive que néo conheso, aconteceu-me algo de andmalo, diria quase uma preparagso Incons. cence para testemunhar." las a poloneses ea hiingaros, me dis- Mas no segundo ponto o contato & mais {atimo © instrutivo. A. Icitura dos primeiros textos cristdos sobre o martirio — por exemplo, © Scorpiace de Tertuliano” — traz de fato ensinamentos inesperados. Os padres tinham frente a si grupos heréticos que rejeitavam 0 mar- Uri porque ele constitufa, na opinide deles, uma morte totalmente insensata (perire sine causa — perecer sem catisa). Que sentido podia ter professar a fé diante dos homens ~ os perseguidores c os algozes — que acerca desta profissio nfo teriam entendido nada? Deus nao po- dia querer o insensato. “Inocentes devem pacecer destas coisas?. Cristo imolou-se por nés uma vez para sempre, fol morto uma vez. Para sempre, justamente para que nés ndo fssemos mortos. Se cle me pede em troca o mesmo, seria calvez. porque também ele espera salvagéo com a minha morte? Ou talver se deveria pensar que Deus pede © sangue dos homens precisamente quando ele rejeita o dos touros ¢ dos cabritos? Como poderia ele desejar a morte de quem Levis I, p. 225 © 220, respeccivamente * Quinto Seprimto Florencio Tereuliano (ca. 155-220) é um dos mais importantes € ‘otiginais autores elesisticos latinos, Diz-se que foo primire a usar o terme tin. 11 (erindade). Sempre polémico na luta contra pagion, judeus, heteies gcetices ‘Tertaliano ¢ autor le muitos texts em defess da verdacte crs, cmbora tena no final da vida rompido com a Igrejae se fillado & scita dos montanistas Scorpiace & © titulo da obra im que procura apresencar um antidote contra a veneno do ex pio das heresas gndsticas para defender, mal urna ver algreja (NT) Avcestemunha + 37 bo é pecador?”. A doutrina do martirio niasce, porcanto, para jus- luficar © escandalo de uma morte insensata, de uma carnificina que ao podia deixar de parecer absurda. Diante do espetdculo de uma ‘morte aparentemente sine causa, a referéncia a Le 12, 8-9 ea Mt. 10, 42-33 (‘todo aquele que me confessar diance dos homens, também uo confessarei diante de meu Pai; e aquele que me negar diante dos homens, também cu o renegarei diante de meu Pai”) permitia como um mandamento divino e que que se Interpretasse © mares se encontrasse assim uma razao para o irracional, Mas isso tem muito a ver com os campos. Com efeito, nos cam- os 0 exterminio — para o qual talvez fosse possivel encontrar prece- lentes ~apresenta-se, porém, em formas que o tornam absoluramente sem sentido. Também a respeito disso os sobreviventes se acham con- vondes. “A nés mesmos, 0 que se tinha a dizer entio comesau a pare- or inimagindvel.”*" “Todas as tentativas de explicagio |,..] fracassaram eadicalmente”.* “Irritam-me as centativas de alguns extremistas reli- sslosos que interpretam o exterminio & maneira dos profetas: wma pu- bigio para os nossos pecados. Nao! Isso nio 0 aceito. O fatto de ser ‘nsensato torna-o mais espantoso.”2 O inféliz termo “holocausto” (freqlientemente com H maidiscu- 0) origina-se dessa inconsciente exigéncia de justificar a morte sine ezwsa, de atribuir um sentido ao que parece nao poder er sentido: esculpe: eu uso esse termo Holocausto de mé vontade, pois nao me agrada, Uso-o, porém, para nos entendermos. Filologicamente vsti errado [...]", “Trara-se de um termo que, quando nasceu, me ileixou muito incomodado; posteriormente eu soube que foi o prd- prio Wiesel que o forjou, depois, porém, ele se arrependeu disso ¢ tevin querido retiré-lo” ** 1.10. Até mesmo a hist6ria de um terme equivocado pode ser ins- \utiva, “Holocausto” € a transcrigéo doura do latino holocaustuon, \éewuliano, Seorpiace, ong. G. Azza Bernaedeli (Feenze, Nardin, 1990), p. 63-5, R Antelme, La specie umand (2. ed, Torino, Einaudi, 1976), pV. |. Aunty, Un intellenuale a Auichwite (Torino, Bolla Boringhieriy 1987), p. 16. © Lev, Conversasionie intervie, cit, pe 219. idem, p.243 € 219, respectivamente 38 + © que resta de Auschoviez que, por sua ver, traduz 0 vermo grego"holdkauszos (am adjerivo que significa liveralmence “todo queimado”: 0 substantive grego corres- pondente ¢ halokatistoma). A histéria semantica do termo é essencial- mente crista, pois os padres da Igreja serviram-se dele a fim de teaduzirem — na verdade sem muito rigor ¢ coeréncia — a complexa doutrina sacrifical da Biblia (especialmente dos livros do Levitice © dos Nuimeros). © Levitico reduz todos os sacrifictos a quatro formas findamentais: ola, hattar, shelamin, minha (Cs nomes de duas delas sia significativos. © haenteers o seriflio que servia particularmente para explar o pecado chamsado hartde ou hatwa. do qual 0 Levitico nos oferece uma definicio infelizmente bastante vaga, © shelamn (Gegundo os Serenta, versio grega da Biblia, Ducner expe) an scr cio comunial, srrificio comunial, sacificio de agi de gragas, de allan, de voto. Quanto aos termos dla mind, so purumente descrtivos, Cada, tum eles lembra una das opseragdes particulars do sncrificio: o segundo apresentacio da vitina, caso ela seja de natureza vegetal © primeiro, o envio, da oferta A divindade.” A Vulgara raduz de forma geral ofah como holocaustum (olo~ causti oblatio), hattat come oblatie, shelamin (de shalom, paz) come hostia pacificorum, minha como hostia pro peccato, La Vulgata, 0 ter- mo Aolocaustum passa aos padires latinos, que usam © termo, nos numerosos comentitios do cexto sagrado, sobrecudo para indicar os sactificios dos Hebreus (ef. em Hil., /1 Pra. 65, 23: bolocasta sunt integra hostiarum corpora, quia tora ad ignem sacrificit defereban- tw, holocausta sunt nuncupatd ). Importa aqui sobretudo chamar a atengéo para dois faros, © primeiro, de que'o termo, no sentido proprio, € precocemente usado pelos padres como arma polémica contra 0s Hebreus, a fim de condenarem a inutilidade dos sacrificios eruentos (valha por todos ‘Tertuliano, quando se refere a Marcio: Adu Mare, 5,5: quid stultins (ou quam sacrificiorum eruentorum et holocaustomasion nidorosurtem a deo exactio? © que hé de mais es- M. Mauss eH. Huber, Sobre o sacrifice (St0 Paulo, Cosae Nalfy, 2005). “Holacauntos sto 08 corpos integios das vielanas, porque tacos aio destinadas 20 Fogo do sacificio.” (N. ‘Atestenunba * 39 pido [..] do que um deus que éxige sacrificios eruentis ¢ holo- caustos com cheiro de queimado?” ~ cf. também Aug., C. Faustun, 19, 4). © segundo, de que o termo é extensive, por metéfora, aos Indrtires cristios, com 0 objetivo de equiparar o scu suplicio a um sacrificio (Hil., In Pralm. 65,23: martyres in fidei testimonium corpo- 11 suet holocausta voverunt?), enquanto 6 proprio sacrificio de Cristo mu cruz €definido como holocausto (Agostinho, In Evang. Joab. 11.5: se in holocaustum obrulerie in eruce lesus; Ruufin, Orig. in Lev. a halocauseum [...] carnis eius per lignuan cruces oblatum”). ‘A partir daqui 0 termo holocausto comegard a migracao seman- tica que o levaré a assumis, de modo cada vez mais consistente, nas Jinguas vulgates, 0 significado de “sacrificio supremo, no marco de uma entrega total a causas sagraclas superiores”, registrado pelos lexicos contemporiineos. Ambos os significados, 0 proprio ¢ © meta- {drico, aparecem unidos em Bandello (2,24); “suprimiram-se os sa- Liificios © holocaustos dos terneiros, dos cabritos € dos outros animais, em cujo Tugar agora se oferece esse imaculado e precioso cordetro do verdadeiro corpo ¢ sangue do universal redentor ¢ salva \lor senhor Jesus Cristo”. O significado meraférie shado em Dante (Paraiso, 14, 89: “...] fiz holocausto a Deu refetido & prece do coragio), em Savonarola, ¢ depois, de mane sucessiva, até Délfico (“muitos oferecendo-se em perfelto holocaus- ‘oA para), ¢ Pascoli (no sacrificio, necessirio ¢ doce, aleangando w holocausto, reside para mim a esséncia do cristianismo”) Também.o uso do terme em sentido polémico contra os judeus ha- via continuado a sua histéia, apesar de se cratar de uma hist6ria mais svcreta, rio repistrada nos Kéxicos. No clecurso das minhas investigagSes sobre a soberania, deisme casualmente com uma passagem de um cro- nists medieval, que consti a primeira acepeao por mim conhecida do terme “holocausto”, com referencia a um massacre de judeus, mas, nes- se caso, com uma conoragio violencamente ant-semita, Richard de para eestermunhar a fé, os mistites compromesemse ardentemente a destinar sev corpos como holocaust. (N-T) ‘Jesus ofereceurse na crux em halocnusns": a holocaurco da sus came oFerect: clo pete lene da cet.” ON-T) 40 + © aque testa de Auschowite Duizes testemunha que, no dia da coroasio de Ricardo T (1189), os londtinos entregaram-se a um pegrom particularmente cruento: No mesmo dia da coroagao do rei, perto da hora em que Filho havia sido imolado ao Pai, comegou-se na cidade de Londres a imolar os ju- deus no seu pai o deménio (ncocpeu ext in civinace Londorsiae immolare juetavos pasrt suo diabolo); ea celebraco deste miseétio durou tanto que 0 hholocausto nao péde ser completado antes do dia seguinte. E a cidades ¢ localidades la tepldo imitaram a fé dos londinos, e, com igual devogio, expediram a0 inferno, no single, os seus singuessugas (part de votione suas sanguisugas cums sanguine transmnicerunt ad infers) demais A formacao de um cufemismo, ao implicar a substituigho da expressio propria por algo de que, realmente, no se quer ouvir falar, com uma expresséo atenuada ou alterada, sempre traz consi go ambigtlidades, Nesse caso, porém, a ambigitidade vai muico além. Inclusive os judeus secorrem a um eufemismo para indicar o exterminio. Traca-se do termo shod, que significa “devastagio, ca- ristrofe” ¢, na Biblia, implica muitas vezes a ideia de uma punigdo divina (*Pois bem, que farcis no dia da visitagao, quando a rafna vier de longe?”). Mesmo que seja provavelmence a esse term que se refere Levi, zo falar da tentativa de interpretar 0 exterminio como uma punigio pelos nossos pecados, 0 eufemismo aqui nao contém escarnio algum. Pelo contriria, no caso do termo “holocausto”, es- rabelecer uma vinculasao, mesmo distante, entre Auschwitz ¢ 0 olah biblico, ¢ encre a morte nas camaras de gas ea “encrega total a causas sagradas € superiores” nio pode deixar de soar como uma zombaria, (O termo nao s6 supée uma inaceitivel equiparagao entze fornos ere- matérios e altares, mas acolhe uma hetanga semantica que desde 0 inicio traz, uma conotagdo antijudaica. Por isso, nunca Faremos uso deste termo. Quem continua a fazé-lo, demonstra ignorincia ou in- sensibilidade (01s uma ¢ otra colsa a0 mesmo tempo). 