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Número 1 – Abril 2010

Guitarra Clássica 1
Editorial:
Após assistir a um concerto de música contemporânea com uma formação de música de câmara de
geometria variável, apercebi-me que este projecto, a Revista de Guitarra, partilha pontos em comum
com esse concerto. A construção de cada número é fruto da contribuição de diversos elementos,
compondo assim um todo que alia a perspectiva científica à humana, sempre em torno da guitarra.
Recebemos com muito agrado, artigos do outro lado do Atlântico, começámos a dar a conhecer os
luthiers nacionais e procurámos novas obras para publicar.
Neste número, inauguramos o espaço onde os leitores poderão escrever e, consequentemente, expressar
as suas impressões. Para tal, bastará que nos escrevam um e-mail com “Espaço do Leitor” no Assunto
(revistaguitarra@gmail.com). Em alternativa, poderão deixar os comentários no nosso blog: Revista de
Guitarra Clássica http://revistaguitarra.blogspot.com/ criando assim uma maior inter-ligação entre
Revista e Leitores, num caminho conjunto que se pretende longo.

Pedro Rodrigues

É com enorme prazer que vos apresentamos o primeiro número da Revista Guitarra Clássica. Nesta
edição temos como cabeça de cartaz, um dos mais conceituados guitarristas da actualidade, Ricardo
Gallén, recentemente nomeado Professor Catedrático da Hochschule für Musik Franz Liszt de Weimar.
Incluímos também uma entrevista a Piñeiro Nagy, um dos impulsionadores da guitarra clássica em
Portugal, uma obra inédita do jovem compositor português Nuno Miguel Henriques, entre outros
artigos.
Esperamos que este número da Revista Guitarra Clássica seja do vosso agrado e naturalmente
incentivamos aos leitores interessados que se tornem colaboradores, enviando sugestões, artigos e
composições para revistaguitarra@gmail.com.
Os nossos agradecimentos especiais a Nuno Miguel Henriques pela sua importante colaboração nesta
edição.
Até ao próximo número em Julho!

João Henriques

Índice:
Espaço do Leitor 3
Entrevista a Ricardo Gallén 4
Entrevista a Piñeiro Nagy 9
Entrevista Paula Sobral 20
VII Encontro Nacional de Guitarra 24
Luthier.pt 26
Novas Gravações 28
O nacionalismo musical na obra de Manuel de Falla e Frederico Garcia Lorca 29
Páginas com Música 39

Equipa: Francisco Morais Franco, João Henriques, Nuno Miguel Henriques,


Tiago Cassola Marques, Luiz Henrique Mello, Filipa Pinto-Ribeiro, Jorge Pires,
Pedro Rodrigues, Alba López Sánchez, Manuela Vieira

Guitarra Clássica 2
revistaguitarra@gmail.com

Guitarra Clássica 3
Entrevista a Ricardo Gallén
Por Alba López Sánchez

Faz muito frio em Weimar; há vários dias que neva. Fevereiro alemão. Aconchego-me na
Pizzaria Antonio para entrevistar o guitarrista Ricardo Gallén que foi nomeado no passado Outono
Professor Catedrático da Hochschule für Musik Franz Liszt. Trinta minutos muito interessantes passados
à conversa em que ele responde a cada uma das minhas perguntas para a Revista Guitarra Clássica.

Alba López: Alguns anos atrás, Francisco de Paula perguntou-lhe numa entrevista sobre a sua nomeação
como assistente no Mozarteum de Salzburgo. Vários anos mais tarde, o que significa para si a cátedra
na HFM Franz Liszt?

Ricardo Gallén: No fundo é importante. Ouvi falar desta vaga através de Joaquín Clerch, um dia antes de
o prazo terminar, e foi tudo muito rápido. No começo senti um pouco de pressão, tendo recebido
conselhos sobre como agradar aos membros do júri, mas toda a pressão desapareceu quando decidi que
ia ser eu mesmo, com as minhas loucuras, como tocar com o nariz entre outras coisas, e cheguei à
conclusão que "se não gostarem, não gostaram, mas não vou enganar ninguém". Então, quando me foi
comunicado que tinha ganho, senti-me satisfeito, mas sem muita importância.
Penso que terá sido a mesma sensação de quando estava em Salzburgo; só no segundo ano é que
percebi o que significava ser assistente. Em Espanha, um professor do conservatório tem quase a
mesma importância que um pedreiro, e um professor catedrático a mesma coisa, mas aqui na Alemanha
há uma consideração enorme...e continuo a mesma pessoa, normal como sempre, mas entendo que
dizer que se é professor abre alguns caminhos, ajuda. O melhor de tudo é poder estar tranquilo e
planear outras coisas para o meu futuro, sem depender dos concertos.

A.L: Quais são as impressões iniciais do primeiro semestre? É muito diferente de Salzburgo?

R.G: Sim, é bastante diferente; nota-se no ambiente. Em Salzburgo, todas as aulas acontecem no mesmo
edifício, com os seus problemas como em outros lugares, mas há uma atmosfera muito boa, lá você
encontrará todos os instrumentistas e gera-se uma vida social que aqui não há, especialmente quando
os prédios estão separados. Eu em particular sinto-me muito isolado no Belvedere (edifício onde se
leccionam as aulas de guitarra).

A.L: Já começou a terceira edição do mestrado na Universidade da Estremadura (Espanha), no qual tem
alunos de Portugal. Será difícil conciliar o ensino em Weimar com o mestrado na Estremadura?

R.G: Agora não será. Teria sido difícil se o mestrado fora como nas anteriores edições em que a
periodicidade das aulas era a cada duas semanas, mas este terceiro mestrado é mais longo, uns dois
anos e meio, quase três. As aulas são mais espaçadas, com apenas 9 alunos, em vez de 14, dando-me
mais liberdade e tempo para viajar.

Guitarra Clássica 4
A.L: Qual é a sua avaliação das anteriores duas edições do mestrado?

R.G: Muito boa. Com este mestrado nunca aspirei a criar “bichos de concurso”. A minha ideia era
simplesmente plantar a semente que, ao longo dos anos, venha a mudar algo no mundo da guitarra. A
maioria dos meus alunos de mestrado não ganhou concursos. São pessoas normais, que trabalham em
conservatórios, fazendo o seu trabalho e o resultado ver-se-á com o tempo.

A.L: Como é que enfrenta a solidão das viagens de concerto para concerto, de cidade para cidade?

R.G: Por vezes, oprime-me um pouco. Normalmente quando viajo sozinho, 90% das vezes, raramente
saio. Levo um livro, música, computador e fico no hotel, desfrutando da intimidade que normalmente
não tenho. Até agora, a minha vida tem sido três dias num lugar, e três dias noutro, 8 a 10 horas de
aulas. Quando estava entre cidades, ficava em casa de amigos, e por isso não senti essa solidão, esse
momento de não fazer nada, o silêncio absoluto, o meu momento.
Aproveito muito as viagens. No avião aproveito para dormir e se, após o concerto ou as aulas, não
estiver com pessoas com um trato mais íntimo (se forem somente conhecidos do trabalho) volto para o
hotel e lá estou tranquilo, desfrutando, mesmo que esteja sozinho.

A.L: O ano de 2009 foi um ano importante com a sua nomeação como Professor Catedrático, mas
também com a homenagem a Leo Brouwer para o seu 70º aniversário. Como foi a experiência de
trabalhar com Leo Brouwer?

R.G: Tem sido uma grande experiência, muito gratificante e instrutiva. Eu sempre tive um fascínio pela
sua música, sobre como se baseia a sua escrita. Há 12 anos atrás tive uma aula com ele e nesta deixou-
me claro de alguma forma, as bases daquilo que era o seu modo de pensar, e trabalhar com ele foi a
confirmação de tudo isso. O mais importante, sobretudo, mais do que o facto de trabalhar a
interpretação da sua música, fora os jantares em que falamos sobre o que tinha acontecido, o que ele
esperava da música e dos músicos, do ser humano, além da confirmação de tudo o que eu via na sua
música.
Li uma vez que Christian Zimmermann considerava que as suas melhores aulas foram na Polónia com o
seu mestre, pensando com ele em seu barco, e simplesmente falando. Acho que aprendi muito mais
com o Leo como ser humano, como pessoa e como músico, após os concertos que toquei a sua própria
música e isso é muito gratificante, de verdade.

A.L: Brouwer disse numa entrevista após a homenagem em sua honra que "a composição é a essência
do que é revelado e que o identifica. Uma extensão de si mesmo". É a guitarra a sua essência?

R.G: Não, absolutamente. A música sim é a essência, a guitarra para mim é um instrumento afortunado
e desafortunado. Afortunado porque tive o privilégio de expressar-me com ele e desafortunado, porque
eu gostaria de fazer isso de muitas mais formas, mas não se pode ter tudo na vida.

Guitarra Clássica 5
A.L: Então, Ricardo Gallén poderia ter sido pianista ou percussionista?

R.G: Ser pianista era o meu sonho. Quando comecei os estudos no conservatório com 10 anos (comecei
a tocar a partir dos quatro) iniciei-me na guitarra e no piano, e com toda a humildade do mundo devo
dizer que eu era melhor no piano. Sempre tive a obsessão de compreender a música ao piano e de
imediato fazer isso mesmo na guitarra para melhorar a minha interpretação, e não fechar-me na
guitarra como um instrumento em si, mas como um veículo, um meio.

A.L: É da sua opinião que prática de um segundo instrumento traz algo de útil para a guitarra?

R.G: Gostaria de colocar a prática de um segundo instrumento obrigatório em todos os conservatórios.


Quantas mais áreas são dominadas, em certo sentido, haverá mais facilidades. Por exemplo, se nos
limitarmos a fazer sempre a mesma digitação na guitarra, quando surgirem problemas sem alternativas,
bloqueamos.
Tocar outro instrumento além de dar maior desenvolvimento da compreensão física do som, dá apoio a
nível fisiológico. Com um instrumento de sopro trabalha-se a respiração, com um instrumento de arco
move-se todo o braço, enquanto na guitarra apenas se move os dedos, o que impede uma interacção
entre corpo e o instrumento. Ajuda-nos também a abordar certos aspectos de forma diferente, mas nós
temos que usar a palavra-chave: aplicação. No instrumento ou em qualquer faceta da vida temos que
encontrar uma aplicação.

A.L: Como aborda uma peça nova?

R.G: A primeira coisa que faço é usar o piano ou se tiver a opção, ouvir outras músicas do compositor. Se
o compositor não é guitarrista procuro música, se possível, sinfónica ou para piano; se for guitarrista,
por exemplo Giuliani, procuro a sua música orquestral para ver como ele trabalha o material na
orquestra (articulação, nuances, etc...).
Uma vez que tenho o ouvido treinado, trabalho com o piano para não me submeter a tirania da guitarra.
A digitação na guitarra pode condicionar automaticamente o resultado musical sem que seja um
processo racional. É preciso que seja um processo racional, justificado e em função disso, desenvolver a
técnica.

A.L: Estuda de uma maneira diferente uma obra a ser gravada do que uma peça que tocará em recital?

R.G: Não, estudo da mesma maneira. O certo é que não é necessário esforçar-se tanto a nível dinâmico
ao gravar. A maioria dos álbuns de guitarra tendem a ser muito planos, porque a dinâmica está
normalmente a um nível média-alta, como se tocássemos numa sala. Para tocar numa sala é necessário
forçar a dinâmica porque o pianíssimo não se ouve, mas quando é uma gravação com microfones, é o
contrário, temos que explorar muito mais o pianíssimo em vez do forte.

Guitarra Clássica 6
A.L: Quais são para si os pontos fracos do mundo guitarrístico na Europa?

R.G: Solidariedade para começar. Temos que tocar muito mais com outros músicos, porque não só
levanta questões na interpretação, como também em termos de personalidade. Entre os guitarristas
que se consideram como “muito bons” e pianistas com a mesma atitude, há uma grande diferença, não
só em termos de dedos, mas também de interpretação e ao nível cultural.
Falham muitas coisas: desenvolver o ouvido, ser capaz de decifrar a harmonia... Outros instrumentistas
como violinistas e flautistas (aos quais também ensinei) também têm problemas, por ser um
instrumento melódico, mas estes tocam em orquestra e o ouvido paralelo é muito mais rico, e
conhecem o grande repertório, Shostakovich, Prokoviev... Mas nós, se sairmos do repertório da
guitarra, ficamos perdidos.

Temos que ouvir muita música, ler livros, trabalhar com manuscritos, tocar outros instrumentos…
Não é só passar oito horas fechado praticando com a guitarra. Esse é o grande problema que eu vejo
nos instrumentistas em geral e particularmente entre os guitarristas que passam muitas horas sozinhos.
Depois de 8 horas, não gostam de ouvir música clássica, mas é muito importante porque é a formação, é
saber como estudar melhor, tocar melhor e nós temos que fazê-lo; não fazê-lo é uma perda de uma
parte muito importante da história da música.

A.L: É essa busca na música a origem da sua técnica tão pessoal?

R.G: Sim, além do que eu disse anteriormente sobre o piano. Ao trabalhar com o piano eu estou

experimentando harmonias que me lembram outras obras. Ao piano com o pedal podemos tocar em

todas as teclas e podemos ouvi-las todas, mas na guitarra só podemos tocar seis. É uma grande

desvantagem e temos que jogar com o factor psicológico para criar esse ambiente, tentando manter o

maior número possível de notas numa certa harmonia. Para determina-lo, uso o meu conhecimento de

harmonia e do repertório de outros compositores (por exemplo, Ravel, Debussy). Esses conhecimentos

foram adquiridos através do estudo de dezenas de obras de outros compositores, tentando entender o

porque dessa forma de escrita que resulta num futuro de certa forma, diferente. Após ter o ideal sonoro

na minha cabeça é quando eu procuro as digitações na guitarra e resultando em estranhas e

fantasmagóricas digitações, que em 99% dos casos funciona.

