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A DIMENSAO URBANA DA QUESTAO AMBIENTAL NA AMAZONIA! Miguel Angelo C. Ribeiro 2 "A cidade nasceu para preservara vida, existe para a boa vida." (in: Soja, 1993:270). CONSIDERAGOES INICIAIS O processo de urbanizagio na Amazénia, nas trés Gltimas décadas, esta ligado, de modo geral, & apropriag&o capitalista da fronteira, intensificada pela atuagdo sucessiva de medidas oficiais, tais como: Programa de Pélos Agropecuarios ¢ Agrominerais (Polamaz6nia), Programa Grande Carajas (PGC) e, principalmente, a implantagio dos grandes Projetos incentivados pela SUDAM que, atrelados a outros fatos importantes como a criagao da Zona Franca de Manaus (SUFRAMA), em 1967, com funcionamento a partir de 1972 e 0 estabelecimento de uma infra-estrutura de grandes eixos, calcada no sistema rodoviério, garantiram a viabilizagao dos Programas propostos. Segundo Becker (1990:52), a urbanizagio na Amaz6nia manifesta-se em duas dimensées: a) do espago social, referente a um modo de integragao eco- némica; b) do espago territorial, correspondente ao crescimento, mul- tiplicagao e arranjo dos nticleos urbanos. A autora (op. cit:53-55) coloca, ainda, trés situagdes para explicar 0 papel dos niéicleos urbanos na fronteira. A primeira, diz respeito ao poderoso fator de atragdo dos migrantes, enfatizado nas varias politicas Postas em pratica e j4 mencionadas. A segunda, refere-se ao niicleo urbano como base da organizacao do mercado de trabalho, atuando como pontos de 1 Considera-se para efeito de anflise a Amazénia Legal, constitufda pelas unidades da federagdo pertencentes a Regio Norte (Amazonas, Pars, Tocantins, Acre, Rondénia, Roraima e Amap4); Centro-Oeste (Mato Grosso e Goi, até o paralelo 13° S.) e Nordeste (Maranhio, até 0 meridiano de 44° W, de Greenwich). 2 Analista Especializado do Departamento de Geografia - IBGE. 185 concentragao ¢ redistribuigao da forga de trabalho; ¢, a terccira, atribui-lhe o papel de "locus" da acdo polftico-ideolégica do Estado. "Sao a sede do aparclho de Estado local, da Igreja e dos grupos hegeménicos da fragiio nao-monopolista em formagio na nova sociedade local; sao, também, o lugar da "preparacio" da populagio para seu papel na sociedade, onde se incorporam valores dominantes ¢ técnica" (p.55). A urbanizagio vem sendo 0 elemento-chave dessa estratégia de ocupagao promovida pelo Estado, pelo capital nacional ¢ internacional, que se traduz numa valorizagio seletiva dos lugares. Tal urbanizagio assume formas peculiares que se manifestam no crescimento da populagio urbana total, no aumento do tamanho e do ntimero de cidades, assim como vem alterando e redefinindo a funcionalidade dos centros na rede urbana da Regiao. Outro fato que nao deve ser esquecido, em decorréncia desse processo de urbanizagao, € a relagdo Sociedade/Natureza que deve fazer parte de um.mesmo contexto. Segundo Balassiano (1993:42), "As sociedades, ao criarem aglomerados urbanos, alteram a paisagem natural pré-existente, criando uma paisagem cultural, a qual, por sua vez, vai-se modificando gradualmente, no decorrer do tempo. B nesse processo de transformagdo que as caracterfsticas naturais do lugar - solo, aguas, vegetagio, ar, paisagem ¢ clima - foram utilizadas como recursos para a construgio de um novo ambiente: o meio ambiente urbano. Nao se pode, nesse sentido, pensar isoladamente a problemAtica social, sem pensar ¢ planejar levando-se em conta os comprometimentos ambientais que possam advir. Ha uma relacdo recfproca entre 0 ecossistema ¢ 0 equilfbrio econémico-social da populagao. A degradacio de um est4, necessariamente, articulada a do outro", ‘Tendo em vista 0 exposto, 0 urbano ser4 focado baseando-se em dois aspectos. O primeiro refere-se 4 sua dimensao, em fung%o do crescimento ¢ aumento do tamanho e do ntimero de cidades, comparando dois momentos distintos: 0 ano de 1991, relativo ao tltimo recenseamento geral ¢ 1960, que marca o inicio das grandes transformagées que vieram a ocorrer na Amazénia Legal. O segundo aspecto a ser focado esté atrelado a relagio Sociedade/Natureza. Trata-se de analisar o urbano ¢ a qualidade ambiental sob a ética do saneamento bAsico, priorizando o sistema de abastecimento de agua. Esta € a quest&o que guarda as relagdes mais estreitas com o ambiente e 0 desenvolvimento a quc vem influenciando diretamente tal populagao. 