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A FAMILIA E O AMOR NO ALTO IMPERIO ROMANO Em meméria de Pierre Boyancé Entre a época de Cicero e 0 século dos Antoninos deuse um imento ignorado: uma metamorfose das relacSes ida quando a nova odemos ‘até acreditar que os cristdos se tenham apenas apro- priado da nova moral do fim do paganismo. Esbagaremos alguns aspectos desta evolurto. Como se vé, a histéria que vamos fence daquilo a que frequentemente se reduz romana, isto é, a um pulverizar do sistema ao enfraquecimento do ‘poder paterno. Deixamos a juma publicaglo mais ambiclosa o pormenor dos factos e © apa. rato das provas. 1. As raizes da moral crista Nao que a concepso clissica da falsa: mas ndo é sendo uma parte infima da verdade c, além di so, & apresentada muitas vezes de forma demasiado esquema umas poucas palavras a este classico (desapare ssde 0 século ‘A SOCIEDADE ROMANA Em regra, cada casal tem a sua prépria casa. A autoridade paterna consiste, por um lado, nalguns tracos de tradicio, remi- niscéncias de cardcter etnogritfico (por exemplo, é ao pai, no a0 marido, que compete pedir a intervencto da parteira no par- to da filha); por outro lado, num facto notvel: a transmissto dos bens. Nenhum «instinto’paterno» impele 0 pai a deixar os seus bens aos filhos; deserdar um 19 contrario, era um comportamenta apreciado. 10s no con” tavam mais do que os outros m: e muitos nobres néo procuravam ter uma descendéncia. Um testador pen: ia (por afinidade, ou parentes) que deles fosse digno; os lagos de sangue contam muito menos que os de escolha: dai a frequéncia das adopedes; o testamento destina-se menos a transmitir bens que a designar continuadores espirituais, que recebem os bens como iém disso, o testamento & uma declarago pela Prova o seu sentido dos valores multiplicando os legados (08 grandes escritores recebiam legados dos seus leitores ¢ Plinio, o Jovem, ligado a Tacito por uma amigavel rivalidade, , sem o dar a perceber, se este recebia legados maiores ie 08 seus). As relagdeg educacionais entre pais e filhos eram remotas quanto 0 efam, ainda muito recentemente, entre 16s, no Faubourg Saint-Germain. Quando um Romano se ria sentir pai, preferia adoptar o fillo de um outro ou educar 0 fiho de um escravo ou um menino abandonado, em vez de con- 10 que ele mesmo gerara. De facto, a leserdacio pesou muito sobre os servar, obviamente, ameaga de uma poss sas», por terem sido ameagados pelos seus pais de serem deser- dados. E disso consequéncia a frieza do pais ¢ fi sentimentais com os filhos; um jovem nobre & educado nurse (nutrix) e pelo seu nutritor e nko crianas fossem amadas entre os campones cia, as jovens fiavam ld para matar 0 tempo de forma virtuosa (pelo menos nas fai ) € no desenfor- a a surpreendeni npério, do parti através da acusagio de lesa-majestade intentada pel 0 pai): via-se em tal facto um flagelo social bem fa- ar, em vez de um drama interpessoal contranatura, para além da frieza das relagdes do medo de ser de- via outro factor em jogo: enquanto o pai fosse vivo, serdado, 158 ‘A FAMILIA EO AMOR NO ALTO IMPERIO ROMANO um Romano, mesmo sexagendrio, mesmo senador, mais ndo era que um menor, que no podia realizar nem o mais simples acto juridico sem o'consentimento de seu pai. Ora, a metade dos fir thos ficava 6rf& de pai antes dos vinte anos, mais ou menos. E dai resultava uma enorme desigualdade de destino: metade dos homens tornava-se chefe de familia aos vinte anos, outros continuavam menores, mesmo sendo duas vezes mais velhos. © confronto entre estes destinos to diversos tinha de agravar o ressentimento e a3 revoltas. igamos, de fugida, que bem pouco ha a reter do culturalis- mo psicanalitico americano: no inferiremos 0 «complex de Edipo» de Marco Aurélio pelo facto de ele ter tido um pai (de quem mal fala), um pai adoptivo (que é para ele mais um espe tho que um superego), uma ama e um nuiritor. Tal como a his- tOria dos grupos humanos, a histéria dos individuos nao cabe em tipologias; é individual © 0 que revoluciona um determinado ovo nao revolucionara o°seu vizinho (!). Isto faz com que cer- tas criticas de método diriGidas a psicandlise sejam injustas; em determinado campo, smas» causas no produzem sempre (05 mesmos efeitos © dois individuos ou dois povos podem reagir de forma muito diferente a mesma situagdo. A psicandlise é uma ciéncia historica. Mas 'entdo 0 culturalismo perde qualquer sentido: nem todos os homens que tenham sido educados da mesma mancira tém, por isso, 0 «complexo de Edipon. Assim diferentes entre si os povos que tenham as lia mas, pelo contrario, 0 seu poder na sociedade global, isto é fora da familia, Ora, foi isto (através de uma mediagdo inesperada, como veremos) que trou- xe uma total transformagao conjugal e sexual durante 08 primei- ros dois séculos da nossa era: passou-se de uma sexualidade to xética aos nossos olhos, como, por exemplo, a do Japio anti- go, a uma sexualidade ¢ uma conjugalidade que permaneceram 4s nossas até tempos muito recentes. Tal mutacdo, nunca sera de mais insistir neste facto, precede o cristianismo e nada Ihe deve. O cristianismo adoptou a moral sexual do paganismo tar- dio, & qual nés chamamos moral sexual erista, tal como adop- tow a lingua latina; ndo a inventou de forma alguma. ‘Como explicar esta evolugao no interior do paganismo, que vai desde o tempo de Cicero até ao dos Antoninos? A resposta provavel é que tal mutagao esta relacionada com a passagem de tuma aristocracia concorrencial (espécie de feudalismo no qual as rivalidades entre os elds sao ferozes) a uma aristocracia de servi- 159 A SOCTEDADE ROMANA co, na qual se faz carreira estando de boas relagdes com os pré= prios pares. Daqui uma mudanca de tipo humano: um chefe de cla tem mais audacia, autoridade, capacidade de se auto-afirmar do que tum nobre, servidor do seu principe, que deve fazer sorri- 50s aos seus pares, O primeiro vai para a cama sem remorsos com a mulher, as servas ¢ as pagens, pequenos (paedagogia, ca- pillati) ou grandes (exoleti); 0 segundo, nao tendo ordens que ar para o exterior, na sociedade global, ndo possui sequer a forea para as dar a Si mesmo: & necessério que invente uma mo- ral conjugal c sexual, a fim de que a disciplina the chegue nova- mente do exterior ¢ ele ndo tenha de enfrentar uma autonomia ‘que Ihe mete medo; e depois, agora que ¢ apenas um nobre co- mo 05 outros, respeitador dos seus pares, como poderia tratar com arrogancia a sua mulher que, afinal de contas, € t&0 nobre smo ele? Passa-se, assim, do tempo dos filibusteiros ou dos ca- pitdes da indistria’a uma época de funcionérios imperiais que lidade: & esta a moral pagi tardia, também joral & devida a meios estritamente psico- lade nfo se destina a dar o exemplo 20 Como vemos ogicos. A respeitabil proletatiado, de modo’a que este trabalhe em vez de fazer fun- , a ajudar racionalme ‘ago conforme a0 spi ias); &, sim, uma reacclo psicolozi- amor. Nao se destina, t9-pou: cionario a fazer carreira (e belos trabalhos de Norbert ca A condigao social, sua mulher; entio, inventa o mito do amor conjugal, a fim de que se Ihe obedeca por amor, sem necessidade de mandar. Co- ‘mo vemos, existe uma mediagdo propriamente psicoldgica; 0 ni- mero de reacedes psicologicamente possiveis as diversas’ situa- (es sociais & limitado € tais reacgBes no sio funcionais: os agentes fazem o que podem, nfo o que seria racional, Nao exis- te nenhuma utilidade em trair a mulher quando se é um homem que faz carreira, tomundo culdado com os seus pares; mas quando se faz carreira deste modo, nao se pode atingir em parte alguma, na sociedade, a audacia legitimamente reconhecida de viver & sua propria maneira. Isto significa que as reacgbes psico- logicas nao coincidem com as estruturas sociais. A mesma estru- tura social podem corresponder duas morais validas (acontecia assim também entre a nobreza francesa do século XVitt) e, inver- samente, a mesma moral encontrar-se-4 em estruturas sociais muito diversas: a chamada moral sexual cristd encontra-se nos 160 _A FAMILIA E.© AMOR NO ALTO IMPERIO ROMANO burgueses do século XIX e nos nobres funciondrios da época dos Antoninos, que a inventaram realmente. Tal como 0 corpo, @ alma pode adaptar-se apenas a um nimero limitado de posicd certas contorgdes sdo-Ihe impossiveis ou dificeis, certos comp. tamentos ndo podem transformar-se em solugdes de massa, Uma transformacdo até certo ponto semelhante instaurara-se, digamos desde sempre, nopovo, entre os homens livres ¢ 0s po- bres; na condi¢&o de opressio em que se encontravam, tentavam uma certa dignidade reprimindo-se; tal reacedo popular, iduz ao conservadarismo plebeu, é a raz4o principal da repressio sexual através dos séculos. A repressio & auto- poder nao possui o dom magico as pessoas a fazer aquilo que muito bem quer, mediante simples requerimento. Mas Ho-pouco, uma ironia despropositada dizer que 'o prisioneiro que se ponha encostado as paredes da sua pri- ino. Enire actividade e passivi- Teacgo: a obedigncia pc mesmo uma dignidade, que € tipico do oprimi jento» (que no significa «revoltay mas, sim, «adia- mento moroso» ou «rancor impotente»), a ideologia na sua integridade, enfim, sto comportamentos reactivos. O «condiciona- vo nao é determinante, o que quer dizer que nao - automaticamente sem ter em conta a contesta- 80, @ reaceao do oprimido; havera quem se revolte e se torne Fevolucionario e quem refaca uma dignidade tornando-se 0 0 caro a Péguy, € a0 seu patrio, que «ama o proprio trabalhon. A reacefo, gindstica interior, nada muda a Tealidade objectiva da opressiio mas, em compensaco, fornece a0 oprimido os da sua dignidade em confronto com os patrdes, com os deuses tes beneficios secundarios no so materia (no sentido que a este termo dé Lacan) ou «simbdlicos» (no sen- tido que the di Bordieu). Mas, bem entendido, esta «eterna possibilidade de reagir leva aos’ mais variados resultados, con- forme as épocas. E que, em primeiro lugar, 0 luxo de ser reactivo no & concedido a todos — para construir para si uma dignida- de a custa de auto-repressdo sexual & preciso pertencer & cate goria de livres agentes éticos, de cidadios; as contorgées inter- nas de um escravo no poderiam interessar ninguém e parece- riam arrogantes. Nao basta querer auto-reprimir-se: € necessario saber 0 que fazer para isso € 0 que se deve fazer seré diferente de época para época, segundo © «discurso» sexual do tempo. 161 [A SOCIEDADE ROMANA A auto-repressao plebeia, 0 moralismo sexual Juvenal, leva fa- cilmente a criar uma assimetria entre homossexualidade e hete- rossexualidade, a favor da segunda; s6 na classe superior a im- parcialidade & quase completa; contudo, tal assimetria permane- ce pouco ampla, fazia-se troga dos homéfilos mas nao eram queimados vivos, j4 que ndo se inventara ainda a ideia da se- xualidade contranatura; limitavam-se a condenar a «moleza» hnos homens, como veremos, e havia molezas piores que a ho- mofilia. E, pois, verdade, que a maior parte dos povos ndo dé uma conotaedo tao tragica a homossexualidade como os ociden- tais; mas nfo € menos verdade que quase em nenhum lugar se atingiu ainda uma simetria completa entre os dois tipos de amor, visto que a tentacao plebeia de auto-repressdo reactiva apesar de tudo, sempre a coisa mais difundida no mundo, @ seguir 4 miséria'e por causa da miséria. ‘A moral sexual crista, por um lado, no faré mais que ret mar o programa da moral sexual inventada pela aristocracia de servigo sob 0 Alto Império; por outro, apoiar-se-4 sobre a pro- Pensio a reaceio da plebe livre, propondo-lhe o novo progra: ma. A moral sexual popular ja era muito repressiva — as sacras leis eregas mostram que 0 povo e os seus deuses ndo brincavam com 0 aborto ou a impureza. Num certo se fara wascender» a mora? plebeia até a aristi Rousseau, cidadao livre ndo patricio de Ge em vigor a moral popular entre a aristocracia do seu tempo: propora que as mies aleitem os seus filhos. Favorino de Arelate jf assim pensava e também Plutarco. Mas, antes dos cristaos, a mesma dupla operago se res entre os estbicos, educadores da aristocraci populares, guias das consciéncias ou autores de diatribes. Eis porque a nova moral é considerada estoica — se no por direito legitimo, nao pertence ao estoicismo, pertence pelo menos aos estdicos; como se diria noutros tempos, pertence a historia externa da dout Séneca (provinciano e homo novus, protétipo desta nobreza de funcionarios) e Epicteto ensinam ao seu nobre piiblico a mo- ral que este esperava e j4 tinha. Seria facil mostrar quanto esta moral aparentemente estoica estranha a0 espirito do estoicis ‘mo (recordaremos que Crisipo ensinava ao seu futuro sabio arte de amar os efebos). Interpolacdo social no interior do estoi cismo, portanto; ou, se preferirmos, transformagdo do estoicis- mo numa moral social: nao mais se educam sdbios, mas, refor cam-se e modelam-se uniformemente bons cidaddos. & init 162 | A FAMILIA E 0 AMOR NO ALTO IMPERIO ROMANO dizer que uma filosofia no poderia ser nunca a causa tinica de luma evolucao, pois entdo seria necessario explicar 0 facto de es- ta filosofia ter sido adoptada e respeitada a letra (quando teria sido ‘40 simples procurar atenuar os seus enunciados literais) ‘A mesma objecedo é valida para o cristianismo: ndo se poderia explicar a transformagao da sexualidade pela influéncia do cris- tianismo, uma vez que o problema reside justamente em saber Porque se obedeceu ao Céu neste campo, em vez de procurar ‘acordos com ele. De resto, 0 problema depressa se resolve: todas as transfor- magdes da sexualidade da conjugalidade s4o anteriores ao ci tianismo. As duas principais fazem passar de uma bissexualidade eminentemente dirigida ao acto sexual a uma heterosexual © de uma sociedade na qual o matrimé 1a uma instituicdo feita para toda a soci te» que «o» matriménio icdo de todas as sociedades e da sociedade por inteira, Na sociedade paga ninguém se casava, muito pelo contrario, nem mesmo nas classes altas. Ndo era necessario casar-se para fazer amor, a castidade nao era uma virtude. Uma pessoa casava-se num tinico caso: se decidia transmitir 0 proprio patri- ménio aos filhos, em vez de a parentes ou a filhos a Eis porque 0 Governo romano tinha por vezes de si cidadaos que aceitassem casar-se, para pi ante, em vez de se limitarem a viver (porque os nobres tinham um harém de servas e de pagens); as crianeas nascidas das suas servas, com efeito, ndo eram bastar- dos livres, mas seguiam a condig&o da mae e eram escravas co- ‘mo ela e nao cidadaos como o pai. Além disso, uma regra tacita impunha que ninguém fizesse jamais a minima alusio ao facto (apesar de lente) de numerosos pequenos escravos se- Tem, na realidade, filhos do seu préprio amo. O matriménio, quando alguém se casava, correspondia a uma exigéncia priva. dnio aos descendentes em vez de a outros 10s dos amigos, e a uma politica de casta: perpetuar a casta dos cidaddos, Para além dessas razdes no se praticava 0 matriménio em nenhuma classe social. Se nao se possuia um patriménio a trans- no cra necessario casar-se e, sendo-se escravo, isso era impossivel. Esta Pensdssemos que o divércio frequente e 2 unio livre sdo privilégios ou vicios das classes al- 5 € que, nas cabanas e nas lojas, a moral conjugal reina habi- tualmente, por normalidade da natureza humana; em Roma izes nos seus haréns 163 ‘A SOCIEDADE ROMANA acontecia mais depressa o contrario. Na classe média da cidade, ‘0 matriménio € menos frequente que aquele tipo de unigo a que ‘0s romanistas chamavam concubinato e que, justamente, no € foutra coisa senflo o concubinato puro e simples, a unido livre, como se demonstrou. Mais ainda: parece que a instal casais era ampla e que o divércio era frequente; nos nossos dias, a frequéncia de divorcios & um fenémeno popular, mesmo em territorio isl4mico De que modo deixo ‘ade classe» e se imps a toda a sociedade? Este é um problema cujo estudo prosseguiremos noutro trabalho. Assinalemos ape- rnas um texto sensacional de Tertuliano, Ad Uxorem, 11, 8, 1, que mostra como, cerca do ano 2000, 0 matriménio dos’ escra- vos se generalizara (e no apenas entre os cristfos); assinalemos ainda que, no século 1, os escravos das plantagdes vivem em es- tado de promiscuidade (Columela); mais tarde, de acordo com 0 Digesto (que cita o caso de uma propriedade africana), eles vi- vem em casal. A epigrafia conhece também exemplos de casais, de escravos depois do século il. Recordemos brevemente que 0 matriménio romano nao é um acto pil 0 &, se quer, um acto juridico;-€ uma situagto de facto, evidenciada por uma cerimOnia. Este, estado de facto comporta efeitos de di- ito, directos (0s filhos sero legitimos) ou reflexos (os tribu- hais decidirdo sobre a atribuieao do dote em caso de divércio ou estagdo); mas, em si mesmo, 0 matriménio ndo & mais que uma cerimonia privada, uma festa. A tal ponto que exist ram, precisamente no século t, matrimOnios homossexuais ¢ ndo apenas no tempo de Nero. Do mesmo modo, foi facil introduzir fo casamento dos escravos; ndo foi necessario moditicar o direi- to, bastou ao amo consentir em celebrar uma pequena festa para a unio de facto dos seus servidores. 