A.L: Quais os projectos para o futuro?

Guitarra Clássica 7
R.G: Em Março gravarei Bach. As quatro suites para alaúde; prelúdio, fuga e allegro BWV 998,
fuga BWV1000 e o prelúdio BWV 999. A fuga BWV 1000 é uma versão das versões para órgão, violino e
alaúde, incluindo ornamentos da versão do órgão.

A.L: Para quando um concerto em Portugal?

R.G: Eu tinha uma proposta para um concerto, mas não sei como terminou, porque é o trabalho do meu
representante.

A.L: Você permanece fiel à sua guitarra do luthier Paco Santiago Marin. Nunca encontrou outra guitarra
que o encantasse?

R.G: Há muitas guitarras que me cativam. Eu penso que não existe um instrumento perfeito. Se só
pudesse ter uma guitarra seria a Paco Santiago Marin, porque é um instrumento muito versátil que me
dá o que eu quero num instrumento que é uma resposta muito rápida, potência e muita claridade no
contraponto. Eu gosto muito de pinho, porque é muito claro e tem muita projecção. Mas não para todo
o repertório. Eu gosto de tocar mais música do século XX e música de câmara contemporânea.

A.L: As suas interpretações são consideradas originais pela sua personalidade como artista, pela sua
interpretação histórica e pela visão tão pessoal sobre a música. Suponho que muitas vezes não seja
muito compreendido por parte dos sectores mais tradicionais da guitarra. O que é melhor, permanecer
fiel a si mesmo e sofrer a ignorância e o isolamento vendendo-se ao público ou tentar encontrar um
caminho intermédio?

R.G: Eu sou fiel a mim mesmo. Serve de exemplo o que mencionei anteriormente, tendo eliminado a
pressão do exame em Weimar, mudando o repertório, em princípio, por um "mais adequado" para este
tipo de exame, por outro mais arriscado mas muito mais confortável para mim.
Durante o tempo que fiz vários concursos experimentei a pressão de tentar agradar cada um dos
jurados, não sendo sustentável ter várias maneiras de tocar em função de quem faz parte do mesmo,
por isso, tomei a decisão de ser eu mesmo. Não me posso vender e fazer essas concessões para sempre.

Com a derradeira pergunta terminamos a entrevista a Ricardo Gallén. Continuámos à conversa sem ter
vontade de enfrentar o inverno alemão. Um verdadeiro prazer ter partilhado esta conversa com Ricardo
Gallén e muito mais partilhá-la na Revista Guitarra Clássica.

www.ricardogallen.com

Guitarra Clássica 8
Entrevista com José Piñeiro Nagy
Por Filipa Pinto Ribeiro

Filipa Pinto-Ribeiro: Voltando alguns anos atrás,


quais os motivos que o levaram a escolher a
guitarra? Foi uma decisão pessoal e solitária ou
fruto de uma conjuntura social e familiar?

Piñeiro Nagy: A vida é uma sucessão de


circunstâncias e de opções por elas geradas. “El
hombre y sus circunstancias”, dizia Ortega y
Gasset. Estar atento a esta realidade, por vezes
ténue e fugaz, pode ser determinante para o
passo a seguir. Recebi uma educação de raiz
cultural centro europeia. De família aristocrática,
minha mãe proporcionou-me,
me, desde que me conheço, vivências artísticas genuínas da tradição húngaro-
húngaro
croata através do piano, da música sinfónica ou do ballet e a ópera. Não sei precisar qual terá sido a
primeira
rimeira melodia que me transmitiu; mas, certamente, Liebesträume,, de Franz Liszt, acompanhou-me
acompanhou
desde muito cedo, às noites, antes de adormecer. O piano, esse instrumento magnífico, seria o meu
meio de relação física com a música, porém sem grande continui
continuidade.
dade. O repertório sinfónico ou o canto
pareciam ter maior influência, sentindo com eles uma mais profunda afinidade que, ao mesmo tempo,
se cruzava com a minha outra origem: a espanhola. O sentido do belo, a prática do requinte, a procura
do sublime e o poder
oder da emoção, foram conceitos cada vez mais claros na relação com a música, com a
arte e com a vida.

Mas, uma tarde, depois das aulas do liceu, ouvi um colega sul
sul-americano
americano cantar uma linda canção
fazendo-se
se acompanhar com uma guitarra. Fiquei fascinado e pedi-lhe
lhe para me ensinar a tocar. A partir
de aí, nas festas que organizávamos com uns quantos colegas, ele e eu passámos a ser o momento
esperado pelas nossas apaixonadas, à espera de ouvir as canções românticas da altura… Até que um dia
ouvi uma gravação
ão de Andrés Segóvia, e tudo mudou…!

F.P.R.: Conviveu durante muitos anos com um dos maiores pedagogos da guitarra, Emílio Pujol, do qual
é discípulo. Como foi essa experiência? Que recordações guarda dessa época?

P.N.: Não convivi muitos anos com o Maestr


Maestroo Emílio Pujol. Na realidade, fui dos seus últimos discípulos.
Mas foi uma convivência muito serena e franca, onde o respeito mútuo fortaleceu a nossa relação. De
grande humanidade e doçura, finura de espírito e humor oportuno, atributos de um ser de inteligência
intel
superior, o Maestro sempre tinha uma palavra de apreço e estímulo na difícil tarefa do ensino. Guardo,
por isso, memórias reconfortantes que muito me têm auxiliado na vida profissional. Procurar soluções
no nosso íntimo profundo, será, porventura, uma das confirmações mais marcantes.

Guitarra Clássica 9
A sua natureza romântica não o impedia de estar totalmente aberto à inovação. A atitude com o novo
repertório era sempre de grande abertura e curiosidade. O cuidado e interesse com que ouviu pela
primeira vez o Prelúdio e Baileto, de Fernando Lopes
Lopes-Graça,
Graça, nos cursos de Cervera de 1970, já com cerca
de 80 anos de idade, foi uma lição de jovialidade e humildade. Fiquei gratamente surpreendido quando
me escolheu para fechar o programa do concerto final de participantes (como
o curiosidade, lembro que
por lá apareceu um casal norte
norte-americano
americano muito novo, magrinho e bastante “hippie”. Ele
imediatamente se destacou pela sua forte e refinada personalidade artística, nascendo entre nos uma
empatia instantânea que perdura até hoje. O
Ouvi-o tocar admiravelmente as Quatre Pièces Breves,
Breves de
Frank Martin, que ninguém conhecia… Chamava
Chamava-se Hopkinson Smith. A dada altura do curso - que
durava cerca de um mês - Alberto Ponce passou uns dias e, depois dum jantar, tocou para nós o Tiento,
de Maurice Ohana, peça que também ninguém conhecia e que tinha acabado de gravar em disco!
Foram momentos memoráveis na companhia do Maestro que se prologaram pela noite fora…).

O seu apoio espiritual firme e entusiasta para criar o curso guitarra na Academia de Amadores de
Música foram cruciais para o futuro do instrumento no país. Muitos outros aspectos podiam ser
abordados, mas receio não termos espaço suficiente…

F.P.R.: Aparentemente, e tendo em conta que


Portugal tinha pouca ou nenhuma tradição
guitarrística, era um país complicado para um
guitarrista em início de carreira e com grandes
ambições para o seu futuro. Deste modo, o que
o trouxe para Portugal, sabendo de antemão
que iria encontrar
ncontrar dificuldades?

P.N.: Voltamos às circunstâncias. Na realidade,


não foi a guitarra que me trouxe para Portugal,
mas, de um certo
erto modo, o inverso, porque eu já
Com Emilio Pujol, na Academia de Amadores de Música cá vivia.
(Lisboa, 1969)
A guitarra é um instrumento com grande tradição
em Portugal, profundamente implantada na música popular. Creio não haver dúvida. Porém, o seu
estudo, numa perspectiva académica, nunca chegou a ter consistência. A presença esporádica e
intermitente (mês e meio
eio por ano) de um mestre como Emílio Pujol desde os anos 30 do século
passado, não contribuiu, infelizmente, para resolver o problema na sua origem. É uma questão que
nunca compreendi. Por outro lado, na década de 60 o ensino do instrumento nos conservatórios
conservató e
escolas superiores ou universidades do meio internacional estava a dar os primeiros passos no sentido
de o integrar de forma estável nos planos curriculares. Por exemplo, a Itália, um dos países com maior
tradição e história do instrumento, só na dé
década
cada de 80 consegue que o curso de guitarra seja

Guitarra Clássica 10
oficialmente reconhecido e integrado nas instituições de ensino, depois de um longo debate que acabou
por ter de ir a aprovação em comissão parlamentar. É incrível!

Preparar o caminho para que em Portugal não se perdesse tempo e se criasse o curso com solidez, não
podia deixar de ser um desafio e um estímulo. Por natureza, gosto do desafio; mas também é verdade
que não podia ter melhor mentor do que o Maestro. É um privilégio para Portugal que o curso tenha
começado desta forma e nestas circunstâncias. Creio que ainda há por aí muito boa gente de Deus que,
meio distraída, ainda não se apercebeu disto.

F.P.R.: Desempenhou um papel muito importante no desenvolvimento e na implementação do ensino da


guitarra em Portugal, uma vez que foi o Professor que iniciou o curso de guitarra na Academia de
Amadores de Música, em 1967. Foi difícil impor a guitarra, que era até então praticamente
desconhecida, perante os alunos, a comunidade musical e o público em geral?

P.N.: Vejamos: a ausência do ensino académico da guitarra não impediu a existência de amantes do
instrumento, praticantes e luthiers. Eu próprio, como muitos outros por esse mundo, iniciei o estudo de
forma praticamente autodidacta, o que não quer dizer que se ignorasse os mestres do passado. Sor,
Aguado. Tárrega, Pujol, entre outros, foram (bem ou mal tratados…) a fonte de trabalho “solitário”.
Aliás, se assim não tivesse sido, nunca teria conhecido o Maestro. Portanto, criar o curso numa
instituição histórica e prestigiada, como era o caso da Academia de Amadores de Música, teria
forçosamente de dar bons resultados desde que acompanhado de um programa de concertos que
permitisse o contacto com um repertório em grande parte desconhecido. A vertente histórica, focando
a relação com instrumentos ancestrais afins como a vihuela e o alaúde, assim como a sua peculiar
participação na música de câmara, foram aspectos abordados de início, oferecendo uma ampla
perspectiva da guitarra na vida musical, fundamental, portanto, para a sua integração natural quer no
meio académico, quer na actividade pública do concerto.

Claro que não foi fácil compreender o que o instrumento realmente é. Olhado por um certo meio
musical como algo exótico, e popularucho por grande parte do público pouco informado (diria, inculto),
a única referência na altura, aliás recorrente, era a Escola de Guitarra Duarte Costa. E recorrente,
porque foi a direcção da Academia, desconhecedora do processo histórico da guitarra, que o convidou
para leccionar os primeiros interessados no estudo do instrumento. Decorria o ano 1964. Porém, apesar
de conhecer os seus dotes artísticos, Duarte Costa era consciente das suas limitações para se integrar
num meio académico. Quando me transmitiu as suas inquietações sobre este assunto e me propôs um
trabalho conjunto, iniciou-se um período de transição que teria como consequência o seu afastamento
(por iniciativa própria), culminando na criação do Curso Geral de Guitarra no ano lectivo 1967-1968.
Portanto, a principal tarefa foi (e continua a ser…) formar uma nova mentalidade.

Guitarra Clássica 11
F.P.R.: Desenvolveu uma intensa carreira enquanto concertista, com concertos em vários países.
Contudo, isso nunca o levou a colocar de parte o ensino. Qual o motivo dessa opção? O que o preenche
mais: o palco e o contacto com o público ou a sala de aula e o contacto directo com os alunos?

P.N.: Opção… A opção é sempre um dilema. “Se vou por aqui, posso ir por ali?”; “se fizer isto, deixo de
fazer aquilo?”; “posso estar aqui e ali?”. Como?, quando? e … porquê? A vida tem só um sentido? E que
“sentido” dar à vida? A interrogação agiliza o intelecto. A resposta pode ser uma, duas ou várias… Mas
também há outras questões: como contribuir para o bem comum? Como partilhar o belo? A arte é um
dos melhores meios para o fazer. Claro que se pode “consumir” arte sem conhecimento. Pablo Casals
tocava suites de Bach para os operários nas fábricas e Albert Schweitzer fazia algo semelhante na África
Equatorial (o resultado também pode ser paupérrimo). Mas conhecimento é o primeiro passo para se
apreciar a essência da vida. Juntem-se, então, as duas coisas, arte e conhecimento, e temos uma
combinação fantástica! É por isso que levo a vida a aprender com o público, com os alunos e a constatar
que existe um denominador comum: o poder de comunicar com o indivíduo, seja ele europeu, asiático
ou americano.

FPR: É professor há 43 anos, 20 dos quais no ensino superior. O que pensa do actual estado do ensino da
guitarra em Portugal?

PN: Tanto tempo? Ainda não me tinha apercebido. Há um tempo intemporal que parece não passar por
nós. Ou seremos nós que passamos pelo tempo sem nos dar conta? Responder a esta pergunta é como
falar de ontem. Que consequências ocorrem a partir do que se começou “ontem”? O que é que
andamos a fazer? E para quem? Procuramos o belo? Sabemos, acaso, o que é? Será um sonho? E, se o é,
o que é o sonho? Reconhecemos o belo num Fra Angélico? (a propósito, quem era Fra Angélico?) E
Renoir? Ou Oscar Wilde? … Hermann Hesse…? “Todo o guitarrista devia ler Virgílio, Platão, Racine”,
aconselhava sabiamente Emílio Pujol. Ah, tanto para aprender e admirar!