186 AEVOLUGAO DA POPULAGAO URBANA NO CONTEXTO REGIONAL E NACIONAL. Para a anilise do urbano na Amazénia, a metodologia empregada naescolha das cidades ¢ vilas no universo selecionado, tomou por base, de acordo com o critério politico-administrativo do IBGE, as cidades’ e vilas* que, em 1991, registraram populagao igual ou superior a 5.000 habitantes. Em seguida Procurou-se levantar a situagdo das mesmas para o ano de 1960. Em 1991, segundo a Sinopse Preliminar do Censo Demo- grafico (IBGE), a populagao urbana total correspondia a 55,2% da populaco total da Amazénia, enquanto o Pais acusava taxa de 75,5%. No que diz respeito somente a populagio urbana registrada nas sedes municipais, esse percentual alcanga 51,3% contra 67,0% do Brasil. Para o ano de 1960, enquanto o Pajs acusava taxa de 45,1% de populagao urbana total, a Regizio nao atingia 30,0% de seu efetivo populacional em dreas urbanas, sendo que nas cidades viviam apenas 26,5% contra 40,2% da taxa nacional. Apesar das taxas inferiores aos totais nacionais, a Regiio hoje concentra mais da metade de sua populagao em reas urbanas, cabendo aos estados do Amap4, Mato Grosso e Amazonas, percentuais superiores a 70,0% de populagao urbana total. No caso do Amapé e do Amazonas, tais percentuais denotam a forte concentragao do contingente populacional em niicleos urbanos, vis-d-vis as baixas densidades populacionais desses estados. No oposto, encontramos o Maranhiao e¢ o Par4, que acusaram percentuais inferiores 4 média regional, sendo que a situagZ0 do Maranhio se apresenta bastante inferior, explicada pelo expressivo contingente populacional que vive em areas rurais. Enquanto em 1991 a Amazénia participava com 11,2% na populagao total do Pafs, cabendo 8,2% 4 populacao urbana total ¢ 8,6% vivendo nas cidades, em 1960 esta contribuigao era da ordem de 7,4%, 4,8% © 4,8%, respectivamente. Outro dado importante a ser analisado € 0 referente as taxas de crescimento da populagao urbana no periodo 60/91. A Amaz6nia apresentou taxas superiores as registradas em nfvel nacional, no que tange as vari4veis analisadas: populagio total, populagdo urbana total ¢ populacao urbana na sede municipal. 3 Localidades com o mesmo nome do municipio a que pertence (sede municipal) ¢ onde esté sediada a respectiva prefeitura, exclufdos os municfpios da capital. 4 Localidades com o mesmo nome do distrito a que pertence (sede distrital) e onde est4 sediada a autoridade distrital, exclufdos os distritos das sedes municipais. 187 No tocante a populagao total, enquanto a Amazonia registrava um crescimento de 214,8%, a taxa brasileira foi da ordem de 107,0%, sendo que os Estados do Para, Amap4, Roraima, Mato Grosso ¢ Rondénia apresentaram taxas superiores a da Regidio. J4 com relagio 4 populagao urbana total, enquanto a Amaz6nia acusava 485,1% de crescimento, 0 total nacional alcangava 246,6%. Cabe, ainda, ressaltar que todos os Estados integrantes da Amaz6nia perfaziam taxas superiores a brasileira. O mesmo fato repete-se quando da andlise do crescimento da populagio urbana nas sedes municipais, sendo que a taxa regional foi da ordem de 509,1% para 245,2% da nacional, verificando-se para os estados de Mato Grosso, Roraima ¢ Rondénia, crescimentos superiores a 1.000,0%. Tais resultados podem ser explicados por um conjunto de agdes governamentais que visaram estimular a ocupagio maciga do territ6rio amazénico, seja via projetos de colonizago como os que sc