111. Quando, alguns anos atris, publique em jornal francés um ar Aigo sobre os campos de concentragio, alguém escrevet a0 diretor do alli, "ex anitnate in trv, em F Cardin (org), Lat ie i ato (Mie faveanc-Sehewiler, 1994), p. 131 Arestemunha #41 jornal uma carta em que me acusava de ter pretendido, com minhas ané- lises, ruiner le cancetire unigue et indicible de Auschwitz larrainar 0 caricer \inico e indizivel de Auschwitz]. Multas vezes perguntei-me sobre 0 que podria ter em mente 0 autor da carta. E muito provavel que Auschwitz ‘enha sido um fendmeno tinico (pelo menos com respeito ao passado, enguanto com respeito ao futuro se pode apenas esperi-to). Até © momento em que escrevo, endo obstante 0 horror de Hiroshima e Nagasaki, da vergonha dos Gulags, a indtil ¢ sangrenta campanha do Viernd, @ autogenocidio cambojano, os desaparecidos na Argentina, eas muitas guerras aerozes e estdpidas a que em seguida assistimos, 0 termos quantitatives e qualieadivos.”” acionirio nazista permanece sendo um sunievn, em Mas por que indizivel? Por que attibui da mistica? Noano 386 de nossa era, Jofo Criséstomo compée em Antioquia 0 seu tratado Sobre « incompreensibilidade de Deus, Ele tinha diante de si adversirios que defendiam que a esséncia de Deus podia ser entendida, pois “tudo 6 que Ele sabe de si, nés 0 encontramos facilmente também cem nds”. Ao sustentar vigorosamente, conera cles, a absoluta ineorspreen- sibilidade de Deus, que éindlizivel” (arrheras),“inenarravel” (anekdidgets) € “indescritivel” (anepigraptds), Jofo Criséstomo sabe muico bem que precisamente isso constitui o methor modo para glorifici-lo (doxan ai- donai) para adoréclo (proskyjen). Aliés, mesmo para os anjos, Deus é incompreensivel; mas, tanto melhor, pois gracas a isso podem prestar- Ihe gloria e adoragio, elevando sem cesar seus misticos cantos. As egies deanjos, Joao contrapde os que procuram inutilmente entender: “Aque- les (anjos) dao glia, estes esforsam-se por conhecess aqueles adoram em siléncio, estes afanam-se; aqueles desviam os ollos, estes nio se en- vergonham de manter fixo 0 olhar na gléria inenarrivel”™*. O verbo que ‘uaduzimos por “adorar em silencio” € no texto grego, euphemein. Des- se termo, que significa originalmente “observar o siléncio religioso”, deriva‘a palavra moderna “eufernismo”, que indica os termos que subs- 10 exterminio o prestigio Wak Origen sobre ep? * J Chrsonone: Sur Cnomprenibili’ de Dien (atl, Cel 3970p 129. 42 + © que resta de Auschwviee sinuem outros que, por pudor ou boas maneiras, no. podem set pro- nunciados. Dizer que Auschwitz é “indizivel” ou “incompreensivel” equivale a euphemein, a adoré-lo em silencio, como se faz. com um deus: significa, portanto, independente das intengées que alguém te nha, contribuir para sua gléria. Nés, pelo contririo, “nao nos enver- gonhamos de manter fixo 0 olhar no inenarrivel”. Mesmo ao prego de descobrirmos que aquilo que o mal sabe de si, encontramo-lo fa- cilmente também em nés 1.12. No entanto, o testemunho teraz uma lacuna, Sobre isso, os sobrevivenres concordam, Hi também ourra lneuna em codo testemsinho: as testemunhas sio, por defini frac sobrevivences 2, portanto, todos, em alguma medida, des- um de um privilégio... Ninguém narrou © destino de prisioneiro “comum, pois, para ele, no era materialmente possivel sobreviver.. © prisioneiro comum foi descrito também por mim, quande fale de “mugulmanos”: mas o muculmanos nio falaram.” Ox que nao viveram agucla experiéneia nunca saberio 6 que ela fol os que a viveram nunea o diros realmente nfo, nao até o fundo. O passa- do pertence aos mortos..” E oporeuno refletir sobre cal lacuna, que poe em questio o prd- prio sentido do testeniunho e, com isso, a identidade ea credibilidade tescemunhas. Repito, nso somos nés, os sobreviventes, as aneéneicas testemunhas. [Lud] Nés, sobreviventes, somos uma minoria andmala, além de exigua: somos aqueles que, por prevaricasio, habllidade ou sore, nfo tocamos © fundo, Quem 0 fez, quem fitou a gérgona, nfo voltou para conta, ou voltou muco; mas s40 eles, 05 “mugulmanos", os que submergiram —sio les as cesternunhas integrais, cujo depoimento teria significado geral. Eles sho a regra, nds, a excegh bel B Levi, Convernacton!e erie, cit p. 215 ss © BE, Wiesel, "For some Measure of Humility Stine: A Jounal of Jeri Repo sibility, 1.5, 31 act. 1975, p. 314 tiga pon contém, no seu centro, algo ineescemunhivel, que destin A testemuinha + 43 Nés, tocados pela sorte, rentamos narrar com main au menor sabeclaria ‘iio 86.0 nosso destino, mas também aquele dos outros, dos que submer- siram: mas tem sido um discurso “em nome de terceiros", a narragio de ‘olsas vistas de perto, née experimentadas pessoalmente. A demoligio le- ada 2 cabo, « obra consumada, ningsiém a narrows, assim como ninguém jamais voleou para conta a tua mvorce. Os que submengiram, ainda que rivessem papel € ints, #0 teriam testemunhado, porque a stia morte comecara antes ca morte corporal. Semanas € meses antes de morren jé hhaviam perdido a eapactdade de observar, recordar, medi € se expressar Falamas ids em lugar deles, por delegagio." A testemunha comumente testemunha a favor da verdade ¢ da jus: € delas a sua palavra extrai consisténcia ¢ plenitude. Neste aso, rém, 6 testemunho vale essencialmente por aquilo que nele falea; auroridade dos sobreyiventes. As “verdadeiras” estemunhas, as “testemunhas inte- ais” slo as que nio testemunharam, nem teriam podido fazé-lo. Sio fos que “tocaram 0 Fando”, os muculmanos, os submersos, Os sobrevi- come pseudotestemunhas, falam em seu lugar, por delegasio: testemunham sobre um testemunho que falta, Contudo, falar de uma delegagie, no caso, nao tem sentido algum: 0s submersos nada \ém a dizer, nem tém inserugées ou memérias a eransmitir. Nao eém ist6ria”, nem “rosto” e, menos ainda, “pensamento"™ . Quem as- sume para sio Onus de testemunhaar por eles, sabe que deve testemu- har pela: impos idade de testemunhar: Isso, porém, altera de modo definitive o valor do testermunho, obrigando a buscar 0 sen- tido em uma zona imprevista. 1.13. Jé cinha sido observado que, no testemunho, hé algo similar a uma impossibilidade de testemunhar. Em 1983, apareceu o livro de Jok & Lyotard Le diffivend, que, a0 retomar ironicamente as recentes teses ‘dos negacionistas, inicia com a conscatagao de um paradoxo logico: P Lev, Or afegados eo» wlrevivensss et pAT-8. Levi Bao une homers? (Rio de janeiro, Rocco, 1988). p. 91 44 + © que resta de Auschwitz (Chegamos a saber que alguns seres humanos dotados de linguagem foram ‘oocados ci uma sieuagao eal que nenhumm deles pode dizer algo sobre 0 ‘que cla Fol. A matoria deles desaparecest naquele cempo € os sobreviven- {es raramente falam a respeito. Quando falar, o seu restermunho aleanga apenas parce fnfimna de tal situagdo. Como saber, entia, se tal situasio de fato existiu? Nao poderia sero fruto da imaginagio do nosso informante? Oua situasio nie existiu como tal. Ou exist, © entdo o testemunho do hnosso Informante é falso, pois nesse caso ele deveria ter desaparecide out deveriacalae.Ter realmente visto, com os préprios olhas, a cimara de gis setla a condicio que confetiria a autoridade para aficmar que cla existin, persuadindo assim os incrédulos. Mas se deveria ratnbém provar que ma fava no momento em que ela fol vista. A tinica prova admissivel de que mmatava € dada pelo futo de se estar morte, Mas, estando morto, no se pode testemunhar que se ests assim por efeto da cimara de gis.” « Alguns anos depois, durante uma pesquisa eferuada na Univer- sidade de Yale, §, Felman © D. Laub elaboraram a nogdo da shod como “acontecimento sem testemunhas”. Em 1989, um dos dois aurores desenvolveu mais ainda este conceito na forma de um co- mentério do filme de Claude Lanzmann’, A shod & um aconteci mento sein testemunhas no duplo sentido, de que sobre ela é impossivel cestemunhar ranto a partir de dentro — pois nao se po- de testemunhar de dentro da morte, nao hé voz para a extingao da Vou ~ quanto a partir de fora ~, pois 0 outsider é exclutdo do acon- tecimento por definigio: Realmence no ¢ possivel dizer a verdade, restemunhat « partir de fora, Mas nem sequer ¢ possivel, conforme vimas, eescemunhar a partir de dentro. Parece-me que a posicéo impossivel ea rensio testemunhal de todo o filme esteja precisamente no fato de nao estar nem simplesmen- re dentro, nem simplesmence fora, mas, parndoxalmente, ao mesmo vempo denirn ¢ fore. filme peocura abris um caminbo ¢ langar uma TR Lyotard, Le difrend (Paris, Minuit, 1983), p. 19. © Bilme-documentisio de Claude Lanzmann, intitslado Showh foi lengado ern 1985, cendo nove horas ¢ meia de duragio, resultado de 350 horas de flmagens Feicas entre 1976 e 1982 em lugares e com pestoas que passaram pelos campos dle concentragio nazisas. (N.E) Avestemuntes * 45 ponce que nao existia durante a guerra, eno existe ainda hoje, entre o dentro e 0 fora ~ para por ambos em contato em didlogo.