Seremos capazes de ver numa linha melódica algo mais de que uma sucessão de notas? E até onde a
sabemos tocar sem a partir? “Estudem lentamente e meditem sobre cada nota. A velocidade é a inimiga
da emoção”, dizia o Maestro. São tantas as questões que podemos levantar em torno da simplicidade
do belo que facilmente nos podemos interrogar sobre os caminhos do ensino.

F.P.R.: E qual a sua opinião acerca dos actuais guitarristas portugueses?

P.N.: Quando se iniciou o curso na Academia de Amadores de Música, partiu-se para uma aventura de
um certo modo arriscada. As carências da altura em diversas áreas e a total ausência de vida
guitarrística marcaram esse tempo “heróico”. Que futuro para o instrumento num ambiente
culturalmente redutor e conservador? Se assim não fosse, e se não se tivesse desperdiçado a presença
do Maestro Emílio Pujol durante mais de 30 anos, teríamos em 1967 uma ou duas gerações de
guitarristas portugueses, certamente de muito bom nível. Nada disso existiu. Criar um ambiente, formar

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mentalidades e colocar o instrumento no lugar que lhe cabe na vida musical parecia uma tarefa
gigantesca. Porém a forte convicção nos princípios orientadores e a vontade inquebrantável em
dignificar o instrumento, fazendo-o respeitável, abriram perspectivas que em pouco tempo se
transformaram numa dinâmica imparável.

Há pouco recordávamos 1967 como o ano de partida. Num rápido olhar retrospectivo desde os nossos
dias, podemos identificar quais foram os momentos que contribuíram para essa dinâmica.

O primeiro foi, sem dúvida, a actividade de informação desenvolvida na Academia através de concertos
regulares com primeiras audições e conferências (chegámos a ter 24 concertos em 2 anos!). O segundo
impulso foi dado em 1971 com a inclusão da guitarra nos Cursos Internacionais de Música da Costa do
Sol (hoje do Estoril). O terceiro aconteceria com o 1º Encontro de Guitarra realizado no Porto em 1975.
O convite que me foi dirigido pela direcção do Conservatório do Porto nessa altura, teve, entre muitos
outros aspectos, a virtude de me proporcionar uma visão concreta do ambiente na região e, em
consequência, permitir a criação do curso no Norte do país (foi-me dada a oportunidade de conhecer
Fernando Lencart, homem conhecedor do instrumento e de vasta cultura. Guitarrista amador da
geração de Duarte Costa e ouvinte assíduo dos cursos de Andrés Segóvia em Santiago de Compostela,
exerceu o ensino a nível privado). O quarto foi determinante para o futuro, ou se quisermos, para o
presente. Consistiu no apoio da Secretaria de Estado da Cultura à realização sucessiva, até início dos
anos 80, de cerca de 40 encontros em praticamente todo o país, de Viana do Castelo a Faro, passando
pelos Açores. E o quinto, a consolidação, através da inclusão do curso na Escola Superior de Música de
Lisboa em 1990.

Tão densa sementeira teria de dar frutos. Comparativamente a outros países com maiores recursos e
profunda tradição musical, é grato e reconfortante constatar a evolução deste processo. Numa
perspectiva histórica, em relativamente pouco tempo atingiu-se um nível semelhante ou superior a
tantos outros deste mundo. É por isso que temos, hoje, um restrito conjunto de guitarristas portugueses
que nada devem aos mais conceituados no meio internacional. Em alguns casos, e pontualmente, são ou
podem vir a ser músicos mais interessantes. Sim, a guitarra pode gozar de boa saúde em Portugal.

F.P.R.: Em 1975 cria o festival de Música do Estoril, um dos mais importantes festivais nacionais. Como
surgiu essa ideia? Foi um processo complicado?

P.N.: Pela terceira vez, as circunstâncias são protagonistas em mais um processo. Tudo o que até agora
tem sido dito vai ao encontro da pergunta. A inclusão da guitarra nos cursos internacionais do Estoril em
1971 deve-se ao interesse do director de então, o Mtº. Manuel Ivo Cruz, e do conhecimento que ele
tinha acerca do processo da Academia. Naturalmente, o seu gosto pelo instrumento foi decisivo para
que tomasse a iniciativa de me falar na ideia. Com a sua amabilidade nata, teve a simpatia de me
convidar para Assistente da Direcção dos Cursos, em especial no tocante à guitarra e ao respectivo
professor, o guitarrista uruguaio Raul Sanchez (julguei desnecessária essa função, talvez originada pelo

Guitarra Clássica 13
desconhecimento ou pouco à vontade dos músicos da direcção no relacionamento com o
instrumento…). Aceitei com entusiasmo e, a partir de então, tive a oportunidade de contactar com os
cursos “pela parte de dentro”. Devo dizer que, desde há alguns anos, era assíduo ouvinte das aulas de
grandíssimos mestres como Sandor Vègh, Maurice Eisenberg, Karl Engel, Yvonne Lèfebure, Helena de Sá
e Costa e tantos outros que de melhor havia no mundo.

A organização dos cursos decorria sob a responsabilidade da então Junta de Turismo da Costa do Sol
presidida por Miguel de Serra e Moura, uma personalidade ímpar na política do regime que seria um
bom exemplo para o que hoje se vê por aí… Desportista inveterado (sobretudo no ténis), amante das
artes, culto, dinâmico e possuidor de um charme muito especial, despertou em mim a confiança
suficiente para com ele conviver e confirmar uma sintonia que me levaria a propor uma reestruturação
dos cursos na qual se contemplasse a criação de um festival internacional, entre outras actividades, com
a participação dos mestres e dos jovens valores emergentes. Apesar da sua concordância e entusiasmo,
a ocorrência do 25 de Abril em 1974 e a consequente destituição do cargo, não permitiu que ele
presidisse à nova estrutura. Seria a primeira Comissão Administrativa (com um coronel reformado à
frente…que, por certo, adorava bandas de música!) nomeada pelas autoridades revolucionárias que, em
Outubro de 1974, aprovou o projecto. Não foi, portanto, um processo complicado. Foi, até, bastante
pitoresco. Na realidade foi, apenas, o resultado da prática do senso comum para a criação de algo
necessário (convém lembrar que, na altura, não havia um só festival internacional em Portugal).

F.P.R.: É curioso verificar que o festival de Música do Estoril não é um festival de guitarra, mas sim de
música, embora conte com diversos concertos e master-classes de guitarra, nomeadamente as de
Alberto Ponce. Isso leva-me a pensar que, apesar de guitarrista, não se centra exclusivamente no seu
instrumento e sempre procurou o contacto com outros instrumentistas e realidades para além da
guitarra. Considera essa abertura importante na formação de um guitarrista?

P.N.: Podemos começar pelo fim da pergunta…ou pelo princípio da entrevista… Vejamos: o guitarrista
deve ser, antes de mais, um músico; e um músico não pode ser, apenas, um executante prendado que
se isola de tudo. Portanto, podemos voltar ao início e pensar quão determinante é, na vida profissional
de um artista, a convivência com outras formas, outras artes, a história, a literatura, a filosofia, enfim, o
conhecimento. É este que nos confere a faculdade de saber interpretar os sinais, os códigos, as
linguagens. Em última análise, o pensamento. Como tantas vezes dizia Agustin Barrios “não se pode ser
guitarrista se não se é baptizado na fonte da cultura”.

Por outro lado, a génese do festival do Estoril é muito peculiar. Nasce dos cursos. É filho dos cursos. Não
podia, por isso, alhear-se do seu ancestral pedagógico. E, como filho aplicado e bom, ultrapassou o pai.
Fez-se grande e versátil. Deu-se a conhecer ao mundo e hoje, desde 1983, é o único festival português
membro da European Festivals Association, instituição do maior prestígio mundial que abrange mais de
100 festivais. O Festival é uma porta aberta para todos os músicos e para a vida artística internacional. O
seu contributo à criação é impar. Em 35 anos de vida apresentou mais de 350 obras em primeira

Guitarra Clássica 14
audição em Portugal, incluindo várias dezenas de estreias absolutas e encomendas. Neste ambiente, a
guitarra também tem tido a sua quota
quota-parte, quer através de concertos, nos quais
is participaram diversos
guitarristas portugueses, quer através dos
cursos internacionais.

F.P.R.: Quais os principais conselhos que dá


aos jovens guitarristas?

P.N.: A experiência é algo que se ganha, não


se aprende. Mas experiência sem
conhecimento não basta. Do mesmo modo
que educação e instrução não devem estar

Com Alberto Ponce e Hopkinson


Hopkinson-Smith dissociadas na formação do indivíduo, é
(Festival do Estoril, 1983)
fundamental que conhecimento e experiência
caminhem lado a lado. É através do conh
conhecimento
ecimento que obtemos uma sólida experiência. No entanto,
conhecimento implica abrangência e mente circular, ou seja, que se possa expandir a partir do centro.
Que não cristalize em arestas. Que a expansão leve a outras matérias, a outras áreas, a outras artes…
ar
Sem nunca deixar de olhar para o nosso íntimo mais profundo, fonte última da energia humana. De
pouco vale procurar soluções fora de nós. De pouco vale tentarmos ser outros. Estamos condenados
pela nossa condição a viver toda a vida connosco. Não será mais inteligente tentar compreender o que
somos? Ou seja, conhecermos o ser que somos e aceitá
aceitá-lo
lo de braços abertos como um mistério da
natureza?

Não há maior prazer que a descoberta. Ainda que constatemos posteriormente que outros chegaram
primeiro… E a descoberta ocorre quando há observação e reflexão. É com estes valores que podemos
construir a nossa personalidade e, solidamente, adquirir a confiança (que tantas vezes julgamos
improvável) não se confundindo com a dúvida tranquila de quem questiona as co
coisas
isas para melhor as
compreender.

F.P.R.: Não podia terminar esta entrevista sem falar do trabalho que desenvolveu com Fernando Lopes-
Lopes
Graça, que lhe dedicou grande parte da sua obra para guitarra. Como foi essa experiência de contacto
directo com Lopes-Graça?

P.N.: A minha relação com o compositor pode ser vista sob duas perspectivas: a profissional e a da
amizade, de carácter muito pessoal. Perspectivas que frequentemente se cruzam e confundem. Creio,
no entanto, que entre nós não terá sido esse o caso, nem ocorrid
ocorrido,
o, sequer, a preponderância de uma
sobre a outra. A admiração pela sua forte personalidade e a convergência com ideais de exigência
artística e intelectual associado ao belo, são, na realidade, os parâmetros que melhor podem definir
uma relação assente em sólidas bases de respeito mútuo.

Guitarra Clássica 15
Pessoa de grande simplicidade, trato algo reservado, cuidado requinte e bom gosto nas suas escolhas,
fruto de uma vasta cultura, não dispensava o afecto dos amigos. Nas frequentes visitas que nos fazia nas
frias noites de Inverno,
nverno, a conversa à lareira alongava
alongava-se
se pela noite dentro. Às vezes, quando o sono
começava a cair e me preparava para o acompanhar a casa, próximo da nossa, dizia
dizia-nos:
nos: “Olhem
“ lá! Não
se preocupem comigo. Eu fico a dormir aqui mesmo no chão em cima do tap
tapete
ete ao pé da lareira! Então
não é tão bom?!!”

Guarda a memória muitos momentos com este delicioso sabor, alguns deles vividos em viagens fora do
país. Porém, não são menos ricos os que fazem parte de um caminho que percorremos juntos na vida
profissional. Se, por um lado, me é especialmente grato lembrar episódios relacionados com o trabalho
em torno da guitarra, por outro, a possibilidade de ter contribuído, através do Festival do Estoril, para a
estreia absoluta de diversas obras suas, onde o Requiem pelass vítimas do fascismo em Portugal ocupa
especial destaque, constitui uma recompensa de valor incalculável.

Perguntar-se-áá em que altura desperta o interesse de Lopes


Lopes-Graça
Graça pela guitarra. Muito antes do que nós
imaginamos. Escondidamente, desde a sua infânc
infância
ia em Tomar, ouvindo o seu pai tocar esse
instrumento. No entanto, foram as circunstâncias ocorridas a partir de 1967 que o estimularam a entrar
no mundo sonoro do instrumento, na altura em que se iniciou o Curso de Guitarra na Academia de
Amadores de Música,
ca, instituição que o tinha como símbolo, uma espécie de ícone. Um dia, cruzando-me
cruzando
com ele no corredor, perguntou
perguntou-me
me se seria “tocável” uma peça que tinha escrito em 1968. Tratava-se
Tratava
de Prelúdio e Baileto…
… Aberto a sugestões, mesmo vindas de um jovem guit
guitarrista,
arrista, aceitou a minha
ousada proposta de introduzir elementos característicos da linguagem guitarrística, tais como
harmónicos, inversões, rasgueados e, até, um ¼ de tom no final do Baileto reforçando a expressividade
de um discurso difuso que se afasta e extingue progressivamente, como que distorcido pelo espaço.
Seduzido pelo resultado, para ele surpreendente, adoptou, pela primeira vez, o ¼ de tom. Após a estreia
na Academia em Maio de 1970, o repertório de guitarra conquistava, a partir desse momento,
momento a
primeira obra portuguesa de vulto.