viabilizaram no Paré, Mato Grosso e Rondénia, via grandes projetos agropecuarios, como os que se desenvolveram no Tocantins, Mato Grosso ¢ Para; ou mesmo pelo fortalecimento da industrializagio ¢/ou comercializagio de produtos extrativos minerais, beneficiados ou nao, que se alocaram em pontos diversos desse territério. O Projeto Carajaés, no municfpio de Maraba (sudeste do Pard), com a exploragao do ferro; a explorac%o das jazidas de bauxita, em Oriximind, no noroeste do Para; a exploragio da cassiterita, em Presidente Figueiredo, no Amazonas ¢ nas proximidades de Porto Velho, em Rondénia (Ribeiro, 1992). Podemos afirmar que houve um gradativo aumento da populagio urbana na Amazénia, nas trés tltimas décadas, ¢ que esta tendéncia acompanhou a prépria dinamica da urbanizagao brasileira. Se comparamos os trés periodos censitérios (60/70, 70/80 ¢ 80/91), no que se refere as taxas anuais de crescimento da populagio urbana nas sedes municipais, podemos afirmar: 1) a Amazé6nia registrou taxas superiores as do Brasil; 2) 0 periodo de maior crescimento foi o de 70/80, com pecene de 90,2%, enquanto o Brasil acusava 51,9%. egue-se o periodo 80/91 com 83,7%, enquanto o Brasil registrava 38,6%. O crescimento demogrffico verificado na Amazonia, no decorrer desses trinta anos apresentou, porém, um aspecto curioso. Segundo Martine (1989:29), "embora tenha sido basicamente impulsionado, nas suas rafzes, pela expansio da fronteira agricola, observa-se que a maior parte desse crescimento populacional ocorreu, de fato, nas cidades". 188 Quanto ao tamanho e ntimero de cidades da Amaz6nia durante 0 perfodo 60/91, podemos afirmar que houve um aumento gradativo. Em 1991, a Regido agregava 264 cidades das quais 106 estac alocadas na classe de Populag&o de 5.000 a 9.999 habitantes. No entanto, 11 cidades apresentaram populagao superior a 100.000 ¢ 13 na classe de 50.000 99.999 habitantes. Ha uma concentragao desses nticleos urbanos em apenas trés das unidades federadas da Amazé6nia: o Pard, o Maranhio, seguidos de Mato Grosso, com percentuais da ordem de 24,2%, 24,2% © 17,0%, respecti- vamente, do total das cidades existentes na Regifio. Procurando-se situar as cidades ¢ vilas com populagao igual ou superior a 100.000 habitantes, na Amazénia, nota-se a concentragao da populagao urbana nas oito capitais regionais (excegdo a Palmas, capital do ‘Tocantins, nZo incluida no grupo), da ordem de 3,526,916 residentes, correspondendo a 38,8% da populacao urbana total. Cabe destacar a Participagio das vilas de Icoraci, localizada no municfpio de Beléme Coxipé da Ponte, situada em Cuiabé. Ainda formam o grupo as cidades de Imperatriz (MA), Santarém e Marabé (PA). O conjunto representa 48,8% da populagao urbana total, perfazendo 4.428.944 residentes urbanos. Em 1960, o néimero de cidades era de 155, sendo que a maior em tamanho populacional - Belém - contava com 364.998 habitantes, seguida por Sio Luis ¢ Manaus, que apresentavam, respectivamente, contingentes de 159.628 ¢ 154.040 habitantes, O processo de concentragao dos nficleos urbanos em 1960 verificou-se, marcantemente, nos estados do Maranhio e Pard, represen- tando, respectivamente, 29,7% 26,4% do total de cidades existentes na Regiao. Comparando-se os dois momentos de anilise (1991 ¢ 1960), verifica-se que o processo concentrador de nticleos era mais forte em 1960, denotando a presenga de centros antigos nos estados do Maranhio e Pard, seguidos do Amazonas. Porém, 0 que chama a atengio, quando se confrontam os dois momentos, é a fragmentagio territorial verificada nos estados do Tocantins, Mato Grosso e Rondénia, levando a um aumento da malha municipal. Tal processo sofreu influéncia, em parte, a implemen- tagdo sucessiva de medidas oficiais, a partir dos anos 60, como os Programas de Pélos Agropecuarios (Polamazénia), Projetos Oficiais ou Privados de colonizacio, além dos grandes cixos rodovidrios, representados pelas BRs-010/153 (Belém - Brasilia), 163 (Cuiabé - Santarém) ¢ 364 (Cuiabé - Porto Velho). 