™ 18 juscamente o umbral de indistingio entre o dentro eo fora (que, sonforme veremos, € algo bem diverso de uma “ponte” ow de um ‘lilogo”), que podria ter levado a uma compreensio da esrutura do vestemunho, que autora deixa de interrogar. Mais do ques uma anvé- lise, assistimos sim a0 deslocamento de wma impossibilidade ligica para uma possbilidade estética, pelo recurso da metéfora do canto: (© que confere ao filme seu poder de cestemunho, e constitui em geral a sua forga, ndo sio as palavras, mas a relagio ambigua e desconcertan- te entre as palavras, a voz , 0 ritmo, a melodia, as imagens, a escritura ¢ “ado teseemanho fala-nos para além das suas palavras, para ‘como a realizagio Unica de um canto.” ssl além da sina melo Explicar 6 paradoxo do testemunho por meio do deus ex machina slo canto equivale a estetizar o testemunho ~ algo que, de todo modo, Lamzmann procurou evitar fazer. Nio é 0 poema ou 0 canto que po- ciom ineervis pasa salvar o impossivel testemunho; pelo contidtio, se ‘muito, € 0 testemunho que pode fandar a possibilidade do poema. 1.14, As incompreensées de uma mence honesca muitas vezes sio expressivas. Primo Levi, que nao gostava das autores obscuras, sentia-se atraido pela poesia de Celan, mesmo que nao conseguisse realmente enrendé-la. Em breve ensaio, intivulado Sullo scrivere os- curo [Sabre 0 escrever obscuro), ele distingue Celan dos que escre- vem obscuramente por desprezo ao leltor ou por insuficiéncia expressiva: a obscuridade da sua poética leva-o, alias, a pensar em “um pré-matar-se, em um nio-querer-ser, em uma fuga do mundo cujo coroamento foi a morte desejada”™. A extraordindria operago que Celan efetua com a lingua alema, que tanto fascinou os seus I 37S, Felman, “A Vige du vémoignage: Shoah de'C, Lanemann", em Aut anje de ‘Saath (Paris, Beis, 1990), p. 89. % Tidem, p. 139 5, * PLLevi, Lali mestiere, em Opere (Taso, Einaudi, 1990), v. 3, ps 637. 46 + © queresea de Auschwice ‘ores, é, pelo contritio, comparada por Levi — por motivos sobre os quais actedito valer a pena refleti¢—a um balbuc a0 estertor de um moribundo, © desarticulado ou Esta creva que aumenca de pagina em pagina, até ao tlkime desarsiculado balbucio, consterna como o estertorde um motibundo, e realmente nao & ‘utra coisa. Acossa-nos como acossam as voragetts, mas0 mesmo tempa defiauda-nox de algo que devia ser dieo ¢ nfo foi, © por isso nos Frustra ¢ ‘sos afista, Penso que Celan poeta deveser mais mediado e eompadecide do. que imirado. Sea sua uma mensagem, clase perde no "nuide de fundo! into € uma comunicugio, nao é uma linguuagem, ou se muito é uma line ‘guagem obscuira © mutica, assim como é a de quem esté para morret, ¢ esti né, assim como rodas estaremos na momento da morte.” Em Auschwitz, Levi jé havia vido a experiéncia de escutat € in- tetpretar um balbucto desarticulado, algo parecido com uma nao- liiiguagem ou uma linguagem mutilada © obscura. Aconteceu nos dias sucessivos libertagio, quando os russos transfériram os sobre- viventes de Buna para o “campo grande” de Auschwitz. Aqui, a atengio de Levi sentiu-se logo atraida para uma crianga que os de- portados chamavam Hurbinek. Hurbinek era unt nada, um filho da morte, um filho de Auschtez, Aparentava trés anos aproximadamence, ninguém sabia nada a seu tes. peito, nao sabia falar © no cinha nome: aquele curiose nome, Hur. binek fora-the atribuide por nés, ealver por uma das mulheres, que Interpretare com aquelas silabas uma das vores inarticuladas que 0 pe- queno emitla, de quando em quando, Estava paralisado das rins para baixo, ¢tinha as pernas atrofiadas, tao adelgacadas como yravetos; mas 195 seus olhos, perdidos no rosto palido © tiangulas, dardejavain terri. vyelmente vivos, cheios de busca de asserséo, de voncade de libertar-se, de romper a tunsba do mutismo. As palavras que the fileavam/que nin ‘guém se preocupava de ensinar-Ihe, a necessidade da palavra, tudo isso ‘comprimia seu olhar com urgéncia explosiva [..P™ id P.Levi A eniguz (S20 Paulo, Companhia das Letras, 997), p. 28-9. Atentemunha * 47 A.certa altura, porém, Hurbinel comeca a repetie sem parar uma pilavra, que ninguém no campo consegue entender, e que Levi sransereve com diividas come macs-klo ou marisllo: De noite ficivamos de ouvides bem abertos: era verdade, do canto de Hi binek vinha de quando em quando um som, uma palavra. Nao sempre ‘esitamente a mesma, para dieer a verdade, mas era certamente tima pal va articuladas ov melhor, palavras articuladss ligeiramente diversas, varia ses experimencas sobre un tema, uma taiz, sobre um nome talvez.™ “Tdos excuram exentam decifrar aquele som, aquele vocabulitio nas- conte: mesmo que todas as linguas da Europa estivessem representadas no campo, a palavra de Hurbinek continua obscinaclamence secreta io, néo devia sor uma mensagem, campouco uma revelagio! era tal: ver 0 seu nome, se tivesse tido a sorte de ter um nome; talvez (segundo tua das nossas hipsteses) quisesse dizer “comer” ou "pac"; ou talvex “eatne” em boémio, como sustencava, com bons argumentos, um das nossos , que conhecia essa lingua. [1] Hurbinel, que ngo tinha nome, cujo miniscule antebrago fora imarcado mesmo assim pela tatuagem dle Auschwitz; Hurbinek morreu nos primeiros dias de margo de 1945, liberto mas nao redimido. Nada resta dele: seu testemunho se dé por meio de minhas palavias." ‘Talver seja esta a palavra secreta que Levi sentia perder-se no “ru- mor de fundo” da poesia de Celan, Contudo, em Auschwitz, cle procurou de toda forma escurar 0 nao testemunhado, captar a sua palavra secreta: mass-tlo, matisklo. Talver cada palavea, cada escricu- ra nasce, nesse sentido, como testemunbo. E, por isso mesmo, aqui- lo de que dé testemunho niio pode ser jd lingua, jé escritura: pode sof somente um nffo-testemunhado. Isso € 6 som que provém da la- una, a ndo-lingua que se fala sozinho, de que a lingua responde, em que nasce a lingua. E é sobre a natureza deste nao-testemunhado, lingua que é preciso incerrogar-se sobre a nio-| idem, p30. Mien, 30 48 © © que costa de Auschwiee 1.15. Hurbinek nao pode testemunhas, porque nio tem lingua (a alavra que profere é um som incerto e sem sentido: mass-klo ou ma risk). No entanco, ele & "testemunha por meio destas minhas pala- ‘ras’, Mas nem sequer o sobrevivente pode testemunhar integralmente, dizer a prépria lacuna, Tss0 significa que o testemunho € 0 encontro entre duas impossibilidades de testemunhar, que a lingua, para teste- munhay, deve ceder-o lugar a uma néo-lingua, mostrar a impossibili- dade de testemunhar, A lingua do testemunho € uma lingua que nfo significa mais, mas que, nesse seu ato de ndo-significar, avanga no semlingua até recolher outta insignificincia, a da testemunha inte- gral, de quem, por definicio, nfo pode testemunhar. Porranto, para testemunhar, mio basta levar a lingua até ao proprio nio-sentidlo, até 8 pura indecidibilidade das letras (mma-sickeba, mea-ticrk-bo}; im porta que 0 som sem sencido seja, por sua ver, vor de algo om alguém que, por razdes bem distintas, néo pode testemunhar. Assim, a impos- sibilidade de testemunhat, a “lacuna” que constitui a lingua humana, desaba sobre si mesma para dar lugar a uma outta impossibilidade de restemunhar ~ a daquile que nao cem Ifngua. Osinal, que a lingua julga transerevera partir do nao testemunha- do, no é a sua palavea. Ha palavra da lingua, a que nasce ld onde a lingua ja no esté no seu inicio, deriva disso a fim de ~ simplesmente— testemunhar: “nao era luz, mas estava para dar testemunho da luz” 2 0 *“MUGULMANO* 2.1 O intestemunhivel tem nome, Chama-se, no jargio do cam- po. der Muselmann, o mugulmano. © assim chamado Musehnann, como era denominade, na linguagem dlo Lager, © prisioneico que havia abandonado qualquer esperanga ¢ que havia side abandonado pelos companheitos, jé nie dispunha de tint Ambito de conhecimento eapaz de Ihe permitir discerstimento en- tue bem e mal, entee nobreza ¢-vileza, entre espirieualidade e nao e=pici- tualidade. Era um cadiver ambulance, um feixe de fangdes fsicas jé em, agonia. Devemos, por mais dolorest que nes parega a escalha, exchif-lo da nossa consideragio.! (Mais uma vez a lacuna no testemunho, desta vez consciente- mente reivindicada.) Lombeo que, enquante descfamos as escadas que conduziam ao banhel- descer conosco um grupo de Muselmann, como haveriamos ; que eram 0s homens-miimia, os mortos-vivos: conosco unicamente para que as vissemos, como se +, Bizera de chamé-los dey 8 Rixernm dese dissessem: vocés Gearlo iguais” © homem das SS caminhava devagar ¢ observava o mugulmano que vinha direramente a0 seu encontro. Todas nés alhvamos com 0 canto do olho para a esquerda, para ver 0 que isia aconcecer. Esse ser imbeci- lizado © sem vontade, arrastando seus tamancos de madeira pelo chao, J Améty, Un ineelzuale a Anschwite, eit p39. Einaudi, 1993) p. 17. A. Carpi, Diario ai Gusren (Torino, 50 + © que esta de Anschwiez acabou eaindo precisamente nos bragos daquele das SS, que Ihe dew tum grito ¢ the desferiu uma bordoada na cabesa. © must rou; sent dar-se conta do que Ihe havia acontecida, © quando recebeu lum segundo e um terceiro golpe por rer-se esquecide de tirar 0 gorto, comesou 4 horrar-se porque estava com disenteria, Quando a SS vio liquid excuro ¢ malcheiroso escorser sobre os tamancos, enfsrecet-se 1ano pa- terrivelmente, Langou-se sobre ele desferindo-the pontapés no abdé- men e, depots que 0 infeliz jd estava eaido sobre seus prdprios exere- ‘ments, continuiaw a baté-fo na cabesa e no térax, © muculmano nto se defendia. Ao primeiro golpe se dobrou a0 meio, © depois de mais alguns golpes jé estava marto.! No que diz respeito aos sintomas da docnga da desnucrigao, devemos Adistinguir duas fases. A primeira caracteriva-se pelo emagrecimento, pela astenia muscular ¢ pela progressiva perda de energia nos movi. mentos. Nesse estigio, © onganismo ainda née esté profundamente danificado, Para além da lentidao nos movimentos ¢ da perda de faryas, 1s docntes no mostram outros sintomas: cexcitabilidade e de uma alteragées le cancer palquico, Jom excegio de uma certa ica itvitabilidade, nem sequer se manifescam Era dificil perceber © momento da ps sagem de ui fase para a outra. Para alguns isso aconeecia de manelra lenca © gradual, para outros, muito ripidamente, Podia-se ealcular que 1 segunda fase comesava mais ou menos quando © individue farin- t@ havia perdido um tereo do seu peso normal. Quando continuava cemagrecer, a expressio do rosto também mudava, © othar rornava-se ‘opaco € 0 rosto assumia sima expressio de indiferen te, Os olhos ficavam cobertos por um véu, a8 érbitas, profundamence cavadas. A pele tomava um colorido cinza-pélida, cornava-se sutih dei- a, parecidla com papel ¢ comegava a descamar-se. Era muito sensivel a qualquer tipo de infecsio e contigio, especialmente a sarna. Os cabelos bide, p. 1 A.vergona, ou de sujeto * 95 mesmo, mas isto nfo altera 0 fato de que « humanidade dessa pessoa, como tum ser que sente, exige que ele se sinta culpado, e ele se sente, Bste € 0 aspecto mais significative da sobrevivencia. INio se pode sobreviver ao campo de concentragio sem o sentimento de eulpa por termos tido t8o incrivel sorte quando mithées pereceram, ‘muitos deles na frente de nossos olhos[..]