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Faculdade de Ciências da Educação - FACE

Curso de História

Disciplina: Monografia II

Professora: Helen Ulhoa Pimentel

ANA LÍDIA E O FIM DO SONHO DE BRASÍLIA COMO CIDADE IDEAL.

DA VIOLÊNCIA À MITIFICAÇÃO

Aluno: Deyverson Rafael Cestaro Jorge

Brasília

2007
Ana Lídia

Eu vim aqui pra te contar

O que o mundo se tornou

Depois de te violar

Tantas mais sofreram o seu revés

Sei que olhas tudo ai do céu

Ana Lídia

As meninas já não vão brincar

Pois não pense no amanhecer

Quando a vida se deitar

Me esclarece o que é sentir

Tudo pro mundo é tão normal[...].”

Conversa com os Espíritos – Metrópole Locomotiva


AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer inicialmente a minha família por ter me financiado nessa

empreitada acadêmica, acreditando e apoiando minha escolha.

Agradeço também a minha orientadora Helen Ulhôa por sua paciência e confiança em

meu trabalho.

E por último e não menos importante a todos meus amigos que me deram força e

fizeram parte desse percurso inovador e importante em minha vida: Adriana, Antonio, Carlo,

Érika, Hugo, Karlla, Leandro, Leonardo, Marcelo, Rodrigo, Sérgio, Thiago e Willians. Além

de todos aqueles que participaram direta ou indiretamente na construção desse estudo.


SUMÀRIO

INTRODUÇÂO...............................................................................................................05

CAPÍTULO I – HISTÓRIA CULTURAL......................................................................08

CAPÍTULO II - UMA HISTÓRIA LOCAL...................................................................11

2.1 Visões de Brasília em suas primeiras décadas .....................................11

2.2 O contexto político e a questão da censura...........................................16

CAPÍTULO III – O CASO ANA LÍDIA

3.1 O 11 de setembro...................................................................................20

3.2 Gritos e ecos..........................................................................................22

3.3 A ascensão da santidade ........................................................................31

CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................................38

BIBLIOGRAFIA.............................................................................................................39

ANEXOS.........................................................................................................................40
INTRODUÇÃO

A proposta pesquisa visa analisar alguns aspectos do caso Ana Lídia. Este caso,

ocorrido na década de 70, portanto, durante o regime militar, foi extremamente polêmico.

Trata-se de uma menina de sete anos, raptada, estuprada e morta. Supostamente por jovens da

classe média, filhos de pessoas ligadas ao poder na esfera federal. Este caso, nunca

solucionado e já arquivado, repercute até hoje, pois Ana Lídia passou a ser cultuada e alguns

atribuem a ela poderes miraculosos. Podemos afirmar que ela faz parte da história da cidade e

da mentalidade de sua população. Somente a partir de um breve levantamento sobre a situação

de Brasília, durante a década de 70, é possível desenhar um esboço sobre como foi dada e

absorvida a experiência do caso Ana Lídia pela população, e entender como esta o guarda na

memória e qual sua análise sobre os fatos.

O contexto desse estudo tem sua origem na prévia de Brasília modelo, pensada e

construída com planejamento e esperança. Porém, inaugurada a capital, e mesmo com a

continuidade de sua construção dada por Castelo Branco e os demais militares, a cidade ainda

tinha no começo dos anos setenta uma infra-estrutura incipiente, com falta de asfaltamento e

grama, alem de várias áreas desabitadas. Exemplos para uma visualização da cidade

inacabada podem ser citados como: em 1971 estaria sendo inaugurada a primeira etapa do

Conjunto Nacional; no ano de setenta e seis do mesmo decênio as duas asas (sul e norte)

possuíam apenas 50% de suas áreas ocupadas1; por fim, o Parque da Cidade só seria

inaugurado no ano de setenta e oito. O mesmo que atualmente, em um de seus setores, presta

homenagem por nome ao caso estudado. À época da ocorrência, a capital estava da mesma

forma como o resto do país, sob o regime militar e seu rigor. A nova capital do Brasil estava
1
GONZALES, Suely, Frando Neto. “ As formas da segregação residencial em Brasília” in PAVIANI, Aldo.
Brasília em questão – espaço urbano, ideologia e realidade. São Paulo, Projetos Editores Associados, 1985
diretamente influenciada pelas ferramentas do poder. A Universidade de Brasília (UnB) já

havia sofrido invasões, e o já instalado Correio Braziliense; pioneiro na cidade; deveria se

alinhar com os censores padrões do regime e mais posteriormente com uma portaria proibindo

a cobertura jornalística do caso Ana Lídia2

Todos esses informes servem para desenhar a situação de Brasília nos meados de

setenta e aproximar-se da reação e sentimento para quando surge o mais impactante caso de

violência brutal dos primeiros anos da nova cidade: em 11 de setembro de 1973, dentro do

Plano Piloto; a menina Ana Lídia de sete anos é seqüestrada, estuprada e posteriormente

morta, sendo encontrada numa vala rasa próxima ao seu colégio tendo como principal

suspeito seu próprio irmão.