189 Para Davidovich ¢ Fredrich (1988:26), 0 processo de frag- mentagio territorial em alguns casos, especialmente referentes a nticleos de dimensdes populacionais reduzidas, reflete interesses polfticos locais ¢ estaduais em aumentar o ntimero de municfpios, interesses que levam a desmembramentos da malha municipal ¢ a consequente clevagio de aglomerados, que efetivamente nao tém caréter urbano, a categoria de cidades ou vilas. Apés a constituigio de 1988, a fragmentagio municipal constitui, também, de certo modo, uma forma de descentralizar recursos através de transferéncias federais garantidas pela legislagao. A distribuigéo dos nticleos urbanos na Amazénia apresenta duas caracteristicas, segundo Machado (1993:88). A primeira refere-se 4 "condensagao" dos nticleos urbanos novos no sudeste do Paré, norte de Mato Grosso, centro-sul de Rondénia e norte do Tocantins, estreitamente vinculada a presenga da rede vidria, que viabiliza a implantagdo de diferentes projetos econémicos. A segunda prende-se ao crescimento diferenciado dos niicleos localizados ao longo da rede fluvial, que acompanharam as transformacées verificadas na Regiaio, dependendo de sua localizacdo. Cabe referéncia aos centros que apresentaram crescimento populacional representativo, aqui exemplificado por Manaus, em decorréncia da implantacio da Zona Franca e por Boa Vista, em fungio da atividade garimpeira, em comparag&o Aqueles que permaneceram 4 margem das transformacées verificadas como, por exemplo, os nticleos localizados na 4rea de dom{nio extrativista da Amaz6nia Ocidental. Atualmente, o crescimento da populagao urbana ¢ o aumento do tamanho ¢ do ntimero de cidades e¢ vilas, na Amazénia, j4 atuam como elementos de pressio sobre 0 meio ambiente, nio somente no sentido de se constituir em mais um fator de disputa pelo uso do territ6rio, como também por desestruturar, pelo éxodo rural, sistemas s6cio-econémicos longamente adaptados aos ecossistemas da Regio. Pode-se concluir o presente tépico através da afirmativa de Becker (1992) - a Amaz6nia é uma selva urbanizada, fazendo parte de um Pafs urbano, havendo multiplicagio de centros, planejados ou nao (espontaneos), sendo que a expansdo da fronteira agricola se fez num contexto de urbanizagao simultanea. 190 URBANIZACAO: CONSEQUENCHAS E IMPASSES NA QUESTAO AMBIENTAL A QUESTAO DO SANEAMENTO BASICO O segundo aspecto a ser focado est atrelado a questo Sociedade/Natureza. Trata-se de analisar o urbano ¢ a qualidade ambiental sob a dtica do sancamento bisico, priorizando o sistema de abastecimento de agua. Quando se trata da Sociedade na Amazonia, deve-se enfatizar a vertente urbana da questo ambiental, pois é na cidade que vivem mais de 50,0% do contingente populacional dessa Regio, os quais sofrcm os efeitos dos danos ao meio ambiente. ‘Tais danos sio, na verdade, agressdes infligidas 4 comunidade que vive nesses nticleos urbanos e€ esto ligados a problemas criticos de habitagio, saneamento e transporte ptblico, transformando-se como nos coloca Becker (1992:139) "em focos de tensio social, nécleos de moléculas endémicas e teatros de guerra pela sobrevivéncia. Pequenas cidades transformaram-se em verdadciros depésitos de mio-de-obra mével, os "volantes ou béias-frias", que pressionam o poder local em busca da infra-estrutura e servigos coletivos, cuja oferta esta muito aquém da capacidade financeira dos municfpios". O rapido crescimento urbano e a ineficiéncia das politicas sociais convergiram para a acelerada deteriorago da qualidade de vida dessas populagdes. Em consequéncia do processo de ocupagiio, caético e muitas vezes inadequado aos padrées vigentes da qualidade de vida, seus problemas ambientais mais graves conflufram, também, para um espago urbano, praticamente desprovido de infra-estrutura de habitago, rede de