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Luis Tavora Furtado Ribeiro Marco Aurélio de Patricio Ribeiro TEMAS EDUCACIONAIS: Uma ColetAnea de Artigos | Fortaleza 2010 Temas Educacionais: uma Coletanea de Artigos © 2010 Luis Tavora Furtado Ribeiro e Marco Aurélio de Patricio Ribeiro Impresso no Brasil / Printed in Brazil Efetuado depdsito legal na Biblioteca Nacional TODOS OS DIREITOS RESERVADOS Editora Universidade Federal do Ceara — UFC Ay, da Universidade, 2932, Benfica, Fortaleza - Ceara CEP 60.020-181 — Tel/Fax: (085) 3366.7439 / 366.7766 / 336.7499 Site: www.editora.ufc.br — e-mail. editora@ufc.br Faculdade de Educagao Rua Waldery Uchoa, n° 1, Benfica — CEP 60.020-110 Telefones: (85) 3366-7663/3366-7665/ 3366-7667 — Fax: (85) 3366-7666 Distribuigdo: Fone: (85) 3214-5129 — e-mail: aurelio-femandes@ig.com.br Normalizacao Bibliografica Perpétua Socorro Tavares Guimaraes CRB 3 ~ 801 Projeto Grafico e Capa carlosalberto.adantas@gmail.com Revisao Maria Vilani Mano e Silva Editora filiada & iBav Asioclagto Brasiteira dae Eeitoras Univenstériat Catalogacdo na Fonte R367t Ribeiro, Luis Tavora Furtado Temas Educacionais: Uma Coletanea de Arti- gos. / Luis Tavora Furtado Ribeiro e Marco Auré- lio de Patricio Ribeiro .— Fortaleza: Edicées UFC, 2010. 261p. (Colecao Dialogos Intempestivos, 80) Isbn: 978-85-7282-389-0 | | 1. Educagao 2. Artigos Educacionais |. Ribei- ro, Marco Aurélio de Patricio Il. Titulo. CDD: 370 SOBRE OS AUTORES LUIS TAVORA FURTADO RIBEIRO — Professor da Uni- versidade Federal do Ceara. Licenciado em Cién- cias Sociais, Mestre em Educagao e Doutor em So- ciologia pela UFC. Lecionou no Ensino Basico entre 1982 e 1991 nas areas de Ciéncias Humanas. Foi Co- ordenador do curso de Pedagogia e chefe do depar- tamento de Pratica de Ensino. E diretor em segundo mandato da Faculdade de Educacao da UFC. Estu- dou Metodologias de Ensino no Chile e Tecnologia Educacional em Israel. E escritor das Editoras Vozes e Brasil Tropical. Trabalha com formac¢ao de pro- fessores desde a década de 1990 e representa no Brasil o CICAD da OEA para assuntos relacionados a prevencao ao uso de drogas entre os jovens. E pre- sidente nacional do Férum de Diretores de Centros de Faculdades Publicas de Educagao — FORUMDIR. MARCO AURELIO DE PATRICIO RIBEIRO — Professor e coordenador de Pés-graduacao da Faculdade Sete de Setembro — FA7. Psicdlogo pela UNIFOR, Mestre em Educagao pela Universidade de Sao Marcos — SP. Trabalhou como coordenador geral do Colégio Batista e como gestor pedagdgico do Colégio Santo Inacio; foi diretor dos Colégios GEO Studio, Farias Brito e Master; e Secretario Municipal de Educacao do municipio de Sobral-CE nos anos de 1996 e 1997. Estudou Metodologias de Ensino no Chile e Investi- gacao sobre o fendmeno das drogas em El Salvador. E escritor das Editoras Vozes e Brasil Tropical, com sete livros publicados. Trabalha com formacgao de professores em nivel de graduagao e pos-graduagao lato sensu. £ consultor do CICAD da OFA para as- suntos ligados a projetos educacionais nas areas de Preven¢ao ao uso e abuso de drogas. unidade 1 Curricu|o, projetos pedaGdcicos e formacao de professores A FORMACAO DOCENTE NO BRASIL Luis Tavora Furtado Ribeiro Analisamos aqui, com base em aspectos histo- ricos gerais e abrangentes, questdes que se tornaram relevantes para a formagao de professores em décadas recentes, no Brasil. Tenho interesse em apresentar ain- da como foi se consolidando a profissionalizacao docen- te no pais — a escola deixando de se localizar na casa da professora, a instituicao da carreira, ou a contratacao. de professores por concurso publico, por exemplo —, paralelamente ao crescimento expressivo da presenca do Estado nas inversdes ptiblicas educacionais e, em particular, nas politicas de forma¢ao do educador. No Brasil, desde o século XVI, as primeiras prati- cas docentes e os modelos de ensino sofreram influén- cia da pedagogia do saber tradicional, de carater re- ligioso e normativo, dada a influéncia dos religiosos, principalmente dos jesuitas, nessa area. Havia uma centralizagao na figura do professor como dominador e transmissor de um saber que ele possuia, mas nao necessariamente produzia. As primeiras agéncias for- madoras se fixaram nessa postura, e alguns de seus res- quicios ainda estdo presentes nos dias atuais. Tome-se como exemplo a aula de Geografia do professor Berre- do, personagem do livro A Normalista, da Adolfo Ca- minha (1867-1897), publicado originalmente em 1893. Numa argui¢ao surpresa as alunas da Escola Normal de Fortaleza, na presenga de Zuza, filho do presidente da Provincia, o professor realiza uma sabatina, deixando uma classe aténita, ao perguntar: “— Quantos e quais sao os polos da terra?” (CAMINHA, 1998, p. 73). Machado de Assis nas Memdrias Péstumas de Brds Cubas — publicado pela primeira vez em 1881, apresenta, em tinhas gerais, a escola, a disciplina es- colar coma “pesada palmatéria” — e a figura mediocre e obscura do professor, num texto antoldgico, descrito nessa reveladora cita¢ao: — - 103 Usamos agora os pés e demos um salto por cima da escola, a enfadonha escola, onde, aprendi a ler, escrever, contar, dar cacholetas, apanha-las e ir fazer diabruras, ora nos morros, ora nas praias, onde quer que fosse propicio a ociosos [...] $6 era pesada a palmatéria [...] O palmatéria, terror dos meus dias [...] Com que um velho mestre, ossudo e calvo, me incutiu no cérebro o alfabeto, a prosddia, a sintaxe, e 0 mais que ele sabia [...] Que queres ter, afinal, meu velho mestre? Licdo de cor e compostura na aula; nada mais, nada menos do que quer a vida {...] E fizeste isso durante 23 anos, calado, obscuro, pontual [...] Sem enfadar 0 mundo com tua