Cabe ressaltar-se aqui, que o estudo do caso Ana Lídia nesse trabalho não pretende dar

conta de todo o processo composto por milhares de páginas, mas tentar resgatar imagens e

conceitos sobre o caso que ficaram na lembrança coletiva da cidade de Brasília.

Trata-se, portanto de uma pesquisa que trabalha com a memória de fatos e com as

representações sociais que a construíram, embasada por fontes dos discursos jornalísticos,

entrevistas e discursos políticos para interpretar as crenças e práticas construídas e muitas

vezes incompreensíveis para quem não viveu ou conheceu com maior profundidade o caso e a

forma pela qual sua investigação foi conduzida.

A iniciativa dessa pesquisa tange também em homenagem a outros casos bárbaros de

violência que chocaram e ainda chocam a cidade de Brasília e seus moradores. Casos como o

estudante Marco Antonio Velasco, espancado por uma gangue aos 16 anos, em 1993; o

também estudante João Cláudio Leal, 20 anos, agredido por dois jovens na saída da boate em

2
Responsáveis por cortes e proibições agora se consideram discriminados. Folha de S. Paulo. 30 out.2005
Disponível em: <http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=353ASP002> Acesso em 30,
mai.2007
2000. Além de Rodrigo Toledo Aguiar, 18 anos, morto com um soco no rosto durante a 8º

Exposição Agropecuária em 2001; o incidente com Ivan Rodrigo da Silva, espancado por um

grupo de cinco pessoas em 2006; e o recente caso de violência noticiada com a adolescente

Isabela Tainara (2007)


CAPÍTULO I – UMA HISTÓRIA CULTURAL

A História Cultural ou Nova História Cultural e sua nova forma de trabalhar a cultura,

proveniente do que era chamado nos anos 70 de história das mentalidades, usa da valorização

do cotidiano e da aproximação com a micro-história, com o diferencial básico da diretriz do

simbolismo. Um modo de se perceber a cultura como significados partilhados e construídos

pela sociedade humana, passíveis de leitura a partir dos códigos e símbolos temporais num

dado recorte. Sandra Pesavento em esclarece o conceito de cultura nesse contexto :

... uma forma de expressão e tradução da realidade que se faz de forma


simbólica, ou seja, admite-se que os sentidos conferidos às palavras, às
coisas, às ações e aos atores sociais se apresentam de forma cifrada,
portanto já há um significado e uma apreciação valorativa. 3

O conjunto simbólico intrínseco ao cotidiano dinâmico, passível de análise traz ao

trabalho do historiador uma leitura conjuntural, tendo base nos pontos comuns e nas

discrepâncias das representações. Um enorme campo do imaginário coletivo com pilares nos

indivíduos, suas especificidades e memórias se abre sob essa perspectiva. A leitura do

simbólico e de sua significação implica em expandir os horizontes e salientar visões não

privilegiadas tradicionalmente.

O aspecto do simbolismo, importante da Nova História Cultural, permite uma

abordagem ampla em cima das representações discursivas, podendo inclusive contemplar a

análise da linguagem jornalística, importante documentação das representações sociais e

políticas .

3
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural.Rio Grande do Sul : UFRGS, 2003
Porém os caminhos teóricos aqui descritos usando dos instrumentos da história

cultural, do imaginário e do simbólico, não se limitarão às fontes jornalísticas que

representam imagens abrangentes sobre o estudo de memória proposto. O instrumento da

oralidade encaixa-se aqui para uma averiguação das representações mais pessoais. A

utilização dos relatos pessoais, em conjunto com a percepção que as fontes escritas também

podem ser subjetivas, permite a abertura para o uso da História Oral. Segundo Verna Alberti :

“valorizar a análise qualitativa e o relato pessoal deixou de ser visto como exclusivo de seu

autor, tornando-se capaz de transmitir uma experiência coletiva, uma visão de mundo tornada

possível em determinada configuração histórica e social”4

De acordo com Thompson5, a natureza essencialmente criativa e cooperativa do

método da história oral, resulta não somente em pensar numa mudança de enfoque, mas

também na abertura de novas áreas importantes de investigação.

Mudança de enfoque essencial na proposta temática desse trabalho, retirar o peso de

um caso policial para seu desdobrar não como resolução final, mas como desfecho no nível

das idéias e mentalidade. Da mesma forma, abranger novas áreas de investigação, tais como

memória, identidade e representação. A representação, aqui buscada sobre o caso Ana Lídia,

conceituada por o Roger Chartier consiste em:

... classificações, divisões que organizam a apreensão do mundo social


como categorias fundamentais de percepção e de apreciação do real [...]
São estes esquemas intelectuais incorporados que criam as figuras
graças às quais o presente pode adquirir sentido, o outro torna-se
inteligível e o espaço decifrado 6.

