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IDADE MODERNA A revalorizagao do ser humano e da natureza Iniciemos nosso percurso neste capitulo consi- derando alguns aspectos sociais, politicos, econd- micos e culturais relevantes desse perfodo histori- co que se convencionou chamar de Idade Moder- na (que vai de meados do século XV a0 século XVIID. Eles nos ajudardo a compreender as mu- dangas na producao filosofica dessa fase (a qual sera abordada neste capitulo e no seguinte). A par- tir do século XV, uma série de acontecimentos de- flagrou diversos processos que levaram a grandes transformacdes nas sociedades europeias. Entre eles, podemos destacar: = a passagem do feudalismo para o capitalismo, que se vinculou ao florescimento do comércio, ao estabelecimento das grandes rotas comerciais, ao predominio do capital comercial ea emergen- cia da burguesia; = a formacio dos Estados nacionais, que fez sur- gir novas concepgdes politico-economicas, como a discussto sobre as formas do poder politico (ocorreu entao a centralizagao do poder através da monarquia absoluta) e a questo comercial (desenvolveu-se nesse periodo o mercantilismo 0 fortalecimento econémico de alguns Estados, levando ao impulso das grandes navegacdes ma- ritimas, a descoberta do Novo Mundo e ao esta- belecimento das colonias); & o movimento da Reforma, que provocou a que- bra da unidade religiosa eutopeia e rompeu com a concepeao passiva do ser humano, entregue uunicamente aos designios divinos, reconhecendo o trabatho humano como fonte da graca divina e origem legitima da riqueza e da felicidade, Tam- bem concebeu a razio humana como extensio do poder divino, o que colocava 0 individuo em condigdes de pensar livremente e responsabili- zar-se por seus atos de forma mais autdnoma; 0 desenvolvimento da ciencia natural, que criou novos métodos cientificos de investigacao, impulsionados pela confanga na razio humana € pelo questionamento de sua submiss4o aos dogmas do cristianismo. A Igreja Catélica, por sua vez, perdia nesse momento parte de seu po- der de influencia sobre os Estados e de domina- «ao sobre o pensamento; 219| Capitulo 13 Filosofia moderna: nova ciéncae racionalismno & ainvencao da imprensa, que possibilitou a im- pressio dos textos classicos gregos ¢ romanos, contribuindo para a formagdo do humanismo (movimento que estudaremos adiante). A divul- gacio de obras cientificas,filosoficas e artistas, que se tornaram a partir de entao acessveis a um niimero maior de pessoas, propiciou maior grau de conscigncia ¢ liberdade de expressio. Todos esses acontecimentos modificaram, em ‘muitas regides, 0 modo de ser, viver e perceber a realidade de grande mimero de europeus. Nas artes, nas cigncias na filosofia surgiram novas ideias, concepcées ¢ valores, ‘Um exemplo importante dessas mudancas foi desabrochar de uma tendéncia social antropocén- trica (que tem o ser humano como centro), de valo- rizagio da obra e compreenséo humanas, em lugar da supervalorizacao da fé crista e da visto teocentri- ‘ca (que tem Deus como centro) da realidade. Isso levou ao desenvolvimento do racionalismo «de uma filosofia laica (nao religiosa) que se mos- trardo, de modo geral, otimistas em relacao a capa- cidade da razto de intervir no mundo, organizar a sociedade e aperfeigoar a vida humana. ‘Cena de uma fra nos Pafses Balxos (c. 1570-1603). 0 renascimento urbano e a expansio da alividade comercial dda burguesia na Europa favoreceram a surgimento do capitalismo. ‘Observaclo: Para fs de etude, tems adotado nesta obra & periodzao hstriatadicoral que tem ahistra europe coma principal relerénci, Reconhecomos no entant, que ese dso ronolgica presenta problemas em acomodar toda a produ do aque geamente se costuma desigarflosofia modema.Alguns pensadores do perodo medieval, por exemple, pode‘am pera mete estar inldos neste cept |220 Unidade 3 A filsofia na historia Renascimento © movimento cultural que contribuiu para essas transformag6es € conhecido como Renascimento (sé- culos XV-XV1). Tendo por bergo a peninsula Itlica, criaria as bases conceituais e de valores que permiti- riam o impulso da razdo e da ciéncia no século XVIL Inspirado no humanismo — movimento de intelec- tuais que defendiam o estudo da cultura greco-romana € 0 retomo a seus ideais de exaltagao do ser humano € de seus atributos, como a razao ea liberdade -, 0 Re- nascimento propiciou 0 desenvolvimento de uma ‘mentalidade racionalista, Revelando maior disposi- ‘clo para investigar os problemas do mundo, o indivi- duo modemo agucou seu espirito de observacao sobre ‘a