Em
m menos de um ano, Lopes-Graça
Lopes teve a
generosidade de me dedicar uma Partita,
inicialmente em sete andamentos, obra de
dimensão e linguagem insuspeita. Num estilo
de pureza linear, a nova obra constituiu um
marco renovador no seu processo criativo,
seduzido pelas subtilezas da guitarra e pela
autenticidade que lhe vem da antiga tradição,
Com Fernando Lopes-Graça
Graça e Dulce Cabrita (1973)
usando uma linguagem, de certo modo, nem
sempre revelada anteriormente. Dir
Dir-se-ia
ia que, através desse encantamento, mostrando uma vertente
lírica desconhecida, compreende
compreende-a e ama-aa profundamente sem se afastar das suas convicções. A

Guitarra Clássica 16
história em torno desta peça e das que se seguiram seria matéria para uma outra conversa, tão rica de
episódios que, naturalmente, podem suscitar interesse nos amantes da música e em especial nos
guitarristas.
Na altura em que tomei a iniciativa de elaborar as bases de um programa de reestruturação do Cursos
Internacionais de Música da Costa do Sol, contei, entre outras personalidades, com a sua preciosa
colaboração. Nas diversas acções propostas no programa, a criação de um festival internacional de
música e a divulgação da música do nosso tempo, com especial ênfase nos compositores portugueses,
era, desde logo, objectivo a alcançar de imediato. Das nossas reuniões, recordo o seu habitual e
perspicaz sentido crítico, nunca desprovido de humor, quando debatíamos o título do festival em
articulação com o dos cursos. Sendo esta uma organização da então Junta de Turismo da Costa do Sol, o
festival deveria ter agregado a denominação da Costa do Sol, em lugar de do Estoril, apenas, como era
nosso desejo (e é a actual denominação). Quando o alertei para esse condicionalismo,
espontaneamente comentou bem no seu jeito: “Pois! Também podia ser da Costa do Castelo...ou da
Aldeia da Roupa Branca!” (títulos de dois filmes típicos da comédia portuguesa…). O estreito
relacionamento com o festival atingiria o ponto culminante em 1981, quando da estreia absoluta do seu
Requiem num concerto memorável realizado na Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa.
Outras obras suas foram pela primeira vez executadas no âmbito do festival. Em 1975, o Concerto da
Camera col violoncello obligato; em 1976, Tre Capricetti; 1977, Paris 1937; 1978, Deux Airs; 1980, Sete
predicação d’Os Lusíadas.

Como guitarrista, foi um privilégio trabalhar a seu lado e partilhar cumplicidades artísticas. Como
responsável pelo Festival do Estoril, é uma honra ter contribuído para a difusão da sua obra e ter
usufruído da sua colaboração. Mas é no aspecto humano da nossa relação, simples e despreocupada,
que guardo os mais íntimos afectos.

F.P.R.: Mais recentemente iniciou um projecto de transcrições para três guitarras e cordas das obras de
Albéniz e Granados. Sentiu necessidade de acrescentar algo mais ao repertório da guitarra ou estas
transcrições são apenas a concretização de uma vontade que só agora foi possível de realizar?

P.N.: Foi puro acaso. Desde 1994 tenho dirigido na Suíça vários master-classes de música de câmara com
guitarra nos “Rencontres Musicales Internationales” da International Menuhin Music Academy, nos
quais têm participado diversos guitarristas portugueses. Estes encontros de música de câmara foram
sempre dirigidos pelo violinista Alberto Lysy a quem me ligou uma amizade e afinidade de três décadas.
Além de discípulo dilecto de Yehudi Menuhin, foi um artista de excepção que nos deixou,
inesperadamente, em Dezembro de 2009. Possuidor de um refinado bom gosto e auto exigência do
mais alto nível, construiu ao longo da sua vida uma carreira sólida com um sentido estético ímpar
consumado na criação da Camerata Lysy, agrupamento de cordas da maior reputação mundial.

Guitarra Clássica 17
De imaginação fértil e espírito inquieto, produto da sua origem argentina, mas também ucraniana,
criava contínuos projectos sempre de grande interesse e equilíbrio. A paixão pela descoberta era uma
constante. Depois do Rencontre de 2007, desafiou-me para mais um projecto, desta vez incidindo na
música ibero-americana para guitarra e cordas, com a intenção de o apresentar num grande concerto da
temporada de 2008 do Teatro Victoria Hall, de Genebra. Dissuadi-o, de certa forma, por falta de
repertório adequado. Mas imaginei que podia ser interessante experimentar algo diferente com obras
conhecidas de compositores espanhóis como Albéniz e Granados. Recusei, no entanto, a tentação do
habitual arranjo para guitarra e procurei a transcrição tão fiel quanto possível do original para piano. Era
como um retorno ao que tinha feito no início dos anos 70 com as transcrições das Canciones Populares
Españolas, de Federico Garcia Lorca, ou de alguns Romances Tradicionais Portugueses, harmonizados
por Fernando Lopes-Graça, entre outras. A possibilidade de agora usar três guitarras permitiu-me
manter as tonalidades originais ou encontrar soluções próximas e, ao mesmo tempo, tratar as vozes de
modo a não alterar o carácter nem a transparência das obras.

Albéniz e Granados são personalidades contrastantes da cultura catalã. Em Albéniz, a sua visão de
Espanha, embora parta de fontes tradicionais e seja precursor do estilo nacionalista, afirma-se através
de um universalismo de carácter hispânico na linha de Chopin e Liszt. A longa convivência com a música
francesa, fá-lo adoptar a linguagem harmónica impressionista, ao mesmo tempo que exprime de forma
inimitável a riqueza imaginativa, o calor e a luz meridional. Debussy, deslumbrado com este manancial,
chegou a exclamar “que, com tanta luz, Albéniz chegava, num gesto de generosidade, a atirar a música
pela janela…”

Com Granados, encontramos a finura e a transparência mediterrânica de um romântico que morre


prematuramente. Não sendo europeizado como Albéniz, nem procurado a via nacionalista, é uma
personalidade de uma subtil elegância que o define como um poeta do piano de afinidades directas com
Chopin, Schumann e Grieg. Ao entrar neste campo, o resultado teria necessariamente de ir ao encontro
dos que, conhecendo bem os originais, os ouçam com outras cores. Quanto ao mundo da guitarra, é
natural que alguns fiquem surpreendidos por descobrir certas “novidades”…
A partir das transcrições para três guitarras, pensei, então, numa segunda versão com cordas para tocá-
las com a Camerata Lysy. Curiosamente, a única transcrição que, até agora, não é original para piano, é
o “Intermezzo” para orquestra, da ópera “Goyescas”, de Granados. A transcrição para três guitarras
permite, entre outros recursos, usar a percussão e o efeito das castañuelas escritos no original

Concluindo, a resposta à pergunta é não. Não senti necessidade de acrescentar nada, nem de
concretizar vontade nenhuma do passado. Uma vez mais, as circunstâncias foram o ponto de partida.
No entanto, ao fazê-lo, procurei que se compreenda melhor Albéniz e Granados. Compreender a sua
música. Conhecer a diversidade cultural espanhola e a sua geografia. Compreender que “Astúrias” não
tem nada a ver com o flamenco. Se tivesse, chamava-se “Andalucía”…

Guitarra Clássica 18
Quero dizer, ainda, que o contributo do Pedro [Luís] e do Miguel [Vieira da Silva], com a sua ajuda,
sentido crítico e arte de bem-fazer,
fazer, foram fundamentais para o resultado final, assim como a de Tiago
Derriça na orquestração das peças de Albéniz.

Finalmente, deixem-me
me felicitá
felicitá-los por terem a iniciativa de criar esta revista e agradecer-vos
agradecer a
amabilidade de fazer uma entrevista com perguntas tão pertinentes e tão bem pensadas. É a primeira
vez que me acontece isto! Parabéns e felicidades!

Discípulo do eminente pedagogo Emilio


Pujol, é responsável pela introdução em
Portugal do Curso de Guitarra, criado
em 1967 na Academia de Amadores de
Música.

Tem prestado especial atenção ao


repertório guitarrístico do século XX,
apresentando numerosas estreias
e no País
com especial destaque para a obra de
Fernando Lopes-Graça,
Graça, parte da qual
lhe é dedicada, executando-a
executando em primeira
audição quer na Europa, quer no Extremo
Oriente.

Tem participado em prestigiados festivais internacionais de numerosos países europeus, assim


como no Extremo Oriente e Estados Unidos. Participa em júris de concursos internacionais e
tem dirigido Master-Classes
Classes nos Estados Unidos, Suíça (International
International Menuhin Music
Academy),
), Hungria, Bulgária, Beijing, Macau e Seoul.

O Governo Brasileiro
rasileiro concedeu
concedeu-lhe a Medalha Heitor Villa-Lobos por ocasião do centenário
do nascimento do compositor. Em 1975 cria o Festival do Estoril e em 2001 o projecto Mare
-ostrum. É membro da European Festivals Association desde 1983, onde exerceu funções
executivas
cutivas entre 1997 e 2005. Por ocasião do 30º aniversário do Festival do Estoril,
Estoril recebeu do
Presidente Jorge Sampaio a Comenda da Ordem do Infante D. Henrique em reconhecimento ao
relevante trabalho desenvolvido à frente dessa instituição e em homenagem aos
a seus notáveis
méritos como músico e professor.

Lecciona na Escola Superior de Música de Lisboa desde 1990.

www.pineironagy.com

Guitarra Clássica 19
Entrevista com Paula Sobral
Por Pedro Rodrigues

Revista Guitarra: O Concurso e Festival


Internacional de guitarra clássica de
Sernancelhe é um dos eventos que há mais
tempo existe em Portugal dedicados à guitarra,
tendo atraído guitarristas dos cinco
continentes. Conte-nos
nos como surgiu a ideia para
a realização de tal evento.

Paula Sobral: Este evento surgiu em 1999


quando eu estava no 5º ano da licenciatura em
guitarra na Universidade de Aveiro.

Na altura não existia nenhum concurso


internacional em Portugal dedicado ao nosso
instrumento, por isso, em "conversa de café", o
meu antigo professor
sor de conservatório Christopher Lyall lançou
lançou-me a ideia. Eu achei-a
achei bastante
megalómana para ser levada a cabo por nós os dois, no entanto aliciava
aliciava-me
me bastante e logo tratamos de
nos por ao trabalho.

O José Carlos (meu marido) juntou


juntou-se
se a nós e, agora que já éramos uma equipa maior, começamos a por
em prática esse sonho. O município de Sernancelhe (minha terra natal) pareceu-nos o local ideal, pelas
suas paisagens calmas de granito e castanheiros e, co
como
mo tinha um presidente de câmara aberto às artes
e às novas ideias, conseguimos desde logo o seu apoio.

R.G.: Sernancelhe cedo afirmou o seu grande nível artístico graças a participação de guitarristas como
Marcin Dylla, Gaelle Chiche, Dejan Ivanovic, Thib
Thibault
ault Cauvin, Gabriel Bianco entre muitos outros. A
calendarização do festival é um factor que muito contribui para esta procura por parte dos músicos.
Como é (ou foi inicialmente) pensado o agendamento do festival?

P.S.: Penso que o principal factor para a procura deste concurso são os guitarristas que por cá passaram,
eles são o nosso meio mais eficaz de publicidade. Causa
Causa-nos
nos grande satisfação ver este evento ligado a
nomes tão sonantes. Quando planeámos este evento tivemos como ambição entrar na “alta rota”
r dos
concurso e, como tal, foi muito importante uma pesquisa prévia das datas já instituídas, pois não
tínhamos interesse em colidir com outros concursos. Depois de escolhido o mês de Setembro, achamos
por bem dar-lhe
lhe continuidade para enraizar a data no calendário da guitarra.

R.G.: Os Festivais de Guitarra, tirando algumas honrosas excepções, estão normalmente vaticinados a

Guitarra Clássica 20
localidades afastadas das capitais. Será simbólico da posição da guitarra no mundo musical ou encontra
outras razões?

P.S.: Não creio que haja aqui algum tipo de simbolismo. Não devemos sentir nenhum complexo de
inferioridade. Devemos perceber que a guitarra, apesar de ser um instrumento antiquíssimo, começou a
impor-se como um instrumento clássico muito tardiamente se o compararmos com outros instrumentos
de tradição clássica. Ainda hoje há alguma confusão relativamente ao seu reportório. A guitarra, como
um instrumento mais jovem na tradição clássica, encontra mais facilmente as portas abertas em
localidades com menos tradição em eventos culturais.

R.G.: A participação de guitarristas portugueses é relativamente escassa, quando não o deveria ser. Que
justificação encontra para que tal aconteça?

P.S.: Infelizmente os guitarristas portugueses participam pouco. O ensino da guitarra nos conservatórios
portugueses e universidades é muito recente e o nível de ensino em alguns países estrangeiros é muito
alto. Por outro lado, enquanto Portugal tem, por exemplo, 5 bons guitarristas, outro país europeu terá
50 e isso faz-se notar na pouca participação dos portugueses em concursos. Mas vivemos numa aldeia
global e, quanto a mim, há uma tendência para um maior equilíbrio entre a qualidade de ensino.

R.G.: Seria viável a criação de um prémio que recompensasse o melhor guitarrista português em prova à
semelhança do que acontece em alguns eventos de outros países para atrair concorrentes da
nacionalidade do concurso?

P.S.: É uma boa ideia para este concurso. Talvez, em breve, possamos fazer a inclusão desse prémio,
sem que isso signifique um prémio menor.

R.G.: Sernancelhe irá agora para a sua 12ª edição. Que momentos particularmente marcantes retém
deste percurso?

P.S.: O ano de arranque marcou-me pelo receio do fracasso. Foi um arranque extremamente tremido.
As inscrições não apareciam e fomos obrigados a estabelecer um número mínimo de participantes.
Começamos com apenas 4 bravos concorrentes que tinham a particularidade de serem todos
portugueses. Pudemos respirar de alívio quando o presidente da câmara nos deu novo voto de
confiança para avançarmos para a segunda edição.