. Mas nos campos pessoa era forgada, dia apés dia, durante anos, a assist a destruigo de outros, sen ‘indo — contra qualquer julgamento ~ que deveria ter intervido, sentin- do-se culpada por nfo célo Felco ¢, acima de tudo, sentindo-se culpada por ter freqiienternente ficado Feliz por néo cer sido ela morres, uma ver {que sabia que nia se tinka 0 dizeico de esperar sero tinico poupado 1 uma aporia da mesma espécie a que Wiesel compendiou com 0 apotegma: “Vivo, portanto so1 eulpado”, aerescentando logo de- pois: “Estou agui porque um amigo, um compankeiro, um desco- nhecide morreu no meu lugar". A mesma explicagio aparece em Filla Lingens, como se o sobrevivente s6 pudesse viver se Forse no lugar de um outro: "Por acaso, cada um de nés que voltou nfo car- rega consigo um sentimento de culpa que, pelo contritio, 0s nossos Cacrascos provam tio raramenter ‘eu estou vivo porque os outros morreram 10 meu lagae’?”. “Também Levi provou um sentimenso desse tipo. Contado, mio o aceita até suas ilkimas conseqiiéncias, lurando tenazmente contra tle. Este conilito encontrou expressio, na poesia que tem por titulo “Il superstite” [O sobrevivente], ainda em 1984: ‘Since then, at an uncertain hour Desde entio, em hora incerta, ‘esa pena revorna, se nfo encontia quem a escute Ihe arde no peito 0 coragio. Revé os rostos dos seus compankeiros Lividos & primetea luz, cinzentos de pé de cimento, B. Bowclheim, Sobreviséncia« outros etudos, cit p. 278-9. HL Langhsin, Uomin ad Ache, ct, p. 496. 96 + O que reside Auschwiez indistintes devide & névoa, tingidos de morte nos sonas inquietos: de noite batem o8 queixos sob a grave demora dos sonhos, ‘mastigando um nabo que no hi. “Para ers, fora daqui, gence submersal ‘Vio embora! Nao suplaneei a ninguém, nifo tte! 6 pao de ninguéin, nninguém morreu em meu lugar, Ninguém, Voltem & névoa de vocés. io & minha culpa se eu vivo e respiro, como € bebo e durmo e tenho vestidos."™ Agu nfo ae tts simpemente de uma recuss de respontab- lidade, conforme é testemunhado pela citagao de Dante no alti. ip verso. Ela provém do canco 93 do Infeino (w Il), que desceve o encono com Ugoline no vale don taidone A cara tear una dupla, Implicit, selecenla ao problema di caps de deportados. Por ui Indo, no “pore escure” encores oe sue ta eps" ss rps pets compe ros: por outro, com ura amagaaluséo 3 propria siete deco, brevets owe ado referee sigien gue Dane sre citar vivo, embors oo tj apatentosent, pals su alioa ff engolida pela morte. r = Dois anos depots, a0 escrver Os afgador or twbreviventy, Levi voles por-se a pergunta “Porventurt re erwergonor por cous vivo no lugar de wim outro? Ainda mais no lugar de wos homens tain generoso, mais sensivel, mais bio, mail, str dg de iver do que ne” Tarsbem desta ven, pods a espones€ db E impossivel evitat iso: voce: * woc’se examina, repassa todas a suas recordagses, ‘esperando encontréslas todas, e que nenhusna delas se cenha mascarado ‘ou tavestidor mifo, voct nao vé rranspressées evidentes, nao defraudou ‘ninguém, nfo espancou (mas teria forga para tanto?), no aceitou encar~ 805 (mas nio the ofereceram...), néo roubou o pido de ninguém; no en- P Levis “Ad ora inceet" em Opere (Torna, wal, 1988), v. 2, p. $81 ‘Avergonha, ou do sujeito * 97 tanto, € impossivel evtan £ 56 uma suporio ou, antes a sombra de wma suspeita:» de que cada qual cja 0 Caim do seu irmto e cada um de née {as desta ver digo “née” num sentido muito amplo, ou melhor, univer- sal) cenha defraudado seu préximo, vivendo ema lugar dele? ‘A propria generalizagio da acusagao (ou melhor; da suspeita) apara de algum modo a ponta, tornando menos dolorosa a ferida. “Nin- guém morteu em meu lugar, Ninguém.” “Nunes se esté no lugar de 3.3. A outra face da vergonha de quem sobreviveu é a exaltasio dla simples sobrevivéncia como tal. Em 1976, Terrence Des Pres, do- cente na Colgate University, publicou The survivor, an anatomy of life in the death camps. © livto, que obteve um sucesso imediato € notivel, propunha-se a mostrar que “a sobrevivéncia é uma experién- cia dotada de uma estrucura definida, nem forcuita, nem regressiva em amoral” ¢, a0 mesmo tempo, “tomar visivel tal eserurura”?. O resultado da verdadeira dissecacio anatémica da vida transcorrida pelo autor nos campos consiste em que viver é, em Giltima insténcia, sobreviver, e em que, na situagio extrema de Auschwitz, esse micleo mais intimo da “vida em si mesma” vem 4 luz como tal, libertada dlas twavas e das deformagbes da cultura. Embora também Des Pres lembre, a certa altura, o espectro do mugulmano, como figura da impossibilidade de sobreviver (“instincia empirica da morte na vida), ele seclama de Bertelheim por ter menosprezado, 110 seu tes- lemunho, a anénima e coridiana luca dos deportados pela sobrevivén- cia, em nome de uma antiquada ética do heréi, de quem esté pronto, para renunciar a vida, Para Des Pres, 0 verdadeiro paradigma ético do nosso tempo 6 pelo contririo, 0 sobrevivente que, sem buscar justifi- cages ideas, “escolhe a vida" e simplesmente luta para sobreviver: B Levk, On afigador ear sobrevventes, cit, p46. Ibidem, p. 32. "Ts des Pies, The survivor: an anathomy of life in che death camps (New York, 1977), p.V. ® bidem, 9. 99. 98 + © que testa de Auschosite ( sobrevivente é 0 primero homem civil que 4e encontra vivendo para além das constrigdes da cultura, para além do medo da morte, que s6 pode ser aplacado quando se nega que a prépria vida cenha valot. O sobrevivente € a prova de que hole hé homens e mulheres suficiente- -mente fortes, suficientemente maduros © conscientes, a ponto de en frentarem a morte sem mediagSes abragarem a vida sem reservas.!! A vida, que o sobrevivente opea por “abracar sem reservas", “o pe- queno suplemento de vidal" pelo qual esta disposca a pagar 6 prego mais elevado, revela-se, contudo, no final, come algo que nao ¢ senio a vida biolégica como tal, a simples, impenetsivel “prioridade do ele- mento biolégico”. Em um perfeito circulo viciose, no qual 0 ato de continuar no € mais que um rettoceder, a “vida adicional” que a so- brevivéncia abre é simplesmente um « priori absoluto: + Despojade de tudo exceto da vida, » sobrevivente 56 consegue conta com algum “talento” biologicamente determinado, reprimide durante muito tempo pelas deformagées culvurais, com uim banco de conhe mentos inscritos nay edlulas do seu corpo. A chave da coniduta de so- bbrevivéncia encontra-se na prioridade do ser biolgico.” 3.4. No causa estranheza que o livio de Bes Pres tenha suscitado ‘uma indignada reagio por parte de Bercetheim. Em artigo que salu no New Yorker logo depois da publicagio de The survivor, ele reivindica a importincia decisiva do sentimento de culpa no sobrevivente, Ser uma novidade surproendente pars a malaria dos sobreviventes que les sio “suficiensemente forces, madaros, conscientes.. pea abragar a vida sem resereas”, uma vee que apenas um aiimero lamentavelmen- fe pequeno daqueles que entram nos campos alemnies sobreviveu. E. quanto aos muitos milhées que pereceram? Estavam eles “suficiense- mente conscientes.. para abragar a vida sem seservas" na medida em ‘que enum conduzidos para us cdmaras de gis? (..1. E quante aos muitos sobreviventes que foram completamente destruldos por suas experién~ cias, a ponto de nem mesmo anos do melhor tratamento psiquidcri- Thier, p. 245. 2 idem, p. 24 tiem. p. 228, A.vergonha, ou do sujero + 99 eo ter podido ajudi-los « enfrencar suas lembrangas, que continuam a issommbriclos em suas depresses profundas e freqliencemente suicidas? Fles “abragam a vida sem reservas"? Os colapses psiedticas neuro ses severas dle muitas sobreviventes no merecem arencio? F quanto ‘aos horriveis pesadelos sabre os campos que muito freqiientemente me despertam ainda hoje trinta ¢ cinco anos depois, apesar de uma vida muito compensadora, ¢ que cada sobrevivente com quem converse! camber experimenca? bel Que demonseragio mais impressionance poderia haver de que apenas a eapacidade de sentic culpa nas torna humanos, particulamente se, visto abjetivamence, aio se é culpado?” AApcsar dos eons polémices, muitos indcos, no emantoylevam pensar quccs des tee cae, na verde, meno disentes entre do IIuvae pensn Os dos adversrios eto de fo press, mals ou menos cnslentemenrer em um cutiose creat Fizendo com que, por um “lot exlagao da sobrevivencia proce remeter consantemene & die itiade Cem uma stagho extreoa, isin exer celta na “tion oben cnsean in gaps oe Chroma morer ocupatnse do sea corpo por na ques de sobre VGncla moral"); por out ld revindieasio da dignidade e do Scremento de culpa nfo tam outo sentido sento a sobrvivencla © © “Ninuinco de vide" Ctobreviviars os pisoneros que mio fia alencie tor do comagho e da sazio [1 "now obrigagao ~ nfo pra com “quel gos stto torces, mas parn conosco mesmos, € para agucles& ntno volta que ainda esto vivos -¢foralseer ss pulsdesde vida (J) tvpgo & certarsence por acaso que Bestelhcim seaba devolvendo a Des Presa mesma acusagte de “tea da heroerng que ete Ihe hav fio: Salineando come ove o “Ble tomna herdis estes sobreviventes cast pos de morte produziram tais seres superiores [ Benclhcim, Sopntvvivene ct. ps 277 292, respecsivamente © Tes Pres The suroter, eit p72. 