4
ALBERT, Verana. “Fontes Orais : Histórias dentro da História” in PINSKY, Carla Bassanezi(org). Fontes
Históricas. São Paulo, 2005.
5
THOMPSON, Paul. A voz do passado. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1992.
6
CHARTIER, Roger. A história cultural, entre práticas e representações. Rio de Janeiro, Ed Bertrand Brasil,
1987, p 87.
Essa representação será aqui o resultado da identidade dos indivíduos sociais,

proveniente muitas vezes dos discursos com os quais praticam o exercício do diálogo em seu

meio. O elemento da identidade é construído culturalmente, somos quem somos a partir de

referências absorvidas do meio no qual estamos inseridos. Está na narrativa a matéria prima,

porém o indivíduo e a realidade social por ele incorporada culturalmente em simbolismos é o

dinâmico objeto de estudo.

Esse dinamismo pode ser exemplificado na interferência do espaço, tempo e

movimento, da qual a memória é passível. Nas palavras de Diehl: “Tempo como força de

corrosão, espaço como lócus da experiência da rememorização e o movimento com a

estrutura simbólica da cultura são elementos constituídos da (s) memória(s) e da(s)s

identidade(s).”7

A percepção desse jogo de forças presente no caso em estudo se fará necessária para

as especificidades dos recortes feitos nos capítulos seguintes. A percepção da representação

de Brasília na década de 70, o impacto do caso à época e o posterior recorte nos dias atuais

estarão ligados por essas forças costituidoras da memória; através do desgastes, construções e

rememorizações.

7
DIEHL, Astor Antônio. Cultura historiografia : memória, identidade e representação. Bauru, SP : EDUSC,
2002. pág. 114
CAPÍTULO II – UMA HISTÓRIA LOCAL

[...] como toda cidade mítica

a origem de Brasília

se perde na noite dos tempos

tempos que as luzes do eixão

tentam iluminar[...]”

Cinco poemas – Nicolas Behr

2.1 Visões de Brasília em suas primeiras décadas

Inicialmente para se adentrar na temática do caso Ana Lídia faz-se necessário uma

ambientação da cidade de Brasília com suas peculiaridades imagéticas culturais: uma análise

da percepção simbólica da cidade de Brasília frente a seus moradores e demais cidades à

época do caso em estudo. Uma percepção do discurso que permeia a capital, a fluidez do

mesmo e sua continuidade presente.

O próprio discurso a ser analisado de Brasília está incrustado no conceito exposto por

Chauí de mito fundador : uma solução imaginária para tensões, conflitos e contrapontos que

não encontram soluções para serem resolvidos no nível do real.8 Os discursos sobre Brasília

vão homogeneizar uma visão cultural da cidade para resolver questões discrepantes tais como:

a desigualdade social entre a Cidade Livre assolada por incêndios e abuso de poder 9 e as

superquadras que os próprios moradores marginalizados ajudaram a construir.

8
CHAUÍ, Marilena. Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo : Fundação Perseu Abramo, 2000.
9
CORREIO BRAZILIENSE, 21 de abril de 2000. Brasília em 40 atos, Freddy Charlson
Antes mesmo da própria empreitada real de transferência da capital ao interior do país,

o sonho de João Bosco parece já ser um marco referencial para os adjetivos e expectativas

sobre a “terra prometida” :

Entre os graus 15 e 20, aí havia uma enseada bastante extensa e bastante


larga, que partia de um ponto onde se formava um lago. Nesse
momento disse uma voz repetidamente: — Quando se vierem a escavar
as minas escondidas em meio a estes montes, aparecerá aqui a terra
prometida, onde correrá leite e mel. Será uma riqueza inconcebível.10

Toda essa visão mística e de bem aventurança serão as bases quanto às expectativas a

respeito de Brasília. A percepção da nova capital será impregnada de referencias quanto seu

aspecto sagrado : “O traçado mágico da cidade representa um cruz sobre o chão, dando um

sentido místico...”11, assim como também mostram nos dois trechos a seguir. O primeiro de

autoria do editorial do Correio Braziliense e o segundo de diz respeito a um dos discursos de

Juscelino, os quais faziam repetidas menções a este aspecto religioso.

...se projetou muito mais ampla, no tempo e no espaço, através


de uma nova dimensão : a esta cidade caberia também a missão sagrada
de criar uma nova mentalidade12 grifos meus

...a vontade de Deus ergueu essa cidade. Com pensamento na


Cruz em que foi celebrado o Santo Sacrifício, peço ao criador que
mantenha cada vez mais coeza a unidade nacional, que nos dê sempre
esta atmosfera de paz 13 grifos meus

A respeito de sua própria construção, as visões sobre Brasília mesclam conquista e

desbravamento através de um projeto de desenvolvimento urbano modernista com a peleja e

sonhos de migrantes trabalhadores. Entre uma das inúmeras passagens do Correio Braziliense

que exemplificam essa fala a respeito da época da construção está :