O segundo ano também foi um marco, representando a internacionalização do concurso e a sua procura
por um número mais confortável de participantes. Aliado ao concurso existe também um festival de
guitarra que, nesse ano, se destacou com a primeira interpretação do Concerto de Aranjuez em
Sernancelhe pelo Carlos Bonell. Fez uma interpretação absolutamente marcante!

Devo ainda indicar o 10º aniversário do evento como o marco mais recente. Comemorámos esse ano
com um alargamento de músicos convidados e com a inserção das master-classes que trouxeram muita

Guitarra Clássica 21
gente a Sernancelhe.

R.G.: A partir de certa altura, começou a associar a função pedagógica ao concurso, criando master-
classes leccionadas por diversos músicos. Que projectos tem para as próximas edições?

P.S.: De momento, sinto-me confortável com o modelo instituído, mas gostaria muito de, num futuro,
poder alargar o festival para mais dias de concertos, dando oportunidade a várias formações de câmara,
instrumentistas portugueses e a outras vertentes da família guitarra.

R.G.: Falando um pouco do Concentus Duo, a sua formação camerística com o guitarrista Manuel
Tavares, conte-nos como surgiu o duo e que projectos e concertos terão durante este ano.

P.S.: Este duo surgiu depois de sairmos da Universidade onde estudámos. Sempre tive uma grande
admiração pela música feita em duas guitarras e, quando o Manuel veio dar aulas para Viseu, surgiu a
oportunidade de formarmos um duo. Tem sido sempre um prazer tocar em duo e isso complementa a
minha vida profissional.

O Concentus Duo está actualmente a viver momentos de descanso. O meu colega está a viver a nova
experiência de ser pai e, por vezes há que se pesar as prioridades. Apesar de, por vezes, a preguiça dos
fins-de-semana em família saberem bem, é pouco agradável não ter concertos à vista, no entanto
estamos a organizar o tempo para montar reportório novo.

R.G.: Com a sua organização do Festival e Concurso Internacional de Sernancelhe, o panorama musical
português ficou muito mais rico. Quanto a si o que está por fazer no plano musical em Portugal?

P.S.: Penso que todos os municípios deveriam apoiar com seriedade a música com verbas decentes de
modo a possibilitar a organização de um maior número de concertos com músicos nacionais e
estrangeiros. Felizmente temos assistido a um acréscimo de iniciativas no campo da guitarra, mas nem
sempre essas iniciativas têm o apoio que merecem.

A educação tem um papel absolutamente primordial para o sucesso das actividades culturais. Estou
bastante optimista relativamente à nova “avalanche” de crianças que estão a entrar nos conservatórios.
Integrarão, no futuro, um público interessado e crítico e, muitas delas, terão um futuro profissional na
música. Esta visão pessoal de um futuro próximo, traz-me muito optimismo. Espero que a minha
expectativa não seja defraudada com um baixar de qualidade!

Por fim, acho absolutamente lamentável o papel “deseducador” da televisão que passa tanta música má
para as massas. Era urgente acabar com isso.

Guitarra Clássica 22
Paula Sobral nasceu em Sernancelhe, Viseu.
Iniciou estudos musicais no Conservatório de
Música de Viseu, onde estudou guitarra com
Luís Lapa e Christopher Lyall que a orientou
até ao fim do curso complementar.

Em 1994 iniciou o curso Licenciatura em


Ensino da Música
sica na Universidade de Aveiro,
na área específica de Guitarra Clássica, sob
a orientação de Paulo Vaz de Carvalho.
Depois de concluir a licenciatura continuou o
estudo do instrumento com o guitarrista
eslovaco Jozef Zsapka. Conjugou o estudo da
guitarra com
om a actividade docente no Conservatório
de Viseu. Participou em várias master
master- class. Leccionou igualmente na Escola de Música do
Colégio de S. José (Guarda) e no Conservatório de Música de Seia.

Actualmente lecciona no Conservatório de Música de Viseu “D


“Dr.
r. José de Azeredo Perdigão”.

Em 2007 concluiu o seu mestrado em Música de Câmara na Universidade de Aveiro sob a


orientação dos Professores Paulo Vaz de Carvalho, Helena Marinho, Fausto Neves e do
guitarrista brasileiro Odair Assad (membro do célebre duo Assad).

Desde 1999, conjuntamente com José Carlos Sousa, é directora artística do Concurso e Festival
Internacional de Guitarra Clássica de Sernancelhe, evento pioneiro no país, já na sua 12ª
edição. A sua actividade artística marca
marca-se pela actuação em música
sica de câmara com o duo de
guitarras Concentus Duo, onde toca com Manuel Tavares desde o ano 2000. O duo apresentou-
apresentou
se em várias cidades do país, no Festival Ciclo de Guitarra Clássica de Oliveira do Bairro,
Festival de Guitarra da Fundação António de Alm
Almeida,
eida, Festival Internacional de Sernancelhe,
Centro Cultural de Belém, Festival Internacional Guitarmania (Almada e Lisboa) e Festival
Internacional de Guitarra de Santo Tirso.

Fora de Portugal marcou presença no Festival Internacional de Guitarra em Hondarribia, País


Basco, "Guitarre-Essone"
Essone" em Paris, França e Festival Internacional de Guitarra de Palencia,
Espanha.

www.concentusduo.com
www.cm-sernancelhe.pt

Guitarra Clássica 23
VII ENCONTRO NACIONAL DE GUITARRA
(CONSERVATÓRIO REGIONAL DE CASTELO BRANCO, 31/03/09)
Por Jorge Pires

“No próximo ano encontramo-nos outra vez: 1ª terça-feira das férias da Páscoa”. Tem sido assim que os
guitarristas (professores e alunos) participantes nos Encontros Nacionais de Guitarra marcam novo
encontro para o ano seguinte. E foi também assim que, em 2008 em Viseu (Conservatório de Música
José Azeredo Perdigão), se agendou o VII Encontro Nacional de Guitarra para a interrupção lectiva da
Páscoa de 2009. Estes encontros tiveram o seu início em 2003 na Academia de Música de Santa Maria
da Feira por iniciativa dos professores e guitarristas Carlos Marques e António Andrade com o objectivo
de promover a troca de experiências entre alunos de guitarra de diferentes escolas através da partilha
das suas interpretações. Este evento foi-se repetindo nos anos seguintes e sendo acolhido
sucessivamente por diversas escolas. O último, à data em que escrevo, foi então o VII Encontro Nacional
de Guitarra (ENG) e realizou-se no Conservatório Regional de Castelo Branco (CRCB) a 31 de Março de
2009. E é sobre este que o Pedro Rodrigues me propõe escrever algumas linhas.

No VII ENG participaram professores e alunos das seguintes escolas: Academia de Música e Dança do
Fundão, Academia de Música de Santa Maria da Feira, Escola de Música do Centro de Cultura Pedro
Álvares Cabral (Belmonte), Conservatório de Música José Azeredo Perdigão (Viseu), Conservatório de
Música de S. José da Guarda, Escola Superior de Artes Aplicadas (Castelo Branco), Academia de Música
de Ovar, Conservatório de Música de Coimbra e Academia de Música de Lagoa, para além do
Conservatório anfitrião. Todos eles, perfaziam 47 professores e alunos (aos quais se somaram cerca de
20 ouvintes visitantes) dos quais, 34 inscritos a proporem-se para audição pública. Uso a precisão destes
números, sem arredondamentos, para evidenciar uma das dificuldades que tivemos, enquanto
organizadores: Os três momentos previstos para estas audições quase se revelavam insuficientes e
saíram frustradas as tentativas de redução de programa a alguns dos que se propunham tocar. É
verdade que alguma “negociação” se conseguiu mas, no geral, quem nesse dia se deslocou de longe a
Castelo Branco ia para tocar. Receávamos que os momentos musicais se tornassem maçudos e
aborrecidos por tão longos, mas não foi isso que aconteceu, mantendo-se o interesse até final de cada
um destes momentos. Resultado: mais de três horas de música com executantes de vários níveis de
desenvolvimento (dos cursos de iniciação ao superior) e ouvintes atentos e entusiásticos. Para isso terá
ajudado também o conforto e a beleza do espaço – o edifício do CRCB tinha sido inaugurado há pouco
de importantes obras de recuperação e o auditório principal (onde decorreu parte do Encontro)
confirmou as suas simpáticas qualidades acústicas para o nosso instrumento.

Com o apoio de uma pequena loja de música da cidade fez-se um modesto passatempo, o !GuitarQuiz,
com questões relacionadas com a guitarra e que serviu de pretexto para oferecer brindes (cordas!) a
alguns dos presentes.

Guitarra Clássica 24
Voltemos um pouco atrás neste texto e à quantidade de participantes: foram 47 as inscrições, mas este
número teria sido superior, não fosse o inconveniente da data. Esta é uma actividade centrada nos
conservatórios e academias e, consequentemente, está condicionada pelo calendário escolar. Disto
resultou que vários professores (e respectivos alunos) estivessem impedidos de estar presentes por
terem sido convocados para reuniões de avaliação nas suas escolas. Daí que se tenha decidido que o
próximo ENG seria, não à terça, mas à primeira quinta-feira da interrupção lectiva da Páscoa.

Já depois da parte musical e da entrega dos certificados de participação deu-se início ao painel “A
Guitarra em Portugal – ao encontro de um debate”. A mesa do painel era constituída, para além de mim
próprio, por Pedro Rufino, Paula Sobral, Hugo Simões e Carlos Semedo, que moderou a sessão. Carlos
Semedo é programador e coordenador de produção do Cine-Teatro Avenida de Castelo Branco e é
gerente da Apsara – Gestão Cultural. É um observador perspicaz e com sentido crítico das questões
educativas e culturais e presidiu a sessão de uma forma bastante dinâmica, tendo sido acompanhado
pelos outros elementos da mesa e pelo público em geral. Citando, resumidamente, C. Semedo depois do
Encontro: “Eis o que destaco da minha participação no Encontro: senti um forte interesse pelo
instrumento e pelos mais diversos assuntos relativos ao seu ensino, programas, as didácticas e
pedagogias. O encontro serviu também para se verificar o forte interesse que o instrumento continua a
motivar junto dos mais jovens e a grande dispersão territorial deste impacto, com todas as escolas de
música, com cursos oficiais, a terem na sua oferta educativa, a Guitarra. Foi com alguma perplexidade
que dei conta da não resolução da questão da nomenclatura: Viola Dedilhada versus Guitarra. Do que
mais gostei foi da participação activa, com muitas perguntas, alguma discussão e a exposição de pontos
de vista, sem formalidades.”

Uma pequena nota final: estava prevista a constituição de uma associação de guitarra de âmbito
nacional (tema também discutido no painel de debate), sendo esta a terceira tentativa, nestes
encontros. O assunto tinha sido abordado no V ENG (Guarda, 2007) e, depois do VI ENG (Viseu, 2008),
chegou a avançar-se para uma formalização jurídica. Mas após alguns entraves com a denominação e o
desinteresse de alguns dos envolvidos, o assunto acabou por ser deliberadamente esquecido.
Provavelmente por aversão a formalidades e burocracias. Trocam-se e-mails, telefonemas e SMS.
Marcam-se ensaios, estágios orquestrais e encontros com 10, 20, 50 pessoas. Mas quando se trata de
formulários, carimbos e conservatórias, quase todos fogem! Algo se perderá com isto, certamente. Mas
é verdade que não é por isto que deixa de se fazer música. E com guitarra de preferência.

Guitarra Clássica 25
Luthier.pt
Retrato de Óscar Cardoso (n. 1960)
por Francisco Morais Franco

Natural
atural de Cinfães do Douro, foi em criança
que surgiu o seu interesse pela construção de
instrumentos musicais. Sendo filho de Manuel
Cardoso (1933-1991),
1991), também construtor de
guitarras, desde cedo começou a ajudar o pai
na oficina.

os seus 14 anos de idade


Refere que por volta dos
construía, “quase que por diversão”, 3 guitarras
por semana que depois vendia para uma loja de instrumentos musicais. Passou por uma fase
essencialmente dedicada ao restauro e à construção de guitarras clássicas, sempre sobre orientação
orien do
seu pai, até que com 19 anos começa também a construir guitarras portuguesas.

Em 1986, com uma bolsa da Secretaria de Estado da Cultura, foi estudante na ““Scuola
Scuola Internazionale di
Liuteria” em Cremona (Itália) onde tirou curso de luthier. Óscar Cardoso
rdoso sublinha a importância desta
formação ao nível teórico, visto que “na prática já fazia parecido” devido aos ensinamentos que
recebera do seu pai que por sua vez tinha aprendido com o mestre Álvaro Merceano da Silveira (1883-
(1883
1975), importante luthier Português, que também tinha estudado na mesma escola em Itália. Após
concluir o curso em 1990, regressa a Portugal onde continua a parceria com o seu pai e por morte deste
fica o responsável pela oficina.

Filosofia

Óscar Cardoso constrói o tradicional mas


ma
gosta de inovar (“Não gosto de ideias
concebidas”), procura trazer algo novo e
diferente tanto ao nível da acústica como
do design. Dentro dos seus modelos
padrão, destacam-se
se para além das
guitarras clássicas de concerto,
concerto as guitarras
clássicas sem fundo,
o, com um fundo
amovível que quando retirado favorece os
agudos (apesar de uma pequena perda de
baixos) e que segundo Óscar Cardoso, visto não ter uma caixa de ressonância fechada: “usa o espaço da

Guitarra Clássica 26
sala de concerto como acústica do próprio instrumento, (…) não perde tanta definição ao perto nem ao
longe visto que a velocidade de propagação do som é superior quando comparada com uma guitarra
com fundo”.