esgoto, 4gua, etc. "Nesse contexto, modifica-se rapidamente o espaco urbano sem a correspondente adaptacao de seu meio no sentido, de atender, minima- mente, as necessidades de sobrevivéncia da massa humana que af se aglomera. A transformagio dos igarapés em valdes na cidade de Manaus, € uma s{ntese da degradacio do mcio ambiente urbano, comprometendo nao s6 a outrora exuberante rede de drenagem daquele sitio urbano, como o contingente humano que ali sobrevive sem habitagio, saneamento, satide, educag&o, enfim, sem cidadania (...). Se o inchamento das capitais ¢ dos centros regionais abriga grande parte dos excluidos do crescimento regional, as pequenas cidades, vilas, lugarejos ¢ corrutelas surgidos no rastro de "company towns", da colonizagao agricola, de frentes mineradoras ¢ de garimpagem, enfim, da expansao da fronteira, sio também, manifestagdes ca6ticas do urbano nessa 4rea € pontos criticos de sua crise ambiental" (Figueiredo, 1993:148). 191 Outro fato que caracteriza o fenémeno de inchamento das cidades € 0 "padrao periférico de urbanizago", que se refere ao modelo de expansio das periferias, fendmeno nacional, definindo-se, também, nas cidades da Amazénia, formando, assim, verdadeiros bolsdes de miséria, 0 que confirma ser o espago urbano, segregado ¢ diferenciado. A segregacio social das camadas populares de menor renda, a auto-construgio das moradias, as invasdes, a expansao das favelas ¢ a precariedade nas condigdes de consumo coletivo sao apontadas como definidoras deste "padrio periférico de urbanizacao". A periferia j4 nasce pobre ¢ o exemplo mais atual 6 o que verificamos em trabalho de campo recente A cidade de Palmas, onde assistimos a uma verdadeira espoliagio urbana, pois as camadas mais pobres da populag%o nao sao reservados 0 direito € 0 acesso aos servicos de consumo coletivo. Para Ribeiro e Lago (1992:157), "aos pobres € cada vez mais vedado ¢ controlado o acesso & moradia nos nticleos. Ficam-lhes, portanto, vedadas as vantagens do morar em lugares bem servidos por infra-estrutura basica, equipamentos ¢ servigos urbanos". Para Schmidt ¢ Farret (1986:52) "a estrutura de saneamento basico (4gua encanada e esgoto) € fundamental para a existéncia ¢ reprodugdo da populagio". A inexisténcia e/ou seu acesso restrito é fator crucial na determinag&o de doengas endémicas. "Assim, a contaminagao do lengol freatico pelas fossas negras, tio comum na maioria das dreas urbanas pobres, é a responsavel principal pela existéncia de "ondas de desidratacao" que assolam as cidades (...). A mortalidade infantil urbana é, em grande parte, decorréncia dessa situagio dramética. E o saneamento bisico est4 diretamente ligado a este triste fendmeno", Na abordagem do tema saneamento bisico nfo podemos esquecer de fazer referéncia as politicas piiblicas em nfvel nacional, implementadas na década de 70, através do PLANASA - Plano Nacional de Saneamento (Castelo Branco ¢ ONeill, 1993 e Cynamon et alii, 1992). Este 6rgio, criado em 1971 pelo extinto BNH (Banco Nacional da Habitagio), implantou uma politica de ambito nacional para o provimento dos servigos de Agua e esgotos. No perfodo de 1971 a 1984, foram observadas acentuadas desigualdades na distribuigdo desses recursos. Todavia, na década de 80, 0 servigo de abastecimento de 4gua encanada foi desproporcional Aquele ligado ao servigo de coleta de esgoto, acarretando, assim, condigées altamente poluidoras ao meio ambiente. Verifica-se, portanto, que as metas adotadas pelo PLANASA, quanto 4 distribuigao, qualidade ¢ tipo de tratamento dos servigos basicos de 4gua e esgoto, nado ocorrem de modo igualit4rio dentro do contexto nacional. Segundo Cynamon et alii (op. cit:163) "desde meados da década de 80, passou a existir um consenso, por parte de entidades ¢ 192 associagées ligadas ao setor, de que também deveriam estar inclufdas na agenda de intervengées entre outras, o crescimento da