mediocridade, até que um dia deste 0 grande mergutho nas trevas e ninguém te cho- rou, salvo um preto velho — ninguém, nem eu, que te devo os rudimentos da escrita”. (Assis, 1999, cap. XIll, p. 37) E essa escola que serve para ser esquecida e esse professor a quem se dedicam tao reduzidos gestos de agradecer e de relembrar, parecem haver existido e resistido por séculos de nossa historia, seja nas remo- tas zonas rurais ou nas provincias mais distantes, seja na cosmopolita cidade do Rio de Janeiro. O exercicio da pedagogia se realizava nessa violéncia que, se con- seguia intimidar, nao parecia fazer-se respeitar. Quanto ao professor, sua presenca traria uma contradi¢3o exemplar: ao mesmo tempo que era re- lativamente bem-sucedido em transmitir contetdos — como 0 alfabeto, a sintaxe e a prosédia —, nao parecia conquistar uma maior admiracao ou respeito, talvez por sua pouca expressao e reconhecimento social. Isso poderia ser representado por sua vida reclusa e pobre “numa casinha na rua do piolho” ou pelo seu ridicula- rizado nome reconhecido como “funesto”, motivo de gracejos e brincadeiras dos alunos: o professor Ludge- ro Barata (Id. Ibidem., p. 37) Nao podemos esquecer que aquela avaliacao pejorativa, Machado de Assis a apresenta nas recor- 104 A FORMAGAU UULEN [eNO BRASIL dagées de Bras Cubas, personagem ilustrativo e re- presentativo de nossa decadente aristocracia rural, que vivia de aparéncias, jamais preocupada com algo que se assemelhasse, mesmo que a distancia, a amor pela cultura, pelas artes, pelo conhecimento ou pela ilustragao. Com o surgimento e a divulga¢ao do “saber cien: tifico”, fundado nas ciéncias positivas da natureza e com grande influéncia do discurso pedagdégico psicoldgi- co, 0 saber do educador deixa de ser o centro de gravi- dade das praticas docentes, enquanto 0 ato pedagégico vai centrando-se progressivamente no educando. Este pensamento educacional, concretizando-se no grande movimento da Escola Nova, impulsionou a formacao do educador em Escolas Normais, aproximadamente a par- tir de 1888, e a formacao superior pelas faculdades de filosofia, ciéncias e letras, a partir de 1930. O educador que deveria ter anteriormente uma cultura geral, necessita agora desenvolver uma boa postura relacional, devendo atuar como transmissor de conhecimento (na pedagogia tradicional) ou incentiva- dor da aprendizagem (na pedagogia nova). Nesse caso, sua competéncia técnica era testada pelos conheci- mentos de Biologia e Psicologia e pela capacidade de entender as necessidades do educando. Até meados de 1960, aconteceram na educa¢ao brasileira dois movimentos de extrema importancia: 0 movimento de “Escola Nova”, desde o inicio da década de 1920, e os movimentos de Cultura Popular do inicio da década de 1960, ambos influenciando de maneira decisiva a postura dos educadores. O primeiro, pelos métodos nao diretivos de ensino; o segundo, pela in- fluéncia na conscientizacao politica e na educagao de jovens e adultos. Ambos, por valorizarem menos os contetidos e se interessarem mais pelas rela¢des peda- gdgicas entre professores e alunos.' * Aesse respeito ver Vanilda Paiva, com seu livro Educacdo Popular e Educacao de Adultos, Petrépolis: Vozes, 1983, 105 LUD LAVURA rURIAUY Ki Com a modernizacao das sociedades ocidentais, alastra-se a “ciéncia instrumental”, de inspiracao po- sitivista, com predominio da racionalidade técnica legitimando a organizacao social do trabalho e justi- ficando uma hierarquia entre os que pensam e os que fazem a educa¢ao. Nao foi por acaso que a educagao brasileira tomou os rumos da racionalidade, da efi- ciéncia e da produtividade, a partir do golpe militar de 1964, especialmente influente na década de 1970. Desenvolve-se aqui um modelo que vai privilegiar o sistema organizacional das fabricas e a influéncia cres- cente na escola de uma adaptacao das novas teorias da administragao empresarial. Tal sistema retornara com forca renovada na década de 1990 com a implanta¢ao do neoliberalismo no Brasil. Quase que exclusivamente preocupada com a formacao de mao-de-obra para as fabricas e suas linhas de montagem, a énfase das reformas educacionais — universitaria em 1968, e primaria e secundaria na LDB de 1971, prosseguem baseadas na fragmenta¢ao do co- nhecimento, diluido na preparagao de professores es- pecializados para atividades especificas predefinidas e localizadas. A énfase da-se agora no controle dos pro- cedimentos pedagégicos, desde os modelos e manuais de planejamento até os planos de aula e modelos de avaliagao. O movimento da escola para 0 cotidiano das empresas parecia um caminho inexoravel, materiali- zado num curriculo nacional obrigatério que incluida 0 uso de técnicas educacionais e a formacao para o trabalho através de cursos profissionalizantes. Nos cursos de formacao de professores prospe- rava a preparacao de especialistas em educacao. Vale lembrar que vivemos entre 1967 e a primeira crise do petrdleo, em 1973, um periodo de acelerado cresci- mento econémico no pais, com taxas aproximadas en- tre 10% e 13% ao ano, financiado por endividamento externo, garantindo, contraditoriamente, acumulacao de riquezas, investimentos em infraestrutura, concen- tragao de renda, urbanizacdo desordenada, cercea- 106 —_ —- ATURMAQAU YULEN IE NU Onan mento da participagao politica, exclusao e margina- lizacao social. Surgiram em todo o pais, cursos universitarios rapidos para a formagao de professores, necessarios Aquele modelo de desenvolvimento vivenciado no pais. As licenciaturas curtas tornaram-se uma opgao para a formacao em massa de professores, especialmente agrupadas em grandes areas de Ciéncias e Estudos So- ciais. Todo esse processo formativo se realizaria em