10
CORREIO BRAZILIENSE 5 de agosto de 2003, Crônicas da cidade , Conceição Freitas
11
Newton Rossi: poeta e acadêmico da Academia de Letras de Brasília, tecendo comentários sobre o traço da
cidade. Citado no Correio Braziliense, caderno CIDADES. 21 de abril de 2000. pág32.
12
CORREIO BRAZILIENSE, 17 de outubro de 1973, O espírito de Brasília. Editorial
13
VASCONSELOS, José Adirson de. A epopéia da construção de Brasília. Brasília : Centro gráfico do Senado,
1989.
A construção de Brasília acontecia ao mesmo tempo em que várias
famílias encontravam ao redor da grande obra um lugar para chamar de
lar. As que se aventuravam junto com Juscelino Kubitschek propagam e
se sentem responsáveis pelo crescimento da cidade14 grifos meus

O sincretismo resultante das aspirações político-ideológicas da fundação da capital

com os sentimentos cíveis de oportunidades e expectativas trouxe a Brasília representações

diferenciais: uma de simbologia de capital do futuro, das oportunidades que mesclam-se com

a imagem mística de terra prometida, abençoada pelo divino, segundo as interpretações

decorrentes do sonho de São João Bosco. Algo que se soma à idéia clássica de uma Brasília

programada urbanisticamente nos mínimos detalhes (dos edifícios administrativos até a cor do

uniforme dos rodoviários); inundada numa idéia ufanista da época de realização grandiosa, de

modernidade.

Esses simbolismos: modernista, ordeiro e místico sobre a nova cidade vão ao encontro

de outras características tais como o centro de poder político e pluralidade cultural,

consolidando-se no imaginário coletivo brasiliense como as principais características de

Brasília. Qualidades essas que servem de referência e representação para um conteúdo que

fará parte dos discursos sobre a cidade, ora conservador e fiel às origens, ora confrontado e

reinterpretado, pois ainda de acordo com a filósofa Chauí : “Um mito fundador é aquele que

não cessa de encontrar novos meios para exprimir-se, novas linguagens, novos valores e

idéias, de tal modo que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si

mesmo”15

Em artigo escrito ao Correio Braziliense na data comemorativa do aniversário de

Brasília (21 de abril de 2007), José Roberto Arruda faz as seguintes menções a Brasília :

14
CORREIO BRAZILIENSE, 21 de abril de 2007, Os primeiros gêmemos. Redação. Pág10
15
CHAUÍ, Marilena. Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo : Fundação Perseu Abramo,
2000.
[...] O sonho é uma realidade. [...] é hoje uma cidade linda, adulta, que
traduz e sintetiza o sonho dos brasileiros de todas as regiões, de todas as
culturas, raças, religiões e origens. Brasília, capital do país, é a cidade
símbolo [...] uma cidade única e plural. Única, porque criação singular
da arquitetura e do urbanismo contemporâneo. Plural porque ponto de
encontro de pessoas e emoções que reinventaram a história do país. E
agora, olha o céu de Brasília! Ficamos 450 anos sem saber que o
Planalto Central era mágico. [...] Brasília, aos 47 anos, tem saudades do
futuro, e quando faz referências à história busca energia vital para
consolidar-se no tempo e no coração das pessoas.[...]16grifos meus

A idéia de cidade símbolo (“Capital da Esperança”) e todos seus adjetivos

supracitados se mostram presentes em vários relatos jornalísticos do Correio Braziliense

(principalmente aqueles que datam sua publicação em 21 de abril) e do mesmo modo está

presente no imaginário da população de Brasília. Essa imagem vai ser incorporada, além do

mito fundador presente nos mais variados discursos, na identidade coletiva da própria

população da nova capital. O espaço geográfico, a arquitetura e o sentimento místico de

proteção vão dar a Brasília – principalmente nos primeiros anos - características ímpares que

em dados momentos amenizam a imagem de uma cidade como as outras, amenizam a vista de

uma cidade com problemas, com violência e desigualdade social.

O caso Ana Lídia em específico vai ser um desses momentos de confronto com a

representação de Brasília. Como nas palavras de Temístocles Castro(promotor na época do

caso) referindo-se a morte de Ana Lídia: “Brasília era uma cidade leve [inaudível]. As

crianças andavam sozinhas e soltas. A partir dessa data Brasília tornou-se uma cidade igual a

outras em matéria de medo.”17

Ainda sobre esse marco imaginário, as palavras de Conceição Freitas em matéria do

Correio Braziliense :

16
CORREIO BRAZILIENSE, 21 de abril de 2007. Brasília 47
17
Entrevista concedida ao programa jornalístico LINHA DIRETA: JUSTIÇA. Exibido pela REDE GLOBO em
22 de novembro de 2007
Onze de setembro [..] está para a história das maldades humanas como
o Natal está para aquilo que nos sobra de bom. Muito antes de abalar o
mundo, o 11 de setembro feriu de morte o coração da cidade. Uma
tragédia daquelas que a gente custa a acreditar arrancou Brasília de sua
ilusão de paraíso e a jogou no mundo real. Foi o primeiro grande murro
no estômago da ilha da fantasia. 18

E também nas palavras de Eurico Rezende em sessão pelo Congresso em 1974:

“Trata-se, evidentemente do crime que maior emoção provocou em Brasília, e delito que

também teve repercussão em todo o País e, possivelmente até no exterior”19

A tragédia de Ana Lídia mostrou-se através da tragédia uma das primeiras

oportunidades de quebra brutal com os dogmas imagéticos da cidade de Brasília, na qual a

população brasiliense vai lançar novos olhares à sua cidade, um momento em que os discursos

sobre o destino maravilhoso da nova capital estarão em cheque. Impregnados de reforços e

confrontos encontram-se os símbolos de Brasília.