atengao aos esgotos sanitérios, a drenagem urbana, a protec%o dos mananciais e do meio, a gestio dos recursos hfdricos ¢ o controle de cheias, mostrando 0 aumento das Preocupagées com os problemas ambientais". As metas brasileiras adotadas pelo PLANASA para o decénio (1980-1990) foram as de atender, no minimo 90,0% da populagao urbana com servigos de abastecimento de 4gua ¢ pelo menos 65,0% da populagao urbana com servigos adequados de esgotos sanitarios (Portaria n° 140, de 24 de dezembro de 1981). "Essa proposta de auto-sustentagao levou o Plano a preconizar seu inicio pelos sistemas de maior e mais répido retorno. Uma das conse- quéncias dessa estratégia foi a priorizagao das intervengdes em abasteci- mento de 4gua em detrimento dés esgotos sanitérios, ¢ das 4reas mais desenvolvidas, deixando, em segundo plano, as de menor porte; como consequéncia, foi dificultada a possibilidade de uma acao integrada 4gua/esgoto" (Cynamon et alii, 1992:162). Nas freas mais pobres do Pats, a exemplo da Amazonia persistem as grandes deficiéncias em quest&6, tornando-se um elemento a mais na caracterizagio do quadro de precariedade das condigdes s6cio-ambientais urbanas. Para Castello Branco e O’Neil (op. cit:98) "as politicas ptiblicas adotadas, especificamente no caso do PLANASA, nao atingiram os objetivos propostos, mesmo decorrido lapso de tempo superior ao das metas, acrescido do fato de atualmente sequer haver uma agao coordenada em termos de politica ptiblica para o setor". Isto pode ser verificado, através dos resultados obtidos paraa andlise dos dados referentes a 1989 para a Amazénia, os quais revelam situagao critica quanto a oferta do servigo de abastecimento ¢ tratamento convencional de 4gua e do esgoto sanitdrio para 9 conjunto urbano selecionado, além da profunda desigual- dade na sua distribuigao espacial, tanto no que se refere ao ntimero de cidades contempladas, como também a qualidade ¢ tipo de tratamento desses servigos. A populagao desassistida pelo servigo de abastecimento de Agua, corresponde a cerca de 40,0% da populagio urbana. No tocante ao tratamento convencional, 66 niicleos urbanos (24,3%), apresentaram tratamento convencional completo de dgua, enquanto a rede de esgoto sanitério esté presente em somente 21, ou seja, 7,7%. Os resultados obtidos sao explicados em decorréncia do custo de instalaco desses servicos, pois, no caso do abastecimento de 4gua, cle é mais baixo, consequentemente, em geral, melhores que os de esgotamento sanitario. 193 O conjunto urbano sem atendimento € representado por somente 9,9% (27), apresentando situagio critica, pois mais de 90,0% da populago que vive nesses centros urbanos € desassistida pelo abasteci- mento de 4gua. Esses nticleos urbanos encontram-se, principalmente, no sudeste do Par4, em Ananindeua (Regido Metropolitana de Belém), na area da Bragantina, no sudoeste e interior do Maranhlo ¢ niicleos préximos & aglomeragio de Sdo Lufs; no norte de Mato Grosso, em grande parte dos miicleos urbanos do Tocantins e, finalmente, em Rondénia, ao longo da BR-364. De modo geral, esses espagos correspondem As 4reas de ocupagdo mais recentes da Amazénia, onde a concentragao urbana estd ligada ao fenémeno migratério, excegio feita ao interior do Maranhio. Para Martine e Turchi (op. cit:37) "as cidades mais recentes ¢ de tamanho menor sao as que receberam maior contingente de migrantes, em decorréncia dos diferentes tipos de projetos nelas existentes, que atraem mio-de-obra". No entanto, tais cidades nao oferecem aos seus habitantes condigdes de infra-estrutura ¢ servigos urbanisticos. Verifica-se que a AmazOnia apresenta um agravamento no déficit de abastecimento de 4gua ¢ no esgotamento sanitério, implicando, assim, num problema sério no que diz respeito 4 qualidade ambiental. Esta situagéo torna-se mais critica, quando ao descer a escala de andlise no sentido da estrutura interna do espago