aproximadamente dois anos, no maximo, num modelo de aligeiramento e superficialidade sem precedentes em nossa historia. O fracasso, em menos uma década desse sistema, nao justifica o imenso prejuizo que cau- saou a formacao e a profissionalizacao docente. Para se ensinar, portanto, nao seria necessario um maior preparo intelectual, sendo suficiente uma formacao rapida e considerada precaria, preocupada Principalmente com 0 ensino dos métodos e das téc- nicas pedagdgicas, essencialmente com a definicao de metas e objetivos a serem atingidos. Sua consequéncia foi, evidentemente, um profissional intelectualmente malpreparado, com poucas possibilidades de vir a ser um educador que compreendesse e questionasse a realidade, que perguntasse pelo sentido de sua prati- ca, ou que assumisse uma atitude reflexiva diante da educacao e da sociedade. Seria contudo, fundamental para a reprodugao do sistema, um profissional sub- misso aos modelos vigentes de sociedade e de Estado. Esse modelo nao contava com os esfor¢os e combativi- dade dos educadores que jamais se conformaram com o cumprimento de papéis educacionais e de formagao tao restritos. O final do século XX e os dias atuais asseguram 2-emergéncia de novos saberes que fundamentem um trabalho pedagégico sem negar a importante contri- buicao das ciéncias e da utilizagéo das tecnologias da educagao. O discurso pedagdgico questiona a capaci- dade da racionalidade técnico-cientifica em solucionar as milltiplas facetas das situagdes de interacao em que 107 LUI FAVUKA FURLALU Habe se desenrola a atividade docente. A agao pedagdgica fundada no saber do mestre apresenta dimensdes que: ultrapassam a mera racionalidade cientifica, Incorpo rando aspectos fundamentais relacionados a outra dimensées ligadas a linguagem e A Comunicagao (THERRIEN, 1996). Surge assim a possibilidade de um saber plural, critico, comunicativo e interativo, funda mentado na praxis com todos aqueles aspectos combi nados interligando a teoria e a pratica. O docente domina uma diversidade de saberes, nao se limitando a modelos restritos, padronizados ¢ especificos, possibilitando uma a¢ao auténoma, cons. ciente e responsavel em relagao a producao dos sabe res sociais vinculados a todas as dimensoes do conhe cimento e da cultura. Na década seguinte, ja vivendo o periodo de redemocratizacao no pais, de acordo com FERNANDES (1994), a teoria critica, surgida e divulgada no Brasil na década de 1980, procura superar a visao tecnicista ea limitacao das teorias critico-reprodutivistas conce dendo a educacao um enfoque de correlagao reciproca entre educa¢ao e sociedade. Tendo como fundamento tedrico influéncias do materialismo historico-dialéti co, originarias da Escola de Frankfurt, Freitag (1988), abre-se espaco para reflexoes e agdes transformado- ras da escola em estreita ligagao com a transformagao do sistema de producao. Podemos até afirmar que a década de 1980 na educa¢ao brasileira foi marcada pelo surgimento de diferentes técnicas e praticas ex- perimentais, fazendo-nos entender o deslocamento do. eixo do conhecimento restrito e limitado a realidade de uma visao mais abrangente para a incorporagao de concepcées diversas e variadas, relacionadas ainda a valorizagao das experiéncias da vida vinculadas a ana- lise e a critica social. Os debates sobre a formagao do educador na- quela década de transi¢ao trazem, portanto, a marca da resisténcia e oposigao a Ditadura Militar que vigo rou no pais de 1964 a 1985 em suas linhas gerais e, em 108 AFORMAGAO DOCENTE NO BRASIL particular, a sua politica educacional. A busca da id tidade dos profissionais da educacao vai se cancreti zando conjuntamente com as lutas pela dem ¢ao da sociedade, na procura de espacos de expres e participacao do questionamento coletivo daqu modelo que apresentava sinais claros de Esse processo se revitaliza através de conferér entidades nacionais — CBE (Conferéncia Bra: Educacgao), ANPED (Associagao Nacional de Pes em Educagao), CNTE (Conferéncia Nacional pela Formacao dos Profissionais da Educac3o) — nidas muitas vezes a margem e em clara op iniciativas e diretrizes governamentais. A partir de intensos debates e superando diver- géncias e contradi¢des internas, a discussa0 se dav na procura de uma nova identidade docente para uma sociedade democratica numa postura de crit ° modelo vigente na perspectiva de sinalizar e apontar para uma nova dire¢ao. Partindo-se da critica da es- pecializacdo e da fragmentacao do conhecimento e do trabalho do professor na escola, os debates chegam 2 uma defini¢aéo que pode ser resumida e ilustrada nas palavras de Coetho (1987): [...] como fica a questao da id cursos de formacao dos profe mim, ela nao esta do lado das dade dos ores? Pi ge- neralidades pedagégicas, por outro lado, acho que identidade nao esta também do lado das habilitacdes técnicas e especializacées [ realidade da escola é complexa e exige pessoas preparadas para atuar nao apenas no interior das salas de aula, mas em trabalho de coor- denacao psicopedagégica, embora tudo isso passe necessariamente pela pratica docente © professor deve ser formado em todas as areas para assumir seu papel de ed na sala de aula, no recreio, na coordenacao da disciplina, na direcdo da escola e em quatquer outro espaco educativo. 