18
CORREIO BRAZILIENSE , 7 de setembro de 2007. ESPECIAL : ANA LÍDIA. O que fizeram com você,
menina? Conceição freitas
19
ANAIS DO CONGRESSO. LIVRO I, VOLUME I. 1974
CAPÍTULO II – UMA HISTÓRIA LOCAL

“Unidade repressora oficial,

unidade repressora oficial.

A censura, a censura.

Única entidade que ninguém censura”

Censura – Plebe Rude

2.2 O contexto político e a questão da censura

O contexto de uma cidade não se faz somente com a alteridade e imaginário social de

sua população, uma cidade (com raríssimas exceções) está intimamente ligada com a presença

do Estado. Uma presença política ainda mais forte no simbolismo quando observada a

situação da cidade em estudo: Brasília, a capital e centro do poder político institucional

durante o regime militar.

Portanto a fim de completar a contextualização de Brasília à época de 73, faz-se

necessário uma análise do momento político vivenciado pelos moradores da capital.

Em 1 de Abril de 1964, antes mesmo de Jango exilar-se, o Congresso Nacional sob

pressão com o discurso de combate ao comunismo e à corrupção fez nascer o regime militar

sob um golpe de Estado, elegendo de forma irregular o marechal Alencar Castello Branco, o

qual ficaria à frente do poder até março de 1967.

O marechal Castello Branco, assumindo a presidência impôs logo medidas necessárias

à estabilidade de um país que sofre uma intervenção pela força. Mesmo com novo regime
tentando evitar uma ruptura completa com os fundamentos constitucionais da democracia

representativa em 9 de abril de 1964 foi publicado o Ato Institucional Número Um : o

primeiro que conduziria o país ao maior período de repressão política de sua história. Sua

diretriz era suspender por dez anos os direitos políticos de todos aqueles cidadãos que

poderiam ser contrários ao regime, servindo de intimidação à oposicionista do Congresso e

enquadrando subversivos.

Dentro de poucos anos com a vinda dos outros atos, o Ato Institucional Número Cinco

(AI-5) seria o ápice dos outros atos instrumentais repressores anteriores. O decreto de lei

nº1077, de 26 de setembro de 1970 assinado à época, já pelo presidente Médici e Alfredo

Buzaid dispunha entre outras coisas que:

[...] não serão toleradas as publicações e exteriorizações contrárias à


moral e aos costumes; considerando que essa norma visa a proteger a
instituição da família, preservar-lhe os valores éticos e assegurar a
formação sadia e digna da mocidade[...]Verificada a existência de
matéria ofensiva à moral e aos bons costumes, o Ministério da Justiça
proibirá a divulgação e publicação e determinará a busca e apreensão de
todos os seus exemplares[...] O Conselho Superior de Censura, o
Departamento de Polícia Federal e os juizados de Menores, no âmbito
de suas respectivas competências, assegurarão o respeito ao disposto
neste artigo[...]20grifos meus

O AI-5 possibilitou assim o aumento da coerção estatal, tanto física na parte da

violência direta, quanto na mentalidade com a censura. Entre as diretrizes da censura escrita e

das imagens publicadas estava a proibição sumária de notícias “negativas” que prejudicassem

o Estado. Noticias negativas de um modo geral – epidemias de meningite, desabamentos,

enchentes, crimes, especialmente se os suspeitos pertencessem a “boas famílias” – deviam

desaparecer ou ser minimizadas. Segundo Cláudio Abramo: “A ditadura jogava bruto,

20
BAHIANA, Ana Maria. Almanaque anos 70. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006...
censurava o jornal, sonegava notícias, mentia, manipulava índices de custo de vida [...] Houve

um período em que não se podia acreditar em nada que saía impresso”21

Foi dentro deste contexto de repressão e forte propaganda política que se passou o

caso Ana Lídia. Durante o período, a Censura Federal transmitia determinações especificas

para as redações dos jornais. Entre os exemplos claros sobre o envolvimento de censura no

caso está a ordem que dá diretrizes sobre o pronunciamento do senador Jarbas Passarinho :

“Está liberada a divulgação do pronunciamento do senador Jarbas Passarinho(Arena- PA)

sobre o caso da menina Ana Lídia sem comentários ou referencias”22

Assim como se mostra também a censura no comentário de Edina, hoje delegada, mas

que ingressou na Polícia Federal como censora no concurso público de 1972. Lembra-se de

que, no ano seguinte, uma portaria tentou proibir a cobertura jornalística em Brasília sobre