2, Entre paixio e dinheiro ‘A generalizago individual e social do matriménio, nos dois, primeiros séculos da nossa era, explica-se pela transformacao ‘moral que conhecemos: existiram ferozes oligarcas rivais que se tornaram figis servidores do Estado. © matriménio dos solda- dos, a partir dos Severos, ¢ de colocar nesta perspectiva mor jogrifica do mal ménio cresce consideravelmente, Sob a repiiblica, 0 matrimonio de um nobre romano (Ge se casava) nfo era mais que um dos seus muitos «arranjos» de vida; nao era o acto fundamental da A FAMILIA E 0 AMOR NO ALTO IMPERIO ROMANO sua vida, nfo significava «montar casa». A mulher nem sequer uma menor que o marido governa, tal como governa os seus clientes e libertos. Contudo, respeita-a e bate-lhe pouco, salvo em casos excepcionais e, neste caso, com um pontapé no ventre, para injuriar o animal repro- dutor, ¢ no com santas razBes, como faria um pai que quisesse corrigir um filho; esta altima’ser& a maneira de bater dos cris- tos, Este respeito tem duas raz6es: a mulher casada nflo depen- de em nada do seu marido, continua a depender de seu pai, que apenas a emprestou ao genro, a ela ¢ ao seu dote. Permanece 0 facto, contudo, de a esposa ser uma pequena criatura e 0 casa- mento ndo ser 0 acto central da vida. Dai que a angistia de ser cornudo, & Moliére, ndo existisse — 0 que faziam estes seres menores no contava muito. Para dizer a verdade, o pai ficava mais furioso que © marido, ele permanecia 0 verdadeiro senhor dia sexualidade das filhas; 0 direito obrigava-o a assassinar a fi- tha juntamente com o amaste. E o citime marital ndo era aquilo fem que se tornoy em cai0 de adultério, punia-se 0 intruso que trogara da compostura de uma casa; menos importante era pu- nit a mulher adéltera, criatura irresponsavel. Vinganca de chefe de familia que se considera senhor na sua casa, mais que de m: Fido gozado. Depois, muito rapidamente, a indulgéncia indife- rente sucedeu a esta Severidade de chefe de cla; esta indulgéncia era, aos olhos das proprias classes dominantes, aos olhios de Té- ito, a verdadeira moral romana, a dos antepassados. A liber- dade de costumes da aristocracia romana, um século antes e um depois da nossa era, no foi um fendmeno marginal, nem ver- gonhoso ¢ oficialmente ignorado: era conforme & doutrina se- téria. Quando César expulsou a sua mulher, ério, pretextando que «a mulher de César devia estar acima de qualquer suspeita», nlo foi, certamente, considera do nem cornudo nem ciumento, antes um snob, uma espécie de lorde Byron, tdo escrupuloso do bom comportamento da sua ca- sa que teria expulso um doméstico por um s6 pequeno grao de poeira nfio varrido. A liberdade de costumes na época de Cicero ¢ ainda na de Vespasiano & extrema e supera a do século Xv 1c8s. Tudo quanto se pede as mulheres & que fagam filhos; as joras mais livres (como Jillia, filha de Augusto) so, ao mes- ‘mo tempo, as esposas mais proliferas. De resto, os maridos em- prestavam de boa vontade, por amizade, as esposas particular- mente fecundas. A paixdo amorosa existe (nada hd que valha a pena tomar em considerac4o no livro de D. de Rougemont, ex- cepto o principio de uma hist6ria dos sentimentos); & elaborada como conceito, considerada como um afecto sui generis, ¢ 180 165 ‘A SOCIEDADE ROMANA como um excesso de ligagdo sensual; é mitificada: o amante declara-se, se nfo mesmo como cavaleiro da sua amada pelo menos como gladiador da sua dama; atribui-se-Ihe dignidade, certamente, nfio como fonte de proezas (A maneira do amor ca- valeiresco) nem como alargamento ontoldgico ou origem de uma perturbaedo dos valores adguiridos (como 0 amor moderno), mas como fonte de tragédias pol iio e Cledpatra nao excepcional, so personagens- ipo. O amor assume a sua dignidade romantica quando impele os amantes a arriscar a vida por um grande objectivo, isto & pe- lo poder politico. Estamos no mundo de Bajazet ou, antes, no das cortes helen{sticas. Teria certamente sido ridiculo que um se- hor se sobre-excitasse tanto por uma mulher; isso deixa de ridiculo apenas sob duas condigdes: que a mulher esteja soci mente ao seu nivel e que esta paixdo o faga arriscar muito ou The permita ganhi Isto significa jiedade aristocratica, a palavra paixfo é fre- de quaisquer lacos, fundados incluindo os do amor, e, particul: mente, nos interesses politicos ‘sobre: interesses ao mesmo tempo ¢ a © principal entre estes. Quando Circe, vencida por Ulisses, oferece uma espécie de alianga politica, diz-lhe, segundo a Odi seia: «Vem! Que, uma vez sobre o meu leito ¢ tornados aman- tes, possamos a partir de agora confiar um no outro!». Com- preendido isto, seria gratuito negar a existéncia da paixto, seja no século de Augusto ou no dos Antoninos, seja em que sécul for; para lé de qualquer énfase, das conceptualizagdes, das mit ficagdes e da imaginardo literdria, sempre existiram delitos pas- sionais, camponeses que se consumiam de dor por no ter podi- do obter a mao de uma jovem da sua aldeia, ow notiveis que se espantavam ao verificar que, ao fim de trés' anos, conservavam a mesma doméstica como concubina ¢ tinham perdido a cabeca por ela. Sempre existiram ligagdes passionais, quaisquer que sejam a nordo, a dignidade e o statu social que recebam. ‘A trégica historia de Messalina, que no foi, de facto, 0 que ‘geralmente se pensa, € esclarecedora a este respeito. Eis uma im- Peratriz que, embora mulher do imperador reinante, n&o deixa por isso de desejar casar com um cénsul de quem esta louca- enamarada. E casa com ele. Isto recorda-nos que, no sendo 0 matriménio um acto piblico, nem sequer juridico, nada 166 ___A FAMILIA E 0 AMOR NO ALTO IMPERIO ROMANO cera mais facil do que repudiar o cénjuge: bastava uma palavra e nem era necessério que 0 cOnjuge fosse informado do sobredito repiidio, que no era um acto solene; mas 0 acto privado que 0 matriménio era comportava igualmente consequéncias de direi- to, em particular o dote; para marcar bem que se divorciara do imperador, Messalina retomou o montante do dote; apés o dra- ma encontrou-se parte do mobiliario imperial em casa do cOn- seu novo marido. Quanto ao imperador repudiado, Clau- e ignora ou deseja ignorar o facto de a sua mulher ter um amante oficial; tendo em conta a liberdade dos costumes, tendo do & mais surpreendente no séculot do que seria no sé culo xvi (© que & surpreendente, em compensagio, & que, nao satisfei- ta com a sua rela¢o, que continuava com 0 contentamento dos irs interessados, Messaling tenha querido desposar 0 seu cOn- sul; isto, Claudio nao o pOde suportar. Mas porqué querer casar com ele? Porque esta jovem mulher de vinte e quatro anos, que @ retratada como uma desavergonhada (mas & Juvenal, um ho- ‘mem do povo, quem assim transcreve a paixao em termos de ex- cesso de sexualidade), era na realidade uma sentimental, uma amante romantica. Entfo, os conselheiros do principe, por ra- jonalismo obtuso, alarmaram-se; pareceu-Ihes inverosimil que ima imperatri chegado ao ponto de efectuar um novo matriménio 10 se no existisse, além de mais, uma sub terrnea intriga politica destinada a derrubar o imperador rei- nante. De facto no existia ¢ os acontecimentos provaram-no, tarde de mais. Messalina é um caso auténtico de amour fou, mas acreditou-se que existisse algo escondido e Messalina perdeu te, 0 seu cOnsul? E porque raz4o Claudio, que idelidade de sua mulher, nfo suportou 0 seu no- ial do que estava em jogo no matriménio. E certo que a cracia romana se encontrava numa posicdo semelhante 4 da geniry descita em Tom Jones; 0 que mais evidentemente & posto em jogo no matriménio € a transferéncia dos bens: tr ta-se de provocar ou, pelo contriio, impedir tal transferén: sabemos que a grande inovagio romana representada pelo matti- ménio sine manu tinha por objectivo a manutencao dos bens na familia da mulher; 0 marido nao € proprietério dos bens de sua mulher ¢ muito menos & herdeiro dos mesmos, 0 matrimonio 167 ‘A SOCIEDADE ROMANA Ado comporta nenhuma transferéncia de propriedade — cada gens d4 em casamento as suas filhas, conservando os bens des- tas, Esclarecido isto, os objectives conscientes do matriménio (0 dote, a possibilidade de fazer amor, o direito de ter uma mulher fem casa, ou socialmente ou como serva) no sdo tudo. E que também 'a unio livre, 0 «concubinaton, providenciava tudo is- so, $6 que o matriménio tem, em relagdo & unido livre, a vanta- gem geralmente intuida de ser, se nfo um acto de direito (muito poucas sociedades possuem verdadeiramente um direito), ao me- hos uma instituiglo, Ora as instituigdes, os titulos, as grandes palavras como mulher ¢ marido, radicam num estadio arcaico ¢ vo, no qual palavras, simbolos e titulos eclipsam a reali- «ser» 0 marido, o pai, ter mais denominagbes, representa muito mai que, bast se continuam a casar e os filhos so jos de tal simbologia das relagdes familiares (podemos pér em divida o «complexo de Edipo», & mais dificil duvidar da realidade da «historia familiar dos neuréticos», por exemplo). As ‘Bes ndo sdo apenas a alegoria das relagbes objectivas, as suas raizes, vao mais fundo, assim como a imagi- nnagdo ¢ 0s simbolos so mais arcaicos que o intelecto € no 0 fa vastissima difusdo do concubinato na populagao urbana (0 estudo de Jean Plassard, Le coneubinat romain, permanece fundamental) prova que 0 arcaismo estava tdo em decadéncia em Roma como entre nds. A enorme liberdade de costumes na aristocracia do Alto Im- pério e, sem divvida também, na plebe urbana ndo tem evidente- mente nada a yer com uma emancipagio da mulher nem com tuma elevagao da sua dignidade; as mulheres continuam seres ‘menores que nao teriam a capacidade de comprometer os seus maridos, os quais, antes de mais, pensam no dote. Duas peque- quido, os comensais que convidara, viveram um dilema: adoram Trimalquiao porque se ad- miram ‘a si mesmos na pessoa daquele cujo sucesso financeiro € luma gléria para toda a casta dos libertos; ao mesmo tempo odeiam-no, porque € muito mais rico do que eles e porque indu- bitavelmente acredita que hes dé um prazer, por simpat expor pormenorizadamente a sua propria riqueza. Estes nossos libertos encontram-se numa situag4o semelhante a dos jcanos que admiram, por narcisismo colectivo, 0 sucesso rmiliondrios negros», abundantemente descrito na imprensa 168 A FAMILIA E 0 AMOR NO ALTO IMPERIO ROMANO, «coloridan, ¢ © odeiam por citime individual. O dilema dos nos- 0s libertos torna-se de solugdo ainda mais dificil pelo facto de Trimalquido ter convidado também alguns homens livres contra ‘0 desprezo dos quais todos devem permanecer solidarios. Entao, nao podendo exprimir verbalmente 0 seu desconforto, os convi- dados desforrar-se-o com um gesto: como Fortunata, mulher de Trimalquido, comparasse As suas pesadas jéias, as joias mais leves da mulher de um dos convidados, este dltimo «levanta-se disfarcadamente, agarra Fortunata pelos pés e atira-a para cima da cama. «Oho, gritou ela, ao sentir a sua tinica subindo-Ihe acima dos joelhos. Desta forma, tendo-se vingado do marido, através de tal simulagto de estupro por causa da qual ninguém se zangou, 0 nosso liberto regressa ao seu lugar. Este breve epi- s6dio mudo, tinico em toda a literatura antiga, demonstra com que lucidez ‘diabélica 0 socidlogo Petronio adivinhou a légica subconsciente dos comportamentos, mesmo que os meios inte Tectuais da época no Ihespermitissem exprimir detalhadamente tal logica, Estupro simulado: estamos numa sociedade na qual, de pleno direito, o senhor sublinha a sua prépria superioridade em relaglo aos inferiores, usando as suas mulheres; 0 proprieta- rio, quando se dirige as suas terras, faz deitar na sua cama a mulher do feitor (porque nfo é vergonha fazer o que ordena 0 patrao, dizia um provérbio dos escravos), a pessoa influente deita-se com a mulher do cliente, o chefe de partido, mesmo quando se tratava de Octaviano, e com as dos seus lugar- tenentes, ¢ o imperador, fosse Caligula ou Domiciano, entende Fazer 0 mesmo com as dos senadores. E, de vez em quando, os deuses imitam os homens (Flavio José, Ant. Jud., xvi, 3,72) © marido nfo poderia ter-se zangado’por tal facto e Trimal- quido tdo-pouco o fez; as mulheres so gente menor, cujas ac- {¢0es e paixdes nunca poderiam comprometer os homens que, su periores a elas, tratam de coisas sérias como pessoas adultas. No mundo moderno, o episédio do Satyricon poderia ter o seguinte lente: um negro americano, jantando em casa de um mi- de cor, acaba desabafando, exasperado, ao fingir socar, por brincadeira, o teenager presumido, filho do seu anfitriao. Com as mulheres e com os rapazes € possivel brincar sem conse- quencias, Aquilo a que se chama emancipacdo das mulheres, em Ro- ma, € um adiscurso» pluralista, em que o acaso reuniu a ausén- cia'de uma tradiefo de clausura (gineceu, harém), o sistema dotal e o desprezo marital; mais tarde, com a nova moral da nobreza de servigo, acrescentar-se-4 0 mito do amor conjugal como sentimento suposto e obrigatério (no falo, evidentemente, 169 [A SOCIEDADE ROMANA_ do amor conjugal como sentimento escolhido, mas apenas quan- do é induzido), por conseguinte, os maridos sentir-se-4o com- prometidos pelas suas mulheres. De tudo isto resulta uma conse~ quéncia engracada: a desfacatez com que se oferece dinheiro 4s mulheres mais honestas. Todo 0 relacionamento sexual obriga a uum presente em dinheiro; trata-se de um gesto de cortesia, de forma alguma de uma prostituic4o encoberta; uma dama da corte atira-se ao pescaco do imperadar e sai (edamare) — © principe fazlhe dar qualquer coisa como 0 equivalente a 800 000 francos novos. Os adolescentes, mesmo aristocraticos, Favores 0. vendendo os set a alta sociedade, consti io quer dizer de forma acranjam wm pequeno meal Quando se tem uma amante uma pense (annua), 0 q\ tla seja «mantida». Para cer uma grossa quantia. E verdade que losica medi uma paix8o pelos sacrficios financelros que obriga a fa- ter. B ainda verdade que as relagdes entre desejo e dinheiro nfo sao simples: no mundo da pandega, em Roma, um jogo em mo- da era o de distargar-se de prostituio/a de baixo nivel ¢ a um bordel para ver 0 efeito que isso fazia e quantos clientes estavam dispostos a pagar. E verdade também que, na. antiga hobreza francesa, os omens deixavam de boa vontade que as amantes ou 03 méridos destas Ihes pagassem as dividas e as mu- Theres sorriam ao amante que Ihes oferecesse 0 «colar da rai- nhan; mas elas prOprias teriam repelido com maus modos 0 amante que Ihes fivesse oferecido o equivalente em dinheiro. SO que, em Roma, ndo existia este horror medieval pela riqueza ue se apresenta em forma de moedas; os proprios senadores no recusavam, de facto, estender a mAo para receber uma ‘Apesar disso, a candura com que as damas romanas inalidade irredu- tivel, pela tranquilidade com que se manifestava: & uma can- dura juvenil, como no caso de Fortunata, € como quando nés réprios nfo hesitamos em oferecer dinheira a um rapazito para comprar caramelos», quando io. podemo ‘dar uma gorjeta a ausen em matéria de fielmente os comportam: ncretos que seriam os nossos se ndo fosse nossa hipocrsia; corresponde, sim, a diversas atitudes. Para que se tome vergonhoso aceitar moeda Ti Serd preciso chegar ao tempo dos guerreitos medievais e serd ainda necessério que estoicismo e cr inventem a mo- ral da virtude interior, como veremos adiante, assim como a imagem do casal conjugal. 