109 LUIS JAVURA FURTADO RIBEIRU Nos cursos de formac¢ao de educadores desen- volve-se uma nova abordagem para o educador que se pretende formar através da visao de um saber critico, comunicativo e de um trabalho interativo em sua pra- tica docente. Nas universidades foi sendo superada a formacao dos especialistas em educagao, substituida por uma formacao mais ampla e complexa que pro- porciona ao profissional de educacao uma pratica mais consciente do seu papel social, coerente com os pa- rametros tedrico criticos, atualizada em sua compe- téncia técnica e compromisso politico na pratica co- tidiana da escola. Além disso, o educador deveria ser “comprometido com a educacao publica de qualidade, voltada para os anseios e necessidades da maioria da populacao. Percebe-se que, aos poucos, o docente esta to- mando consciéncia de que o seu papel nao é de um repassador de um saber produzido por outras pessoas, mas que ele é sujeito de um saber pedagdgico que é construido pelos agentes da educacao e que tem ca- racteristicas diversas e multifacetadas. A experiéncia docente tem tomado um papel de mais destaque e tem sido estudada como elemento renovador da pratica educativa: trata-se da descoberta do papel do saber de experiéncia no conjunto dos outros saberes docentes. Surge agora como concepgao inovadora da for- macao do educador a énfase na docéncia reconhecida como base de sua identidade profissional, superando, apdés um longo e desgastante debate entre os educado- res, entidades e agéncias formadoras, a concep¢ao an- terior centralizada na fragmentacao do conhecimento, na especializacao das tarefas e na separacdo das ati- vidades educativas. Os debates e formulacdes da AN- FOPE sero considerados essenciais para as definicdes tedricas sobre a formacao de professores nesse perio- do. Outra importante contribuigao foi a novidade da reformulagao de que o educador é um profissional da educacao, superando uma visao tradicional sedimenta- da que compreendia o professor apenas numa dimen- 110 a AFORMAGAO DOCENTE NO ExadiL, sao de dedicagao e sacerdécio. Incorporam-se agora as necessidades de uma vinculacao estreita e inseparavel entre as exigéncias de uma formagao consistente, alia da as dimensdes indispensaveis de profissionalizacao, com remunerac¢ao justa, cargos e Carreira. Mesmo com 0 surgimento dessa nova visdo mais critica e propositiva é preciso ficar bem claro que ainda vao coexistir pelo menos dois tipos de saberes predo- minantes: um tecnolégico — talvez seja mais apropria- do chama-lo de tecnocratico — e um critico, sem que se deixe de lado influéncias marcantes da tradi¢ao his- torica, em especial, as de carater tradicional e escola- novista, A década de 1990 encontra-se permeada por uma correla¢ao de forcas e o embate entre a educa¢ao tecnoldgica neoliberal e a educacao critica libertadora e comunicativa. Os cursos de formacao de educado- res e as praticas docentes seguirao marcadas por essas duas principais linhas em confronto. Todo o contexto sera agravado pela implementacao de metodologias de educacao neoescolanovistas, numa utilizagao conser- vadora da teoria construtivista de Jean Piaget. Com o esgotamento histérico do patrao tayloris- ta-fordista de acumula¢ao capitalista com sua énfase nas linhas de montagem e tarefas repetitivas, supera- se também a formacao de trabalhadores e professores especialistas — surgem novas exigéncias para o traba- tho docente e sua importancia na qualificagao de qua- dros para as novas exigéncias sociais. Na reorganizacao atual do processo produtivo e da divisao internacional do trabalho, paises emergentes e subordinados como o Brasil devem se ajustar ou continuar se ajustando. ao atual modelo de acumulacao do capital mantendo, entretanto, o objetivo maior de formar mao-de-obra quatificada em todos os niveis — desde as fungdes exe- cutivas e gerenciais até os cargos técnicos e especiali- zades --, considerados indispensaveis para a reestrutu- ragoes das fabricas e das empresas. Na pos-modernidade, com sua énfase nos aspec- tos de particularizacao, multiplicidade e descentrali- ~ ~ 111 LUIS TAVORA FURTADO RIBEIRO zagao da realidade, surge urn movimento de reforco em direcao a urna logica de consumo dos saberes es- colares, posicionando a escola como um mercado onde se oferece aos consumidores — alunos ¢ pais, jovens ou adultos em processos de reciclagem —, saberes, meios, trabalho e uma adaptagao intensa a esse novo contexto da vida social Tardif (1991). A demanda de conhecimento e saber pelos clientes, como passam a ser denominados os consumidores dos servicos educa- cionais, sao definidos pelo mercado e por suas regras como a defini¢ao de precos pelas leis da concorréncia, do lucro, da oferta e da procura. Nesse contexto, 0 professor teria que assumir outro papel social. Freitas (1992) nos alerta sobre isso: [...] A proposta da tentativa de envolver o pro- fessor, esse novo interesse nao é acidental e faz parte de uma estratégia mais ampla de fazer com que os trabalhadores se articulem mais efetivamente com o trabalho de reconstrucao econémica. Neste proceso, tenta-se passar a ideia de que o professor deve ter autonomia, que a administracao deve ser descentralizada, participativa. Esse proceso democratico deve servira interesses centralizados nao a interesses dos professores, dos alunos, das classes popu- lares. Em suma o que ocorre é um aumento do. controle central combinado com uma aparente autonomia e descentralizagao na execucao local: esse fendmeno se denominou descentra- lizagao centralmente controlada. Nas perspectivas tecnoldgicas, a formagao do educador especialista entra em declinio, pois ele nao pode mais dar conta das necessidades e exigéncias do mercado. Nesse modelo produtivo é preciso formar um educador versatil, possuidor de um saber também eclético e meio superficial, pouco necessitado de uma cultura mais solida e geral, mas que tenha iniciativa, saiba tomar decis6es em tempo real e seja capaz de realizar varias tarefas ao mesmo tempo. Nao é ques- tionada ou exigida competéncia no saber, mas princi 112 AFORMACAO DOCENTE NO BRASIL palmente no fazer. £ 0 predominio de um saber