Ana Lídia. Comenta sobre a época “Isso aconteceu porque haveria participação de filhos e

políticos no assassinato.”23

Porém, apesar de toda força repressora presente no Estado, mais especificamente no

papel da censura jornalística em cima dos relatos iniciais sobre o caso, não houve uma

silenciamento direto do crime. É possível encontrar nas páginas do Correio Braziliense, a

partir do dia seguinte ao fato, menções ao inicial seqüestro e posteriormente com o

aparecimento do corpo violentado brutalmente alusões ao “monstro solto”(19/09/73) É

preciso atentar-se aqui para a estratégia da censura mostrada por Joelma Rodrigues :

21
ABRAMO, Cláudio. A regra do jogo. O jornalismo e a ética do marceneiro. São Paulo, Companhia das
Letras, 1998.
22
DOSSIE CENSURA: 1972,1973,1974. A presença da censura na vida cotidiana da imprensa. Folha de São
Paulo. 5 mar. 1978. In Acervo on line
Disponível em : < http://almanaque.folha.uol./ilustrada_05mar1978 >. Acesso em : 06.dez. 2007
23
ÉBOLI, Evandro. Ecos da Ditadura. Observatório da Imprensa. 1 nov.2005.
Disponível em : < http://observatório.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=353ASP002>
Acesso em : 06.dez.2007
No ‘caso Ana Lídia’ [...] o crime não apenas foi divulgado como o foi
exaustivamente [...]. A censura pode ser encontrada na forma como as
narrativas foram construídas.[...] em todas as narrativas conhecidas do
‘Caso Ana Lídia’ encontramos a referência ao uso/tráfico de drogas
(principalmente a maconha) e a associação à práticas sexuais
‘desviantes/anormais’[...]24

Ainda segundo a autora, essa taxação e referências ao crime servem para degenerizar,

mascarando o ato sexual abusivo e usá-lo de maneira coercitiva frente aos inimigos do

regime: os subversivos.

Subversivos os quais ofendem à moral e aos bons costumes, os quais vão de encontro

aos valores éticos e à segurança da formação juvenil brasileira. Consequentemente, por sua

vez, confrontando a simbologia da legitimação do regime militar, das garantias

comprometidas pelo Estado, os pilares do supracitado Ato Institucional Número Cinco.

24
SILVA, Joelma Rodrigues. Amordaçadas e ruidosas : um estudo sobre estupro, assassinato e santidade de
meninas no Brasil : 1973-1996. Brasília : UNB. Pág.105
CAPÍTULO III – O CASO ANA LÍDIA

“O que fizeram com você menina?”

Conceição Freitas

Correio Braziliense, 07/11/2003

3.1 O 11 de setembro

Na terça-feira de 11 de setembro de 1973, um carro estaciona à porta do Colégio

Madre Carmen Salles na L2 Norte, trazendo Ana Lídia para as aulas de reforço do período

vespertino. A mãe, Eloyza é quem desce do carro e acompanha a filha até dentro do colégio,

retornado e partindo com o marido (Álvaro Braga) para o trabalho.

Benedito Duarte, funcionário do colégio, vê a menina chegando e nota quando um

homem alto, magro de cabelos loiros chama por Ana Lídia e sai com a mesma por um portão

lateral, sem que ela grite ou resista. A garota é vista ainda mais uma vez em outro momento

entrando num táxi vermelho.

Pelo final da tarde a empregada da família aparece para buscar a criança, mas descobre

que ela não assistira às aulas. A família é comunicada por Madre Celina, responsável pelo

colégio e com a confirmação de Eloyza de ter deixado sua filha começam as buscas. Álvaro

Braga se encaminha ao colégio, avisa ao filho Álvaro Henrique e a namorada sobre o

ocorrido, e em seguida procuram por Ana Lídia pelos arredores.

Às 17 horas a polícia é informada, as buscas se intensificam e pela noite o delegado-

chefe José Ribamar recebe um telefonema anônimo na 2ª Delegacia de Policia pedindo 2


milhões de cruzeiros. Durante o resto da noite são encontrados: os cadernos da menina

jogados à margem da pista do Grupamento de Fuzileiros Navais; além de uma carta no

supermercado SAB (408/409 Norte) endereçada a Álvaro Braga com um novo pedido de

resgate no valor de 500 mil cruzeiros.

Às 12h do dia seguinte, três policiais encontram o corpo de Ana Lídia. O

descobrimento é dedicado ao agente Antônio Morais enquanto este sentado rezava e viu um

rato entrar numa toca, com sinais de ter sido remexida recentemente.

O corpo de Ana Lídia estava numa cova rasa no descampado deserto próximo ao

Centro Olímpico da UNB, no local haviam duas camisinhas usadas, papel higiênico com

esperma e madeixas de cabelos cortados da menina, a qual foi enterrada nua, de bruços e com

a face comprimida contra o chão.