1 B, Betetheim, the mfirmed bears ety ps 214. dean, Sabrevivéncise oueras estuary ct p. 102 1 bide, p95 100 » © que cesta de Auschwitz 3 como se as duas figuras oposcas do sobrevivente ~ quem nto consegue deixar de se sentir culpado pela propria sobrevivéncia, © quem, na sobrevivéncia, exibe uma precentio de inocéneia ~ reve. lassem, com seu gesto simétrico, uma secreca solidariedade. Elas constituiem, para © ser vivo, as duas faces da impossibilidade de ‘manter separadas a inocéncia &a culpa, ou melhon de superan, de al- guma maneira, a prépria vergonba 3.5. Nio é, de fato, seguro que o sentiment de culpa por viver em lugar de outrem seja a explicagio correra para a vergonha do sobrevi« venre. A tese de Bettetheim ~ segundo a qual quem sobreviveu é ino: cente, ¢, contudo, por isso mesmo ¢ obrigada a sentir-se culpado ~ jé é suspeita. © fato de assumir uma eulpa desse tipo — que diz respeito A condigao do sobrevivente como tal e nao a0 que ele, como indivi- uo, fer ou deixou de fazer ~ lembra-nos a difundida tendéncia de assumir uma genérica culpa coletiva toda vex que se é mal-sucedida na solugio de um problema ético. Foi Hannah Arende quem nos lem- brou que a surpreendente disposigio dos alemies de qualquer idade em assumirer uma culpa coledva com respeito a0 nazismo, cm se sentirem eulpados por aquilo que seus pais ou seu povo haviam feito, patenteava contemporaneamente uma surpreendence mé-voncade acerca do estahclecimento das responsabilidades individuais e da pus nigao de cada win dos delicos. De modo semelhance, a Igreja Evangé- lica alema declarou publicamente que “era co-responsivel frente 40 Deus de Misericdrdia do mal que o nosso povo fez aos judeus’: nio se mostrou, porém, capaz de tirar a inevitdvel conseqiiéneia de que cal responsabilidad nao tinha a ver, realmente, com o Deus de Miseri- eérdia, ©, sim, com 0 Deus de Justiga, ¢ vetia, portanto, implicado a Punigio clos pastores cislpados por terem justificado o anti-semitismo, ‘A mesma coisa pode-se dizer com relasdo & Igreja Catdliea que, ainda de uma declaragio clo episcopado frances, se manifestou disposta a reconhecer sua propria culpa coletiva com res- peito 20s judeus; contudo, a mesma Igreja sempre se negou a admicit as precisas, graves e documentadas misses do Pontifice Pio XII, re- lativas & perseguigao © ao exterminio dos judeus (e, de maneica parti- ‘clas, relativas & eeportagio dos judeus romanosem autubto de 1943). recentemente, por mé A vergenha, ou do sujelto + 101 Levi esté totalmente convencide de que falar de culpa ~ ou de inocéncia — coletiva ndo tem sentido algum ¢ de que s6 por meréfo- ase pode dizer que alguém se sente culpado pelo que fizeram 0 pré- prio povo ou © proprio pal. Ao alemso que the escreve, nfo sem hipoerisia, que “a culpa recai pesadamente em meu pobre povo traf- do e desencaminhado”, ele retruca dizendo que “se deve responder ‘em primeira pessoa pelos crimes e pelos etros, senao todo vestigio de da face da verra™, Fao falar, uma sé vez, ivilizagio desapareces de culpa caletiva, ele a entende no nico sentido possivel para cle, a saber, como culpa cometida por “quase todos os alemaes de entio”? de nao terem tide a coragem de falar, de testemunhar a respeito de tuido que ndo podiam deixar de cer visto, 3.6. Mas ha também oucro motive que leva a desconfiar dessa ex~ plicagio, Ela tem pretensio, mais o menos consciente, mais ou ‘menos explicita, de apresentar a vergonha do sobrevivente como um conflito trigico. De Hegel em diante, o culpade-inocente € a figura ‘com a qual ¢ culeuta moderna interpretou a trageélia grega e, com ela suas mais seeretas discérdias. “Em todos esses conflitos trigicos”, es- ccreveu Hegel, “devemos, antes de cudo, descartar a falsa representagao cle culpa ou iocéncia; os herds erdgicos fo, 20 mesmo tempo, culpados ccinocentes™", O conflito a que se refere Hegel nao apresenta, porém, « forma de um caso de consciéneia, que oponha simplesmente uma inocénela subjeivaa uma culpa objeriva; trigiea é, pelo contrévio,a as sing incondicionada de uma culpa objetiva por parte de um sujeito «que nos parece inocente. Assim, no Edipo rei, se trata da legitimidade dagquilo que © homem fie com um querer au- roconsclente, frente ao que realmente fez involuncitia € inconscien- temente, por determinacie divina. Edipo marou © pal, casau com ‘mic, gerou filhos por meio de tia matrimdnio incestuoso ~ e, mesmo assim, vittse envalvide nesses horrendas delitos sem o querer € sem. Wav, Or afar or cobreciventes ct, p- 109 ¢ 130, G. WEE Hegel. Bterca (Torino, Einaudi, 1967), p. 1356 (ed, bras: A fino- mole do cipro; Eston A ela oa ideal: Ect, 0 belo artaica 0 ideal: Ineradacaa a stnin de florefia, So Paso, Abell Cultarsl, 1974) 102 * © que vests de Auschwitz star consciente disso. © direito da nossa mais profinda consciéncia contemporinea consistiria em nos recisarmos a reconhecer tas crimes como atos do préprio Eu, pots eles acontecerain fora da conscigneia € dla voneade; mas o grego, plistico, assume a responsabilidade pelo que {ex come indivieluo, © nio separa subjedividade formal da autoconssign- cia om relagio a0 que constieui « coisa objet... Desses atos, porn, cles ndo querem ser inocentes: pelo conerasio, a gléria deles consisce em cerem realmente feito 0 que fizeniim, A us hersi deste tipo nada pior se poderia dizer do que afirmar que agi sem culpa. Nada esti mais distance dese modelo do que Auschwiee, Aqui, © deportado ve aumentar de cal forma o abismo entre inocéne subjetiva ¢ culpa objetiva, entre o que ele fez @ aquilo pelo qual se pode sentir responsivel, que nao consegue assumir nenhum de seus aos, Com uma inversio que beita 2 parddia, ele se sente inocente exa- tamente por aquilo de que © herdi teigico se sente ctrlpado, e culpaclo quando este se sente inocente, Tal 0 sencido do especial Befehlnar- stand, do “estado de constrigio conseqtiente a uma ordem” lembra- do por Levi a propésito dos membros do Sonderkommando, que toma qualquer conflito tragico impossivel em Auschwira. O elemen «@ objetivo que era, em codo caso, a inscineia decisiva para o herdi grego transforma-se, nesse caso, naguilo que impossibilira a decisio. E por ‘nao consegtsir mais dar conta de seus atos, a vitima procura refiigio, co mo 0 fiz Bertelheim, sob a nobre méscara da culpa inocente. Mas ¢ sobretudo a facilidade com que isso ¢ lembrado pelos car- rascos ~ € nem sempre com mié-fé ~ que nos leva a desconfiar da adequagaio do modelo trigico para explicar Auschwitz. Que o recut- 80 20 Befebluotstand por parte dos funcionitios naziscas fosse um descaramento foi observado em varias ocasiées (inclusive pelo prd- prio Levi), Contudo, a partir de um dewerminade momento, eles ‘certamente recorrem ao mesmo nfo tanto para escaparem da conde- nagto (a objegio jd foi rejeicada durante o primeizo processa de 3 Teidem, p. 13568. Orafogade 1 vobrevivente, ct. 9, 32, A vergouh, ou do sujelto * 103, useemberg, haja vita que o priptio oédigo miler alenfo conti- nih um atvgo turelzanda a desobedigncia nox caox extteos), © “Tm peeapresenatem aos Ses propre olhor a sitaydo os emo = Nubnremte mal acleveis de um conflto erigien.“O meu lene sene-ecalpedo diane de Deus, no dlance dae ~ repeta tim Jerusalém o advogade de Eichmann. iso exemplar é6 de Frit Stang, comandanes do campo de ex terminode Teblina, cuja personaidade Gita Seteny procure ‘econtrle pacienemente mediante uina rie de coldquios no ei Cire de Disrldoréem loro que tm por sel signienivo Nague iar tuae, Ele continuou sustentando obsclnadamente, at © fiw wus inocéncia a respeito dos crimes que Ihe sto Impatados sm ot “Gnteseattiitnamence no plano dor fon, Mas, durante otis olgguto, que aconeece no da 27 de Janko de 1971, poueas horas cre de sn ore em conse de apo ats tor con impreseao de que a tiimas tesistcias enam euldo e de Gs naquelas revs tenhasurgide com multoesforgo uma espe tiede vislumbre de vomsciénela ries: “Pelo que fiz, minha consciénela estd limpa’ ~ disse ~as mesmas pe- laveas, rigidamence proferidas, qu havia repetide muitas vezes no ses processo e nas semanas passadas, toda vez que haviamos voltsdo a0 assunto, Desta vez, porém, eu nao disse nada. Ele fez wia pausa © es perou, mas 0 recinte ficou em siléneto. “Eu nunca fiz mal a ninguém, Inencionalmente”, disse em tain diferente, menos incisivo, ¢ de no- yo espetou — por bom tempo, Pela primeira vez, em todos esses dias, eu nao Ihe dava ajuda alguma. Nao havia mais tempo. Ele se agerrou mesa com ambas as mos, como te estivesse se apoiando, “Mas et cesiava ali? — disse depois, em tom de resignagao, curiosamenre seeo fe cansado, Precisara de quiase meia hora para pronunciar essas pou- cas frases, “E par isso. sim.” ~ di “ha verdade, compartitho a culpa... porque a minha culpa... minba culpa... 