prati- co, embora com mais desenvoltura e criatividade para 0s processos produtivos descentralizados. Em sintese, percebe-se que no movimento atu- al das forgas sociais, desde os anos 1980, alguns mo- delos predominantes apareceram para formacao do educador: + um mais tradicional, explicitamente sedimen- tado e influenciado pelos moldes da ciéncia instrumental, preocupado com a transmissao de contetdos, e que atende a divisao social do trabalho do capitalismo, em sua fase anterior, ou seja, ao modelo taylorista e fordista das relacdes de producao e de trabalho; + 0 segundo é a formacao dos especialistas em educa¢ao, ja tao criticada e defasada em sua pratica e formacao pouco, ou quase nada, com a docéncia; * © outro caminho aparece com roupagem de renovacao e de melhoria de qualidade: é a formagao de educadores ecléticos, com cono ta¢ao polivalente e que atende as exigéncias neoliberais do modelo empresarial aplicado a educacao e a escola. Sua énfase era a compe- tigéo, a redugao de pessoal, os treinamentos e a produtividade; * o quarto modelo, no qual se inclui a formacéo. do educador generalista, teve por base o en- tendimento de que os movimentos na sociedade s&0 parametros maiores para a reflexao social e educacional. Essa forma¢ao exige fundamen- tacao tedrica e cultural consistentes para uma leitura da realidade, tendo como base a praxis do educador, na qual ele relaciona a teoria ea pratica. Existe uma énfase numa educa¢ao que valorize 0 ensino dos contetidos, sem perder de vista os condicionamentos e as perspectivas historicas dos contextos sociais. 113 LUIS TAVORA FUKIAD KineIKU + um quinto modelo 0 que enfatiza principal- mente o magistério. Bastante preocupado com 0 baixo rendimento e a precaria aprendizagem dos alunos, ele prioriza uma formagao baseada especialmente nas metodologias e nas técnicas de ensino. Diga-se que esses modelos e esses perfis de edu- cador nao se encontram em estado puro e isolados em nossas salas de aula e escolas. Vejamos os exemplos de escola e educa¢gao do melhor de nossa literatura. Num livro concluido, segundo o autor, em “marco de 1888”, Raul Pompéia descreve um colégio interno, O Ateneu, aparentemente caracterizado por utilizar uma peda- gogia autoritaria e tradicional. Relatando o incéndio criminoso que destruiu o colégio, Pompéia apresen- ta uma relacdo de materiais pedagégicos calcinados e destruidos que fariam inveja a qualquer instituicao atual de metodologia progressista nao diretiva: O Ateneu devastado! La estava; em roda amontoavam-se figuras torradas de Geometria, aparethos de cosmografia partidos, enormes cartas-murais em tiras [...] visceras dispersas das ligdes da anatomia, gravuras quebradas da historia patria, ilustracdes zoolégicas, preceitos morais pelo ladritho como ensinamentos per- didos, esferas terrestres contundidas, esferas celestes rachadas ... lascas de continentes cal- cinados, planetas exorbitados de uma anatomia morta, sis de ouro destronados e incinerados. (RAUL POMPEIA, 2000, p. 173 e 174) Ressalte-se ainda que nos textos de Monteiro Lo- bato para criangas estao presentes nas conversas de Dona Benta com Pedrinho, Emilia e Narizinho os feitos e personagens de tempos distantes da historia mun- dial. Dentre eles, César e Cleopatra, os ingleses Ricar- do € 0 Rei Joao, Marco Pélo, os Mongdis ou Tartaros e Gengis-ca, Joana D'arc e as matancas da Guerra dos Cem Anos, Gutenberg, Cristévao Colombo e Américo 114 AFORMAGAO DOCENTE NO BRASIL Vespticio, Miguel Angelo, Camées e Da Vinci, Pedro, 0 Grande, Bolivar, Maria Antonieta a Rainha Vitoria e muitos outros (MONTEIRO LOBATO, p. 67 a 169). E dificil classificar esse modo belo e didatico de explicar cheio de encanto, inspiragao e beleza. E que nao se pode simplesmente apresentar como uma litera- tura educativa, meramente informativa e tradicional Do mesmo modo, nao se deve classificar em esquemas pré-definidos a atuacao e as praticas cotidianas com- plexas de nossos professore e de nossas escolas. Questées Atuais sobre a Formacao de Professores O movimento docente brasileiro tem discutido atualmente, sob a lideranca da ANFOPE, principios para a formacao do educador que garantam uma pra- tica comum racional, respeitando a diversidade dos cursos, das instituigdes e das ricas diferencas regio- nais e culturais das regides brasileiras. Definindo como profissional de educacao aquele que conduz o traba- tho pedagdgico, que tem a docéncia como base de sua identidade profissional, e que foi formado para tal, a ANFOPE, representando um setor do pensamento dos educadores, tracou os grandes eixos norteadores de sua formacao — 0 que chamou de base comum nacio- nal — que poderao ser resumidos conforme Ribeiro (1995) em alguns aspectos como: + énfase na formacao para a docéncia: formar o professor que compreenda a realidade socio- educativa em nivel global e que possa intervir na educacao de forma criativa e critica em sua pratica cotidiana; + formacao tedrica de qualidade: trata-se de enfatizar a capacidade de analise do educador a partir de uma perspectiva filosofica, sociolé- gica, psicotégica e historiografica adequadas. Nao se trata aqui de acentuar a teoria em detrimento da pratica, mas de subsidiar teori- camente a pratica educativa; - ~ 415 LUIS TAVORA FURTADO RIBEIRO + relacao teoria e pratica: procura-se trabalhar conjuntamente a pratica social com a reflexao tedrica. Busca-se essa relagao no conjunto da formagao em todas as disciplinas do curso e em especial nas cadeiras de pesquisa. Incentiva- se assim a inovacao curricular ao passo que o ensino deixa de tornar-se verbalista e livresco, enfatizando-se a curiosidade e a descoberta numa postura cientifica; + conhecimento interdisciplinar: aqui parte-se da necessidade da interrelagao entre as disci- plinas, contetidos e métodos, o que possibilita uma viséo de conjunto da realidade, numa perspectiva de totalizacao do conhecimento; « democratizagao da sociedade e da escola: nasce da necessidade socio-historica da par- ticipagao social na constru¢ao de novas rela- ¢Ges de poder. Baseadas na solidariedade, no companheirismo, no debate e no confronto de ideias e praticas, contra a tradi¢ao vigente de centralismo e autoritarismo na tomada de decisées. + avaliacao a partir do discurso e das praticas co- tidianas: surge da necessidade de se confrontar apratica do dia-a-dia com 0 referencial tedrico que se definiu, procurando as fragilidades e sua superagao. Necessita da criagao de mecanismos. de avalia¢ao interna tanto da pratica docente quanto discente ou das institui¢des escolares. No topo das discussdes sobre estes principios, nesse periodo, duas ideias tem tomado corpo entre os educadores e suas entidades como propostas para um maior aprofundamento e debate: — a criagao de uma escola Unica de formacao de educadores como estratégia para viabilizar as existéncia da base comum nacional; — e uma énfase na formac¢ao continuada que deve constituir-se num processo de responsabilidade do individuo, do Estado e da sociedade. Esta conti- 116 A FORMAGAO DOLENTE NO BRASIL nuidade do processo de formacao de professores deve ser assumida pelos dois sistemas de ensino — publico e privado ~ e pelos entes federados — governo federal, estados, municipios e o Distrito Federal —, asseguran- do, através de recursos descentralizados, as estruturas necessarias para sua viabilidade, vinculando necessa- riamente essa formacao aos planos de carreira. A base comum nacional, segue uma diretriz que permeia os curriculos de formacao do educador, trazendo em sua defini¢ao uma concepcao critica e reflexiva de formagao do educador em direcao a sua efetiva profissionalizacao. Ela requer ainda, para sua materializacao, a construcao de uma politica no ambi- to institucional vinculada organicamente aos sistemas publicos de ensino, bem como a definicéo de uma po- litica e de um possivel sistema nacional de formacao dos profissionais de educa¢ao. Perpassa aos movimentos sociais e entidades so- bre a formacao dos educadores brasileiros o entendi- mento de que o processo de constru¢ao dessa politica e desse sistema se desenvolve ao mesmo tempo em que Promove a reorganizacao e reestrutura¢ao das institui- des formadoras, nao esquecendo de aproveitar sua rica trajetoria no campo da forma¢ao docente. Nesse caso, o que realmente importa é que, através de seu passado e da inovacao de suas praticas em torno de um projeto comum, possamos afirmar a eficiéncia da realizagao de nossas melhores utopias na construcao de um novo saber e da geracao criativa de uma nova sociedade. Ressalte- se a falta de unanimidade dessa ideia de sistema, muitas vezes substituida por modelos mais amplos e mais aber- tos. O que se deseja garantir é a melhoria e a novidade, sem que se percam as indispensaveis ligdes da historia. O que se pretende, enfim, € a formagao de um educador que integre trés grandes necessidades da atua¢ao de seus professores: + primeiramente, que ele possua uma sdlida e consistente formacao tedrica e uma cultura geral abrangente. E que seja capaz de elevar 117 © processo educativo de nossos estudantes ao mais alto nivel do pensamento e do saber produzidos pela humanidade; um segundo aspecto essencial é que o professor seja um bom conhecedor e estudioso de sua area de ensino, seja ela vinculada as ciéncias exatas, naturais, sociais, artisticas e esporti vas, ou a quaisquer outras que houver; uma terceira questao de sua forma¢ao pedago- gica é que o educador tenha bom dominio da didatica e das metodologias e técnicas de en- sino, para que possa realizar de forma efetiva a socializacao e democratizacao dos contetidos educativos e da cultura. Inovacao e criatividade permanentes, ao lado do conhecimento e dos saberes acumulados pelo melhor da tradi¢ao cultural de nossa forma¢ao de educadores vao somando-se ao talento e ao compromisso daquelas novas gera¢oes que abracam a profissao docente. Tudo somado a histéria de formagao e trabalho de nossos professores vale como homenagem a todos os educa- dores brasileiros, representados pelo imortal persona- gem de Machado de Assis, 0 professor de Bras Cubas € de tantos outros: o inesquecivel educador, anterior- mente mencionado, Ludgero Barata. Referéncias Bibliograficas ANFOPE, Documento Final do VI Encontro Nacional. Campinas—SP: UNICAMP, 1996. ASSIS, Machado de. Memérias pdstumas de Brds Cubas. Sao Paulo—SP: Martim Claret, 1999. COELHO, Ildeu. Curso de pedagogia: a busca da identi- dade. In: Formacdo do educador: a busca da identida- de do curso de pedagogia, Série Encontros e Debates; 2. Brasilia: INEP, 1987. FERNANDES, Maria Estrela Aradjo. Qual o papel da formacao profissional na pratica docente? Fortaleza: UFC, 1994. (Mimeo) 118 — a AFORMAGAO DOCENTE NO BRASIL FREITAG, Barbara. A teoria critica ontem e hoje. Sao Paulo—SP: Brasiliense, 1988. FREITAS, Luiz Carlos de. Neo-tecnicismo e formacao do educador. In: Formacdo de professores: pensar e fazer. Sao Paulo: Cortez, 1995. LOBATO, Monteiro. Historias do mundo para criancas. Sao Paulo: Brasiliense, 2004. POMPEIA, Raul. O Ateneu. Sao Paulo: Martim Claret, 2000. PAIVA, Vanilda. Educacdo popular e educagao de adul- tos. Petropolis: Vozes, 1983. RIBEIRO, Luis Tavora Furtado. Curriculo: forma¢ao do educador e trabalho docente. Fortaleza—CE, UFC, 1995. TARDIF, M., LESSARD, C. & LAHAYE, L. Os professores face ao saber: esbogo de uma problematica do saber docente. In: . Teorias da educagao, n. 4, Que- bec, 