Para além destes modelos, tem construído vários “híbridos” resultantes da fusão de guitarra
portuguesa, alaúde
aúde e guitarra clássica. Estes modelos são frequentemente usados por músicos como
Pedro Jóia e José Peixoto, entre outros. Óscar Cardoso refere ter tido o privilégio de receber na sua
oficina o afamado guitarrista de jazz Pat Metheny que ao ficar surpreso levou consigo um destes
híbridos.

A sua mais recente invenção até à data vem no seguimento de um pedido de um cliente especial e
consiste numa guitarra, também híbrida, mas com dois tampos bilaterais (um traseiro em cedro e um
frontal em pinho) e dois braços
ços (um para cada tampo).

Quando questionado sobre qual a melhor madeira para a construção de instrumentos responde sem
hesitação: “todas as madeiras são boas, desde que se faça uma boa análise da espessura, densidade,
vibração, elasticidade e modo de apl
aplicação”.
icação”. Apesar de tudo não esconde o seu favoritismo pelo Pinho e
pelo Pau-santo
santo do Brasil, respectivamente para tampos harmónicos e costas.

O tempo de espera desde o pedido à entrega ronda os 12 meses.

Perspectivas

Sobre as suas perspectivas de futuro, apesar de considerar que em Portugal ainda não existem grandes
horizontes de mercado quer para os músicos quer para os construtores, reconhece que a grande
concorrência internacional faz com que seja difícil um luthier Português afirmar-se.
se. Independentemente
Independentemen
disto, Óscar espera continuar a fazer as suas experiências e confessa que lhe dá gosto apresentar algo
novo e diferente e ver a reacção das pessoas.

“(...) quer gostem quer não vou sempre fazer as minhas loucuras, como gosto de lhes chamar.”

Contactos

Rua 25 de Abril
Vivenda Cardoso
Casal do Previlégio
2620-412
412 Póvoa de Santo Adrião

oscar.cardoso@sapo.pt

Guitarra Clássica 27
Novas Gravações
por Tiago Cassola Marques

A sensação de um universo sonoro estranho, novo e belo. Dois mundos quase sempre de
costas voltados (piano e guitarra, entenda-se), de repente juntam-se e celebram a música.

O novo disco do duo Debs-Fruscella Opus Mixtum, é isso mesmo, uma nova e bela experiência
de duo, fazendo um mix de música barroca, clássica, espanhola e brasileira, bem tocada, séria
e divertida. Um repertório musicalmente rico e variado, juntando timbres, estilos e técnicas
tão diferentes quanto originais.

As interpretações causam um verdadeiro prazer na audição, fazendo uma leitura muito


interessante de todas as obras. La vida breve de Manuel de Falla viva e enérgica; a Sonatina de
Diabelli (com a cadenza original do A. Fruscella) é esteticamente muito bem conseguida,
interpretada com segurança e virtuosismo; a releitura da Suite Retratos de Gnattali,
misturando o timbre e as cores do piano, um equilíbrio perfeito; e ainda uma bela sonata de
Bach, dois grandes choros de Augusto Sardinha, e novamente o Corta Jaca de Gnattali, desta
vez com percussão. Fraseado, articulação, swing, sincronia quase sempre perfeita... é clara a
excelência e o profissionalismo do duo em qualquer estilo.

As transcrições são igualmente boas, mais uma vez denotando equilíbrio e clareza no discurso.
Para La vida breve utilizaram a transcrição para violino e piano de Kreisler, os dois choros de
Sardinha foram transcritos por Gnattali, e a Suite Retratos e a Sonata BWV 1027 de Bach foram
transcritos pelo próprio duo. A Sonatina é uma das quatro obras originais para piano e guitarra
do compositor e editor austríaco Anton Diabelli. Quanto à gravação, aquilo que poderia ser um
problema, simplesmente deixa de o ser. O equilíbrio é muito agradável, às vezes excelente, e a
captação dos dois instrumentos é quase sempre cristalino.

Sem dúvida, um disco que merece fazer parte da discoteca de qualquer amante da música.
Fica a curiosidade de como será ao vivo.

Manuel de Falla, La vida breve; Anton Diabelli, Sonatina op. 68 (Andante


sostenuto, cadenza, rondo) ; Johann Sebastian Bach, Sonata BWV 1027 (I.
Adagio II. Allegro ma non tanto III. Andante IV. Allegro moderato); Hanibal
Augusto Sardinha, Desvairada; Radames Gnattali, Suite Retratos (I. Choro
II. Valsa III. Schottisch IV. Corta Jaca); Hanibal Augusto Sardinha, Gente
humilde; Radames Gnatalli, Corta Jaca (with percussion)

Rania Debs – piano, Antonio Fruscella – guitar


( raniadebs@hotmail.com / afru79@hotmail.com )
Ref.: op.mix.2009/1

Guitarra Clássica 28
O nacionalismo musical na obra de Manuel de Falla e Frederico Garcia Lorca

As Siete Canciones Populares Españolas e as Canciones Españolas Antiguas


por Luiz Henrique Mello e Manuela Vieira

O presente trabalho pesquisa a história das Siete Canciones Populares Españolas, de Manuel de Falla e
as treze Canciones Españolas Antiguas, de Frederico Garcia Lorca, suas origens e influência exercida pelo
nacionalismo musical europeu. Busca justificar a escolha da cultura popular andaluza pelo pensamento
nacionalista pesquisando a história da ocupação árabe na Península Ibérica bem como a sua influência
na cultura andaluza. Aborda ainda a vida e a obra de Manuel de Falla e Frederico Garcia Lorca e
importância que eles tiveram no cenário musical e social espanhol de sua época. As Siete Canciones
Populares Españolas são: El paño moruno; Seguidilla Murciana; Asturiana; Jota; Nana; Canción e Polo.
As Canciones Españolas Antiguas são: Anda, jaleo; Los cuatro muleros; Las tres hojas; Los mozos de
Monleón; Las morillas de Jaén, Sevillanas del siglo XVIII; El Café de Chinitas; Nana de Sevilla; Los
pelegrinitos; Zorongo; Romance de Don Boyso; Los reyes de la baraja e La tarara

Espanhóis, árabes e indianos


A invenção de Andaluzia

As rivalidades por ocasião de uma mudança de reinado no século VIII mergulharam o reino espanhol em
uma sangrenta guerra civil. Com a morte do rei Vitiza, em 710, parte da nobreza pretendia repartir o
reino entre os próprios filhos, enquanto outros nobres apoiavam a escolha de um novo rei. Um novo rei
foi de fato eleito, mas a guerra civil deixou o reino completamente arrasado.
Os nobres derrotados buscaram então apoio do conde Julian, no norte da África, para retomar o
controle do país. Julian era provavelmente aliado dos muçulmanos e estes, percebendo a oportunidade
que tinham em mãos, invadiram a Península em abril de 711, sob as ordens de Yebel al-Tariq, cujo nome
latinizado batiza o Estreito de Gibraltar. Em poucos anos, toda a Península estava sob domínio árabe, do
1
Estreito de Gibraltar aos Pirineus.
Por volta do ano de 1400, tribos ciganas que fugiam da perseguição dos cavaleiros do Grande
2
Tamerlão , na Índia, chegam ao Oriente Médio. Vinte anos mais tarde, essas tribos aparecem em
diferentes povos da Europa e entram na Espanha com os exércitos sarracenos que desde a Arábia ao
3
Egito, desembarcavam periodicamente na Península . A Espanha muçulmana formava um bloco
relativamente homogêneo onde, assim como no norte da África, se falava a mesma língua, seguia-se a
mesma religião e obedecia-se à mesma lei. Os árabes denominavam al Andalus o território da península
que estava sob seu domínio. Nos anos imediatamente posteriores à invasão, al Andalus abarcava quase
toda a península, com exceção de alguns redutos nos Pirineus e na Cordilheira Cantábrica.
Com o tempo, os cristãos se reorganizaram e, lentamente, foram retomando o território; e por volta de
1085, os territórios cristãos e muçulmanos estavam equilibrados. As batalhas continuaram, os cristãos
avançaram e o território conhecido com al Andalus foi se restringindo cada vez mais ao sul da Península,

1 PÉREZ, Joseph. Historia de España. Ed. Crítica


2 Tamerlão (versão de seu nome turcomano, Timur-i-Lenk, ou Timur, o Coxo) foi o último dos grandes conquistadores nómadas da
Ásia Central de origem turco-mongol.
3 LORCA, Frederico Garcia. Conferências. Editorial Comares

Guitarra Clássica 29
na região onde hoje fica o estado de Andaluzia. Al Andalus se reduziu então à região de Granada, que
continuou independente até sua queda, em 1492.

O nacionalismo musical
A arte como bandeira

O início do século XX foi um período de crise para os compositores europeus. Neste período, conhecido
como Romantismo Tardio, se tentava romper com as últimas amarras da tonalidade deixadas por
Wagner e Liszt. A obra destes dois compositores foi tão revolucionária no que se refere à expansão da
tonalidade e técnicas de modulação que parecia nada mais haver a ser feito. Segundo Paul Griffiths,
Debussy resolveu o problema abandonando a ortodoxia harmônica e estrutural; mas se os antigos
modelos de desenvolvimento contínuo deviam ser preservados, tornavam-se necessárias novas formas
4
de compromisso, no mínimo para satisfazer o senso formal legado pela tradição . Foi um período de
contrastes: de um lado, compositores que tentavam a todo custo manter a estética romântica
novecentista; e do outro, compositores em crise tentando romper com ela. A rivalidade entre
“conservadores” e “radicais” sempre existiu, mas naquele momento era diferente: não existiam apenas
duas correntes, mas sim várias opções a escolher e Griffiths situa o início dessa divergência no período
entre 1890 e 1910, auge do Romantismo Tardio, período em que se encorajou cada compositor a
buscar dentro de si a resposta para o dilema tonal.
O tenso período que precedeu a Primeira Guerra Mundial levou os compositores europeus a se
voltarem para o folclore de seu próprio país, em vez de seguir a tendência vienense, como de costume.

Nesse sentido, poucos têm a estatura de Béla Bartók (1881-1945), que se dedicou com afinco à pesquisa
da música folclórica, tornando-se um dos maiores especialistas de canções folclóricas em todo o mundo
e o maior compositor nacionalista de sua época. Sua intenção não era apenas utilizar temas folclóricos,
mas incorporar o modo popular de se expressar em sua composição. Segundo ele,

“(...)o estudo dessa música camponesa teve para mim importância decisiva, pois me revelou a
possibilidade de uma total emancipação da hegemonia do sistema maior-menor. A maior parte desse
tesouro de melodias – também a mais valiosa – deriva dos antigos modos da música de igreja, de
escalas da Grécia antiga e ainda mais primitivas (notadamente a pentatônica), apresentando mudanças
5
de andamento e ritmos variados.”

Mas o que se supõe ser fruto das pelejas teóricas dos compositores do início do século XX, na verdade já
havia sido plantado muito antes por um teórico de suma importância, então praticamente esquecido,
chamado Antonio Eximeno. Padre Antonio Eximeno nasceu em Valência, em 26 de setembro de 1729.

4
GRIFFITHS, Paul. A música moderna – uma história concisa e ilustrada de Debussy a Boulez. Jorge Zahar Editor.
5
GRIFFITHS, Paul. A música moderna – uma história concisa e ilustrada de Debussy a Boulez. Jorge Zahar Editor.

Guitarra Clássica 30
Educou-se
se em sua cidade, no seminário Nobles, sob a direção dos jesuítas. Em 1767, quando os jesuítas
foram expulsos da Espanha, Eximeno foi para a Itália e se estabeleceu em Roma, onde passou o resto da
6
sua vida. Faleceu em 1808.
Em Roma,, Eximeno se dedicou ao estudo da música e em 1774 publicou em italiano o livro: Dell’ origine
e delle regole della musica, colla storia del su progresso, decadenza e rinnovazionne (Da origem e das
7
regras da música, com a história do seu progresso, decadên
decadência e renovação) . Nesta obra revolucionária,
Eximeno rompe com os teóricos de sua época, dizendo que seus ensinamentos são mais obstáculos do
que apoios aos que desejam fazer boa música. Para ele, a música é uma linguagem que expressa
emoções, e o músico pode se guiar por bons exemplo
exemplos e pelo próprio instinto.
Segundo Gilbert Chase, Felipe Pedrell, insigne compositor e teórico do nacionalismo espanhol, se
apropriou da seguinte frase de Eximeno: “Sobre a base do canto nacional deveria construir cada povo
seu
eu sistema”. Não nos cabe aqui aprofundar
aprofundar-nos
nos na obra de Eximeno, mas não podemos deixar de
ressaltar que ele, ainda no século XVIII, antecipa os ideais nacionalistas do
doss compositores românticos.
Na Espanha, o nacionalismo foi abraçado por Manuel de Falla que, orientado por Felipe Pedrell, se
dedicou à pesquisa de canções folclóricas andaluzas. Seus estudos com Felipe Pedrell duraram três anos.
Falla emergiu esteticamente fortalecido e com uma vívida realização dos valores criativos inerentes à
música espanhola.
Na pesquisa e coleta de canções andaluzas teve como parceiro Frederico Garcia Lorca, tornando-se
tornando seu
amigo para o resto da vida. Em 1920, Garcia Lorca, Manuel de Falla junto com o filólogo Ramón
Menéndez Pidal, visitaram os ciganos de Albacín e Sacr
Sacromonte
omonte para formalmente coletarem canções e
baladas, surgindo daí as melodias que inspiraram as treze Canciones Españolas Antiguas,
Antiguas de Frederico
Garcia Lorca.