36 agora, nessas conversas... agora que fale... agora que pela primeira ver eu disse tudo.” E parou. Havia pronunciado as palavras Sa minha culpa” mais que palavras, porém, houve um afrouxar-se 1© no final, mutio pacacamente ~ do rosto, © roste caida, que denunciava a importincia daquela ad- missio, Depois de um minuto, continuo, como a conthagosto, com 104 + © que resta de Auschwiee vor drona. “A minha culpa ~ disse - ¢ a de estar ainda aqui. Fasa é x oinha culpa." “Tiatando-te de um homem que havia ditigido a morte de milhares de seres humanos nas cimaras de gis, a lembranga alusiva a um con- Aivo crigico cle um tipo novo, do inextricivel e enigmatico a ponto de que sé a morte poderia eé : lo resolvido sem injustica, nao significa — conforme parece sustentar Sereny; ocupada exclusivamente com sua dialécica de confissio e de culpa ~o aflorar de um instance cle verdad, fazendo com que Stang] "se rivesse tornado o homem que deveria cet sido”, Ela assinala, pelo conerdtio, a ruina definiciva da sua capacidade de testemunhar, 0 fechamento desesperada “daquelas trevas’ sobre si mesmas. © herdi grego despediwese de nés para sempre, nao podendo ‘ais, em caso algum, restemunhar por nés; depois de Auschwitz, nfo &possivel utilizar um paradigma trigica na ética. 3.7. A ética do nosso século inaugura-se com a superagio nietzschiae do tessentimento. Contra a imporéncia da voneade com respeito a0 pasado, contra o expirivo de vinganga por aquilo que irrevogavelenente foi e nfo pode mais ser querido, Zaraustra ensina os homensa queterem para tras, a desejarem que tudo se repiea. A crltica da moral judaico-cris- 1 tealiza-se em nosso século em nome da capacidade de assumirmos ineegralmente © passacio, de libertarmo-nos ce uma vez por todas da cul- ae da mi conscigncia. O eterno retorna é, antes de tudo, vitstia sobre © ressentimento, possibilidade de querer o que foi, de rransformar todo “assim foi” em um “assim quis que Fosse" — amor fai. ‘Mesmo com respeito a isso, Auschwitz representa uma rupeura de- cisiva. Imaginemos que se repita a experiéncia que, na Gila ciéncia, Nietzsche propée sob o tieulo “O peso formidvel” Ese, durante 6 dia ou & noite, um deménio te seguisse A mais soliitia de ruas solidées ¢ te dissesse: ~ Esra vida, tal qual a vives atualmente, & preciso que a revivas ainda uma ver ¢ uma quantidade inumenivel de veres © nada haveld de novo, pelo contratio! ~ E preciso que cada dor SG. Sesany. dn quelle rete cit. 4920, > Thidem,p. 495 A vergonha, oudo sujeito + 105 cecada alegria, cada pensamenco © cada suspiro, todo © Infinitamente ande e infiniamente pequeno de tua vida acontega-te novamente, tudo na mesia seqiiéneia e mesma ordem — esta nranha e esta laa entre fo agvoredo e também este insrante © eu mesmo; a ereena ampulheta da teisténeia serd invertida sem detenga e tu com ela, pocira das pociras! io te langaris & terra ringindo as dentes e amaldigoando 0 demonio aque assim tivesse falado? A simples tformulagdo de experléncia bast para seule para lem de qualquer divida, pars fiver que nines mals Se poss pro- poe ' Essa Faléncia da ética do século XX diante de Auschwitz nao de- pend, no eneanto do fo de que iso ue aconcecet soja demasin Tamesee stor para que ningvem pasa querer que nunea se repita, Snundove como um destina, Na experiencia nieschiana, 0 horror dinarae obviamente desde o principio, «ponte de que oseu primeiro ‘fuze sobre quem o ouvefose precsamente fico de Ie fixe “ran- ferov dontere maldizer 0 dernbnio que flow desta manciza, Mas whe sequcr se pode dizer que fae da iho de Zarevstraimplique i puncsimples esauragao da moral do resentment, emborn, Pace a vttnas ereago sea Brande. Joan Amery chegou assim a enun- lor tma verdadeea een aninievschiana do ressencimentoy & ql “mplenmente seca “nectar que sucedido tena sido o que foi" (Os ressentimentos como daminante existencial so, para os meus pares, fo axito de uma longs evolugie pessoal e bistérica.. Meus ressentimentos cexstem para que o deito se orne realidade moral para 0 eriminoso, para ‘auc sa confiontado corn a verdade do seu malfeito...Nos dois ecénios edieados i rellexdo sobre 0 que me aconteceu,acredito ter compreendida ique 4 remisséo e o esquesimento provocados por uma pressio soctal sio moni... © sentido natural dea tempo encontea Fealmente suas raizes 0 procesto fsiolipico de cleatlzacto das feridas © passow a fazer parte da re- ppeeseneagio social da realidad, Precisamente por tal motivo, ele term um ccariter no apenas extra moral, mas ansimoral, E diseio e privilégio do ter humano nio se declarat de acordo com todo acontecimento natural SP Amey Oa felon Auacroite,ets pe 123, phos overseen constant 106 + © que renal Auschowice por conseguinte, nem mesmo com a ciatrizagio biolégica provocicla pela tempo. O que passous, passour ral expresso 6 40 mesmo teinpo, veradel= 2 e contritia 8: moral ¢ a0 espirto... O homem moral exige a suspensio ddo tempo; no nosso caso, encravando 0 malfeitor no seu mallee. Desse manera, cumprida a inverso moral eletuada pelo tempo, ele portend set comparada com a ima enquaneo sou semelhanite.™ Nato hi nada disso em Primo Levi. £ verdad que ele recusa a dfi- nigio de "perdoador” que the foi atcibuida privadamence por Améty. “Nao tenho cendéncla a perdoar jamais perdoci a nenhum de nossos inimigos de entao."” Contudo, a impossibilidade ce querer o eretno re= rorno de Auschwitz tem, para ele, outra ¢ bem diversa raiz, que implic uma nova, inaudita consisténcia ontoldgica do acontecido. Nia se pode ‘querer que Auschwitz reorne esernanrente, porgue, na verddads, nunca de .exou de acontece, ja sees repetindo sempre, Essa ferox.e implacivel expe- rncia, para Levi, se apresentou nia forma de um sonho. {um sonhe dent de outeo sank diference nos decalhes, nico sub neta, Extou & mesa-com a Familia, ou com amigos, ou no teabslhe, a4 24 verde campina: em ambiente apearivel distendido, aparentemente pu do de wnsio ededon mesmo assim, sinco uma angietia suc eprofunda, sensago definida de uma ameaga que post sobre mitn, Reslmente, i medi da queo sonho fei, pouco a pauco ox bruralmente, tos vex de Forma dif rente, tudo desi se desfiz ao meu redo, 0 cendvio, as pared, a pessons, cea angiistia se corsa mais intense mais precisa. Tudo agora transfotmouse em eaas: eetou 26, no centro de wim nada cinzenta.e te, 6 de repent, et se¥0 que iso significa, ¢ também set que sempre 0 soube: estou dle nove no Lager, ¢ nada er verdadeieoa nfo ser 0 Lager, © resto eram breve Fras, ot engano dos sents, sonho: a funifia,a naeureza em Alor 2 east, Agora exe sonho intemo, osonko de par, cabo, ¢, no sonho esterno, que plosseyue ‘ido, ongo essoar uma vor, bery conhecida: uma sé palaves, no imperio= ‘als breve e abafid, Ea vor de comanelo do amanhecer de Auschwlt, uma palaveaestrangeira,vemida e esperada; evantar-se, "Wstawad”. > ders pe 2 TL Levl, Orafigder vor rbrevivenen ct, p83 Levi, "Ad ora incersas et 9. 254 ‘Avvergonha, ou do sujet + 107 Na variance rgistada numa poesia de “Ad ora inecta” (Em ho- Srencia nde tem a forma de umn sono, e sim a vs incerta]. a experi die nna certeza proférica: Sanhivamas nas notes feroves sonkor densovevslentos sonhados com alma € corp Nehas camer conte qu aconiee, Ie quewouvn breve abafida vow de comando do arsaniees: no peta se rompia 0 ores ‘Ager renconwanior wat none autmage eck atta, scaltamor de camaro que sconce Chegow a hem. Loge euviremon sind wor de comando ean escanae 6 problema dco mudou radicalmente de forma nese as: fe cea de denote epitede-vinganga ara assum o passa pas Sherer cel soe cerameec Nem stat de man com fete Specie por mend resentment © qucsemon ge pe ene mse pan lem de acto ee eon do tro pasa «do scams presen aconeerimenta gue etersuente vl ns 4 ration por ino € absolut © efermamente nao-asumivel Pa vi ao bom ¢ do ml nfo esa nova do devi, pox ume ergo Sint nao ad sem eulpa, mas, por asim dias sem cempe. 3.8, Para além de qualquer dhivida, Antelme dé seu testemunho no sentido de que a vergonha no é, realmente, sentimento de culpa, ‘Yergonba por ter sobrevivide # umn oucro, mas de que fem outta causa, nals dificil ¢ obscura. Ele nos conta que, quando a guerra jé estava no fim, durante a louca marcha para ttansferir os prisionelras de Bu- ibider, p 330. 108 + © que rerta de Auschwitz chenwald aré Dachau, as SS, acossadas pelas tropas aliadas, fuzilavam em pequenos grupos todos os que, pelas suas condigées. podiam atra- sara marcha. As vezes, na pressa, a dizimagao acontecia a0 cass, sein. nenhum critério aparente. Um dia, toca a um jovem italiano, ASS continua chamando: Du hromme hier (Ts, vem ed! B outa italiae rho que sai. Um estudante de Bolonha, Conhego-o, othe para ele e vejo que seu rosto ficou vermelho. Olhei-o atentemente, aquele surpreen- dente rubor 0 terei sempre nos othas. Tein 0 ar confuso, e no sabe 0 ue fazer com suas mos... Picout vermelho logo depots que a SS the disse: Dur komme hier! Olhow em volta de si antes de avermelhar, mas ent preclsamente ele que quetiam ¢ entio ficou vermelho quando nio eve mais dividas. A SS procurava um homem, umn. qualquer, pata ma- tar, havia “escolhido” a ele, Nao se perguntou por que este e ndo outro. E nem @ fealiano se perguntou "por que eu, © nao outto'(..]"" E dificil esquecer 0 rubor do andnimo estudante de Bolonha, morto durante as marchas, sozinho, no sleimo instante, As margens da estrada, com o sou ansastine. Coramente a iniimidade que $2 sente diante do proprio desconhecido assassino é a intimidade mais extrema, que pode, como tal, provocar vergonha. Contudo, qual- quer que seja a causa do rubor, certamente ele nfo se envergonha por ter sobrevivide. E sim, de acordo com toda aparéncia, ele se en- vergonha por dever morrer, por ter sido escolhido ao acaso, ele e ado ‘outro, para ser morto, Esse € 0 tinico sentido que pode ter, nos cam- os, a expressio “morrer no lugar de um outro”: que todos morrem vive no lugar de um outro, sens ruzdo nem senticlo; que o campo & © lugar em que realmente ninguém consegue morter ou sobreviver fo seu proprio lugar. Auschwitz significou eambém isso: que 0 ho- mem, ao motrer, nae pode encontrar para suia morte outro sentido sendo aquele rubor, senio aquela vergonha. Em. todo caso, o estudante nao se envergonha por ter sobrevivi- do, Pelo contritio, o que the sobrevive ¢ a vergonha. Também nesse ‘eas Kafla foi bom profeta. No final de O procerso, no momento em que Josef K. esté para morrer “como um cio” e a fica do carrasco se BTR Antchines La specie umana, cin p. 26. A vexgonha, ou do sujeito + 109 afinda duas vezes no corasao, produz-se nele algo parecido com uma vergonha: “era como se a vergonha the devesse sobreviver”. De que se envergonba Josef K,? Por que 0 estudante de Bolonha fica vermelho? E como seo rubor nas bochechas sinalizasse que, por um momento, se regou 0 limie, que se tocou, no ser vivo, algo come, uma nova matéria ética, Nao se trata seguramence de um fato que cle poderia restemunhar de forma diferente, que ele pudesse tentar cexpressar com palavras, De coda forma, porém, 0 rubor & como se fosse uma apéstrofe muda que voa pelos anos ¢ nos aleanga, teste- munhando por ele. 3.9. Em 1935, Emmanuel Levinas eragou um esbogo exemplar a respeite da vergonha. Segundo 0 fildsofo, a vergonha nao deriva, como acontece na doutrina des moralistas, da consciéncia de uma imperfeigio ou de uma caréncia do nosso ser frente & qual tomamos distancia. Pelo contririo, ela fundamenta-se na impossibilidade do nosso ser de dewolidarizarse de si mesmo, na sua absoluca incapact- dade de romper consiga proprio. Se, na nudez, sentimos vergonha é porque no pademos esconder 0 que gostariamos de subtrair ao olhar, porque o impulso irrefresvel de fugir de si mesmo encontra seu patalelo em uma impossibilidade, igualmente certa, de evadir~ se, Assim como na necessidade corporal ¢ na nausea — que Levinas associa 4 vergonha em um mesmo diagnéstico ~ fazemos a experién- cia da nossa revolrante €, no entanto, nio suprimivel peesenga a nds mesmos, assim, no caso da vergonha, ficamos encregues algo de que, de forma alguma, conseguimos desfazer-nos. (© que aparece na vergonha é, portanto, precisamente o fato de se extar pregado a si mera, a impossibilidade radical de Fugiemos de nés para nos ercondermos de ns mesmos, a presenca irremissivel do eu frente si mesmo, A nudes é vergonhosa quando ¢ © patentear-se [le paren- 24) do nosso ser, da sus intimidlade tleima. Ea nudez do nosso corpo nndo é a de algo material, antitético ao espirito, e sim a nudez do nosso ser toral em toda a sua plenitude e solide, da sua expressio mais bru~ tal, de que nio podemos deixar de dar-nos conta, © apito que Charlie Chaplin engole em Lnzer da Ribales fax com que aparess 0 escindalo 110 + © queresade Amehwite dla presenga bru 5 I do seu ser; € camo se fosse um gravador que perm te por a nu ay manifestagdes discreras de umna presenga que, de resto, «6 lendavio traje de Chaeloe apenas dissimmula.. Ea nossa insimidale, fou melhor, 3 nossa preset nds mesmos que & vergonhosa, Ela nie desvelt a nosso nada, mas a toralidade da nossa existéncta,.. Q que a vergonha descobre &0 ser que re dewobre! _ Tentemos prosseguir a andlise de Levinas. Envergonhar-se signi fica: ser entregue a um inassuonivel [inascumibile|. No entanto, este inasumtoel nio é algo exterior, mas provém da nossa prépria intimi- dade; ¢ aquilo que em nés existe de mais intimo (por exemplo, a nossa prépria vida fistolégica). O eu é, nesse caso, ulerapassado © su perado pela sua prépria passividade, pela sua sensibilidade mais pré- ria; concudo, esse ser expropriado e dessubjerivado é também uma extrema ¢ irtedutivel presenga do eu a si mesmo. E como se nossa consciéncia desabasse nos escapasse por todos os Indos e, ao mes- mo tempo, fosse canvocacla, por um decreto irrecusivel, a assistig sem remédio, a0 préprio desmantelamente, ao fato de ji ndo ser meu nudoo que me é absoluramente préprio. Na vergonha, o sujeico nfo rem outro contetido senio a prépria destubjerivigdo, convervendo-se em testers nnha do préprio desconcereo, da propria perda de si camo sujeito, Esse duplo movimento, de subjerivagio ¢ de dessubjetivasdo, &a vergonha. 3:10, No curso do semestre invernal 1942-43, dedicado a Par ménides, também Heidegger havia abordado o tema da vergonha ~ ‘mais precisamente do termo correspondence em grego aids, que ele define “uma palavra fundamental da auténcica helenicidade™™, Se- gundo 0 filésof, a vergonha é algo mais do que “um sentimento que o homem tem": &, sobrerudo, a ronalidade emotiva que atraves- sae dereemina o seu ser inte, A vegonha é, pois, una espécte de sentimento ontolégico, que encontra seu lugar prdprio no encontro entre o homem €- ser; tem to pots a ver com um fendmeno psi- 5 Levinas. De Feeasion (Montpelier Fatt Meggan, 1982), p. 68 © OM. Heideggen Parmenids (Prankfare aM. Klaessemani, 1982), GA ¥ 54 p. ie. A sergonha, ou do sueito + 111 coldgico, que Heidegger pode escrever que “o ser mesmo traz consi- oa vergonha, a vergonha de ser". ara sublinhar o cardter oncolégico da vergonha ~o fate de que, ‘na vergonha, nos encontramos expostos frente a um ser que se €n- vergonha ele mesmo —, Heidegger propée que a compreendamos a pactir do asco (Abmhen). Curiosamente, porém, tal conexio nio tom continuidade, como se fosse imediaramente evidente, 0 que de Fito ndo é, Por sorte, temas a sespeito do asco outra anilise, breve mas pertinence, em um aforismo de Rus de mdo sinica. Segundo Benjamin, a sensagio dominante no asco ¢ 0 medo de sermos reco~ nhecidos por aquilo de que sensimos asco. “O que se assusta pro- fandamente no homem € a consciéneia obscura de que, nele, permanece em vida algo de te pouco alheio ao animal provocador de asco, que possa ser reconhecido por este." Isso significa que quem prova asco, de algum mado se reconheceu no objeto de saa repulsa, e ceme, parsiia vez, ser reconhecido por ele. © homem que sente asco reconhece-se em uma alteridade inasstanfvel, ow seja, sub- jetiva-se em uma absoluca dessubjetivagio. Reciprocidade desse tipo encontramos na andlise que, mais ou _menos nos mesmos anos, Kerényi dedica a afdés, no seu liveo A re- Uigiéo antiga. Seguodo 0 mitdlogo hiingaro, idds, a vergonha, & a0 mesmo tempo, passividade e atividade, ser othado e olhar. No Fendmeno da aidds siuagio Fundanwental da experiéncia religiosa dos gregos, unen-se ceciprocamente visio ativa € visio passiva, 0 ho ‘mem que olha # alhado, mundo olhado e que olba ~ em 4) significa também penetras.. 0 Heleno nip s6 “nasceu para ver mado a olhar", a Forma da sua existéncia € 0 ser olhado.* “cha Nessa reciprocidade de visio ativa ¢ passiva, a aidisé algo seme- Ihante A experiéncia de assistir a0 proprio ser visto ede set comado Tide, po 1106 111, respeedamence WW, Benjamin, "Rua de mio nies” im Ob scalbider 1 Row de mato nica (Sip Paulo, Beasinse, 2000), p. 16. * K. Keniny, La religione nmcice nelle sue Une ondamencal (Romns, Astra, 1981). p. 88, eer serra aeRMERNNRES IA © que cesta de Auschoviee como textemunha do que se olhs, Assim como Heitor diante do seio desnudado da mae ("Heicor, filho meu, sente aidis diante disso), juem sense vergonha acaba oprimido pelo proprio fato di - al to da visio, devendo responder por aquilo que Ihe tira a palavra Podemos asim antecipar uma primeira e provistia defini da vergonha, Ela é nada menos que o sentimento fundamental do ser sujehto, nos dois sencidos— pelo menos na aparéncia ~ opostos do ter sme ser sujeitada e ser soberano. Hla € 0 que se prods na absoluta concomitineia entre uma subjerivagio ¢ uma dessubjetivagio entre tum perelere ¢ wm possuir-se, entre uma servidao e urna soberania. 3.11, Hd um tmbito particular em que o caticer paradoxal da veg ¢ atid conmtenemente como bj, fd tranaformade am preset, ou melhos, ema que x verporihe ot asia ive, levadn paryaldm-de I mest. Ratito-me no sedomnsoqul mo. Newe-cnto, uma sel passive ~n masogulem~opalvont-oede tal maneira pela propria pamividade, que a superaInfisitamence, 2 ponto de abicar de wus condisto de aujelto ee subrnererincepral mente a cute aujelro ~ 0 sidice. Dino nasce a cerlmanlose pand- pln cas uci, dos contrac, dos meas, ds balnhes, dar soca dag Songs deo epee, por mi de gue oho masa usa em vio conte efxar Ironicamente a passividade inasnimfoek que 0 sleraposss delicionzmente por todor os lados. B46 porque a sa ‘mento préprio do masaquleta conser, antes de do, cm nfo poder tssumit prbpria teceptividade, que a sua dor poderd converters Inediatamenee cm volipa, O que, pore, constitu a suera da crrraséga maroqulsta, qtage a sua stvedstien profundidade, ¢ cle po- der conmepuie gra co ago que o lapis unkmens te contrat fora deal um ponte que the possiblite assumir a prépria pasrvidade, o propria © natnumivel praner. Este ponto externo & 0 Eafe allen, neni O sadomasoquismo apresenca-se, portanto, como um sistema bi- polar, no qual uma passibilidade infinita — 0 masoquista ~ encontea uma impassibilidade igualmente infinita (o sAdico), ¢ subjetivagio dessubjetivacio circulam incessantemence entre os dois pélos, sem pertencer propriamence a nenhum deles. A indererminacio, conta- ‘Avvergontna, ou do sojeo © 113 do, nfo afeta apenas os sujeitos do poder, mas também os do saber. ‘A dialécica entre senhor € escrava nio é nesse caso, o resultado de fama luta pela vida e pela morte, ¢ sim de uma "disciplina’ infiniea, tie um minucioso € intermindvel processo de ensino ¢ aprendiza~ jgem, no qual os dois sujeitos acabam trocando os papéls. Assim come o stijeizo masoguista realmente s6 pode assumir © seu prazet tno senhor, assim também 0 sujeito sidico s6 pode reconhecer-se co- tno tal, s6 pode assumir 0 seu impassivel saber, seo transmitit 30 treravo mediante uma instrugdo © uma punigio infinita, Tendo em conta, porém, que, por definigso, 0 sujeito masoquista goza do seu Gmel tirocinio, o que deveria seevie para transmitir um saber —a pu higdo — serve, pelo contririo, para transmicir um prazer, fazendo com que disciplina e aprendizagem, mestre ¢ aluno, senhor e esera- Yo se confandam sem remédio, Tal indiscetnibilidade encre disciplina te gozo, no que os dais stjeitos por um instante coincidem, é, precist- mente, 4 vergonha, que o mestre indignado nio para de recordar 40 feu huimoristico aluno: “Fala, no ce envergonhas?!” Ou methor: “Nao re dis conta de ser 0 suijeito da tua propria dessubjerivagao? 