170 ‘A FAMILIA EO AMOR NO ALTO IMPERIO ROMANO 3, Uma sé época, duas morais ‘Antes que surja esta nova moral, os outros factores de «emancipagao da mulher», levaram, na alta sociedade, a uma liberdade de costumes compardvel & da corte no Ancien Régi- ‘me: 03 costumes do Baixo Império no sero menos livres, nas estaro protegidos por um véu puritano; no Alto Império teste véu no existe, o que significa que «an moral da época era feita, na realidade, de duas morais, ambas abertamente assumidas ‘Como sempre, liberdade de costumes significa coexisténcia de duas morais que se toleram e das quais uma € efectivamente livre, enquanto a outra permanece tradi a ¢ severa; entre estas duas morais a escolha é individual, consoante a forca de ‘autonomia de cada um. Eis a razfo por que, num periodo con- Siderado de liberalizago dos costumes, se podia produzir quer testemunhos tendentes a provar que a liberalizacdo ¢ apenas uma aparéncia quer testéunhos tendentes a provar que cla é real; a verdade € que em vez de existir uma moral existem duas: 0 caso da boa sociedade romana como sera 0 caso do mundo de La princesse de Cléves, no qual cada um poder optar entre a vida galante de corte (Aa qual as intrigas amorosas estavam inextricavelmente misturadas as politicas, como em Alexandria, em Antioquia e em Roma), ¢ a vida mais severa e mais tranqui Ta que escolheu a heroina de Me* de Lafayette; pois, como es crevia o seu amante La Rochefoucauld, a virtude das mulheres consiste, realmente, no amor pela sua propria tranquilidade. Nao ha’ uma s6 destas caracteristicas que se ndo encontre em Tacito ou em Sueténio. ‘© séculot teve, pois, uma vida galante, cortés, passional, com festas de corte, enfeitadas pelas conversas das damas que 0 um senador beijava a sandalia da imperatriz, pedia-tha como sinal da sua graca e punha-a ao peito; um outro Tancava-se aos joelhos de uma das suas escravas ou tinha uma Tonga e agitada relag4o com um dos seus velhos pagens. Daqui provém também uma reacglo que ndo nos surpreende, seme- Thante aquela do Parnasse Satyrique, quero dizer, 0 antipetrar~ quismo, a misoginia, quando a submissao cavaleiresca as damas se tornou demasiado pesada para os homens. O aspecto mais Violento de tal antipetrarquismo 6 o terror carregado de édio da feiticaria, mulher pérfida, inquietante ¢ obscura: € a Canidia de Horacio, negra como a woman coloured ill, do soneto CXLIV de Shakespeare, ou como a fémea da aranha castradora, do psica- nalista Abraham; feiticeira, porque possui o dom de fazer vaci- 1m ‘A SOCIEDADE ROMANA lar as defesas do macho e suscitar nele o terror di diferenca (Unkeimlickes) de que fala Outro tema caro ao antipetrarquismo € o dos comportamentos inos a que mais tarde se chamaré histéricos. A interdi¢a0 s_mulhires de se ocuparem dos assuntos importantes, dizem Epicteto e Valério Maximo, faz com que elas empre. guem todos os seus cuidados em’ enfeitar-se; nao possuindo nenhum poder, s4o ambiciosas pelos filhos e pelo marido, ou entdo rivalizam’entre si, mas por bens mais simbdlieos que reais, Os dois flagelos mais temidos eram a mulher do senador que pretendia servir-se do poder do marido ea mulher ou a amante do governador de provincia que se punha de acordo com aven- tureiros ¢ compradores locais para extorquir «luvas» e somas de dinheiro aos provincianos. fm outro comportamento «histéricon & 0 luto perpétuo; quando uma mulher tem dificuldades com 0 seu ambiente ou com 0 seu préprio caricter e a vida social Ihe & penosa, ta a morte de um parente estreito para se encerrar num luto per- pétuo, tal como, numa outra época, entraria num convento. A Consolagdo de Marcia conta a hist6r tora que tanto fez para que o seu fi por nenhuma mulher no ser escolhido, muito jo- is e que, mesmo casado, Quandé morreu, a mae \e de embarago para as iu _um luto perpétuo, continua f pessoas que a rodeavam, a face Todavia, o comportamento histérico mais difun da terra nao foi o das Romanas; falo daquele divertimento pas- caliano que consiste em confiar a su ignidade a um grande nimero de filhos, aquela «angiistia dos teros vazios» de que fala um iador da sexualidade isl4mica. Ter trés filhos cra, proverbialmente, ou o ideal ou o maximo; o Estado roma- no concedia privilégios as mies de trés filhos, a fim de que fos- sem o mais numerosas possivel. Como me ‘diz Alfred Sauvy, pelo que hoje conhecemos do poder multiplicador da espécie humana, a populagéo do império deveria ter-se multiplicado muito mais ¢ transbordar para la das suas préprias fronteiras». Uma referéncia & contracepedo: a sua utilizagao esta fora de dii- vida, mas que método se usava? Uma alusdo isolada, relativa & imperatriz Sabina, no Epitome de Caesaribus, de Aurélio Vitor, parece indicar que 0 sistema usado dizia respeito a mulher e ndo. a0 homem: 0 uso de uma lavagem ritual apés 0 amor (aquam sumere: referéncias em P. Brandt, Ovidit de arte amatoria notas im [A FAMILIA E 0 AMOR NO ALTO IMPERIO ROMANO. fem 111, 96 © 620) parece-me sugerir que uma tal utilizagao da gua, que nfo é simplesmente higiénica (pois que os t mas ritual (Cf. «ir a0 hamman», no islao, eufemismo para feito amor»), poderia subentend: sma anticoncepcior , a gua fria talvez tenha tido a mesma im- us interruptus, para o homem (). dar-se 0 abandono dos filhos. Matam-se 605 fillhos indesejados dos escravos, como hoje se afogam os zat hos (Philogelos, n. 57, ed. Thierfelder), abandonam-se as crianeas livres que nao se querem. O importante, neste assunto, é ‘omportamento nao é apenas dos pobres (também a a abandona os filhos) e que os filhos assim abandona- dos nem sequer so os ilegitimos. Certamente que Augusto fez abandonar o filho de Jilia e Clfudio a filha adulterina de Urgu- lanila, e estas criangas foram abandonadas precisamente & porta do palicio imperial. Mas o,estudo dos termos adgnatus (no sen- ‘nascido demasiadé tarde») ¢ postumus, tanto nos juris- em duas alusOes indirectas de Tacito, mostra que, nas wis ricas, se abandonam os filhos no desejados, cujo hascimento perturbava as decisdes tomadas a respeito da repar- ticho do patriménio entre 0s futuros herdeiros. Os textos gregos ou helenizantes (Pap. Oxy, 744; Apuleio) mostram também que, se abandonavam todos os filhos que ndo eram deseja- dos, pelas mais variadas razbes, ¢ nfo apenas os filhos da misé- Plutarco atribui o abandono dos filhos ao de- langarm rebentos proprios por linha directa e sejo dos pais de de deixar-thes 0 maximo possivel de dinheiro, Eo mesmo que dizer que 0 abandono dos filhos era para eles 0 que para nds & © aborto — nés interrogamo-nos se devemos conservar um filho ou nao, eles punham-se a questto de cridlo ou nao, Isto teve como consequéncia o facto de, uma vez por outra, os governos terem projectado ordenar que todas as criangas nascidas em de- terminado ano fossem, por uma razio qualquer, abandonadas logo apés o nascimento (Jélio Marato, apud, Suetonio), Decidir que todos os recém-nascidos de um determinado ano fossem abandonados era como organizar, como sucede no Japio, na China ou na India dos nossos dias, clinicas para abortos ou pa- +a esterilizagao. Acontecia ainda que as pessoas abandonassem 6s fillhos em sinal de protesto politico (por ocasido do assassinio de Agripina por Nero) ow religioso (aquando da morte de Ger- ‘minico para protestar contra a injustica dos deuses), Os recém- snascidos so um «retorno», uma produgso da natureza, que a sociedade humana s6 recebe por decisdo expressa (*), Duas con- 73 A SOCIEDADE ROMANA sequéncias: os flhos abandonados, recolhidos pelos mercadores Ge scravos, eram a fonte habiteal da escraviddo (exagerase em pensar no saque dos barbaros nas fronteiras do império e nao se pens o suficiente neste outro motivo que, contudo, 0s apolos fas dos steulos te bem indicam). Segunda consequéneia: 0 fi- Iho abandonado ou vendido ea, com frequéncia, diseretamente protesido pela mle ou por um parent; dal ax aventuras biog Fieas que recordam as de D'Alembert,. ou de Agstocies em Diodoro, Leiam-se, por exemplo, n0 De grammatieis, de Suet®- nio, as biografias de Antonio Gnifo ou de G, Melisso, ou no ‘Ad’ nationes, de Tertuliano, 1, 16, 13, um drama familiar 40, tempo do prefeito do pretoro Fussiano Faldmos quase s6 das classes elevadas, porque sto melhor conhecidas, Omitimos @ decisio fécil dos tmbientesliterrios e artists, com a sua tradicional liberdade de costumes (0 texto ial seria 0 das Odi de Hordcic). A tnica classe, além da oeraia, um pouco mais conhecica é clase urbana pobre, Pensariamos estar em Roms no tempo de Barnabooth: ca Se que as mulheres obtenham de que viver através do seu fascini contudo, paga-senes por set set ama te, nto se & seu amance por sc thes pagar, O importante, nesta Giestto, era o facto de @noral e mesmo 0 dieto pico con- Siderarem tudo isto legftimo; estamos numa. sociedade em que Os comportamentos sexuals consentidos variam ‘consoante as Glasses socials. A moral sexual romana nfo € uma moral 10 sentido moderno da palavra: € uma questo de star, no de Virtude, ‘de gestos esteriores, mo de" repugndnclas. interiors. Hoje encontramos qualquer ‘coisa de semelhante num campo aie sobrevive, o das conveniéncias, dos «palavrdes» ‘As jovencinhas romanas no aprendiam a corer com certas conversas ea consideri-las profidas; ado quanto se thes exigia tra tm geo de boas maneiras,o colocar a frente do rosto uma aba do vestido quando. passavam em frente de uma imagem pridpica (gesto que deveriam fazer mutas vezes porque seme- thantes imagens encontravam-se a cada esquina), Do resto elas riamse eo tom era muito rabelaisiano; mas aquele gesto tinham Geo fazer, nada mais nfo se tratava de iterorizr uma moral de casidade ‘Assim foram os Romanos, na época de maior esplendor. Quanto aos Romanos da decadéncia, ou do que assim veio a ser chamado, esses foram bastante morals tiveram, sem divida, mais filhos, Durante o séeulo MI, a castidade, ito € a recusa da Sexualidade fora do matriménio, tomourse uma virtude; basta 174 A FAMILIA E 0 AMOR NO ALTO IMPERIO ROMANO, recordar 0 exemplo de Marco Aurélio, alma que foi justamente definida como pré-cristdo, para sugerit ao leitor a profundidade da metamorfose. A transformagio das modalidades de competi- eo na sociedade global levou a uma transformagao das relacdes conjugais, a uma extensio da instituigdo do matriménio a todas as classes sociais ¢ a uma transformacao da sexualidade. Entre marido e mulher, ‘0 relacionamento passa a ser de amor conjugal, sentimento de obrigaclo 2 no de escolha: a obediéncia por amor. As relagdes afectivas entre esposos tornam-se ent&o um assunto do qual no se tem mais o direito de falar. Sob a repiiblica, cada um dos cOnjuges desempenhava ‘um papel definido e, uma vez representado tal papel, as relagdes afectivas entre cOnjuges eram aquilo que pudessem ser: cada um entendia-se, bem ou mal com a sua mulher, e se se entendesse mal nfo era nem vergonha nem falta de gosto dizé-lo. Sob o im- pério nao se poderia ja fazer acreditar As pessoas que 0 desacordo udesse reinar entre esposos, uma vez que, agora, presumia-se que o proprio funcionafénto do matriménio assentasse s0- bre um bom entendimento e sobre a lei do coragao. Nasce ent0 uma ideia nova: o «casal» formado pelo dono e pela dona de casa, que esto sempre juntos e sao convidados em conjunto pe- la vida mundana. Mesmo que, na realidade, os esposos estejam separados por distancias astronémicas, todo um cerimonial de nobre destaque ¢ de paixto senhoril sacraliza a sua imagem comum em face dos outros (Plinio, 0 Jovem). Eis a «moral de casab» A partir de entdo as relagdes sexuais limitar-se-4o, teori ‘mente, ao Ambito conjugal. A vida sexual comer: tarde: entre a repiblica e a época de Marco Aurélio, a sexu: dade dos adolescentes desaparece em teoria, e isto esta nado com a progressiva entrada em cena da no¢ao jur maioridade; a a fu quando se Rufo, de Efeso ¢ Sorano, é bem claro. Também € a partir des- ta época que se dé a sacralizagio da proibigfo do incesto. Por- que a intensidade desta proibiglo nao tem nada de uma lei da le fundamento absolut, & um facto humano e ; sob a forma de enunciagdes peremptérias, a tensidade da interdiedo varia muito de uma sociedade pa- ‘a, portanto ndo basta estudar quais so as relagdes pa. rentais proibidas, é necessério também tomar em consideracao 0 grau de intensidade da proibigto. Em Roma, o incesto mae iho, ou irmao-irm4, no era muito raro; era, bem entendido, 175 ‘A SOCIEDADE ROMANA condenado, mas ndo provocava um horror sagrado, como nos ‘nossos dias; nos satiricos é um tema de brincadeira’ ou de sar- casmo, um assunto de maledicéncia; era mais grave que um adultério mas, feitas as contas, um delito do mesmo tipo, ndo um atentado contra a natureza. Podemos supor que o horror sagrado do incesto se tenha afirmado no decurso dos iiltimos séculos do império e que esteja relacionado com todas as trans. formagbes que aqui estamos estudando. Toda a sexualidade se dirige ao matrimonio ¢ A reprodugio, «naturezan; 0 aborto torna-se um crime, os moralistas reco: mendam as mdes que alimentem elas mesmas os seus pequeni- nos. Os afectos escolhidos confundem-se com os induzidos: toda a relagdo passional deve coincidir com uma relagao natural, isto € social, se ndo se quiser passar por irracional; aquilo a que cha- maremos pervers0es sexuais, excepto a homofilia, que Séneca ainda admitia tranquilamente (€ verdade qi possuia bons motivos para o fazer), serd entendido como um excesso irracio- nal de sensualidade ou como um cimulo de stuftitia, no sentido estéico deste termo; na sua estupidez, os homens t8m a ousadia de complicar a natureza, querem rosas no Inverno, pretendem navegar (quando a natureza thes deu pés para cat irme), pretendem alumiar-se de noite; quando adulto um rapaz, querem forgi-lo a depilar-se, se gldade dos jogos efebicos ja fenka passado para ele, esereve Daqui a condenaco da paixo amorosa. © antigo estoicismo ao racionalismo endemonista do porque no coincide com as rela Jos0- jsmo, tém por objective a formaclo de um sabio — isto & de um individuo invejével — 20 ‘menos. quanto a descrigio do mundo através de ideias gerais; ora, a felicidade do sabio & entendida como auto-suficigncia, au: tarcia, satisfacao das necessidades naturais. A felicidade consiste no restabelecimento de um equilibrio, no preenchimento de um vazio; quando se quer garanti-la, toda a afectividade deve desa: parecer; isto pertence tanto ao epicurismo como ao estoicismo ‘0u ao freudismo ortodoxo: o ser vivo apenas se relaciona consi- 38 seus afectos so pleasure no object- 'e uma quantidade ou um: de neces- sidades a garantir, tal como em Freud existe u uma conservacdo da energia da libido, quer esta vagao do eu (narcisismo primério) ou se dirija a um «object © individuo ndo sai de si mesmo, 0 que quer dizer que, quando 176 A FAMILIA E © AMOR NO ALTO IMPERIO ROMANO. tiver Finalmente aquilo de que precisa, a sua afectividade deve morrer. E impensavel que permanega em estado de tensdo afec- tiva depois de possuir 0 que desejava; se assim continua, se a posse nado poe um fim ao estado passional ou ainda se, sob 0 pretexto de que o objecto possuido é «apaixonanten, essa posse ‘aumenta tal estado passional, isso significa que 0 individuo apaixonado ¢ pateta: a paixio é contranatura, ¢ absurdo estar estas condigdes de tensto afectiva quando se possui o que se desejava, Este racionalismo da felicidade por homeostasia faz reduzir todo e qualquer afecto erdtico ao papel de ser o quente substituto das tnicas relagDes «naturaisy; 0 amor da mulher, das criangas, dos amigos (isto & dos clientes ou dos aliados poli- ticos). Uma’ intensidade que nfo fosse simplesmente o sintoma de uma falta era impensével e inadmissivel. A paixao possui dois ou trés absurdos: faz tender no para um objecto espe fe substituivel, ao qual se pede apenas que reiina certas condi- (G0es, que provoque determinadas satisfagdes, mas, sim, para um Objecto inutilmente indivfualizado (enquanto pelo menos ou- tros dez objectos da mesma espécie serviriam igualmente bem para o mesmo fim); em segundo lugar, a paixo é uma tortura, luma condigao que se autocontradiz, 0 que € monstruoso por- que, numa ontologia monista, numa metafisica providencialista, & impensavel que as redes do ser no estejam organizadas har- moniosamente € que possam verificar-se curto-circuitos; se tal acontece, € contranatura. Compreende-se como um tal raciona- lismo monista ¢ homeostatico possa ter servido de suporte a uma moral de obedigncia por amor ¢ de sexualidade conjugal: para Séneca, ¢ para o seu sobrinho Lucano, a existéncia do ‘amor conjugal 4 nfo & um acidente feliz, mas uma norma cuja realizag&o se presume; segundo esta norma, o acordo entre es- posos nao mais um estado de facto a que se chegou eventual- mente nas relagdes conjugais mas, sim, o fundamento de tais relagdes. Seria facil demonstrar que as morais ascéticas (neopita- gorismo, medioplatonismo) so a vertente estética de semelhante € um dandy da moralidade e compreende-se, . 