1991. THERRIEN, Jacques. Trabalho e saber: a interacao no contexto da pés-modernidade. In: MARKET, Werner (Org.). Trabalho, qualificagdo e politecnia. Campinas: Papirus, 1996. QUESTOES ATUAIS SOBRE A REFORMA CURRICULAR Luis Tavora Furtado Ribeiro Existem pelo menos dois grandes niveis ou ins- tancias que podem definir o curriculo. A primeira de- las, mais ampla e permanente, é 0 Estado. A segunda, mais especifica e transitoria, o Governo. Cabe ao Esta- do definir, se possivel para um longo periodo, aspectos de organizacao, legislagao geral e administracao das praticas escolares, ao passo que os governos seriam responsaveis pela manutenc¢ao do sistema, pela avalia- cao e a¢ao no ambito educacional. Em outras palavras, caberia ao Estado estabele- cer as linhas gerais da organizacao da educacao e da escola, e aos diferentes governos implementar poli- ticas para que a educacao atingisse certos objetivos. Nesse sentido, o locus privilegiado da materializacao do curriculo seria a escola, e seus atores principais seriam os professores e alunos. De maneira ampla, 0 grande objetivo da educa¢ao e do curriculo seria en- tao o de promover a formacao de atores produtivos e auténomos. (POPKEWITZ, 1998, p. 97) Assim o curriculo parte de uma pergunta fun- damental: — que conhecimento deve ser ensinado? Uma segunda questao que se apresenta é: — O que as criancas devem ser? Como se vé, a escola encontra seu objetivo fundamental, que é selecionar e transmitir as novas gera¢des os conhecimentos produzidos pela hu- manidade. Aliado a isto, torna-se essencial ter clareza de qual educagao é necessaria & formacao de criancas, jovens e adultos, para que possam enfrentar os desa- fios do mundo em que vivem. Partindo-se dai, algumas perguntas poderiam ser formuladas, em linhas gerais, para a organizacao do curriculo: + O que ensinar? Refere-se aos conhecimentos selecionados e aos contetidos educacionais 132 QUESTUES AIUAID SUbNE A REFURA LunniCULan considerados necessarios, apropriados e re- levantes; + Como ensinar? Diz respeito as teorias, as me- todologias e as técnicas de ensino; + Aquem ensinar? Diz respeito aos aspectos psi- coldgicos e sociais que envolvem os estudantes e a educacao como um todo; + Onde ensinar? Sobre as condi¢ées historicas e politicas da educa¢ao; + E como avaliar? Referindo-se a observacao dos resultados, nao apenas dos alunos, mas de todo esse processo social e educativo. Nesse caso, tem-se o curriculo como uma sele- Gao que pressupde disputa, hegemonia e complexas relacdes de interesse e poder. & aqui que se da a rela- ¢ao completa entre a Educac¢ao e a Pedagogia, como ponto de encontro entre as dimensées social, pol ca e a cultura, vinculadas as experiéncias cotidianas dos atores individuais. Como vemos, esse universo é& perpassado por interesses e conflitos diversos que sao atingidos ainda por dimensdes locais, nacionais e até mundiais. Configura-se como campo de disputa mais ou menos evidentes entre diferentes grupos, por isso, ne- nhuma proposta curricular é neutra ou desinteressada. Por exemplo, na década de 1930, no Brasil, a grande disputa na arena educacional brasileira era entre ato- res da Escola Nova — Anisio Teixeira, Fernando de Aze- vedo, Lourengo Filho, Filgueiras Lima — que defendem © ensino pitblico e laico, com uma metodologia mais centrada no aluno, em oposi¢ao a Igreja Catélica que apoiava o ensino confessional e uma metodologia mais tradicional, centrada na transmissao de conhecimen- tos e na lideranca do professor. Ambas com modelos bem definidos de atuacao e de postura dos educado- res. Tudo isso em meio ao primeiro governo de Getislio Vargas (1930 — 1945) que impunha, sem maior partici- pacao da sociedade, a Lei Educacional de 1936. 133 LUIS TAVORA FURTADO RIBEIRO Por todas essas reflexées, 0 curriculo e a refor- ma curricular sao historicos e trazem em si todas as marcas dos interesses econdmicos, sociais, politicos e da cultura. Feitas essas configuragoes inicias para situar a reforma Curricular, afirmamos que existem diversas tendéncias nas concepgdes de curriculo. A primeira & baseada nos trabalhos dos norte americanos Bobbit, com o livro The Curriculum, de 1918, e de Ralph Tyler que, com algumas adapta¢ées ainda exercem influén- cia nos dias atuais. Em linhas gerais eles propunham que a escola se adaptasse e funcionasse nos moldes de uma empresa, baseando-se em critérios como organi- za¢ao, administra¢ao, objetivos, metas e eficiéncia. Essa concepc¢ao se acentua afirmando que a formacao das novas geracdes na escola tem 0 objetivo de prepa- ra-las para a inser¢ao no mundo do trabalho. A esco- la, nesse caso, serviria para atender aos interesses do que hoje denominamos de mercado. Em sintese uma educa¢ao que parte da empresa e que a ela retorna, © mundo empresarial compreendido como 0 inicio pri- mordial e 0 fim ultimo da educa¢ao. Uma segunda concep¢ao de curriculo parte de uma dimensao mais politica e menos econémica. Ela pode englobar de maneira ampla e nao homogénea, tedricos tao importantes e diferentes como o norte- americano John Dewey (1859-1952), ou o pesquisador suico Jean Piaget (1896-1980). Para Dewey a finalida- de da educa¢ao seria uma preparagao dos individuos para a vida democratica formando, para isso, criangas auténomas e participativas, aptas a tomar decisdes ea efetuar escolhas ante diferentes opcées e possibilida- des. Piaget, por sua vez, apresenta o caminho de cada crianca desde a heteronomia, compreendida como pensamento dependente, até chegara a autonomia em que ela é capaz de pensar por si propria e tomar suas proprias decisdes. Essas concepgées defendem ainda a participa- Gao de professores nao diretivos que tivessem em sua - 134 QUESTOES