Frederico Garcia Lorca


Poesia, música, folclore e política

Frederico Garcia Lorca nasceu em cinco de junho de 1898,


em uma província nos arredores de Granada. Artista no
sentido amplo do termo, foi poeta, dramaturgo, músico,
escritor e até pintor. Muitos o consideram o maior artista
espanhol desde Cervantes.
Frederico Garcia Lorca teve importante presença artística
na Espanha, nos Estados Unidos e em muitos outros países
desde o seu primeiro livro - Impressões e Paisagens -

6
CHASE,Gilbert. In Revista Musical Chilena. Instituto de Extensión Musical de la Universidad de Chile. Santiago, Julho – Agosto de
1946.
7
CHASE,Gilbert. In Revista Musical
usical Chilena. Instituto de Extensión Musical de la Universidad de Chile. Santiago, Julho – Agosto de
1946.

Guitarra Clássica 31
publicado em 1918. Ele não era uma figura isolada, mas parte de um grupo de elite de intelectuais e
8
artistas, incluindo a dançarina La Argentinita , o pintor Salvador Dalí, o compositor Manuel de Falla, o
toureiro Ignácio Sanches Mejías e o diretor Luis Buñuel.
Influenciado por seu tio-avô – também chamado Frederico – e seus amigos mais próximos, o jovem
Garcia Lorca mergulhou na cultura rural da Espanha. Em 1921, ele tomou lições de violão flamenco com
dois ciganos de Fuente Vaqueros, no subúrbio de Granada, onde ele nasceu. Ele declarou em uma carta
a um amigo, que estava apto a acompanhar as danças flamencas fandangos, peteneras, tarantos,
9
bulerías e romeras .
A primeira gravação das Canciones Españolas Antiguas – muitas das quais ele havia coletado e
memorizado desde a infância - data de 1931, feita pelo próprio Garcia Lorca e La Argentinita. Muitas
delas foram rearmonizadas ou reescritas por ele para a gravação do projeto. Foram dez canções
10
lançadas em cinco discos de 72rpm .
As canções hoje são consideradas de Garcia Lorca, porém, mais acurado seria considerá-las como parte
de sua pesquisa de canções. Essas músicas eram e ainda são freqüentemente apresentadas por grupos
flamencos e produções de danças espanholas e as mais populares são Anda Jaleo, Zorongo, El Cuatro
Muleros e En el Café de Chinitas. A conexão entre as canções e a infância de Garcia Lorca é ressaltada
pelo fato de que En el Café de Chinitas foi ensinada a ele por seu tio-avo, que ganhava a vida tocando
11
bandurrias em nightclub flamenco chamado Café de Chinitas, em Málaga .
Há citações de vários recitais e palestras oferecidos por Garcia Lorca sobre vários temas. Muitos desses
eram acompanhados por La Argentinita, que cantava, dançava e tocava castanholas com Garcia Lorca ao
piano ou violão. As Canciones Españolas Antiguas de Garcia Lorca e La Argentinita fizeram fama antes de
sua gravação, incluídas nesses eventos.,
Em 1922, Lorca se uniu a Manuel de Falla, Miguel Ceón, Hermenegildo Lanz, Ignácio Zuloaga e outros
para promover a criação do Concurso de Cante Jondo, com a finalidade de resgatar o primitivo canto
andaluz.
Em agosto de 1936, a vida de Garcia Lorca – que tinha 38 anos - teve fim tragicamente, em Granada. Em
12
visita a sua família, os falangistas o prenderam e em alguns dias, o executaram nas montanhas
próximas a Viznar em Fuente Grande, perto de Granada.

8
La Argentinita, nome artístico de Encarnación López Júlvez (Buenos Aires; 1895 - Nova York; 24 de setembro de 1945). Bailarina,
coreógrafa e dançarina de flamenco. Estava sempre presente nas apresentações de Garcia Lorca.
9
THOMAS, Katherine. The political and artistic impact of Federico García Lorca's Anda Jaleo
on flamenco in Spain and the United States. 1998. 16p. Flamenco History Conference at the University New Mexico
10
THOMAS, Katherine. The political and artistic impact of Federico García Lorca's Anda Jaleo on flamenco in Spain and the United
States. 1998. 16p. Flamenco History Conference at the University New Mexico
11
THOMAS, Katherine. The political and artistic impact of Federico García Lorca's Anda Jaleo
on flamenco in Spain and the United States. 1998. 16p. Flamenco History Conference at the University New Mexico
12
A Falange era um pequeno partido de estilo fascista fundado por José Antonio Primo de Rivera em 1933 que depois se fundiu
em 1934 com as mais proletárias JONS (Juntas de Ofensiva Nacional-Sindicalista). Havia tensões entre os “reacionários modernos”,
que seguiam José Antonio e acreditavam acima de tudo nos ideais nacionalistas da Velha Espanha, e ala socialista, que se ressentia
do modo como a sua ideologia anticapitalista era pisoteada pelos señoritos de classe alta. A facção “esquerdista” sofreu ainda
mais desvantagens com o enorme fluxo de oportunistas em 1936 e 1937. A sua influência foi esmagada quando Franco
institucionalizou o movimento, fundindo-o com os monarquistas carlistas.

Guitarra Clássica 32
A origem de Anda Jaleo e sua importância na ditadura de Franco

Em 1920, Lorca e seus companheiros coletaram essas canções populares e baladas em uma visita às
cavernas dos ciganos de Granada. Eles também invocaram uma variedade de canções espanholas do
século XIX, incluindo os Cantos españoles: coleción de aires nacionales y populares, de Francisco Ocón, e
os Cantos populares asturianos, de José Hurtado. As coleções de Hurtado e Ocón incluem as primeiras
13
versões de Anda Jaleo, intituladas A carruagem e Os contrabandistas de Ronda .
Anda Jaleo se tornou o título popular da canção com a reedição de La Argentinita e Garcia Lorca,
embora em nota a um programa de dança, tenha-se feito tributo às primeiras versões de Anda Jaleo
que, de acordo com a nota é “um romance de contrabandistas do século XIX” e uma dança sobre “os
cavaleiros das Serras e suas lutas, amores e despedidas.”
14
Imediatamente após a Guerra Civil Espanhola , a censura ganhou força total na Espanha. Nenhuma
menção podia ser feita sobre os indivíduos associados ao Exército Republicano, prisões ou execuções,
sobre Garcia Lorca e suas obras, incluindo as canções coletadas, que não estavam disponíveis e não
podiam ser discutidas publicamente.
Durante a Guerra Civil, Anda Jaleo era entoada como um hino do exército republicano, com uma letra
politicamente explosiva. Nessa época era chamada Tren Blindado, uma clara referência ao mítico trem
da revolução russa. De acordo com as letras que circulavam na época, o trem fazia com que los
sublevados (os nacionalistas), os inimigos dos republicanos, recuassem aterrorizados. Eis as letras:

Tren Blindado (Anda Jaleo)

1ª letra 2ª letra

Yo me subí um pino verde Yo marché con el tren blindado


Eu subi em um pinheiro verde Eu marchei com o trem blindado
Por ver si Franco llegaba Camino de Andalucía
Para ver se Franco chegava A caminho de Andalucía
Y solo vi al tren blindado Y vi que Queipo de Llano
E só vi o trem blindado E vi que Queipo de Llano
Lo bien que tiroteava Al verlo retrocedía
E quão bem ele atirava Ao vê-lo retrocedia

Refrão Refrão
Anda, jaleo, jaleo Anda jaleo, jaleo

13
THOMAS, Katherine. The political and artistic impact of Federico García Lorca's Anda Jaleo
on flamenco in Spain and the United States. 1998. 16p. Flamenco History Conference at the University New Mexico
14
A Guerra Civil Espanhola foi um conflito bélico deflagrado após um fracassado golpe de estado de um setor do exército contra o
governo legal e democrático da Segunda República Espanhola. A guerra civil teve início após um pronunciamento dos militares
rebeldes, entre 17 e 18 de julho de 1936, e terminou em 1° de abril de 1939, com a vitória dos rebeldes e a instauração de um
regime ditatorial de caráter fascista, liderado pelo general Francisco Franco.

Guitarra Clássica 33
Vamos, grite, berre Vamos, grite, berre
Silba la locomotiva Silba la locomotiva
A locomotiva sibilou A locomotiva sibilou
15
Y Franco se va a paseo Y Queipo de Llano se va a paseo
16
E Franco se foi E Queipo de Llano se foi

Manuel de Falla
Nacionalismo, folclore e Felipe Pedrell

Manuel Maria de Falla y Matheu nasceu na cidade de Cádiz em


23 de novembro de 1876. Sua mãe foi sua primeira professora
de piano e Falla adquiriu uma teoria musical rudimentar com os
músicos locais. Mas foi depois de ouvir uma série de concertos
sinfônicos no Museu de Artes em Cádiz
diz que lhe veio a
17
determinação de se dedicar inteiramente à música .
Mudou-se
se para Madrid para estudar piano com José Tragó,
apesar de não aspirar ser um grande pianista: seu desejo era a
composição. Mas nessa época não existia na Espanha, a
produção musical em suas manifestações mais cultas e elevadas.

Manuel de Falla Não havia recompensa material e, com a recorrente falta de


dinheiro, Falla foi levado a compor canções populares para ganhar a vida.
Nesta crucial conjuntura, Falla conheceu o homem que estava destinado a exercer decisiva influência
em sua carreira artística. Seu nome era Felipe Pedrell.
Felipe Pedrell foi o principal pensador do nacionalismo musical espanhol, tendo influenciado toda uma
u
geração de músicos a pesquisar canções populares e incorporar gêneros populares a suas composições.
Falla estudou com Pedrell durante três anos. Estudou formas musicais, como lied e coral, com grande
seriedade e aprofundamento, visto que Pedrell era ext
extraordinariamente
raordinariamente exigente e severo a respeito da
escrita musical.
Manuel de Falla terminou de escrever as Siete Canciones em 1911, pouco antes de a 1ª Guerra Mundial
começar, antes de sair de Paris. O motivo que o levou a compô
compô-las
las foi o pedido de uma artista
ar
espanhola da Companhia de Ópera Cômica para que lhe indicasse canções espanholas para uma
apresentação que faria em Paris.
Anteriormente, um professor de canto grego desejava colocar acompanhamento em algumas canções
populares de seu país e, como não sabia fazê-lo,
lo, perguntou a Falla se ele se disponibilizaria. Falla

15
Gonzalo Queipo de Llano foi um dos generais que arquitetou o golpe militar contra a Segunda República, cujo fracasso levou a
Guerra Civil Espanhola.
16
THOMAS, Katherine. The political and artistic impact of Federico García Lorca's Anda Jaleo on flamenco in Spain and the United
States. 1998. 16p. Flamenco History Conference at the University New Mexico
17
PAHISSA, Jaime. Vida y obra de Manuel de Falla
Falla. Buenos Aires. Ricordi Americana S.A. 1946.

Guitarra Clássica 34
acedeu, e harmonizou as canções para canto e piano usando sua técnica e seu próprio sistema de
harmonização. Este sistema próprio foi fruto do estudo do livro L’acoustique nouvelle. Consiste em
conhecer como notas próprias da harmonia as notas produzidas pela ressonância natural das mesmas,
incluindo-as na harmonia, o que leva a resoluções ou cadências inesperadas, por transformação da
função tonal das notas de um acorde.
Este teste lhe pareceu de excelente resultado; e, apesar de nunca mais ter voltado a ver o professor
grego e de nunca ter ouvido falar da sua canção, serviu para encorajá-lo a escrever as Siete Canciones.
No trabalho de harmonização das Siete Canciones, Falla não se limitou ao puro acompanhamento do
canto popular tal como sai da boca do povo. Quando parecia bom para ele, seguia o caminho que sua
livre inspiração lhe ditava; e assim, em algumas canções, a melodia é de todo folclórica, em outras nem
tanto e outras, ainda, são totalmente originais. As Siete Canciones Populares Españolas foram estreadas
em 1915, por ocasião de uma homenagem recebida pelo Ateneo de Madrid, antes de Falla fazer, com
Garcia Lorca, a visita às cavernas de Granada para coletar melodias.
Sem dúvida, Manuel de Falla foi o compositor espanhol de maior envergadura a se dedicar ao
nacionalismo musical, incorporando de fato o folclore andaluz em sua criação, não se limitando apenas
à coleta e harmonização de melodias. Em abril de 1922 foi nomeado acadêmico de honra da Real
Academia Hispano-Americana de Ciências e Artes de Cádiz.
Em 28 de setembro de 1939, depois da Guerra Civil Espanhola e nas vésperas da Segunda Guerra
Mundial, Falla se exilou na Argentina, mesmo com o assédio do governo de Franco, que lhe oferecia
uma pensão caso ele voltasse para a Espanha.
Faleceu em 14 de novembro de 1946, ao sofrer uma parada cardiorrespiratória.

Garcia Lorca e Manuel de Falla


Nacionalismo musical e o cante jondo

A intenção de incorporar o folclore local às composições levou os compositores europeus do início do


século XX, seguindo o exemplo de Béla Bartók, a pesquisarem e catalogarem os cantos de seu país.
A Espanha é composta por quatro regiões distintas, cada uma com os seus costumes, sua própria cultura
e dialeto. Cada uma dessas regiões pensa, sente e age de acordo com seus interesses, e a unidade
nacional nunca fez parte dos seus objetivos principais. Mas essas “nações” tão diferentes se unificam
por um traço cultural comum, a resistência, seja ela herdada dos setecentos anos de dominação moura
(que jamais chegou ao território basco) ou a resistência ao domínio de Napoleão.
Quando a guerra da independência em 1808 acabou e a cavalaria francesa foi derrotada, surgiu na
consciência espanhola um orgulho racial exacerbado. Esse nacionalismo desmedido influenciou
diretamente numa ainda maior marginalização dos ciganos, que já na época demonstravam verdadeiro
fascínio pelas terras andaluzas.