0 sucesso desse ascetismo na boa sociedade da época; 0 ascetismo € a tinica forma de heroismo individual que permanece possivel numa sociedade moralizadora: & por natureza propria, tum requinte; o aspecto tem de vez em quando caracteristicas «a Proudhon», mas com distingao e fervor: como Apolénio de Tiana, ‘Ao mesmo tempo, desaparece a chamada homossexualidade antiga, que é, em realidade, bissexualidade; Epicteto, neste as~ unto, serve de fundamento: nele esto ja em cena os argumen- 107 JADE ROMANA tos contra a homofilia, comportamento sem finalidade biolégica nem suporte de nenhuma instituicao natural; enquanto o mundo gue descreve & ainda completamente bissexual e & necessério es- Pecificar, nos contratos de matriménio ou, melhor, de dote, que 9 esposo nao tera «nem concubina nem favorito» (Pap. Tebt, 104); «amar uma mulher ou um rapaz», férmula-chave do amor antigo, lé-se ainda por seis vezes em Epicteto (mais tarde volta- emos a ler esta formula em Plotino ¢ depois, uma vez por ou- tra, nos iltimos pagdos, guardides da antiga tradigao, como Macrdbio). Nao € preciso dizer que as literaturas helenistico- sromanas descrevem um mundo em que a_bissexualidade est implicita ¢ a realidade descrita pelos historiadores era, também cla, bissexual — cada um doseava as suas preferéncias e os his- toriadores referiam se determinada personagem tinha uma incl nna¢do mais marcada por um ou pelo outro amor. Marco Auré- lio, futuro pai de uma numerosissima familia, faz ponto de hon- ra em nfo ter nunca tocado nem em Benedita nem em Teddo- to», uma serva e um escravo; portanto, tinha sentido vontade de o fazer. Os dois amores nem pertenciam a espécies diferentes hem constituiam um critério de classificagao dos individuos; eram uma particularidade nao essencial, entre muitas outras, c mo a paixdo pelas corridas do circo ow pelas pantominas; @ ho- mossexualidade, no sentiéo moderno do termo, ou seja a recusa do outro sexo, mais nao eta que o extremo deste arco-iris nio essencial; Séneca € o primeiro, em Fedra, a fazer da homosse- xualidade, no sentido estrito do termo, uma caracteristica a parte ea imputi-la a uma sacralizagao da mae. A historia da bissexualidade em Roma merece ser toda rees- crita, em particular tudo quanto sc diz da sua repressio legal € inexacto (a homofilia, enquanto fal, ndo sera reprimida antes do século m1 d.C.), E falso que o amor «gregon, em Roma, seja de origem grega: como, ainda hoje, outras sociedades mediterrani- cas, Roma nunca opds o amor pelas mulheres ao amor pelos ra- ppazes, opds a actividade & passividade; ser activo era ser macho, fosse qual fosse 0 sexo do partner passivo. Basta ler Cat para o saber. O velho Cato nunca protestou contra os jovens favoritos ou a homo iplesmente considerava escandaloso que, a exemplo dos Gregos, se desembolsassem somas exagera- das para comprar um pequeno escravo; as despesas imoderadas ‘em matéria gastronémica suscitavam-Ihe a mesma indignagdo & sempre pela mesma razdo econémica. E verdade que a homofi- lia em Roma se helenizou — a par dos antigos relacionamentos homofilicos entre jovens e entre senhor e escravo surge o costu- 10 do pequeno favorito «oficial», ou a instituigao de A FAMILIA E 0 AMOR NO ALTO IMPERIO ROMANO fileiras de jovens pagens. E, sobretudo, pOe-se um grande pro- ‘a: & permitido possuir adolescentes livres ¢ de boa familia, segundo 0 modelo de amor efébico grego? Os gindsios romanos tornar-se-4o, também eles, outros tantos cursos de amor? Pois, ia, a homofilia «passivay era vergonhosa (é uma gloria possuir, vergonhaso ser possuido) mas com uma excepgdo: os adolescentes, pela sua juventutle, podem ser passivos sem deson- ra; semelhantes indulgéncias s6 so desonrosas num adulto. Sera permitida uma vida galante aos adolescentes nobres? Oficial- mente, no; na realidade, 0 amor efébico foi tdo difundido na Grécia como em Roma. Mas era um assunto tabu. A verdade & que a homofilia era quase a regra nas escolas (Horacio) ea grande preocupagio dos pais dos estudantes daquele tempo era obter a indicagao de uma escola onde os costumes dos seus re- bentos nfo corressem perigo; um dos deveres de boa educagdo era fornecer tal indicagao aos amigos. Nao a homofilia a ser mal vista, mas a passividade nos jovens de nascimento livre (re- ‘cordemos que a moral seUal dependia inteiramente do statu — ‘a moral romana uma ética de ordens). © termo impudicus, eu- jeado € mal conhecido, designa, por eufemismo, a «pas- Adivinha-se de onde vem, nos estudiosos da Antiguidade, a falsa ideia de que o amor «grego» seria, em Roma, uma conse- quéneia da helenizagdo: esta ideia remonta ao tempo em que se acreditava em que a bissexualidade fosse uma excepgio € nao ‘a condigfo primédria em que vive a maioria da Humanidade (a cexcepeo das sociedacles cristds). O que surpreende nao é a bisse- xualidade, mas a sua proibicdo. Em Roma, o problema do amor efébico ndo era sexual, era ético; hesitava-se em adoptar os cos- tumes gregos em matéria de adolescentes nobres, como se hesi- tava em adoptar as competigbes @ maneira greza (nas quais as pessoas da boa sociedade desciam & arena) em vez dos jogos latinos (nos quais s6 os profissionais considerados de condigao social infima, como os actores do século XVI, desciam 4 arena). Dito isto, os mesmos adolescentes, assim como 0s seus pais, po- diam ter por favoritos todos os pagens que quisessem. A melhor prova de que a bissexualidade ¢ 0 dado primério, enquanto a heterossexualidade é uma escolha cultural, € que, mesmo nas sociedades em que a homofilia é efieazmente’proibida, tal proibi- f¢#0 nunca se toma, de facto, visceral. Os individuos, sem diavida, ‘nao tm desejos homofilicos, pensam na homofilia com horror e esto persuadidos de que, se passassem aos factos, se senti- iam mal: e, contudo, passam a vias de facto realmente e ndo se sentem absolutamente nada mal. Em resumo, € preciso no 179 ‘A SOCIEDADE ROMANA fazer uma ideia rigida, quer das repressbes quer das proibigSes. As proibigdes alimentares, por exemplo, tornam-se visce tum etnélogo, por dever cient mértir da cigncia, sentira néuseas. As coisas no se passam mesma forma com as proibigées sexuais (homotilia, a irma); é-se persuadido de que se sentirdo nauseas, mas de fac- to nfo se sentem. Por uma boa razfo: por muito estranha que te nenhuma diferenca sen- esta afirmacdo possa parecer, nao e sual ou afectiva entre os dois amores; ou antes, as espécies que talvez se tenham distinguido no interior da vida amorosa nao correspondem de facto & diferenca entre os sexos © apenas a afloram. Experimentar a homofilia pode ser decepcionante, tu- Fistcamente falando: ela assemelhate absoltamente & hetero que nfo penetra visceralmente mas 6, ra aos individuos o desejo e até 3. A bissexualidade nao € de facto uma etapa rmagao do individuo jovem: & uma ito, mesmo nas sociedades onde a ia € proibida e mesmo nos individuos que nao experi- nenhum desejo nesse sentido, nem vontade passageira. Ousemos admitir que o que Freud diz, por vezes, da bissexuali- dade ¢ da homossexualidade € provavelmente’ desastroso (*) 4, Se quisermos entender os antigos (¢ os mais capazes entre 05 modernos), temos de nos habituar a ideia de que os prazeres se- Xuais no so sexuados} os dois amores podem ter sabores dife- rentes, conforme os gostos de cada um, ou o mesmo sabor: nao tém uma esséncia diferente. Em resumo, se quisermos compreender por que razio a ho- mofi masculina, estava muito mais difundida na Antiguidade que nos nossos dias, basta imputar a causa bissexualidade e nao a homossexualidade propriamente dita; os homossexuais, indubitavelmente, ndo eram mais nume- rosos, era a bissexualidade a ndo ser socialmente reprimida. Era lo menos, a explicacdo de Proust em Albertine Desapa- ‘Apds mil e novecentos anos, a homossexualidade habi- tual» na qual se poderd ver uma bissexualidade, «desapareceu; sobrevivem apenas a involuntiria c a nervosa. E esta homosse- lidade sobrevivente, apesar dos obstéculos, vergonhosa, sem ‘igo, a tinica verdadcira...». Suponho ser licito pensar que os 180 A FAMILIA E 0 AMOR NO ALTO IMPERIO ROMANO homens de hoje sejam semelhantes aos de outros tempos, que uns dois tergos dos nossos contempordneos sejam bissexuais (quer 0 saibamos ou no: a auséncia de desejo nada prova) ¢ que pelo menos um décimo seja, pelo contrério, mais ou menos homossexual; existem também, por motivos de’simetria, duos exclusivamente heterossexuais? Coisa dificil de estabelecer e, mais ainda, de quantificar. : Nao concluamos destes factos-que, na verdade, a Antiguida- de fosse 0 paraiso da nfo repressao. Pelo contrario. A moral desse tempo nflo inventara a nogio de amor contranatura; em compensacto, inventara a nogo de «moleza». O machismo era ainda mais insuportavel na Antiguidade que nos nossos dias: uma metade de bissexuais, a metade activa, desprezava a outra metade, considerando-a «mole»; as duas metades estavam de acordo em cobrir de desprezo as mulheres que amavam as ou- tras mulheres ¢ os homens que amavam, por moleza, 0 prazer feminino; a maledicéncia da época acusava certos estdicos de compensar desmesuradamezife uma moleza secreta com a osten- tagdo de uma exagerada virilidade. A sexualidade antiga ¢ a nossa so duas estruturas que ndo possuem nenhum relaciona- mento entre si e que ndo se podem sequer sobrepor; nao se sucedem num continuo de repressdo mais ou menos. grande, segundo uma ficedo generosa, mas racionalista e optimista. Os ‘adiscursos» da sexualidade podem comparar-se ao tragado das fronteiras nos mapas de geografia histrica que mostram a si- tuacZo do mundo nas varias épocas: século a século, 0 tracado destas fronteiras é inesperado ¢ extravagante, nao reflecte a logi- ca profunda de uma luta eterna entre repressdo e desejo — seria demasiado belo. Por mim, ndo concluo daqui que o que tem de ser tem muita forga e que mais ndo ha a fazer sendo aceitar do- cilmente as convengdes € 0 «discurson do seu proprio tempo; a0 contrario, que nfo nos devemos deixar enredar por pseudo-racionalismos, incluindo os que s40 considerados gene- rosos e moralizadores: 0 fico € sempre suspeito; para qué choramingar, pregar, reivindicar direitos? Nao € mais simples tomé-los? Fazei-o com coragem e sem duvidar minimamente de vvés mesmos, de contrario ser4 o fim (a indignagdo virtuosa tem sempre o ar de no passar de uma humilhagdo revoltada). Nin- guém ousara abrir a boca com medo de que Ihe riam nas costas mas, por favor, nao racionalizemos e nao reivindiquemos. Em Roma,’o «discurso» da sexualidade (recordo que, em Foucault, este termo enganador de «discurso» nao tem justa- mente nada a ver com 0 que é dito e com os floreados da se~ miologia ¢ da lingufstica, mas designa, pelo contrario, 0 que é 181 A SOCIEDADE ROMANA pré-conceptual e no dito), esse discurso, portanto, no opunha a sexualidade dirigida 4 reproduedo ¢ a sexualidade «contrana- turay, e tal oposicao ndo era uma questo de moral; ele opunha ser activo a ser passivo, e semelhante oposigo era de simples vergonha (eis porque a moral sexual variaré ‘conforme 0 statu social: para um escravo no existird vergonha em ser passivo), © modelo donde saiu esta sexualidade ¢ simplesmente o relacio- namento entre 0 patrdo e os seus subordinados (esposa, pagens, escravos), & uma sexualidade de estupro; como tal, ela durard até ao século xvi, pelo menos, e est na origem da distingao, evidentemente muito marcada, entre aquilo a que se chama acti- Vidade e passividade porque, se tomarmos como padrao 2 pene- tragao, o papel da mulher surgiré passivo: se tomarmos como padrao 0 acto de comer, o papel da mulher seria activo — eis porque os homens tém medo da fantasmética «vagina dentadan. © que & vergonhoso & por-se ao servigo do pariner sexual: & uma atitude de escravo. E dai um pormenor divertido: existia em Roma, sim, um acto sexual absolutamente vergonhoso, tan: to que todos se perguntavam quem «ia nisso»; nos epigramistas, «cir nisso» eta a injiria suprema; este acto é 0 cunnilingus, que ‘ocupa nos satiros do tempo um lugar t4o importante como 0 da homofilia nos chansonniers; citava-se mesmo 0 caso de pratican- tes de cunnilingus vergotdosos que tentaram inutilmente masca- rar a sua desonra através de uma vergonha menor, fazendo-se pasar por homofilicos passivos! O estupro tem um lugar impor- tante nessa sociedade, salta-se para cima das pessoas e violentase sem yergonha ¢ julga-se que a pessoa violentada tenha experi- mentado prazer. Uma poesia de Nemesiano, um dos rarissimos textos que nos permitem vislumbrar os amores dos camponeses, mostra dois pastores, ambos enamorados da mesma jovem cam: les fazem-ihe uma emboscada numa estrada vazia ¢ um idilio. © prazer da donzela € ignorado ou tema nas relagdes com as mulheres de bertas), que € preciso seduzir, ¢ também ia sociedade, que conduzem a vida galante ivres costumes (as om a8 senhoras da ¢ livre de que falémos E activa, e portanto digno de louvar, o partner sexual que se 40 ‘menos se for homem, € censurdvel aquele ov aquela que se poe a0 servico do outro. A palavra de ordem lade ¢, pois, fazer-se servir. Vé-se bem, se for estuda- jgado através dos séeulos a uma das posicGes erdti ens, 0 errs eroticos. Nos nossos dias, descolonizou-se a forca 4 mutes, a francesa, assimilando-a a integrando-a’ o homem, colonizador arrependido, no reserva para si, egoisticamente, 0 182 Ip ‘A FAMILIA E 0 AMOR NO ALTO IMPERIO ROMANO exclusiva do prazer, quer que também a mulher, essa ex-colo- nizada, se tome semelhante ao seu amo e experimente, sob 0 nome de orgasmo, o mesmo prazer do seu colonizador; daqui uma ortodoxia do prazer que faz desejar uma «nova desordem amorosan. Nesta perspectiva, 0 equus eroticus tem fama de ser tum dos melhores modos que a mulher tem para conseguir tal prazer e, 20 mesmo tempo, simboliza a inversio das relagdes en- tre 0 ex-colonizador e a sua descolonizada, pois nunca se pode- ria simbolizar demasiado as opinides generosas. Nos nossos dias, 0 equus eroticus &, pois, valorizado positivamente. Nao era ‘menos valorizado entre