O laudo mostrou que antes de assassinada Ana Lida foi torturada. Além dos cabelos

arrancados rente ao couro, os cílios esquerdos também o foram, seu corpo estava marcado

com escoriações e manchas roxas pelo corpo (sinais que teria sido arrastada pelo cascalho).

Além disso, foi constatado que sofreu estupro depois de morta, tendo sua vagina e ânus

dilacerados.
3.2 Gritos e ecos

A fim de analisar as representações atuais e os temas paralelos à memória sobre Ana

Lídia, faz-se necessário uma digressão sobre suas bases históricas, os primeiros relatos. Esse

diálogo que será aqui travado entre a década de 70 e os dias atuais, sob interpretações

realizadas a partir da utilização dos referenciais teóricos da história cultural, permitirá a

compreensão de como surgiram muitas das atuais lembranças intrínsecas ao caso e sua

memória representativa atual. Parte-se do princípio de que para se alcançar quaisquer

perspectivas de interpretação da memória é necessário se debruçar sobre como esta surgiu e

diferenciá-la dentro do próprio conceito de lembranças.

Diehl reflete sobre as lembranças dizendo que são como :

Vivências fragmentadas, como rastros de experiências perdidas no


tempo,[...]praticamente como impossíveis de serem atualizadas
historicamente. E quando essas lembranças são atualizadas, correm o
risco de ser idealizações de vivências, podendo até mesmo ser pontos
de referência para romantizar o passado.[...] Perdem gradativamente
seus pontos de referência no tênue horizonte entre o passado e o
presente.25

Como toda rememoração é conduzida do presente, recebe deste os estímulos e procura

responder a eles, a memória do caso Ana Lídia foi construída em vários momentos, desde o

dia do crime. Assim sendo, será buscado aqui o dinamismo desse processo histórico cultural:

como foi iniciada sua construção imagética, as transformações sofridas ao longo do tempo e o

que essa memória conserva hoje, o que ela significa para os moradores de Brasília atualmente.

Como já dito no tópico anterior deste mesmo capitulo, o corpo de Ana Lídia fora

encontrado no dia seguinte ao seu desaparecimento. Desta forma, os principais relatos sobre o

25
DIEHL, Astor Antônio. Cultura historiografia : memória, identidade e representação. Bauru, SP : EDUSC,
2002 pág115.
caso darão enfoque, além da angústia da população, ao seu(s) assassino(s): sua procura; sua

motivação; e sua identidade.

Após os levantamentos iniciais a polícia começou suas investigações sobre o possível

táxi vermelho em que Ana Lídia teria entrado com seu raptor. Trezentos táxis vermelhos da

capital federal foram recolhidos e seus motoristas interrogados.26

Iniciara-se também logo depois uma nova frente com o apoio da Marinha e do

Exercito a denominada “Operação Pente Fino”, com o objetivo de vasculhar a Asa Norte

(comércios e residências) em busca de pistas, com revista de “todas as casas, apartamentos,

barracos, lojas, oficinas mecânicas, mercearias, bares e terrenos”.27

Porém os esforços do aparelho estatal, como não foram coroados de êxito, não se

mostraram suficientes para conter a crescente angustia e clamor de justiça da população. Esta,

recém retirada do conforto conferido pela sensação de ordem e segurança dada pela

representação coletiva anteriormente citada em Uma história local, sente-se violentada e

ameaçada. A quebra e o desconforto gerado pelo caso Ana Lídia é sentido desde seu

acontecimento e se acumula paulatinamente frente às infrutíferas investigações. Se

inicialmente “a sensação era de horror, de impotência, de espanto[...] de uma comoção”28, os

relatos e cartas publicadas nas semanas seguintes ao crime mostram o apelo dirigido pela

população ao próprio assassino e a vontade de ver feita justiça:

Você deve ter notado, que a grama de Brasília está mais verde. Não
pela chuva que ainda não caiu. Mas pelas lágrimas de todos nós que
moramos nesta cidade e a vimos de repente sem uma de suas flores.
[...] Nossos jardins são feitos desse mundo de criancinhas, que são os
verdadeiros habitantes de nossa cidade. E quando arrancam uma de
nossas flores, choramos. [...] Não sei como deve estar se sentindo neste

26
CORREIO BRAZILIENSE 15 de setembro de 1973. Táxis Vermelhos, chamada
27
CORREIO BRAZILIENSE 20 de setembro de 1973. Exercito e Marinha na busca de objetos pertencentes à
menina morta na Asa Norte, p.12
28
Oswaldo Montenegro em entrevista ao programa jornalístico LINHA DIRETA: JUSTIÇA
momento. Mas não posso acreditar que possa estar se sentindo com um
ser humano [...] Não acredito que você possa estar conseguindo dormir.
29

O trecho reportado acima traz consigo o imaginário corrente sobre a percepção do

população de Brasília por um próprio morador. E é claro em sua fala que os “verdadeiros

habitantes de nossa cidade” são as “criancinhas”. Por mais labuta e suor decorrente ao

candango, sua referência sempre será como o migrante trabalhador, agente externo e não

brasiliense. As crianças, essas sim, são a primeira geração de Brasília que herdará o papel de

viver a Brasília profetizada, de fazer florescer a nova mentalidade30 e expandir a atmosfera de

paz 31 .