3.12, Nao causa surpresa que usm perfeito equivalente da vergo- nha se encontre exatamente na estrutura origindria da subjetividade, ‘que, na filosofia moderna, é chamada de auto-afeiedo, que, a pareir de Kant, se costuma identificar com o tempo. © que define 0 tempo enquanto é a forma da sencido interme, ou seja, “da nossa inxigso Ge nds mesmos ¢ do nosso estado interno” ~ é segundo Kant, que nrele “o intelecto {..] exerce sobre © sujeito passivo, do qual ele mesmo Ga faculdade, uma agao a partir da qual justificadamente dizemos que € por meio dela que é afetado o sentido interne”, e que, Por i880, hho tempo “nés intuimos a nés mesmos por meio dele somente en- {quanto somos afetados internamente por nds mesmos”™. Prova ev dente desta automodificagio Implicita na nossa intuigto de nds mesmos é, para Kant, 0 fato de que ndo podemos pensar o tempo 7 Kann Critica del region pune (RomicBark, Lacey 1981, p. 8 fede bess (Ghia de nasdo pura Sao Paso, Abell Culeural, 1980, © idem, p. 146 6 148, respectivamente 114 + © que testa de Auschviee Coo ls hee cp emer pa sivos com respelto a née mesmos? E claro que passividade nio significa era eee rae man oe e © tempo no algo gu ange am tema po como autrafigd pur, cle forma a propria excreta do se se pode definir cormo um tera vor consign mesina emt peta: Mate oa ‘mesmo, com quealgo pode crs ver somo tal & por ecaiao sujlea fnito, © eempo, nasus qualidade de to-allge ps ta extent da subj forma a exer ide. Somente baseade nessa mesmiddide, 0 ser finito pade ser o que deve tum ser destimado & recepeio, Wide. po 148 © M, Heide; Kone i probleme dela sri (Milan, Sie. 1962), p. 249, Avecgonha, ou do sujito © 115 ul aparece evidenciad a analog coma vergoniha ~ que defn sw come’ oer eneegue a una pesividade fase e3 vergo “Ihsapretentane Inclusive come tronaidade emocira mats propria da Mijetwidade De fo, no hi nada de vergonhowo em um Se hurma- vraue sof, conti sua womtne, uma violent sexual ce, porém, wut pres por softer violence s le se apasona por sun passa = csrimtihon fc oconer a produgto de nutoafeigao ~ a6 enti se pode thar de vergonine Dor bo. os gepor separa claret, na rae omen oso ai (9 te) doi ps oe stow) ¢ exiginm, pars que houvesseevicklads ma zelagae, que © vvomoncs sao ente racer, Asim como fora da aubjecidades fuvidade en constativamentecindida em um plo poramente Meceprve (© mustang) « em um palo aivamence paso (a test Touuha), de mancita a, porém, que esta cso unca sia de s! mes- Monge nance separecoaimente os dois los, endo sempre, pelo cnet, a forme le uma rnidade da enega des ua pss tde. de um fusrse passive, em ques dois ermes a0 mesmo cempo se distinguem ese confundem. No Compendium gnammatices lingnae hebraeae, Spinoza exem- plifica © conceito de causa imanente ~ a saber, de uma agio na qual agente ¢ paciente so uma mesma ¢ tinica pessoa — com as categorias verbais hebraicas do reflexive ative e do nome infinitive. Dado que fiegilentemente acontece ~ esereve cle a respeiso deste Gi fimo — que 0 agente © 0 paciente sejam uma $6 € mesma pessoa, foi hecessisio pata os judeus formsarem uma nova e sétima espécie de In- Finito, com a qual cles pudestem expressar a agio referida, ao mesmo tempo, ao agente a ao pactente, ¢ que civese, contemporaneamentés 1 forma do ative © do passive... Fol, portanto, necessirio inventar ov: tra espécie de infiniro, que expressasse a agao referids ao agente como causa imanente,» a qulal, coma distemos, significa "visitara si mesmo", jrance out, enfim, rostear-se visizanre” fou seja, “constituir-se como vi (consinuere se visitantem, vel deique pracbere se visitanter) 1B. Spinana, Compendinnn gnannnnatees lingua hebracue em Opens (org, Geb- hhande, Helberg, 1925). 6. 3,p.361 116 + © que esta de Auschwite Para explicar o sentido dessas formas verbais, Spinoza nao consi- dera suficiente a simples — embora, no caso especifica, néo crivial ~ forma reflexiva “visitar-se"; ele se sente obrigado a formar o singular sintagma “consticule-se visitante” ow “mostrar-se visitante” (pela ‘mesma raziio, podetia ter escrito “consticuir-se ou mostrar-se visita- do”). Assim como, na linguagem comum, para definir uma pessoa ue sence prazer ao softer algo (ou, em todo caso, € cimplice desse soffer) se declara que ele "se faz fazer” algo (e nto simplesmente que algo the ¢ feito), assim também a coincidéncia de agente e paciente em um sujeito no tem a forma de uma identidade inerte, mas de um movimento complexo de auto-afeicao, no qual o sujeito consti- tui — ou mostra~— a sf mesmo como passivo (out ativo), de modo que atividade © passividade nunea possam ser separados, mostrando-se como distintas na sua impossivel coincidéncia em ui ev, O en éo «We se produz como resto no duplo movimento ~ ativo e passive — da auto-aleigio, Por esse motivo, a subjetividade tem, conseitutiva- mente, a forma de uma subjetivagéo e de uma dessubjerivagao; por isso, ela ¢, no seu intimo, vergonha. © rubor & 0 resto que, em toda subjetivasto, denuncia uma dessubjetivagio e em toda dessubjeti- vagao, dé testemunho de um sujeito. 3.13. Hi um documento excepeional sobte a dessubjetivagito como experiencia vergonhasa, ¢, mesmo assim, inevitavel. Traca-se dda carta enviada por Keats a John Woodhouse no dia 27 de outubro de 1818, A “confissio vergonhosa", de que fala a carta, tem a ver comm © préprio sujeito poética, o seu incessante filtar a si mesmo para consistir somente na alienagao e na inexisténcia. As teses que a carta enuncia na forma de paradoxo sto bem conhecidas: 1) O eucpocticn ndo ésem eu, nao ¢ idénico ash “Quanto a0 prisprio cati- ter posticn (reiro-me & espécie da qual, se eu for algo, eu sou membro), ele nto ¢ ele mesmo ~ no tetn self € toda coisa ¢ nada niio vem catéter (i fs not itself thas no self itis every thing and nothing ie bats no characte). SJ, Rencs, the Lert of fob Keats org. MB, Farman (Oxfon, Oxfoed Univer: sity Prem, 1935), p- 227, Avvergonha, ou do sujet © 137 2 Ope tars mt peti ou temp Be Weeceerinerenanc error Scant ill eno seen ee oe ae ed og casera 7 po te oe ml om wn et ean ye a ape theese eee serps anak (i whe sig conf masa pe dae que no hun 3 pan ue proino pode eterads scrcun como opine ale nsce la mina inden nasa 62 pede \e Encontro em uM quarto secu to tenho rata? Quand ee pesos se nfo caver ipeculando sabre ease do se pe comes pee iodo cm ro cides eno no meu en quem vain al me, Uta dos preenes comes «pot sbre mim, dl modo que th ecco mpm acho antguiado eto no a ent dalton me con Tessin. g memrosneinimneaasdeniae ime pindoxo comsse, porém, no fo de que, ha carta, 0 se Joa endla nto segue inecamente& confso, sm & pro= mee de una scr alute eindefciel,deldn a denen ea cooenaron: oa dessubjetivagao Implicita Tenover da apés da, como tea verpooh : ro de paler consveae uma beers secret endo pudese ena de Teupurgep pout sda etemunbo incense da prépra aon: sme to elevado quanto pode Procure sleangar na poeta 2 : rtm gue ef sone Eaton cee dee devo ext Ton mam gue fdign das minus noter deve er qusimads toda *TBidem, p 228 * Aden, dem U8 + © gue ses de Auschwicg anha © nenhum olho brilhasse sobre cla, Mas ralvez inclusive agora {cu no esteja Falando de mim mesmo, e sim de algum personagem em ccuja alma eu vivo agora. 3:14, Que 6 ato de ctiagio poética ~alids, talvez, todo ato de pax lavra ~ comporre algo parecido com uma dessubjetivacio, constitui patriménio comum da nossa teadicao literdtla ("musa” € 0 nome que, desde sempre, os poctas deram a essa dessubjetivacao) (Um Eu sem garantias! ~ escreve Ingeborg Bachmann em uma das sus ligoes frankeurrianas — O que é o Eu? Aids, o que poderia ser? Um a [ro euja posicao © cuja Srbita nunca foram identificadas votalmente © cujo micleo é composto de substinclss ainda desconbecidas. Poderia ser isto: misfades de particulas que formam um "Ew", mas, ao mesmo « fempo, o Eu poderia ser um nada. a hipdstase de uma forma pura, algo semelhante a uma substincia sonbada, Poetas, segundo Bachmann, sio precisamente os que “fzeram do Eu 0 terreno dos seus experimentos, ou enti, fizeram de si o terreno. experimental do Eu", Por isso, “correm continuamente © risco de enlouquscer™”, de nao saberem 0 que dizem. ‘Mas a idéia de uma experiéncia integralmente dessubjetivada do ato de palavra tampouco € estranha a teadisto religiose. Muicos sé culos antes de ser programaticamenre retomada por Rimbaud 1a carta a Paul Demeny (car je est un autre, Se le cuivre seveilleclaéron, if ny «rien de sa feute ~ porque ex & wn ouero. Se o cobre acorda clarin, do é culpa tua), uma experiéncia do género foi, de fato, registeada como pritica habirual de uma comunidade messianica, na primeita Carta de Paulo aas Corintios. © “falar em lingua” (ladein glosse), de ‘que se fala na Carta, refere-se a um acontecimento de palavra — a alossolalia ~ no qual o falante fala sem saber o que diz ("Ninguém 0 entende, pois ele, em espirito, enuncia caisas misceriosas” - t Con idem, p. 228 ws “A. Bachman, Letenena come urepia:kxiont di Brencnfrte (Milano. Adelphi, 1995). p58 ¥ dem. Avvergonha, ou dosujelio * 119 Sere eee ear Lapa ‘Sea srombera nao der um som claro (aqui que Rimbaud inseriré a sua defesa dos Corintios: sé le euiure seville claivon..) quem se preparant ppara a batalha?.. Assi vocés, ¢, com o dom da lingua, nto proferirem Siscurso compreensivel, coma se sabers o que vocés dizem? Seri como te falassem a0 vento,... Por isso, quem fala em Kinguss. reze para poder incerpretar, porque se rezar em Lingus, o meu espitico de Fato Texans, masa minha mente fica infrutifera... aos, nao sejam erlangas ne ato de julgar.. (1 Con. 14, 8-20),

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