urbano, encontra-se um modelo perverso de segregagio, representado pela expansio da informalidade ¢ ilegalidade, através das favelas®. Como nos indica Becker (op. cit:128) "0 modelo, que exclui amplas camadas da populagao dos frutos da riqueza produzida, nega, a esta mesma populagio, saneamento bisico, que the daria melhores condigées de vida e alguma protegio A sua satide". Ou seja, no Brasil de hoje ¢, particularmente, nos grandes nticleos urbanos da Amaz6nia, ocorre o mesmo fenémeno dos primeiros decénios deste século, na medida em que acaréncia da questo sanitéria implica na degradacao da vida das populagées de classes de renda mais baixas. Na realidade, as favelas so 0 "locus" da iniqliidade ao acesso a domicilios servidos por redes gerais de agua e esgoto sanit4rio, configurando situagGes criticas de degradacio ambiental, pelo comprometimento da qualidade de vida das populagées que nelas habitam. Oartigo de Balassiano (op. cit:42), ao analisar a situagdo das favelas no Brasil © seu comprometimento ambiental, observa que "a favela, indevidamente, 5 Segundo os critérios adotados pelo IBGE, considera-se favela a localidade de moradia com mais de 51 domicilios, com invasio ilegal do-solo, construgo em terrenos de propriedade alheia (pAblica ou particular). As favelas recebem denominagdes locais, tais como: habitagées sub-normais, mocambos, etc. 194 provoca a sua pr6pria ecologia e, por sua caracteristica de ocupagio desor- denada, degrada as caracteristicas de base natural original. As favelas, em seu processo de organizagio sécio-territorial, ao se localizarem em encostas, devastam florestas; em manguezais, os transformam em pantanos; nas varzeas dos rios, alteram o seu equilibrio ¢ poluem as 4guas, conduzindo ao comprometimento ambiental e 4 degradacao das condigées de existéncia de amplos segmentos populacionais, incluindo o da populagao favelada". Apesar das favelas predominarem nos grandes centros metropolitanos, elas universalizaram-se, disseminadas em nticleos urbanos de diferentes portes populacionais, sendo que para a Amaz6nia, apenas Acre, Roraima ¢ Mato Grosso nao registraram a presenga de favelas, dentro das caracterfsticas conceituais estabelecidas pelo IBGE. No entanto, a Regifio estudada registrou, para 1991, um total de 82 favelas, representando para o conjunto do Pafs, apenas 2,5%. Apresenta um total estimado de 100.491 domicflios, correspondendo a 9,6% do total nacional, sendo habitada por 523.935 pessoas. Quanto a distribuigdo geogrdfica das favelas na Amazénia, convém destacar a situacao de Laranjal do Jarf (PA); Sao José de Ribamar (MA); Belém (PA), Manaus (AM) ¢ Ananindeua (PA) que apresentam o maior ntimero de domicilios ¢ populacao favelada em relagio aos demais nticleos urbanos. Os dados apresentados nfo refletem, contudo, toda a complexidade do quadro de pobreza urbana regional, em decorréncia da tigidez do critério adotado para conceituar Favela, sendo a situagio real muito mais critica do que nos indicam os dados. Em recente pesquisa de campo, constatamos extensos bolsdes de miséria em Manaus, Porto Velho, Sio Luis e mesmo em Palmas, que ja nasce pobre. Na verdade, a Amazénia, na expressdo de Becker (op. cit:128) € uma "Regiao rica de pobres". De acordo com Balassiano (op. cit:48), "as favelas nao decorrem de um simples desequilfbrio entre a carente oferta de iméveis ¢ uma vasta populagio consumidora, mas sim de um complexo de problemas sociais, econémicos e politicos, onde a questao distributiva da renda ¢ da terra assume posi¢ao central". Esse complexo de problemas vem comprometer 0 ambiente levando 4 degradago das condigées de existéncia desses segmentos populacionais. CONSIDERACOES FINAIS O processo de urbanizagao desencadeado na Amaz6nia, nas trés tiltimas décadas, levou ao surgimento de novos nticleos urbanos ¢ a0 aumento do tamanho de alguns dos ja existentes, 0 que est4 fortemente 195 vinculado