os Romanos, mas pelas razSes exacta- mente opostas: a serva coloca-se sobre 0 seu amo, molemente estendido sobre o leito, porque esta ao servico do prazer do ho- mem; Apuleio, ou as pinturas de Pompeios, mostram bem que esta posigdo era o non plus ultra do amor. Enfim, entre a Anti- guidade © a nossa época, de Séneca a Krafft-Ebing decorre um periodo intermédio no qual. o equus eroticus é mal visto, porque a condigo da mulher see: 4 do prazer masculino, nfo deve colocar-se por trdrio, € a0 homem que compete ser activo, dar boa cuidar de si mesmo; se a mulher 0 cavalgar sera sus sar da si lade de pessoa humana por se a homem; Séneca enraivece-se quando descobre que g0u a um ponto tal que, agora, so as mulheres que cobrem os homens (viros ; em Krafft-Ebing, 0 homem a quem nao repugna fazer-se cavalgar & classificado entre os masoquistas, E assim que, in do dos Sonkos, 0 grego Artemidoro enumera as relagdes sexuais que sfo conforme, segundo a sua expresso, & natureza. Enumera af os relacionamentos entre 0 patrdo e 0 Seu favorito, depois passa as relagdes contranatura: sfo 0 incesto e a eventu: lidade de ser o escravo a possuir o amo. Apesar de tudo erraria- mos totalmente se representissemos a Antiguidade como um mundo a Pierre Louys: o contrario & que é verdadeiro; eles no tinham as mesmas proibigdes que nés, nem a mesma modalida- de de interdiedo, mas tinham mais interditos; s6 as mulheres mais desavergonhadas se despiam completamente e s6 03 mi ciosos deixavam a luz acesa, Estas proibigdes nfo eram moi igadas a uma virtude de castidade, mas sim interditos pont e de conveniéncia, como para nds & 0 tabu dos «palavrdes A nudez antiga, 0 sonho de sensualidade pagii ¢ de natureza cAndida, sdo mitos. Compreende-se bem de onde tenham surgi- do: da iconografia, da nudez na escultura e na pintura, Seré 183 ‘A SOCIEDADE ROMANA preciso repetir que o imaginario nao é a mimesis do real, nem 0 seu Ersatz a uso dos frustrados, mas um reino independente com as suas leis e os seus prazeres? Nas representacdes figura- das de amplexos, as mulheres estio completamente nuas se a ce- nna estiver estilizada segundo os c&nones helenizantes (que ser30 ainda os dos nossos pintores do século XVil); mas, quando a pintura ¢ menos académica e mais realista, a nudez nao é total. E que o retrair-se frente a feminilidade permanece sempre a verdadeira caracteristica desta sociedade sem mundanismo, sem cortesas, onde os manuais eréticos nunca sairam do submundo da literatura especializada. Na arte ¢ na literatura, as figuras das Amazonas deviam o seu sucesso menos a tendéncias masoquis- tas («cavaleirescas») como em Tasso ou em Kleist, ou homosse- do que a este embaraco colectivo: os gestos viris destas ‘guerreiras eram tranquilizantes, ter-se-iam temido mais gestos menos agressivos. «Eu cubro-te» (te paedico irrumo) era sempre a injiiria mais difundida entre os jovens, a moral praticada era obsessivamente viril. Assim, ndo se podia replicar nada aos que, por raz6es de caracter, queriam impor uma moral professada que nao fazia sendo sistematizar este medo da «moleza», recor- rendo a racionalizagdes eivicas, politicas (se nio mesmo religio- sas); eles tentavam, com sucesso intermitente, condenar por fim © prazer da «pera» (ow tpantomima»), muito popular naqueles tempos; pois o fascinio da danga ¢ do canto fazia tremer estes homens de Estado ¢ pensadores, que Ihe contrapunham os espectaculos de gladiadores, mais ‘mais educativos para os cidadios. A exemplo destes moralistas, a moral cristé, por razées religiosas desta vez, professaré sempre a ideia de que 0 teatro & sempre um espectaculo mais perigoso ¢ horrivel que o dos gla- diadores, sem conseguir elimina-lo, de resto. No fascinio sac i ‘que desgostara Santo Agosti- smo que o préprio fascinio: no & possivel impedir as pessoas de os olharem. Por muito diferente que seja da moral crista, a velha moral sexual romana, a sua maneira, no € menos uma espécie de pu- lade». A obra e 0 episto- ininas (excepto por um de uma casta de senhores, como em Esparta. O pudor receberé um dia a sua heranea, mas com um novo conteid ‘Assim a forma antiga de’sexualidade que se extingue entre 184 A FAMILIA 0 AMOR NO ALTO IMPERIO ROMANO os séculos te 1, para dar lugar a uma sexualidade de reprodu- ‘eo que, da primeira, conserva apenas a oposicdo activida- de/passividade, aplicada agora as relagées conjugais. Toda a re- Tago sexual excramatrimonial passa a ser proibida, enquanto a sexualidade nfo é mais um assunto de convenincias que variam com o statu social e que nfo se podem violar sem vergonha, mas sim um caso de virtude a que 4odos 0; homens so obviamente obrigados a obedecer e que nfo podem violar ser imoralidade. Es- ta evolugao esta completa quando, depois de 200, o cristianismo se tornaa religido maioritéria (no sentido em que, fora dele, existiam apenas outras seitas, menos populares, e a maioria da populacdo, ‘«maiotia silenciosa»). Nao digo, de facto, que os costumes te- ham sido transformados mas, sim, que a’moral pag se desdo- brou: uma moral te6rica — um cant, se quiserem — separou-se da ‘moral pratica e aparece agora A superficie. ‘Uma moral comum a toda a sociedade substituiu as diversas morais proprias dos varios statu sociais; isto explica a universa- lizagdo do matriménio, méimo para os escravos; isto no quer dizer, de facto, que os statu, estejam a desaparecer e que 2 -a desaparera pouco a pouco; o escravo continua escra- vo, mas a ética torna-se universalista. Eis um exemplo, peque- no, mas provavelmente inédito. Quando um escravo era posto a venda, 0 direito romano obrigava o vendedor a avisar prévia e honestamente 0 comprador dos defeitos ¢ vicios da mercadoria; faltava definir legalmente o que € que constituia uma falta a declarar; se se pOe 4 venda uma escrava gravida, 0 seu estado & um defeito que seja necessario assinalar ao compra- dor? No tempo de Augusto, a resposta era sim (Vitravio, 1); esperar um bebé, estado louvavel para uma mulher lum defeito num «instrumentoy animado, que ndo poderd ser adequadamente o seu amo, Por volta de 200 d.C., a resposta tornou-se negal critos dos jurisconsultos pagaos (Digesto, xxt, 1, 14, @ a tarefa natural de qualquer mulher, nao’ uma doenga. A escrava, como se v8, continua escrava, ja escrapulos em separi-la do pai de seu ‘la dependera da mesma moral das matronas reocupardo em evitar que ela viva na promis do. Uma civilizagao completamente crista apr contradiego. No Sul dos Estados Unidos, antes da Guerra da Secessio, os negros nao podiam ser mais escravos do que eam, mas nem por isso deixavam de ter uma alma, como todas as criaturas, ¢ os seus amos baptizavam-nos e faziam-nos casar © mesmo acontecia em Roma, onde esta universalizagto da vendida sem que ha- tho, mas nem por isso res e depressa se dade e no peca- 185 A SOCIEDADE ROMANA, moral é anterior ao cristianismo, como acabiimos de ver, ¢ no eve confundir-se com um dectinio da escravidao. Precisamente no inicio do perfodo aqui examinado, Varrao eserevia: «Quanto aos chefes dos escravos (praefecti) é necessa- rio pensar em constituir-thes um peciilio ¢ em uni-los a uma das companheiras de escraviddo (conluncrae conservae): terio mais fillos, serdo mais estaveis e mais agarrados & terra.» Varrdo po- deria ter aplicado igualmente a todos os seus escravos esta recei- ta social: teria podido mudar assim as Auman relations sobre as suas terras, sem nada mudar nas relagdes de produeao; 12-lo-i feito, se um principio de moral universalista o tivesse inspirado, mas na unido estavel dos escravos ele apenas viu uma simples receita técnica, a aplicar unicamente quando fosse necessério, is- to € no caso dos escravos-chefes. Trés séculos mais tarde, esta ética universalista estava em funcionamento. Tornados escrupulosos da respeitabilidade, os amos, pagdos ou cristéos, sentem-se a partir de entao na obriga- do de impor a todos os seus servos as mesmas interdicdes morais que impOem a si mesmos, porque, por defini¢ao, uma moral de respeitabilidade ¢ universal; ela ndo’eleva 0 suposto privi dos senhores que ia fazer o que lhes passasse pela cabega, como uma lei pessoal, ja que eles representam a lei para os seus subordinadds B, sobretudo, os amos acreditam, a partir de agora, que a manutencdo da sua autoridade exige que fs seus domésticos sejam morais, uma vez que, agora, a condus ta de cada homem tem como referencia nalo uma lista de deveres definidos a realizar mas, sim, virtudes, que esto na origem de tais deveres; a moral (orna'se interiorizada e universalizada, Sendo a conduta de cada um uma questo de virtude, os amos J ndlo querem que tais virtudes thes possam fugir, porque elas So 0 novo ponto de aplicario da sua autoridade; eles reinam sobre almas e jé no sobre acgdes definidas por um statu. De uma moral de actos estatutirios a uma moral de virtudes iaadas; esta € uma grande mutaglo, entre César e Marco ‘Aurélio. Ela explica o triunfo do cristianismo (em vez de ser ex- plicada por este): uma sociedade que tomou uma tal direceao Gtica nfo podia resistir as ideias cristas, antes as atraia. A antiga moral dizia: «A impudicicia (isto & parece-me, a passividade, seja homossexual ou heterossexual) € um crime para um homem de nascimento livre; para um escravo € 0 seu dever mais absolu- to; para um liberto € uma condescendéncia que ele tem o dever moral de ter para com o seu patrao.» (Seneca, 0 Velho, Contro- vérsias, pr. 1V, 10). Lindo fim teve esta moral: agora, todos tem ‘© dever de respeitar a virtude do pudor. 186 | { A. FAMILIA E 0 AMOR NO ALTO IMPERIO ROMANO nos seus efeitos e dai um aumento de peso da wrepressfo sexual, consequéncia desta interiorizagéo desta universalizagao. Aborto, homofilia e sexualidade mascu- lina pré-matrimonial, para no falar de adultério, tornam-se despreziveis no século dos Antoninos. A transformacao da edu- cacao é a melhor ilustragao de tudo isto. Um dos grandes pro- blemas da educagto na Antiguidade era, na minha opiniao, 0 seguinte: um adolescente é ja um homem que deve aprender a comportar-se como um homiem, ou que deve preparar-se para set um homem, isto ¢ formar o’seu caracter ¢ adquirir as virtu- des que, mais tarde, se traduzirio em acgdes exteriores de ho- mem feito? O contraste entre a educaedo grega, que formava 0 cardcter, e a antiga educac%o romana, que tratava como um ho- mem feito qualquer rapazinho de quatorze anos, reside nisto. Ora, estas duas concepgdes das idades da vida comportam duas morais ¢ duas sexualidades diferentes. Se o adolescente deve for- mar o seu cardcter para o seu futuro papel de homem, os seus educadores inculear-Ihe-te"uma moral intetiorizada: 0 adoles- cente deverd ser respeitoso, correcto, disciplinado, senhor de si mesmo, obediente; devera realizar 0 acto viril 0 mais tarde pos- sivel, como garantia de autocontrolo; desde a época helenistica, ‘a moral da «Vénus tardiay (Sera Venus) & aplicada aos adoles- centes (A. D. Nock, Essays, Oxford, 1965, 1, pag. 479). A mo- fal helenistica da educacdo prefigura’ a moral interiorizada que, no século dos Antoninos, se estenderd a toda a sociedade: 0 ro- mano Marco Aurélio sentir-se-4 feliz por realizar 0 acto viril 0 mais tarde possivel. Se, ao contrario, se espera de um adolescen- te que aprenda subitamente as atitudes da sua fungio de ho- mem, pedir-Ihe-do que aja discretamente, ndo que tenha um ca- tet virtuoso; ora, era esta, em Roma, a velha educapao repu- blicana: Catao, 0 Velho, via com bons olhos os adolescentes que pintavam a manta, Assim é, ou era, para nés, a diferenga entre escola ¢ exército. Na escola formava-se o cardcter intimo dos futuros homens ¢, com este objectivo, «reprimia-sen; no exército exigia-se menos que os homens tivessem virtude do que fexecutassem acg6es adequadas & sua condicdo, de forma a que, quando no estava de servigo, 0 valoroso soldado era autoriza- do e encorajado a comportar-se virilmente com as mulheres: eis a moral do velho Cato. Sao dois tipos diferentes de autori- dade, A virtude substitui 0 statu, 0 amor conjugal substitui a obe- digncia, o pudor substitui os ‘gestos de decéncia e 0 comporta- mento rabelaisiano. Os médicos recomendam a ginastica para distrair os adolescentes do amor (Sorano, Sobre as Doencas das ‘Uma virtude & univers 187 A SOCIEDADE ROMANA Mutheres, 92). Bastou um século ou dois para que esta transfor- ‘magdo se completasse. O estoicismo e, depois, 0 cristianismo constituirgo a racionalizac4o da nova moral, a sua «ideologia». Pois ndo ha uma esséncia eterna do cristianismo: antes do sécu- lo 1v, «o» cristianismo possui uma forte vertente ética (mais que lea) que 0 torna uma espécie & parte; Harnack sublinhou fortemente este trago especifico. Percorra-se velozmente a patro- fogia tatina anterior a paz da Igreja e ter-se-A uma forte surpre- sai como é pouco evangélica esta literatura! Como & obsessiva e sectirial Esperariamos ver em actuagdo «o» cristianismo eterno e descobrimos um movimento psicossocial original, baseado em dois grandes temas que preenchem quase todas as paginas: os conflitos sectarios (ou de ortodoxia, se quisermas) e um moralis- mo obsessivo. Suspeitamos, entdo, que o periodo paleocristtio nndo deva ser narrado segundo uma continuidade cronolégica, como primeiro episédio da hist6ria de uma religifo, mas si que deva ser explicado relacionando-o com os temas que asle se encontram: 03 conflitos intensos pela «dominacdo simbélica», presentes nas seitas que ambicionam um monopélio das cor cigncias e as epidemias moralizadoras de todas as épocas, cluindo a ecologia. Noutros séculos, o conteiido do cristianismo tem sido muito diferen 4. Religido e moral Por outras palavras, € necessario substituir o mono-ideismo por um método pl ova moral nventar a ordem tradicional dos religido na moral endo mais a qual serd o lugar da religigo numa sociedade, como se a religiao fosse uma nogto definida e designasse uma auténtica fun; riante, significa fazer uma pergunta sem sentido. «A relig existe, no porque nenhuma religio se assemelhe a outra (poder- -se-ia dizer mesmo de todas as folhas de uma arvore, o que ndo nos impede de pronunciar legitimamente a palavra folha), mas Porque cada religido € um agregado de interesses, de d objectividades heterogéneas, que nada mais une para layra religido. Como consequéncia, cada pormenor da rel seu esquema causal particular, porque corresponde a um interesse 188 A FAMILIA E 0 AMOR NO ALTO IMPERIO ROMANO. diverso e a religito em bloco & apenas o agregado quer de todos 0s resultados quer dos seus compromissos. Estes diversos inte- resses esto a diferentes nveis de importancia no ordenamento das infra-estruturas ¢ das sobre-estruturas. O cardcter enganador do agregado «religito» & por vezes, impossivel de ignorar; A, Boudhiba acaba de demonstrar que a moral sexual do isléo, em alguns pontos, e ndo nos mends importantes, & estranha a doutrina do Corao. Poderiamos pensar que a «religido» de Maomé tivesse remodelado «a moral» de toda uma parte da Humanidade; na rea- lidade, em numerosos pontos, esta religido apenas recebeu uma moral exterior. E depois, nem toda a religido tem uma moral (¢ a moral, por sua vez, é um agregado ou, pelo menos, uma ideia con: fusa); a moral crista existiu, em primeiro lugar, como entidade se- parada, como moral da sociedade paga, antes de se agregar nova religido. Como diria Gilles Deleuze, cada religiao é um rizoma. ‘Um rizoma que agrega um nimero maior ou menor de interes- ses como estes: ritualizagta.do quotidiano, tranquilizagao magica, Unheimliches, sentimento'@a inconsciéncia das coisas humanas em relagdo a sabe-se I 0 qué, Wesenschau do sagrado segundo Ru- dolf Otto, ficgAo essencialista, medo da morte, superego, fest dades e ilusdo de grupo, expressividade simbélica da Natureza na tos mal conhecidos, dificeis, que pediriam uma lade particular, que eu nfo possuo. Cada um destes in- teresses pode, bem entendido, agregar-se