natureza, dedicou mais tempo a pesquisa e as experi- mentagoes, abriu a mente ao livre exame do mundo. Esse conjunto de atitudes contrapunha-se, em gran- de medida, a mentaidade medieval tipica,influenciada pelo pensamento contemplative e mais submissa as chamadas verdades inquestionaveis da fé. O pensador ‘moclemo buscaria no somente conhecer 2 realidade, descobriras leis que regem os fendmenas naturais, mas, também exercer controle sobre ela, O objetivo era pre- ver para prover, como se diria mais tarde. Isso ndo significou, porém, um completo aban- dono das questdes cristas medievais, o que se torna claro se observamos o fundo religioso que persiste nas obras intelectuais e artisticas desse periodo. O que ocorreu fot uma renovacto no tratamento des- sas questdes, a partir de uma nova perspectiva hu- ‘mana, de uma “humanizaao” do divino, Ameagas 4 nova mentalidade A transigao para a mentalidade cientifica modema nao foi um processo stbito e sem resistencias. Forgas ligadas ao passado medieval lutaram duramente con- tra as transformacées que se desenvolviam, punindo, por exemplo, muitos pensadores da época e organi- zando listas de livros proibidos (0 Index) Foi nesse contexto que varios pioneiros da cien- cia moderna sofreram perseguicdo da Inquisicao, tribunal insttufdo pela Igreja Catélica com o fim de descobrir e julgar os responsaveis pela propagacio de heresias, isto é, concepgdes contritias aos dog- ‘mas dos catélicos Inquisigao Giada er 1232 pelo papa Gregbro Dk. Sua agao estendu-se por vtiosrenos cits, como li, Fanca, Alema- re, Portugal especialmente Esparha. Com o decorte do tempo, Feduiu suas atividades, que somente foram reatvadas em meados o seul XV, ante do avanco da protestatisma, Exemplo marcante dessas perseguigdes € 0 julga- mento do pensador italiano Giordano Bruno (1548-1600), condenado a more na fogueira por contestar 0 pensamento catélico, que se apoiava na ideia de que o planeta Terra era o centro imével do universo. Essa nogdo geocéntrica estava fundamen- tada na astronomia do grego Prolomeu, na fisica de Aristoteles e em certas interpretagées da Biblia Contra essa concepeao, Giordano Bruno defen- dew a teoria heliocentrica, formulada por Nicolau Copémico (ver texto sobre ele em seguida), e afir- ‘mou que 0 universo ¢ um todo infinito, cujo centro nndo esta em parte alguma. As perseguicdes que so- freu por isso sto denunciadas nestas palavras: Por ser eu delineador do campo da nature- 22, por estar preocupado com o alimento da alma, interessado pela cultura do espi- Tito e dedicado & atividade do intelecto, eis que os visados me ameagam, os observados me assaltam, 05 atingidos me mordem, os ddesmascarados me devoram. (Bruno, Sobre o infinito, 0 universo e os mundos, p. 3). Estétua de Giordano Bruno em Berlim, do artista Alexander Palzin. 0 flésofo€ representada de pernas para 0 ar, com 05 ‘dedos das mos e dos ps imitando chamas, provavelmente uma alusio a suas ideias sobre o mundo, revoluciondras para a 6poca, © a0 fato de ter morido na fogueira, rmaderna: nova ciéniaeraconalismo 221] Nicolau Copérnico sacerdate e astrénomo polonés Nicolau Copérnico (1473-1543) escreveu o livro Da revoluedo das esferas celestes, em que combatia a teoria geacéntrica (a Terra vista como centro do universo) e propunha @ teoria heliocéntrica, deronstrando que a Terra girava em tomo do Sol e que este era 0 centro do nosso sistema planetério. ( revolucionério livro de Copémnico foi publicado no ano de sua morte (1543) e escapou. de inicio, & condena¢ao catdlica, que vila com a reativacao da Inquisicéo, ap6s 0 Coneitio de Trento (1545-1563). fF A formulacio de Copérnico de que € 0 Sol, € nao a Terra, 0 centro do universo atingia a concepcao ‘medieval crista de que o ser humano € o ser supre- ‘mo da criagio e que, por isso, seu habitat, a Terra, deveria ter 0 privilégio de ser o centro em relacdo 0s outros astros. Compreende-se assim o mal-estar causado pela tese copernicana. ‘Outro aspecto que incomodou as autoridades catélicas foi que a natureza e 0 universo passaram a ser concebiclos a partir de um novo paradigma, ba- seado tanto na observacio direta como na repre- sentagio matematica. Essa mudanca de atitude € seus resultados foram entendidos como uma amea- a aos dogmas da Igreja, e poderiam afastar as pes- soas da {6 crista i i Retrato de Montaigne Escola Francesa. Em sua obra Ensaos, Montaigne pretendeu escrever sobre si mesmo, suas experiéncias e reflexSes. Mas acabou criando tuma obra que alguns consideram universal, pots falaria do ser hhumano de ontem, de hoje e de sempre. t