ATUAIS SOBRE A REFORMA CURRICULAR formagao uma maior énfase nas psicologias da edu- cacao. Uma novidade atual no Brasil € a adocao do construtivismo na pedagogia escolar, em especial na alfabetizagao e na educacao de criancas para torna- las mais auténomas e participativas. Aqui o sistema educacional teria como objetivo atender a formagao de um futuro trabalhador mais preparado para uma atua¢ao mais criativa, participativa e flexivel, dimen- sdes consideradas indispensaveis para a insercéo no mercado de trabalho e para atender as necessidades da grande empresa e do Estado. Uma terceira tendéncia poderia ser denomi- nada de critica. Ela se baseia em grandes linhas nas ideias de Karl Marx sobre o capital, a histéria, classes sociais e luta politica, e no italiano Antonio Gramsci, especialmente em seu livro Os intelectuais e a orga- nizagdao da cultura. Ambos muito influentes no Brasil, especialmente na década de 1980. Em aspectos gerais ela enfatiza a problematica da explora¢ao capitalista do trabalhador e considera a escola como campo de disputa entre a ideologia e a necessidade de formac¢éo de mao-de-obra qualificada, em oposicao a possibili- dade de conscientizagéo, resisténcia e emancipagao da classe trabalhadora. Essa concep¢ao propde a formacao de um pro- fessor competente e eficiente em sua atuacado peda- gdgica, mas que seja capaz de realizar uma oposi¢ao critica ao sistema social capitalista e a seu processo opressivo de acumulacao privada de riquezas. Em li- nhas gerais, esses teoricos e outros que os seguiram, no apresentam uma teoria curricular organizada, centralizando e dirigindo seus esforgos numa critica ao curriculo vigente e na procura por espacos de critica € luta politica consciente contra o capital. Uma quarta visdo, autodenominada pos-critica, acredita que na sociedade atual o curriculo se mate. rializa construindo subjetividades através de uma rela- Gao saber—poder. Baseada na Nova Sociologia da Edu: cacao-NSE, inglesa, ela defende que uma sociedade LUIS TAVORA FURTADO RIBEIRO dominada por simbolos variados e imagens multiplas e diferenciadas também produz subjetividades miltiplas e diferenciadas. Assim, a NSE critica os curriculos vi- gentes por construirem identidades falsas e acabadas, consideradas como um objeto estatico num contexto de mudanga. Como alternativa ela propde uma educacao e uma escola aberta as diferentes etnias e ao mul- ticulturalismo, atendendo assim a pluralidade étnica, sexual e cultural do mundo atual pds-moderno. A res- peito da convivéncia dos individuos em sociedade, ela acredita que em meio a tamanha diversidade e a um insuperavel multiculturalismo, a nica possibilidade de nos relacionarmos uns com os outros seria o res- peito as diferengas. Realizando ainda forte critica ao construtivismo piagetiano e as politicas neoliberais, essa concep¢ao teve grande influéncia na concep¢ao dos Parametros Curriculares Nacionais, PCNs, no final dos anos noventa, principalmente no que se refere aos temas transversais como pluralidade cultural, étnica e sexualidade. Dessas quatro grandes concepc¢ées de educa¢ao e de curriculo expostas resumidamente acima, podemos afirmar que umas delas parece tornar-se hegeménica, embora nao homogénea, nas reformas curriculares € na forma¢ao do educador de hoje. Trata-se da que se convencionou chamar de modelo neoliberal e que, na década de noventa, propée uma escola e uma forma- 40 de professores prontos a servir aos interesses da grande empresa e do mercado, compreendendo a es- cola como instituigao educacional que deve asseme- thar-se e seguir o modelo organizacional empresarial, ancorado nas mais atuais teorias da administracao de empresas. A seguir, procurarei sintetiza-la em algumas de suas caracteristicas fundamentais, dentre outras: + a primeira delas é a énfase na formacao de criangas mais auténomas e criativas, aptas ao trabalho em equipe, prioridades consideradas 136 QUES TOES AIUAIS SUBKE A REFURA CURRICULAR, fundamentais exigidas pela empresa atual, mas limitadas a resolver problemas operacionais; outra caracteristica 6 a adocao de uma poli- tica educacional que combine centralizacao e descentralizagao onde um governo central forte necessita de colaboradores ageis nas extremidades do sistema: seja nos governos € nas burocracias locais, seja nas escolas; naquela estrutura, que eu denominaria de descentralizagao centralmente controlada, ganham espaco os técnicos e funcionarios de um ministério da educagao forte e propositivo, combinados ou pelo menos bem articulados a atores locais fundamentais como técnicos dos estados e municipios e diretores/gestores de escola. E que deveriam aderir com entusiasmo ao projeto mencionado; o controle central do processo se exerce atra- vés de mecanismos periddicos de avaliagao nacional ou internacional de todos os niveis do sistema, baseada no modelo empresarial do controle do produto — estudantes, escolas, universidades — e pela analise quantitativa e estatistica dos processos educacionais; uma outra dimensao desse controle é a pre- senga do financiamento e monitoramento exercido pelo Banco Mundial que chega a ser considerado hoje como ministério da educacao mundial, uma espécie de governo global com mecanismos flexiveis de influéncia ou controle dos processos educacionais locais; aparecem também a presenca de funda¢Ges internacionais investindo com peso em diferen- tes areas educacionais dos paises. Um exemplo classico 6 a atuacao da fundacao Soros do Mega Investidor George Soros, principalmente na Russia e no leste europeu, especialmente na producao de livros didaticos e na organizagao de work shops para preparar os escritores 137

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