a outras moléculas his- para além da religido, de tal forma a nogdo de religigo & dificil de atingir; existem religides sem deuses e seria um falso problema perguntarmo-nos qual, de todos estes interesses, sera © micleo autntico da religiao. ‘Um cidade, qualquer cidade, nao é mais que 0 agregado de explicacdo diversa, Tudo somado, se existe um trago especifico que permita fazer da «religido» uma entidade especifica, indivi- dualizivel entre outras entidades sociais, & talver o seguinte: a capacidade de agregar um nimero excepcionalmente alto de in- teresses diferentes; uma religido é uma molécula gigantesca, tem a mesma especificidade da quimica orgénica. E necessdrio ndio raciocinar de uma forma compartimentada ¢ dizer que, cerca do século mr, as pessoas adoptaram uma religiao nova ¢, em consequéncia, modificaram a sua moral, A parte as 189 ASOCIEDADE ROMANA, A.FAMILIA E 0 AMOR NO ALTO IMPERIO ROMANO. Inevitaveis fraquezas humanas, também chamadas sobrevivéncias do pasado; o que é preciso & compreender a existéncia de interes- ses heterogéneos. Para dar um s6 exemplo (0 evergetismo pode- ria ser outro), a nova ética pag no possufa apenas um contet- do novo: era também uma moral, num sentido novo desta pala- vra, o de doutrina abstracta; interiorizando as virtudes, pedia uma justificago transcendente, pelo menos para uso da inlli- genzia, visto que as aceSes a realizar ou a evitar no derivavam ja do statw social visivel, mas de um imperativo virtuoso caido do Céu, O cristianismo, epidemia moralizadora e crenca metafi- sica, era feito medida desta fun¢do justificativa. Por sua vez, © cristianismo pediu emprestado 0 seu conteido & nova moral pag, 4 qual fornecia uma cobertura transcendente; tal emprésti mo foi possivel porque um moralismo obsessivo preocupa-se menos com aquilo que ordena do que com o facto de ordenar ‘energicamente: a moralidade, aos seus olhos, consiste menos na- quilo que € proibido do que em proibir; quer que se aplique «a» moral com redobrado vigor. Qual moral? A da época, pois que go € absolutamente possivel imaginar uma outra. Ora, este gosto formal pela proibigo agradava também ao conservadoris- ‘mo plebeu, que bascava.a sua humilde dignidade em «ndo se re- laxar». Nasceu assim urde ideia nova, destinada a dois mil anos de sucesso, a do que € conforme a natureza e o que & contrana- tura, pois que todo o prazer intimida o espirito de dignidade com’a sua futilidade agressiva e permitir-se-do apenas os praze- res que tenham a ver com uma func%o séria, social; nfo se fara mais amor sem ser para multiplicar os filhos legitimos. © amor contranatura é o amor que se nfo pode enquadrar numa insti- tuigao. ‘Outras vezes, a palavra religito designa apenas 0 aspecto re- presentativo, de crenca, que se liga a outros afectos: esse aspec- to extrai desses afectos a sua eficicia e até a sua credibilidade. Nao se deve dizer que uma religido de salvacao, ligando a moral 2 religido, acrescenta ao peso da moral o da ctenga nas recom- pensas supraterrenas: longe de ter uma eficacia propria, esta re- presentagdo extrai todo o seu peso da moralidade e do sentido de culpa, E que nao se obrigar as pessoas a acreditarem naquilo que se deseja, de acordo com a nossa vontade; elas acreditam naquilo que j4 desejavam ou potencialmente temiam, Chegou-se também a solucdes de compromisso, ou, mais exactamente, a ilusdes de Pois o cristianismo agrega ainda uma «dou- trina do livro», uma daquelas estruturas bizarras que merece- riam um estudo € nas quais se esté antecipadamente seguro de que aguilo que diz um certo Verbo é verdade. Falta entdo des- cobrir 0 que diz essa verdade, procura-se ¢ encontra-se sempre, 190 encontra-se aquilo que cada época deseja ou pode ler como ver- dadeiro, aquilo que esta pronta a aceitar (0 resto do texto nao € nem sequer olhado, pois cada um tem a percepedo apenas dos problemas que sabe resolver). Mas, uma vez que o Verbo diz a verdade por definiedo, eis pois 0 que Ele queria exprimir. Have- 4 assim, para cada época, uma determinada leitura do Verbo, segundo 0 modelo da mentalidade do tempo, que se descobre no texto, transformada em revelagao. Por exemplo, a condenacdo biblica da homossexualidade poderia mesmo ter permanecido le- tra morta, assim como acontece & circuncisdo e a muitas outras prescrigdes do Antigo Testamento, se ndo tivesse sido lida se gundo a nova moral paga Para além disso, a nova religido € exclusivista (os deuses dos ou- tros so deuses falsos); € depois, em acréscimo a tudo isto, & uma Igreja: ela aspira ao controlo total «simb6lico» sobre as consciéncias. E favordvel a disciplina em todos os campos, por medo do contagio da libe?gade. Ultima consequéncia: pelo seu caracter de doutrina moral ex- o cristianismo povoou as almas de um certo nimero de es- que, a partir de entdo, servirdo para combater a realidade: tir dai as pessoas tinham representages em matéria de moral ¢ tais representagdes contavam muito — as pessoas tinham-se tor- etdadeiramente capazes de sofrer, de se reprimir ou de per- ir em nome de simbolos. E, através destas ess@ncias, liam a realidade, o tempo do pensamento essencial entendeu- UA por es- seu tempo, por razbes de actualidade, prOprias da sociedade ¢ da mentalidade do Alto Império, do qual adoptara, em parte, a nova Gtica, Ora, uma vez que a nova moral pagal foi adoptada pelos cris- os, ela dura, ou parece durar, hd dezoito séculos: 0 modelo con- jugal e a heterossexualidade de reproducdo pertencem-nos ou s6 agora recentemente nos deixaram. Consideremos 0 paradoxo da inércia na historia. Entre a época de Cicero e a de Marco Aurélio, os hdbitos sexuais sao tao diferentes como entre o antigo Japao e uma sociedade crista. Esta transfor- magdo teve causas actuais: entre um senador do tempo de Cicero ¢ um do tempo de Marco Aurélio existe a mesma distancia que — com algumas diferencas, sem divida — separa um agricultor de um universitario. A segunda transformario explica suficiente- mente a primeira. S6 que, depois de cumprida tal transformacio, fa sexualidade parece no mudar durante dezoito séculos, nos quais, contudo, as metamorfoses sociais foram incessantes ¢ consi- 191 [A SOCIEDADE ROMANA, deriveis, Seria duplamente vo explicar esta inéreia através do igidon: as coisas t&m o peso que se Ihes reconhece € tuma religido ago & uma coisa, é um agregado. z ‘A explicagdo correcta é dupla. Por um lado, esta inércia apenas aparente, sendo os comportamentos reais diferentes da- quilo que se presume que sejam. Nao queremos dizer que toda a Sociedade possua a sua parcela de «hipocrisia», mas que a «mo- aly erista uma moral num sentido particular da palavra. Nio Constitui a regra implicita que quem observa de fora poderia de- Guzir dos comportamentos efectivos das pessoas. Nao é, sequet, tuma série de regras, formuladas expressamente pela sociedade considerada, enumerando as acedes licitas ou ilicitas; é, antes, tuma teoria ¢ uma metafisica destas acpdes: tu nfo fards determi- ado gesto porque ele & contrdrio a teoria da castidade e & me- tafisica da caridade, Se quisermos, a moral cristal ¢ um e6digo, to genérico como 0 Codigo Napoleénico; nao desce a0 porm: hor das regras, esvoaca, a uma distncia considerdvel, sobre as faogdes concretas. Como consequéncia, poderé tomar-se uma joral que se aplica ou, se famente diversas. Consentiré todas as jurispru- déncias ¢ casuisticas, Ora, & sabido que os homens tm a facul- dade de nao ver a realidade: ndo se dao conta da contradicao Que frequentemente existe entre 05 dogmas professados e a reali- dade da sua aplicaglo; o seu pensamento € essencialista: tal Sociedade & cris, € caritativa ou casta, e 08 desvios (bastards, exposigdo dos recém-nascidos, etc.) ‘sd considerados como fessenciais @), no porque sejam raros, marginais, mas porque, pot mais numerosos que sejam, nfo atentam contra a norma essen ial. Com efeito, ver-se-A nisso ou uma concessto necesséria que, em nome do realismo, se deve fazer a0 mundo tal como Gste & feito, ou entiio a consequéncia de um conflito entre impe- rativos igualmente sacros; ou, ainda, mais simplesmente, no se descobriri mesmo nenhuma contradic entre a norma essencia- lista e a realidade considerada nfo essencial Quem quiser que considere mA fé ou fale de ideologia. Parece-nos que a exp! ‘edo correcta € dupla: 1. Toda a ideia geral relativa ao mundo Social € uma construcda, um tipo ideal; ora, uma construcdo pode ser verdadeira ou Falsa; se € falsa, a sua falsidade ndo sal- fard a vista, NOs temos a percepc%o do mundo fisico, construi- mos (de modo exacto ou de modo errado) 0 mundo social. 2. 'Temos, a0 contrario, um bom motivo para nos iludirmos Sobre a verdade das nossés construgGes; este motivo & aguilo a que Nietzsche chama idealismo, isto é a necessidade vital de confun- 192 AFAMILIA E © AMOR NO ALTO IMPERIO ROMANO dir 0 verdadeiro com o bem, de confundir o que é com 0 que deveria ser. Aquilo a que impropriamente se chama ideologia. Durante dezoito séculos as sociedades acreditaram seguir um mesmo modelo de moral sexual, da mesma forma que, apés al- guns milénios, cremos ser o Inverno frio, 0 Vero quente e 0 Outono chuveso, para depois nos espantarmos todos os anos com a irregularidade das estagdes que desmente a tipologia ideal das mesmas, numa ou noutra caracteristica. Contentamo-nos em considerar estas irregularidades como excepgdes nao essenciais & natureza das estagdes, ou em considerar como recente, moder~ no, decadente, 0 facto de nfo existirem mais estagdes e de nada estar bem como noutros tempos. Mas, por outro lado, a inércia das condutas sexuais foi real. A causa foi a existéncia de algumas alteragdes forcadas a inte gragdo na norma. A adaptagio dos costumes a uma situacdo so- cial, de facto, pode ser eficazmente bloqueada em pequenissi- mos pontos, acess6rios; mas que no se ousa ultrapassar — as- sim como € mais facil“€€t uma vida privada muito livre do que fazer em piblico um gesto contrario as conveniéncias. Uma des- tas alteragdes acima referidas & a que descrevemos atras: quando uma coisa é proibida deixamos de sentir desejo dela, tal como ninguém deseja a Lua. A tal ponto que a barreira da interdicao, se bem que mais nfo seja do que um jogo de sombras, nunca sera superada, porque ninguém pensa fazilo. Kum erro, de facto, imaginar que a interdicdo esteja em luta com o desejo, como numa tentago de Santo Antio: este conflito existe apenas nos casos marginais de anormalidade que qualquer sociedade possui; a maior parte das vezes, a interdicao mata preventiva- mente 0 desejo. Um outro tipo de alterag80 forcada € cons do pelas conveniéncias, que concretizam as proibig6es numa re- gra absolutamente externa, investida em rito concreto. gue explica, por exemplo, uma das duas ou trés grandes ‘cas entre a ‘sexualidade romana e a sexualidade grega, apesar de tao semelhantes em muitos aspectos: esta diferenca ¢ a existén- cia do gineceu, que Roma ignora (prefacio de Cornélio Nepos) e que a Grécia conhecera até ao fim da Antiguidade (Heliodoro, 11, 14, 15; Aquiles Técio, 1, 19). Uma mulher grega, no sé- culo 1V d.C., suportava tio mal a ideia de nao ser fechada & chave durante a noite pelo seu marido como a de ser exibida ‘nua 4 multidao. Uma tal repugnancia pode durar mais tempo que as economias, as sociedades ou as religides.. 193 ‘A SOCIEDADE ROMANA Notas Ed. orginal: La fami et amour sous le Haut-Empire romain, in «Annales, Economie, soci, cvisations», st, 1978, pp. 3-53 4 menos determi fale 974, bp. 12475, que a ‘que of garot ai ede uma mae. Outros, ainda, pordo tudo em duvida {@) Exe toma da feticsira, da mulher Inguletante & obscura qu ‘aclar o seu carter ¢ de conscienss, ido, nto devia Serra in peturbasto tiaduese tm ferorer winguicantem, que a Antguidade nu afrbuia a sortgior € curoso,entgo, fazer notar que os modernos Da (dade, gue apa ves mat, 20 {um deus todos os rebentos de lum outro fuga, Foi por causa deste costume que algumas cicades dos abo- rigenes, vendo que os seus dominios eram demasiado povoados, consagraram a fam ao mundo durante um ano ine. F que ‘coisa que considersvam lotalmente sobre a bisse fpenas pode ser conseauico em circunsacias part iments favordoais e ques mesmo nests caso, 0 sucesso const esses fm face com que'a pessoa exclesivamente homossexual rencontre 9 asess0 (que eV reconstitua plenamente as suas fn ber bissexuis. Esta pessoa adguiria depois a faculdade de escoiher entre aban {lonar ou nto a outraextada, a condenada pela socedade e,nalguns casos, isso homens madurot. N-T: 194 A FAMILIA £ 0 AMOR NO ALTO IMPERIO ROMANO, acontcceu efestivamente, Devemos lamentar que mesmo a sexualidade normal se beac numa imitagdo da escolha do. objecto: aeralmente, © projecto de trans formar umn homosexual plenamente desenvolvido num helerosvexual no ofere Se'multo melhores perspestvae que o projeto oposto; a tnca diferenga resi fo facto deste dimo, por éplimes motives de ordem pritia, ndo ser nunc Freud, Pucagénese de um Caso de Homasserualidade Feminina, jana in’ Opere complete, x, Tarim, 1978, pp. 145). Em fniroduedo Droposito do aiseclo a Carcago pel Bimnesmo Salviane fez-nos saber nouteo texto que, nos exércitos romanos, oF tampontes oferesiam aoe saldadar 0 meso eservigoy que os grumetes fariam lor marinlror nas marinhas miltares des aapoes evzadas. O grande igrave de todos of peeados de forma divers: felatfo © tia, dependem de dimensbes que prev (deenvohem em detimento de cuts, AS questes de sil lo sempre sccundarias em rlapSo a um conceito qualquer, o date") Nao ht forma de concsita cujo contetdo pos des, Seo conceite deignat verdadcramente uta mh Sociedades segundo sigumas das suas Yetenes, a grupos segundo outas, a ind iduos segundo outray, ainda; e cada uma dab colas a que oeja atribuldo, se por sua vez, uina mliiplicidade, De outta forma & um mau conesito. & poi Sbsurdo diser que um regime ou um individgo # fascsta ou cristo: nem exte m6 fascia 0 #80, Sabe-e ha muito tempo que a (Edo home sim- ples nfo f exactaments a do telogo (¢ ceristanismo popular) e que o mesmo Romem simples 140 £ compleiamente cistfo, nfo deseja 22 (quer eo Paraigo, mas o malt tarde pos ‘ouras palavras, 0 ersianis- mo ¢ um agregado eo Bomem simples A SOCIEDADE ROMANA neceséria que os gineros,espécies¢variedades se correspondam como num jogo (de encaize: todos os mamiferos tm de ser vertebrae, De astra forma, ae ‘ras mais simples, a um cero alvel («a monarqula do Ancien Regime», ura fo monorelstan, euma sociedade avilda em ordens>, x0 despotsms oxen 5. E certo que a dife ‘que devera ter apr ‘pines Mlosolicas ext4o bem con se a hist inventiio de di as diferengas que deverao ser conslderadas pe Obrograma segundo o qual a hiséra se expica no pevmite dizer 0 trig ede exlicar, do que se deverd fanst um Inventério completo dos val aque, na Perece, pois difel ado. desembocar numa Novo! cheanismon. Pocque nfo? Os homens nunca gebxsrt0 de se fazemox em reagto A weldade gregan ot aoe ccamponeres sob Lis XIVn, © AE Aiferengassubsistentes coincie es (0 ‘0 nossa dever cuidando conve Ientemente dele; taver seja melhor, para tais craturas, morrer em estado de ‘quantidade da populagt> de. do- dizem-me); sabemos ainds que O FOLCLORE EM ROMA E OS DIREITOS DA CONSCIENCIA PUBLICA SOBRE A CONDUTA INDIVIDUAL quatorze anos em «Latomus» I. Kajanto publicava uma daquelas notas que despertam no Ieitor a vontade de se docu- mentar melhor. O grande epigrafista finlandés, naquele traba- lho, chamava a ateng&o para a liberdade de linguagem ou, mes- mo, para a rudeza expressiya de certos epitifios romanos; num deles, um amo definia, vom um jogo de palavras, 0 seu liberto como um salteador das estradas; num outro, uma mie escrevia com todas passavam que uma mulher fora assa i il fornecer mais exemplos 0 seu médico de os ter assassinado) (); tudo pode parecer de pouca importncia, historietas ou, quando m to, costumes simples; 0 facto & que tudo