Etica, educagao e politica Alem do desenvolvimento do pensamento cien- ttfico, com implicagbes evidentes no campo filos6f- co, outras questées importantes dese periodo dizem respeito a esséncia humana, a moral ¢ a poli- tica. Nesse ambito destacam-se, por exemplo, 0 frances Michel de Montaigne (1523-1592) e o ita- liano Nicolau Maquiavel (1469-1527) Montaigne desenvolveu um pensamento de fundo ceticista, inspirado em parte no ceticismo da Antiguidade, mas também no epicurismo € no e5- toicismo. Ele afirmava nio ser possivel estabelecer ‘os mesmos preceitos para todos os seres humanos, sendo necessério que cada um construa um conhe- cimento e uma consciencia moral de acordo com as suas possibilidades e disposigdes individuais, mas tendo como regra geral, para alcancar a sabedoria, ‘o dizer sim a vida” Na educagéo, por exemplo, recomendava que todos os contetidos fossem submetidos a reflextio do aluno. Nada deveria ser imposto ao estudante por simples autoridade da tradigdo. Todas as diversas doutrinas deveriam serlhe apresentadas, cabendo a cada um a decisao de qual éa melhor. E quando nao pudesse decidir entre elas, que ficasse na diivida, “pois s0 os loucos tem certeza absoluta em sua opi- niigo” (Moratane, Ensaios, p. 78). Maqutiavel (que sera estudado no capitulo 18) iniciou uma nova fase do pensamento politico a0 abandonar 0 enfoque ético ¢ religioso e procurat ‘uma abordagem mais realista da politica. Ou seja, buscou descrever o fendmeno politico em si mes- ‘mo, de modo autonomo. O centro de suas reflexdes € o exercicio do poder politico pelo Estado, Em seu livro mais célebre, O principe, 0 filbsofo desenvolve um realismo politico em que busca identificar as causas do sucesso do fracasso na ma- nutencao do poder pelo governante. Nessa anzlise, 1222 Unidade 3 A flosofiana historia desvincula totalmente as raz0es politicas das ra z0es morais. De forma geral, as consideracbes acerca do poder politico em Maquiavel estao ligadas a uma visio pessimista do ser humano, Para ele: A propenséo para o bem, para a constru- 0 da boa sociedade, no esté inscrita na natureza humana, Esta, ao contrério, € ma, fazendo-se necessaria a existéncia do Esta- do para colbir os maus instintos do homem. Isto, para Maquiavel, deve ser levado em conta por todo aguele que esté no exercicio do poder. (Gomes, Etica, politica e poder em Macuiavel, revista Sintese, v.20, n. 60, p. 80). Assim, o recurso a forga para conter a maldade Jhumana faz parte da logica do poder politico. (Estu- daremos com mais detalhe o pensamento politico de Maquiavel no capitulo 18.) 1, Em contraste com os valores dominantes na Idade Média, destaque alguns dos valores, ati- tudes e/ou caracteristicas da mentalidade da Idade Moderna 2. No Renascimento revalorizaram-se © ser hu- mano e a natureza. Como se expressou essa revalorizago no campo do pensamento? Identifique exempios no texto do capitulo. 5. Identifique os valores da Idade Moderna con- tidos nos pensamentos de Montaigne e Ma~ quiavel, Gomente, 1. Perda do ponto fixo Pascal escreveu que “0 siléncio eterno dos es- ‘pcos infinitos apavora’, em referéncia clara a0 mal-estar criado pelas descobertas cientii- cas de seu tempo. Compare essa frase com os versos abaixo, do poema “Demogorgon”, es- crito pelo poeta portugues Fernando Pessoa (1888-1935). O que eles tem em comum? Reana-se com colegas e debata o tema (1 Nao, nao, isso nao! ‘Tudo menos saber 0 que é o Mistério! Superficie do Universo, 6 Palpebras Descidas, ‘do vos ergais nuncal © olhar da Verdade Final nao deve poder suportar-se! RAZAO E EXPERIENCIA As bases da ciéncia moderna Conforme vimos (no capitulo 10), foi com os fi- losofos gregos jonicos que as crengas mitologicas comecaram a ceder lugar a0 saber racional. E a Deixai-me viver sem saber nada, e morrer sem irsaber nadal A razao de haver ser, a razao de haver seres, de haver tudo, deve trazer uma loucura maior que os espacos entre as almas e entre as estrelas, Nao, nao, a verdade nao! Deixai-me estas casas e esta gente, assim mesmo, sem mals nada, estas casas e esta gente. Ld (Dispontvel ern: ‘Acesso em: 20 jan. 2010.) ideia de caos comecou a ser dissolvida, nascendo, para substitul-ta, o conceito de cosmo, Dentro des- se novo e revolucionario conceito, o universo pas- soua ser encarado como algo ordenado, harmonico, previsivel, capaz de ser compreendido racionalmen- te pelo ser humane. © conceito grego de cosmo desenvolveu-se com os pré-socriticos, encontrando novas formu- lagoes com os fildsofos do periodo classico, entre

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