a natureza e intensidade dos investimentos feitos, quer pelo setor privado, quer pelo Estado, nos diferentes segmentos do espaco. Tal situag&o que se verificou durante os tiltimos trinta anos, foi reflexo de uma politica desenvolvimentista que resultou na explorag’o dos recursos regionais, causando profundo desequilfbrio ao meio ambiente ¢ tendo como forte expresso a cidade, pois ela passa a ser "o ponto final dos fracassos ¢ contradigdes da ocupagéo desordenada do territério amazénico" (Figueiredo, op. cit:148). A auséncia do poder ptiblico tem facilitado a precariedade da vida urbana, alicergada pela deficiéncia generalizada de equipamentos sanitérios. O processo vertiginoso da urbanizagio, a falta de capacidade financeira das comunidades locais para arcarem com os custos altos da instalag&o de tais servigos, aliado 4 auséncia do poder piiblico tem agravado as condigdes de vida nas concentragées urbanas. Assim, segundo Figueiredo (1994), podemos ressaltar as seguintes situagdes articuladas entre si, em decorréncia ao processo de urbanizagao desencadeado na Amazénia, nas trés Giltimas décadas: 1) descentralizagio urbana acompanhando 0 ritmo nacional, pela desaceleraco do ritmo de crescimento (taxas relativas) dos grandes centros urbanos, como Manaus, Belém, Sao Luis ¢ pelo crescimento da representatividade populacional das cidades pequenas ¢ médias; 2) alta mobilidade da populagdo associada as_precérias condigées de saneamento ¢ habitagao, ¢ a insuficiéncia da cobertura dos servigos de satide; 3) crescimento desordenado das cidades, com expulsao da populacdo para as periferias urbanas ¢ exclufda do acesso da infra-estrutura basica de 4gua, esgotamento sanitario c lixo; 4) urbanizagdo de doengas anteriormente restritas 4s regides rurais, e a presenca de doengas antes desconhecidas; 5) ruptura étnico-cultural ¢ de consequente perda de iden- tidade por parte de segmentos nativos longamente adap- tados aos ecossistemas presentes. Segundo as consideragdes de Campos Filho (1992:136-137) "A humanizagao das cidades s6 ser obtida com o progressivo controle, pelos cidadaos, da agio do Estado, fazendo-a voltar-se para a produgdo de beneficios para a sociedade. Tais beneficios, se obtidos de forma isolada, desconectada da visio entrelagada dos problemas, criam uma ilusio de solugio € s6 agravam as distorgdes da sociedade, afetando a todos. Enquanto a sociedade nao se organizar, com suficiente forga polftica, para exigit dos seus representantes que desenvolvam uma agio de Estado ao 196 mesmo tempo planejada ¢ democritica nao clientelista paternalista, que se faz através de agdes isoladas apresentadas como favores do Governo, as cidades brasileiras ndo se humanizarao". Assim € que, a Amazénia de hoje, nao pode ser pensada, sem uma reflex4o sobre 0 quadro ambiental de suas cidades, pois nelas, residem a maioria dos problemas, enfrentados por suas populagdes, muitas vezes, deixadas a prépria sorte. Ao cidadao € oferecido © direito de viver com um minimo de dignidade, fato que nio vem ocorrendo ¢ que foi constatado no decorrer do trabalho - ao cidadao € vedado econtrolado 0 acesso A moradia, a infra-estrutura basica e aos equipamentos ¢ servigos urbanos. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS BALASSIANO, Helena Maria Mesquita. "As Favelas e 0 Comprometi- mento Ambiental", in Geografia e Questiéo Ambiental. Rio de Janeiro. IBGE. 1993. p. 41-8. BECKER, Bertha K. "Repensandoa Questo Ambiental no Brasil a partir daGeo- grafia Politica", in Satide, Ambiente desenvolvimento. Uma Andlise Interdis- ciplinar. S40 Paulo/Rio de Janeiro. HUCITEC/ABRASCO, 1992. p- 127-52. v.1. ~~~, Palestra proferida no Forum Global. Anosagées, Rio de Janeiro, junho 1992. --~-. Amazénia. Sko Paulo. Atica. 1990. 112 p. (Série Princfpios). CASTELLO BRANCO, Maria Luisa G. e O'NEILL, Maria Ménica Vieira Cactano. 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