isto nos diferenci ‘nem podemos sequer permitir-nos acusar publicamente um mé- dico ou um envenenador desconhecido; que um convidado de Trimalquiao acusava os médicos depois de ter bebido (), passa, mas outra coisa seria escrevé-lo publicamente. Kajanto’espan- tou-se com uma caracteristica dos costumes cujo alcance histori co, como veremos, supera em muito o interesse anedético. Nos epitafios romanos, portanto, fala-se francamente, Nao depressa se punham na berlinda, depois da morte, as pessoas em relacdo as quais se pensava ter motivos de ressentimento. Um fio de Magonza relata uma dupla morte tragica: 0 defunfo langado ao Reno por um dos seus escravos, que depois se atirou por sua vez as aguas (‘). Sobre mais do que uma inscrigao tumular, um amo proibe que se sepulte no jazigo comum 0 seu liberto ingrato (}}, ou mesmo a propria filha () Bois, © epitifio serve para exercer uma expécie de jus A coisa explica-se de outras formas. A epigrafia, para os 197 ‘A SOCIEDADE ROMANA antigos, ndo tinha a fune&o que desempenha nos nossos di raramente os modernos fazem gravar inscrigdes e, se o fazem, isso acontece para solenizar uma recordacdo: a inscricao desti- na-se mais a constituir um monumento do que a ser lida pelos que passam. Na Antiguidade, pelo contrario, a epigrafia era uma forma habitual de edigao e as inscrigdes tinham leitores nu- merosos. A ponto de os graffiti de Pompeios nao terem nada a ver com 0s Nossos, sejam politicos ou... obscenos: os Pompei nos escreviam nas paredes para exterjorizar os seus pensamen- tos, as suas ideias, a sua cultura; eles expressavam-se, nao «de- sabafavam. Que bela filosofia dos graffiti vesuvianos poderia ser feita! Que comportamento extremamente moderno possufam. agueles Pompeianos que escreviam nas paredes sem se esconde- rem, para «tomarem a palavra»! Os graffiti modernos de Nova Torque retomaram esse espirito, Entre as varias categorias de inscriedes, os epitafios tinham um papel proprio, diferente do de hoje. Serviam menos para manter a meméria do morto do que para falar dele a quem pas- sava(), € os lia realmente, percorrendo a estrada ladeada de sepulturas (uma vez que © uso das vias piblicas € comum, a pon- to de ser legalmente permitido a quem quer que fosse nela cons- truir timulos)(); ndo € por figura de estilo que os epitafios diziam: «Para caminhant®“e léty ou «Adeus, viandante!» Quando um defunto aj amaldicoa o seu liberto ou a sua filha, n&o o faz para aliviar a sua cOlera, mas para a fazer saber a todos (’). ‘Se julgarmos segundo os nossos critérios, descobrimos em tudo isto qualquer coisa de ostentatério ¢ de ordinario. Extraire- mos de textos literarios exemplos de uma rudeza que parece aniloga a citada, depois esforcar-nos-emos por mostrar que, na realidade, se trata de um outro comportamento, tradicional, nos confrontos da justica, numa época em qu no se sente ainda, de forma nenhuma, privada, por parte dos pode- s, de um direito de censura sobre as factos ¢ sobre os famentos de cada um. Apresentaremos, por fim, alguns ‘casos de justiga popular na Italia antiga, semelhantes, de qual- quer forma, as disputas barulhentas dos modernos. 1, Sem papas na lingua Ovidio, entre os Citas, deseja prestar homenagem a sua mu- Ther que, tendo permanecido em Roma, se ocupa da casa do poeta e defende a sua reputarao; eis o que escreve para a elogiar como a melhor das esposas: «Defende-me, e, salvando-me, salva 198 (0 FOLCLORE EM ROMA E OS DIREITOS DA CONSCIENCIA PUBLICA também a tua fidelidade devota; pois enquanto a minha riqueza se manteve, também a tua honestidade estava acima de qualquer suspeita ¢ vencia.» (8). Esticio faz piropos com igual ligeireza; tecendo a um viivo 0 elogio da que foi sua esposa, precisa que a sua grande virtude foi a fidelidade (casta conubia}, apesar das tentagOes induzidas por meios materiais mediocres (paupertas pudica) (i): os tesouros de Seres, de Lidia e de Babilénia, nto teriam podido levé-la & infidelidade (). Horécio, por seu lado, nao deixa maior lugar a dividas(): quando, em crianea, anda- vva na escola, o seu pai acompanhava-o sempre; de facto’ ele foi imune aos amores efébicos (¥). Estécio é igualmente. preciso: Jouva um adoleseente por ndo ter tido uma juventude dissoluta, apesar de ter ficado 6rfa0 (*), Nés evitamos falar da possbilidade de um defeito ou de um vicio do nosso préximo, nem que seja apenas para a negar; j& é 0 te-la tomado em considerac4o e depois, como dizia 0 ipe de Parma, a ideia faz pensar na coisa. Plinio, homem bastante bem educado e-eéiador austero, dado ao estilo mais omposo, ndo via as coisas tal como n6s; no seu panegitico, ele congratula-se com Trajano por nto atentar contra 0s direitos de nenhum pai nem de nenhum marido, diferentemente do tirano seu predecessor; tu nem sequer é um daqueles, dizhe, que se apresentardo aos scus convidados jé de barriga cheia e/a arro- tar); a tua mulher e a tua irma nao t8m ciimes uma da outra, como acontece as mulheres demasiadas vezes("). Era, pois, um cumprimento, em Roma, louvar uma mulher por ndo ser adiltera ¢ um adolescente por nio ter habitos equi- vooos. Tomna-se necessirio acreditar que, a eles, 0 que espantava nfo era o vicio mas, sim, a javam-se as pessoas pelo facto de no terem determinados vicios (8). Nao se conside- Fava uma humanidade mediocre no bem e no mal, com excep- {96es nos dois sentidos: havia a persuasto de que a Humanidade Tendesse continuamente & decadéncia: «Como ninguém os repri- isse, a procura do prazer (libido) e hibito de tudo conceder asi mesmo e de acreditar que tudo & permitido (luxtiria), foram sempre aumentando», esereve Suet6nio como algo que estava a vista de todos ( Como vemos, a censura da opiniao pablica era dura; tendia, atrevemo-nos a dizer, a dar uma nota neg explica-se, sem divida, em funcdo do ideal bastante 108 do homem); todo o cidadao deve considerar-se sempre 0 servigo da cidade; nao um simples governado mas, sim, um 199 A SOCIEDADE ROMANA_ instrumento do Governo. O que exigia dele as elevadas qualida- des individuais que normalmente esperamos da parte de um sol- dado de carreira ou de um militante. Comparada com este ideal, a realidade era sempre insuficiente @). Sempre de acordo com este ideal, ndo havia distineao, sendo temporéria, entre gover- nantes © governados: cada militante é, de qualquer forma, um homem pitblico; nem sequer entre as virtudes pablicas ¢ as pri- vadas havia distingdo: o homem deve estar completamente dedi- cado colectividade. Qualquer um, portanto, podia arvorar-se em juiz do comportamento dos outros. Em resumo, mesmo de- pois de se ter tornado um grande império, Roma conservou a idade de uma colectividade restrita, na qual a opiniao ica julga tudo, e duramente, com um tom encontrado em Ovidio ou Estécio, mesmo quando querem elogiar. Tudo isto seria interessante para ‘uma sociologia do género satirico, em Roma, ‘A opinigo publica nao tinba papas na lingua, nem mesmo para se congratular, pois entendia ter boas razSes para reprovar ea sua censura chamava-se reprehensio. Divércios ¢ matrimé- nos eram objecto de conversas, assim como os lugares do Sei do, a eloquéncia do foro ¢ os méritos comparados de cocheiros, bailarinos e gladiadores. Cada casamento era discutido ¢ 0 pro- ‘cesso terminava com 0 elogio ou a censura; Plinio, contente por ser um dos que sabem’é iltimas novidades e que formam uma ‘opinido a propésito de tudo, como convinha a uma pessoa ilus- tre, ¢ por ser um dos que diziam o que ficava bem pensar, diz- nos quais foram os matriménios que, com razSo ou sem el foram criticados (reprehensa) (")); sobre outras unides a opiniso divide-se; os testamentos eram comentados igualmente, e Pl a propésito, retrata a opiniflo da urbe como uma espécie de pes” soa moral, quase uma instituieto(#). Os divércios nfo eram ‘menos passados a pente fino «e 0 primeiro que, em Roma, alguma vez se divorciou foi criticado (reprehensione non caruit) (9), se bem que os seus motivos fossem vilidos», Tal opinio era res- peitada e devia s@-lo, e eis porqué os Romanos elogiadores nos podem surgir como’ pouco delicados. Em 88/90, 0 senador Arrincio Estela desposa Violentila, hd tempos sua amante; a Iegis- lagdo de Domiciano que, naqueles anos, fazia reinar a ordem moral e restabelecia o rigor matrimonial de Augusto terd tido 0 seu peso (3). A opinito publica ficou satisfeita com esta regula- .elo e Esticio alude a este ponto delicado em pleno epital mio: «Afastem-se preocupagdes ¢ temores, calem-se as insinua- {ges mentirosas dos poemazinhos satiricos e tu, Voz Pablica, silencio: este amor sem freio dobrou-se as leis, entrou nos eixos. E 0 fim do falat6rio piblico; os cidaddos puderam ver com os 200 © FOLCLORE EM ROMA E OS DIREITOS DA CONSCIENCIA PUBLICA seus proprios olhios aqueles beljos de que se falava mal» (#). Depois deste louvor poderoso, mio nos deveremos, admirar que © mesmo Estécio, que nada esconde nos seus epit seja igualmente explicito, nos panegiricos; fazendo 0 elogio de Crispino, ele cumprimenta-o por ter sabido perdoar & sua mae culpada que cometeu o crime de ser envenenadora e que ten- tou enviar para a sepultura o, seu filho: «Encontrariamos pra- zer» — diz 0 poeta — «em aiormentar a sua sombra, em rou- bar a paz as suas cinzas» ("). Mas o seu filho prefere, um pouco tarde, «que os crimes da sua familia permanegam sepultos na noite do esquecimenton, bastahe que 0 principe tenha punido a celerada. A opinido piblica une, através de Estécio, a sua condenagio a do juiz; reencontramos aquela vontade de fazer publicamente justiea que anima os epitafios citados no inicio deste artigo. Ninguém ¢ dispensado de se justificar perante a opinito pi- blica, nem mesmo os imperadores, pelo menos se forem bons imperadores; mesmo essey*devem’ prestar contas e fazem-no. Quando o divéreio ¢ © novo matriménio secretos de Messalina foram revelados, Claudio discursou. perante os pretorianos, co tou-thes de fio a pavio o comportamento de sua mulher, para justificar a sua severidade,-e prometew-hes que nunca se casaria de novo, j& que os seus casamentos nao tinham sucesso (*). Extravagancia de um neurético? Nao, uma vez que Augusto tinha dado a saber ao publico as sujeiras da casa imperial de que a sua filha Jilia era culpada; © piblico no nada, nem de uma gratio do dictum & plebe @). E que um edictum podia ser bem diverso de um acto levisla- tivo; era o meio de tomar pitblico tudo aquilo que um magistrado achava justo dizer ao povo (%). Assim, vimos Augusto replicar com um édito a pamphlets e pasquins("). Assim se explicar uum comportamento de Juliano que poderia surpreender e pare- cer mais adequado a urn intelectual do que a um soberano: no ‘Misopogom cle replica aos libelos ¢ as injurias de que 0 povo de ‘Antioquia 0 cobrira. Das duas uma: ou o principe se coloca aci- 1a das leis, se entrega & alegria louca ou ryphé (como fazem 05 tiranos, segundo Aristoteles ¢ Polibio) ("), nao recua perante 0 incesto’e faz gala dos seus vicios privados como provas da sua transcendéncia, ¢ entdo € um mau imperador, ou se submete & lei comum ¢ se justifica perante a opinido piblica e entdo comporta-se como um «bom» imperador. Dar’ vazdo aos pr6- prios vicios, colocar-se acima da reprekensio, significava estabe- lecer como’ principio ser um soberano por diteto divino, um 201 ‘A SOCIEDADE ROMANA gado a respeitar jinido pit i Pe ealneuls parte da polémica politica do tempo da republica. Os Iversario de um vicio privado qualquer (%5). Assi ts sage ace aces Se A ‘atiniui egunda Filipica: so, pois, do 8 ea oats Seat 10, pois, documentos curiosos 2, Insultos e gestos obscenos nod intel ato preine,erdentement, convener 0$ ot tros, mas sim derrubar o adversario sob uma tempestade d nas sults. ia € a versio para senadores de um geno populae: | uso polémico da obscenidade para causar horror e desc¢ tar © adversirio; os folelorsas conhecem bem tudo issor um vost: bulo obsceno ou proibido ou, melhor ainda, um gesto obsceno tém o poder de por em fuga trado. Uma jovem de Sena deorentou os Expanhs, que asediavam w edade, faze do do alo das murano go ae pois magia’ © gue poderos lr em Mon: ox gest se acedtarms em La Fonte, apefiguere para por em fuga 0 diabo em Niim texto a que devernos nt regressar, a 11 Bucdlca, vemos dois pasiores eb cfentam « am fgindo um combate veal oa a ar no que dizem, de feitos pequene comédia ritual e embaragada, feta de ca. fade reprimida © de vulgaridade, por medo do sentimental BeeUnt dees dia 0 outro, em resumo: «Nto te atrevas mas ¢ insular do no se zanga (ele sabe que 0 ofensor nao fala a sério) e 202 0 FOLCLORE EM ROMA E OS DIREITOS DA CONSCIENCIA PUBLICA 1m a mesma energia no ambito da mentira a jos de insultos como este ndo estavam reserva ambém 05 poctas romanos os praticavam, fhas levavam-nos mais a sério; em Catulo ou Marcial, o insulto Spsceno, em avalancha, € um genero da polémica literaria Quer sejam populares ou mais elevados, estes tornelos po- dem comportar trés_fases, iro episédio: contra um dos Seas detractores literdrios, Marcial vomita insultos atrozes, Shelhor, vomita-os contra 0 pai, a mae e a mulher daquele inve- Joso 0). Td que o mundo esta cheio de invejosos, em volta de serie um deles Marcial executa uma espécie de danca do escalpe, Tepetindo em cada distico que o seu rival morra de inveja, para reptenar a humilhacdo do trapaceiro; veremos mais adiante de Snde vém guer a danca quer o refrio; afirmario sarcastica (rumpltur invidia) acrescenta ele, para acabar, a maldieto (rum- ‘patur) 05). A habilidade est, pois, em romper em injirias obs- Penas para confundir o adversario com tal desabafo sem Segundo episodio: a um gsaque deste tipo, responder manifes- fando uma audacia igual € opondo obscenidades a obscenidades; fim um qualquer gesto obsceno detém-se a obscaenitas da pou- cemorte, que, afinal, mais ndo & que inveja. Assim, num Pria- 'D ladrao surpreendido por Priapo desfaz o impeto do deus fo obsceno com o dedo» (%) (era melhor acompanhar 0 gesto com um riso oportuno a sublinhar) () Terentra estratésia: desafiar o desprezo; se alguém nos chamar Tfeminado, concordat plenamente com 0 vosso invejoso © mer Gulhai de cabepa, por palavras, na lascivia, para The provar que Berea despudor em desafiar os limites das palavras s6 encontra {gual no vosso. Quando Octaviano reprovou com palavras fortes ‘Antonio, por causa de Cledpatra, cle admitiu sem hesitar tu Go aquilo de que era acusado ¢ acrescentou que Octaviano ‘nao ea melhor (). Estas so questdes de poderosos ¢ de poe- fas, Enfim, 0 uso da obscenidade mais nao é que uma retér a pela negativa, um tom soldadesco que pode servir também para os elogios mais sinceros confirmando a contrario a since- Fidade destes (am soldado nao sabe esconder a verdade); Teiamse as palavras com que Marcial pronuncia 0 elogio de uma esposa honesta que, em toda a sua vida, apenas conhe- eu um homem, o seu marido (). ‘Notamos mais acima que 2 ol apotropeica: (*) a entrada das casas romanas, tase a replicar co borincar (*). Tornei dos aos pastores: peu, fazendo-lhe «um gest Ybscenidade tinha uma fungao coradas de um Do arexo apotrépolas — que afasta o mal, qe protege. NT: 203 A SOCIEDADE ROMANA falo, era como se pretendessen fazer gesto obsceno & pouca sort. Pois o que nés chamamos mé sorte tina um outro nome: inve- ja, invidia livor; encontraremos ai a nemésis, 0 ciime dos deu- ‘es ou do destino? E de temer que se tratasse menos de terror supersticioso que de uma atmosfera social pouco alegre, Por to- da a parte, esmaltes e engastes de angis ameagam viriimente 0 invejoso, o invidus lividus, ou desejam-Ihe que rebente de inveja secreta dos préprios concidadaos. Tanto o simples mortal como © posta viviam na mesma atmosfera hostil. Num mosaico da Tunisia, © proprietario toga do invejoso livido que apostara que a construgtio da casa nunca estaria terminada (*), Sao assim as coisas: sabe-se como o estilo de relacionamento entre indi duos varia de um grupo humano para outro, sem que seja possi- vel relacionar tais diferencas com 2 «grande» historia: s40 fac- tos auténomos de tradicao e de habitos. 