Guitarra Clássica 35
A Andaluzia e sua cultura, depreciada e temida ao mesmo tempo pelos espanhóis depois da
desocupação árabe, formou durante séculos uma espécie de mundo à parte dentro do contexto
nacional.
Porém, tanto exotismo acabou por chamar a atenção, na segunda metade do século XIX, de
compositores de toda a Europa, formando uma corrente conhecida como alhambrismo.
O alhambrismo musical é um estilo pitoresco vinculado ao marco concreto do castelo de Alhambra, em
Granada, símbolo da cultura muçulmana mitificada, que soava duplamente romântica por suas raízes
18
medievais e orientais . Não há dúvida de que as obras compostas nessa estética ajudaram a formar a
idéia de música espanhola que temos hoje, e, embora não tenha tido tanto compromisso folclórico
quanto o movimento nacionalista que viria a seguir (não há menções ao cante jondo nesse movimento,
por exemplo), certamente ecoa algo da cultura musical popular andaluza.
De acordo com Manuel de Falla, existem três momentos na história musical espanhola, sobretudo a
andaluza, nas quais se identificam as influências que lhe foram impostas. São elas:
• A invasão dos bizantinos em 524, no começo da nossa era, quando conquistaram a Espanha
meridional.
• A invasão árabe em 711 e os subseqüentes séculos de dominação
• A imigração e estabelecimento na Espanha (especialmente em Andaluzia) de numerosos
grupos de ciganos.
Essas tribos ciganas, provenientes da Índia, que entraram na Espanha no início do século XV, trouxeram
elementos antiqüíssimos de sua música, que acabaram se mesclando com outros elementos nativos
igualmente antigos e têm importância capital no gênero considerado a raiz da música andaluza, o cante
jondo.
Em 1922 Manuel de Falla e Garcia Lorca se uniram outros intelectuais e promoveram o Concurso de
Cante Jondo, onde Garcia Lorca, em palestra, expõe os princípios do ancestral canto andaluz calcado em
seu próprio trabalho de pesquisa com Felipe Pedrell e Manuel de Falla, grandes entusiastas do gênero.
Felipe Pedrell chama a atenção para influência da cultura bizantina na música espanhola:

“O fato de na Espanha persistir em vários cantos populares o orientalismo musical tem profundas raízes
em nossa nação por influência da civilização bizantina, antiqüíssima, que se traduziu nas fórmulas
próprias dos ritos usados na igreja espanhola desde a conversão de nosso país ao cristianismo no século
19
XI, época em que foi introduzida a liturgia romana propriamente dita ”

Segundo Garcia Lorca, dá-se o nome de cante jondo (canto profundo) a um grupo de canções andaluzas,
cujo tipo genuíno seria a siguiriya gitana, da qual derivam outras canções ainda conservadas pelo povo
como polos, soleares e martinetes. As denominadas malaguñas, granadinas, peteneras, etc., são apenas

18
SOBRINO, Ramón. Manuel de Falla. Presses de l’Université de Paris-Sorbonne. Série Études
19
LORCA, Federico Garcia. Conferências. Brasília/São Paulo. Ed. UnB/Imprensa Oficial. 2000. p. 22

Guitarra Clássica 36
conseqüências dessas primeiras, diferem das outras tanto por sua arquitetura como por seu ritmo e são
20
consideradas flamencas. O flamenco, portanto, seria um desdobramento do cante jondo .
Para Manuel de Falla, a diferença entre o cante jondo e o flamenco é que as raízes do cante jondo
encontram-se nos primitivos sistemas musicais indianos; o flamenco é um desdobramento do cante
jondo, e toma a sua forma definitiva no século XVIII. A melodia do cante jondo é composta por
ondulações, passagens melismáticas às vezes difíceis de se representar na pauta, enquanto a melodia do
21
flamenco move-se por saltos . Segundo Manuel de Falla, o cante jondo é o único no continente que
conservou toda a sua pureza, tanto por sua composição como por seu estilo, qualidades que levam em
22
si o canto primitivo dos povos orientais . E comenta ainda que, embora a melodia cigana seja rica em
floreios ornamentais, como nos cantos indianos, estes se empregam somente em determinados
momentos; e que, na verdade, menos que floreios ornamentais, eles são inflexões vocais impostas pela
força emotiva do texto, embora na pauta assumam a forma de floreio. Explica a construção da melodia
de forma ainda mais objetiva:
“O enarmonismo como meio modulante, o emprego de um âmbito melódico tão restrito que dificilmente
ultrapassa uma sexta e o uso reiterado e até obsessivo de uma mesma nota, procedimento próprio de
23
certas fórmulas de encantamento (...) ”

As Siete Canciones Populares Españolas, de Manuel de Falla, e as Canciones Españolas Antiguas, de


Frederico Garcia Lorca, têm inspiração claramente popular e foram escritas nos moldes do nacionalismo
musical, corrente que imperou entre os compositores europeus do início do século XX. Essas canções
têm origem na coleta de cantos e danças populares e narram cenas do cotidiano andaluz.
O leque de gêneros abarcados é extenso: bulerías, sevillanas, peteneras, zorongos, jotas, polos, cantigas
de roda, etc., podem ser encontrados nessas duas séries.
A obra musical de Frederico Garcia Lorca é baseada na coleta de cantos e danças, em sua maioria
andaluzos, dos quais escreveu os arranjos e alterou algumas letras. Nas Canciones Españolas Antiguas,
Garcia Lorca retrata cenas como a corrida de touros (Los mozos de Monleón), o preconceito contra
mouros, reflexo de séculos de ocupação (Romance de Don Boyso), cantigas de roda (Los reyes de la
baraja) e cenas cotidianas, como a disputa entre dois irmãos para ver quem seria o melhor toureiro (El
Café de Chinitas). Mostra ainda vibrantes danças flamencas, como AndaJaleo (bulería), El Café de
Chinitas (petenera), Sevillanas del siglo XVIII (sevilhana) e Zorongo (zorongo). Manuel de Falla, apesar
de também ter escrito suas obras sob influência da música popular, teve um enfoque diferente. A
primeira canção, El paño moruno, é igual à conhecida canção popular. A melodia de Asturiana também é
copiada da popular, mas o interessante acompanhamento é considerado, pelos estudiosos de Falla e do
folclore espanhol, coisa nova. Muito do folclore existe igualmente em Seguidilla Murciana, mas grande

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LORCA, Federico Garcia. Conferências. Brasília/São Paulo. Ed. UnB/Imprensa Oficial. 2000

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LORCA, Federico Garcia. Conferências. Brasília/São Paulo. Ed. UnB/Imprensa Oficial. 2000
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LORCA, Federico Garcia. Conferências. Brasília/São Paulo. Ed. UnB/Imprensa Oficial. 2000
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LORCA, Federico Garcia. Conferências. Brasília/São Paulo. Ed. UnB/Imprensa Oficial. 2000

Guitarra Clássica 37
parte de Jota é composição original, forjada no modelo popular. Nana é uma canção de ninar andaluza,
a primeira música que Falla ouviu em sua vida. A nana andaluza é diferente de todas as canções de
ninar, não só da Espanha como do resto da Europa. Falla não acreditava que Nana pudesse ser de
origem árabe ou moura, pois os melismas contidos na melodia se aproximam mais da música hindu. Em
24
Polo também se destaca muito da originalidade enfática de Falla .
Não é difícil identificar os princípios do cante jondo e do flamenco expostos acima na obra de Falla e
Lorca. Em Nana, de Manuel de Falla, por exemplo, está presente a questão do emprego do floreio
ornamental, que no texto encontra lugar no acalanto emocionado da mãe para seu filho. Em Polo essa
característica é ainda mais nítida, em ornamentos que representam a dor de uma desilusão amorosa
(maldito seja o amor e quem me fez entender o que ele é), ainda contendo a repetição obsessiva de
determinadas notas.
Na obra de Garcia Lorca, o flamenco se faz mais presente na vibrante Anda Jaleo, com a contagem de 12
compassos cíclicos na linha de baixo e pesados acentos nos tempos 12, 3, 6, 8 e 10 – alternando entre ¾
e 6/8, marcação característica da bulería, En el Café de Chinitas (uma petenera ensinada por seu tio-avô)
, Zorongo (zorongo) e em Sevillanas del Siglo XVIII (sevilhana). Tem ainda belos exemplos de cante jondo
em Nana de Sevilla, Las Morillas de Jaén e Romance de Don Boyso.
Robert Schumman afirmou certa vez que a música popular era a única música verdadeira. De fato, não
há nada mais genuíno e sincero do que o canto de uma raça; e, por seu sincretismo, a cultura andaluza é
caso ímpar na Espanha. Não há dúvida de que, nas duas séries estudadas nesse trabalho, está presente
todo o sentimento de um povo.

O Duo Vieira-Mello, formado no início de 2009 por Luiz Henrique Mello (violão) e Manuela Vieira
(soprano), tem seu foco voltado inteiramente para a música e cultura espanholas. Além do
levantamento dos compositores espanhóis e seu repertório, investimos na pesquisa estilística e histórica
como ferramentas fundamentais para incorporar o espírito ibérico em nossa interpretação.
Visando abordar o que há de mais característico na cultura musical popular espanhola - o folclore
andaluz - as escolhas naturais para este trabalho foram as séries Siete Canciones Populares Españolas e
as treze Canciones Españolas Antiguas de Manuel de Falla e Frederico Garcia Lorca, respectivamente.
Este trabalho busca explicar as origens dessas obras, bem como dos gêneros nela abordados,
procurando entender as entrelinhas do texto musical, enriquecendo assim a interpretação de quem
pretende montar este maravilhoso repertório.
Esperamos que o leitor tenha tanto prazer em ler este trabalho quanto nós tivemos em escrevê-lo; e que
seu conteúdo possa contribuir de alguma forma para os músicos que pretendem estudar este repertório
ou para que o simples diletante possa entendê-lo e apreciá-lo melhor.

24
PAHISSA, Jaime. Vida y obra de Manuel de Falla. Buenos Aires .Ricordi Americana S.A. 1946.

Guitarra Clássica 38
Páginas com Música

Uma pequena viagem…- Caminho do Imperador – Nuno Miguel Henriques

Sobre a obra:

“ Uma pequena viagem... no ocaso da vida, pelas veredas que iriam mais tarde ficar
conhecidas por acolher os seus passeios ao ar livre... um exílio na freguesia da Nossa
Senhora do Monte na ilha da Madeira... um símbolo da Europa decadente e
destroçada, no fim do seu período hegemónico... um epitáfio à vida do Imperador
Carlos I do Império Austro-húngaro.”

Nuno Henriques

Sobre o compositor:
Nuno Miguel Henriques nasceu a 7 de Maio de 1978. Filho de um violoncelista, iniciou os seus
estudos musicais aos seis anos no Conservatório de Música da Madeira na classe de violoncelo
do prof. Agostinho Henriques tendo mais tarde estudado piano com o prof. András Hennel.
Estudou composição na classe de Análise e Técnicas de Composição com o maestro Roberto
Pérez entre 1995 e 1998, altura em que compôs as suas primeiras peças. Ingressou na Escola
Superior de Música de Lisboa em 1998 no curso de Composição, tendo estudado com os
professores António Pinho Vargas, Christopher Bochmann e Sérgio Azevedo, concluindo a
licenciatura em 2003.

Prosseguiu os seus estudos no Conservatório de Roterdão com o professor Klaas de Vries entre
2003 e 2005, como bolseiro da Secretaria da Educação do Governo Regional da Região
Autónoma da Madeira, tendo também estudado com Peter Jan Wagemans. Actualmente
frequenta o Mestrado em Composição na Universidade de Évora sob orientação de
Christohper Bochmann.

Frequentou seminários de composição com os professores Emmanuel Nunes e Salvatore


Sciarrino na Universidade de Aveiro em 2000. No mesmo ano, participou com uma peça
seleccionada nas 4ª Jornadas Nova Música em Aveiro sob a direcção de Edwin Roxburgh.
Desde 2001 que frequenta regularmente os seminários de composição na Fundação
Gulbenkian com o professor Emannuel Nunes. Em 2003 e 2004 foi seleccionado para o 1º e 2º
Workshop Gulbenkian para Jovens Compositores Portugueses, tendo sido estreadas as obras

Guitarra Clássica 39
Contraste para Orquestra e Elementos para 12 instrumentos pela Orquestra Gulbenkian, sob
direcção do maestro Guillaume Bourg
Bourgogne.

Em 2003 teve uma peça executada pela Orchestrutópica no Festival de Música da Madeira. Em
2004 obteve uma encomenda pela Fundação Calouste Gulbenkian e no mesmo ano foi
seleccionado para participar no Workshop para Jovens compositores organizado pelo ASKO
Ensemble em Amesterdão
sterdão em Maio de 2005. Em 2006 participou com a peça Elementos no
concerto “Diques” organizado pela Orchestrutopica dirigida por Cesário Costa.

Foi professor na Escola Profissional de Música de Almada, leccionando a disciplina de Análise


An e
Técnicas de Composição II e III durante o ano lectivo de 2001/2002, e no Instituto Vitorino
Matono no ano lectivo de 2008/2009. Desde o ano lectivo 2006/2007 desenvolve actividade
como docente na Academia de música de Elvas, leccionando a mesma dis
disciplina.
ciplina. Também é
docente na Academia de Música de Lisboa - Os violinhos desde o ano lectivo 2008/2009.

Obteve duas menções honrosas no Concurso de Composição para Instrumento solo


“EURITMIA”, em 2006 e 2008 com a peça Cadenza - para violino solo, e a peça Uma pequena
viagem... – Caminho do Imperador – para guitarra solo, respectivamente.

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