3. Libelos e sarcasmo tensdo entre inveja e a smo, nés vivemos ou acredita- ide © soberba. Mas existe ainda um por uma espécie de interesse de clas- 'ando-os, os comportamentos mais Digamos que aquela gent. zade enquanto, dep mos viver entre hi outro motivo: uma soci se, gosta de ass! na Franga Slo examinados e av: determinado processo caviloso «a tal ponto fez levantar a corte ea cidade que ninguém ousava mostrar-se em parte alguma.e foi perdido «com uma aclamagao geral» (1698). A opiniao piblica nao era menos imperiosa na época de Cicero: divortium Muciae vehementer probatur, lé-se, por exempl numa das suas cartas a Atico (1, 12, 3), quando Pompeu deixou. tal esposa pouco digna. Por uma engrarada coincidéncia, ha, em Saint-Simon, uma outra caracteristica que encontramos na sociedade romana: os carmes (*) difamatérios, 0s carmina famosa ou libelos famasos. A mulher do principe de Turena, «num casamento bastante bre- ve, teve tempo de tormar-se conhecida por tantas aventuras amo- rosas que nenhuma mulher a igualava e os cantos que esvoaca- vam no ar ouviram-se na Flandres, no exército, frequentemente (©) Tipo de poema, em gerlsatirica, NT. 204 (© FOLCLORE EM ROMA E 0S DIREITOS DA CONSCIENCIA PUBLICA cantados ¢ em piblico» (1694); os autores destes cantos perten- ciam A mesma nobreza; «A senhora duquesa que, com muita raga e espirito, era excelente nas cangbes picantes, fez algumas curiosas» sobre 5 alfinetadas que entre si se davam as filhas ile- gitimas do rei (1695) e Mer de Bouzols, que «passava a vida com a senhora duquesa, nao era menos habil nestas cangdes com alvo bem definido» (1696). Ora, Cicero conta ao seu irmao Quinto (1, 3, 4) 0 que se passou numa assembleia tumultuosa em Roma, na qual se enfrentaram com gestos € palavras os sequazes ¢ 0s inimigos de Mildo ¢ na qual «se ouviram algumas passages da tiltima obscenidade contra Clédio e Clédian; & ver- dade que, dois anos antes, 0 mesmo Quinto arriscara-se a ser vitima de uma pequena estrofe composta contra ele e a sua can- didatura ao muni 3, 8). Libelos ¢ cantos anénimos eram uma literatura efémera ¢ clandestina. No tempo de Sisto V, os brincalhdes romanos afi- xavam pasquinadas e sonetps satiricos sobre as célebres estatuas de Pasquino e de Marforf. Os seus antepassados tinham feito 0 pagdos, pois viu aqueles festivos libellos quos statuae Conkecemos ainda um fibellus injurioso que fs Atenienses afixaram no pedestal da estétua de Antonio, que Ihes extorquia contributos com motivagées que nao passavam de pretextos (Séneca, 0 Velho, Suasorie, t, 6). Os graffiti politicos nfo so de hoje ¢ os Alexandrinos escreviam-nos & noite nas pa- redes da sua cidade (Polibio, xv, 27, 3). Os libelos famosos ou carmina famosa podiam ser obra’ de grandes personagens, como Cassio Severo (Tacito, Annales, 1, 72) ou Séstio Paconiano (Vt, 39); o primeiro, que atacava a vida privada dos seus pares, os senadores, foi punido gracas a lei de Augusto contra os libelos difamatérios; mas o segundo, que j& na pristo compusera ver- sos contra o principe, foi estranguiado por lesa-majestade, Em determinada altura citcularam entre os senadores libelos andni- ‘mos contra Augusto (Suet6nio, Augusto, 55). Os libel € 0s car- mina, pois, sto quer graffiti quer simples folhas, obtidas por incisto ow afixadas numa parede ou no pedestal de uma estitua, tos em verso ou em prosa, escritos e, talvez, or am, ou pot setem muitas vezes copiados ou mui- tas vezes repetidos. Sao andnimos, como justamente tem sido considerado; Tibério exasperou-se com carmina incertis auctori- bus yulgata que denunciavam a sua soberba € a sua crueldade (Técito, Annales, 1, 72). A fornada de senadores eriada por Cé- sar mereceu um lidellus propositus, afixado num exemplar dini- co, € cantos que «esvoacavam» por toda a parte para dizé 205 A SOCIEDADE ROMANA a Sal pre: possuimos também o t Simon (Suet6nio, César, 80). Género popular? Nem sem- le um libellus sparsus contra Domiciano, em Roma, um giaco em grego de grande qualidade (Sueténio, Domiciano, 14). Na corte de Luis xIV, ‘etam senhores e escriviles que compunham os cantos infamantes contra ministros e proxenetas dos prazeres do rei. Mesmo contra Nero foram afixados ou circularam epigramas em latim e grego (proscripta aut vulgata: Sueténio, Nero, 39). Mas existiram também exemplos de libelos populares, como demonstra uma passagem surpreendente de Dion Cass 27, 1): em 6 d.C., «a plebe, prostrada pela carestia, pelos ppostos e pelo que perdera no incéndio da cidade, sof claras e se afixava durante a noite um nimero ainda libelos». Contudo, trata-se menos de uma oposigao a rica que se recusa do que de uma indignagao contra um duo indigno: a multid%o queria um comporta-se como um grupo de garotos qu ido o professor de falar; oposi¢ao pue ‘se como todos os Romanos competiam entre si para descobrir modos de trocar de Nero e para fazer rir os outros ‘com o engenho dos seus ditos (Sueténio, Nero, 45). Era assim a oposigao na velha monarquia. Portanto, allo havia muita diferenca entre libelos dirigidos contra 0 imperador ¢ outros libelos que um individuo afixava libelli ow carmina privati conhecemo-los sobretudo através dos textos juridicos que come dar fim, O im a lei de Augusto, que Ihes quis, 10, do Digesto, trata de injuriis et como se vé, so escritos ou podem existir em ‘amas que passam de boca em boca ¢ que muitas vezes so anénimos ou, pior ainda, emitidos sob o nome de outras pessoas. Estamos mais perto da realidade com Estécio (Silvae, t, 2, 27), quando, celebrando o epitalimio dos seus protectores {que dio prova de respeito pela opiniao pablica regularizando a sua unido, exclama: «Calem-se as insinuagdes mentirosas dos poemazitos satiricos»; portanto, circulava um carmen famosum a respeito de Stela e Violentila. Era um prazer geral e clandestino falar mal dos costumes dos outros; 0 senador Alfranio Quintiano era tho desmiolado que fazia circular um carmen probrosum cujo autor, por uma vez, nada tinha a temer: era o imperador em pessoa (Técito, Annales, Xv, 49). Se pensarmos, a propd- sito da vida privada no nosso século e particularmente depois de 1945, na auséncia de ataques privados nas polémicas politicas 206 (© FOLCLORE EM ROMA E OS DIREITOS DA CONSCIENCIA POBLICA ou literdrias, 0 comportamento dos Romanos, incluindo — e talvez em alto grau — os membros da ordem senatorial, surge- -nos bastante Precisando: através deste controlo por parte da opiniao piblica sem mediagfo da justica piblica, toma-se possivel com- preender um fendmeno curioso: existiram «Césares loucos», megalémanos perdidos num" delirio totalmente pessoal, Caligula, Comodo, Heliogébalo, enquanto a Idade Média e a Idade ‘Moderna’ ndo conhecem'o tipo do rei louco. A razZo & muito sim- ples: um rei cristo vive no centro da corte, enquanto 0 impera- dor romano ndo tinha uma corte; vivia com alguns comensais ou comites. Assim, no existia uma presenga real do controlo por parte dos outros, por parte de uma nobreza que depende do rei, mas que o rei tem sempre defronte e de quem, em conse- quéncia, depende muito mais de quanto possamos erer, porque no pode «perder a face frente a tais nobres que sto, ao mes- mo tempo, seus subordinados ¢ seus pares. Se quisermos com- preender Caligula ouCémodo, basta pensar na megalomania dos miliondrios americanos, como Howard Hughes, ou no citi- zen Kane de um célebre filme, e comparar a Domus Aurea de Nero com o castelo delirante que Kane faz construir no fim do filme; ou, mais simplesmente, na inesperada megalomania de bastantes capitalistas europeus assim que se tornam senhores de sie vivem isolados no interior de uma entourage de «mantei- gueiros», cuja existéncia depende deles. Um imperador romano 1ndo vive no meio da sua nobreza proprietaria de terras, mas sim no centro de uma pequena entourage, que ele mesmo escalheu; ndo precisa de salvaguardar o que quer que seja de imagem no interior de uma corte. Assim, podera manter-se sensivel 20s i perativos da opiniao publica, dado que tal opinifo no possui Fepresentagio junto dele através da censura da presenca da sua nobreza? E o mesmo problema de saber se um simples privado permancceria honesto se as policias no existissem: isso depen- a sua educagao (entendida seja como trei- jo de exercicios espirituais © filos6fi ‘como no caso de Marco Aurélio); em poucas palavras, na falta de uma grande causalidade colectiva, isto € da censura directa da opiniao dos nobres, o comportamento de cada imperador de- pender apenas do seu cardcter; assim, existirSo apenas casos particulares e, de um principe a outro, verificar-se-fo diferencas Controlo exercido por uma opinio publica pronta a ironi- zar, por torneios de obscenidades, por tormentos infligidos por luma colectividade que ri da imagem do desafortunado que lin- 207 A SOCIEDADE ROMANA cha; todos estes factos folcloristicos, quero dizer informais caracteristica que chama muito a atencao: so sarcits- ‘9 sareasmo acompanha ou constitui a puniglo; as pessoas hao se contentam em punir, poem sobre a cabesa do infelia uma Coroa de espinhos — isto é duplamente caracteristico; in primis, cvidencia bem 0 eardcter de punigao infligida por uma colectivi- Gade conereta; esta altima pretende sob arse Ipado, mais do que inava poder _desa! sentir que ele ndo € o mais forte e fio en ho do sarcas sua soberba, mos- uma vez que ele rem metido nas mos ie canas. como outra qualquer e, sem divida, & menos falsa que outras; nao @ exclusiva dos Romanos e encontra-se um pouco em toda a ‘em todos 08 tempos e todas as socicdades. E que, como ‘odos os factos estudados neste trabalho, a puniedo sar~ Ustica pertence um pouco & microssociologia; ndo € prerrogt va exclusiva de certas grandes formagdes que se tenham mantido fao longo do curso da.histéria: época da cidade, feudalismo, “Ancien Régime, etc... Nem por isso ela caracteriza menos 0 Povo Tomano, ja que entre else desenvolveu monstruosament lum elemento espectacular, os suplicios na arena. Nao estes tinham de cruel mas pelo que possuiam, mais ainda, de cruti da Idade Média, 0 rei era demasiado (os seus subditos para se dignar trocar deles; terrivel, Je com toda a sua forcay sobre o rebelde, como diz wucault, enquanto em Roma o condenado ofendeu toda idade, que ndo se sente transcendentalmente superior go culpado, e € precisamente por isso que ela sente a necessida- de de the fazer sentir que, no fim, foi ela a mais forte. Leia-se fos Annales, de 1980, 0 estuco no qual Georges Ville demons- trou que, das origens a Simaco, as condenagdes 4 arena ¢ aos ebes eram um Iudribium, um sarcasmo. E que as racionaliza- ‘Goes da punigaio mudaram muito ao longo dos tempos. josos, como sflo chamados agora, no va- fem que 86 se ouve falar de par- império romano, © herangas ¢ as sucess io dos feudos no mundo das guerras 2) estava em todo 0 dos patriménios, d das como a tran vadas no século lado. 0 FOLCLORE EM ROMA E OS DIREITOS DA CONSCIENCIA PUBLICA Vizio, eee sets exeravos e tomar conta das suas teas fender cor o',ob 0 imperio, um estado de Aaimo segundo, © vals posse tranguila ou tras Gui Sabrossantas: nao podendo ainda recorrer 8 es bens alheios pela as acumulada, heranga ou dote, e, ce aaa por ai mesmo (*). Sabe-se que a cara aos testa- que acumen, proverbialmente, wma espécie de desporto jina acre io o amante de Popeia e, sobretudo, cobicava os jar- tle enfeitava com rara magnificéncia; assim, lancou ie 0 delator Suilionsassim comera 0 livro 1x dos Anna- ‘aerescentrar mais exemplos. Para além da lesa- portanto, quando as se 0 feliz, nda, de nao tha mandado para debaixo da terra 0 herdeiro fisco tomava Pieve da heranga ¢ 0 delator era recompensado, sem contar com Pobrazer da vinganca; vemos, de facto, neste mesmo livro Que a avidee do fisco, pronto’a acreditar em todas as acusasies Se odas as suspeitas, tinha um efeito desmoralizador sobre as Sopulagdes: qualquer acusaetio que Ihe pudesse oferecer 0 pre: Poko para confiscar uma heranga encontrava crédito a Seus Kihos, de tal forma que o proprio fisco julgava os processos po (causae fiscales), nos quais era juiz © parte interes- isto, seria oportuno estudar a fun ‘aha na vida social, em vez de nos ‘supor que ele desempenhasse. a “ to desempenha em qualquer socie~ Gade. Falavamos mais acima da mania romana dos processos; Sielamos a Laudatio Turiae (4): vé-se ai como a batalha juri a aos fendmenos de banditismo; em Roma, 0 ra privada para conquistar ou conservar patri- 209 ASOCIEDADE ROMANA, ménios, prosseguida com outros meios... Podemos admirar 0 facto de os Romanos terem pensado submeter a vida social ao direito; podemos ainda verificar que a sua sociedade, mais do que outras, tinha 0 gosto do juridico, que nela existissem mais causas no foro que noutras e que o direito civil servisse menos para regular conflitos inevitaveis do que para constituic uma arena suplementar, aberta a guerra de todos contra todo: 4, Justiga popular Em resumo, 0 direito ndo é mais nem menos etnografico do que outras formas de luta e de constrangimento. Com efeito, ‘existem ainda, sob o império, & margem do direito, algumas so- brevivencias de um pasado no qual o direito tinha sido uma coacséo exercida pela propria colectividade, como o linchamen- to; mantém-se ainda muito vivos alguns costumes tradicionais de justica popular, que desembocario no evergetismo. (*) Nao é possivel duvidar de que Caligula tenha sido louco, .as a sua loucura consistiu muitas vezes em ressuscitar tradi- montavam a um passado colectivamente rude. Conta ‘Snio: «Em Possuofi, na altura de baptismo de uma ponte i. fizera construir, convidou muitissimas pessoas e, subitamen- wu i te, Ras langar ao mary (®): nenhum folclorista se espantara com isto, nem se sentira mais surpreendido por, em Verona, quando cs colonos inauguravam a sua ponte acabada de cons: truir dangando sobre ela (#), Catulo dizer que era preferivel lan- gar do alto dela um marido enganado ou envelhecido; o mesmo Se fazia em Franga apenas ha um século... Nao ha festa colecti va sem zombarias, nem inauguraggo sem vitima imolada. Cali- gula era um grande folclorista Foi igualmente grande em fazer exercer pela multidao a jus- tica de nivel mais baixo. «Pretendeu que um cidad’o, que prometera combater na arena se 0 imperador se curasse: prisse do seu voto; abandonou aos rapazes (pueris tradidit) win outro homem que fizera a promessa de morrer pelo mesmo motivo ¢ que hesitava; coroaram-no de verbena, vendaram-no, © os rapazes, recordando-Ihe 0 seu voto, levaram-no de bairro em bairro até acabarem por atiré-lo do’alto das muralhas» (3). De outta vez, fez. acorrentar um cidadao que tinha caido em desgraca 3. Siscema que pressupee a bri Do grego: evergtes, que seniica be estavoresidos fe dos ricos ou poderos0s di 210 (© FOLCLORE EM ROMA 05 DIRFITOS DA CONSCIENCIA PUBLICA, fa seus olhos, «f@-lo percorrer as ruas, de bairro em baitro, coberto de farrapos, fazendo que fossem mulheres (mulieribus astendi) a mostra-lo a multidao e em seguida mandou estrangu- 1é-lo» (#). Confrontemos, como o faz G. Ville (), com uma his- torieta referida por Valétio Maximo, na qual 0 povo de Roma, interrompendo as exéquias de um velho avarento, arrasta 0 set, cadaver pelas ruas, com uma corda a0 pescoco; ¢ também, em Aulo Gélio, com a historia dos rapazes que vingam a conscién- cia pitblica’ cantando pelas ruas versos de escarnio contra os ardscipes etruscos condenados a morte por perfidia (#). Nao ficam muito longe desta justiga colectiva alguns tragos de justica individual em que se tomava a colectividade por teste- munha; ndo é grande a distancia, sequer, entre a just vinganca pessoal: quando tal vinganea é ritualizada, ¢ ainda possi-

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