Em “Carta a um assassino”:

Sei que esta carta vai chegar ao seu conhecimento. Ela não é somente
do autor destas linhas; é também, da população de Brasília e de muitos
brasileiros que acompanharam estarrecidos o seu crime hediondo [...]
Canalha, miserável![...] Matou uma criança inocente [...] Ela não pede a
sua morte; ela clama por justiça [...] Melhor seria que se entregasse logo
a justiça dos homens antes que alguém o descubra e faça justiça com as
próprias mãos. Como todo assassino, você também é um covarde![...]
Vá e se apresente logo, antes que seja tarde demais.32

Aqui, em nova visão de um morador da capital, a confirmação de um imaginário de

um cidade composta por pessoas unidas, uma população unida na indignação frente também

ao fim do sonho do lugar abençoado e seguro .

As supracitadas redações mostram registros da experiência emocional vivida pela

população frente ao caso, tanto quanto a sua barbárie em si, quanto ao seu desfecho vazio.

29
CORREIO BRAZILIENSE 17 de setembro de 1973. Não arranque mais uma flor. Editorial, pg. 17
30
CORREIO BRAZILIENSE, 17 de outubro de 1973, O espírito de Brasília. Editorial
31
VASCONSELOS, José Adirson de. A epopéia da construção de Brasília. Brasília: Centro gráfico do Senado,
1989. pág.217
32
CORREIO BRAZILIENSE, 17 de setembro de 1973, O espírito de Brasília. Editorial
Toda essa manifestação se mostrará tão presente a ponto de atingir até mesmo os debates do

Congresso Nacional como mostra o discurso de Nelson Carneiro :

...endereço apelo às autoridades policiais, às autoridades de segurança


desta Cidade : é que até hoje não chegou a um desfecho o doloroso
drama daquela criança de sete anos, Ana Lídia, que foi raptada,
seviciada e encontrada morta. Tenho recolhido de numerosas famílias a
angustia e a apreensão pelos resultados da impunidade dos responsáveis
por tão brutal atentado. Estou certo que o fato sensibilizou a todos,
sensibilizou também o Senhor Presidente da Republica, o Sr. Ministro
da Justiça e todas as autoridades responsáveis pela ordem pública[...].33

As frentes de investigação, direcionadas pela idéia de subversão inimiga do Estado,

que corrompe os lares e desfaz a ordem presente (diretrizes do AI-5) será associada ao

narcotráfico, o qual assume seu papel de agente externo ao País; 90% das pistas do caso de

Ana Lídia levam aos tóxicos e pederastas34. Uma linha de investigação que também vai

confrontar o imagético cultural da cidade de Brasília, a cidade da bem aventurança e

profetizada por Bosco corre perigo frente à corrupção de seus jovens pelas drogas e

comportamento pervertido. Ilustrando essa preocupação quanto a isso, se tem :

É tempo de meditar. Os fatos que se registraram ultimamente,


abalando os alicerces da cidade, forçam à meditação, para que não se
cumpra em nós a profecia bíblica dedicada a Jerusalém, da qual não há
de ficar pedra sobre pedra. E no rol dos perigos que ameaçam o
aniquilamento do espírito de Brasília, desponta em primeiro lugar o
fantasma das drogas, que já não se constitui numa simples perspectiva
e, sim, num fato concreto, numa chaga já aberta, dolorosa35

O crime cometido contra a menina de sete anos será taxado de crime contra as

famílias, contra a segurança nacional; contra a própria Nação : “em face dos reflexos

negativos ao bem-estar de toda uma coletividade e das repercussões negativas que se projetou

no cenário nacional”36. Ainda mais :

33
ANAIS DO CONGRESSO LIVRO I , VOLUME 9, pg 406. 1974
34
VEJA. Eles são os que mais necessitam de Cristo, porque lá está a maioria dos viciados de Brasília. 17 de
outubro de 1973. nº267, p34
35
CORREIO BRAZILIENSE 17 de outubro de 1973. O espírito de Brasília. Editorial
36
CORREIO BRAZILIENSE, 2 de novembro de 1973. Polícia desarticula rede de traficantes
[...]profundamente atingidos pelo brutal seqüestro e assassinato
da menor Ana Lídia Braga, vem apelar à autoridade do ministério da
Justiça no sentido que o autor dessa ignomínia, eventualmente, seja
processado e julgado na forma do Decreto-Lei nº898, de 29 de setembro
de 1969[..]‘os crimes dessa natureza’ [...] podem e devem ser
caracterizados como atentatórios à Segurança e à Ordem Política e
Social. Atingem o País violentamente na mais estável de suas
instituições – a Família.”37

Todas essas implicações de socializar o crime e expandi-lo à sociedade auxiliarão

ainda mais na apropriação emocional de experiência coletiva da população brasiliense. Porém

o fato de se associar ao uso de drogas e práticas sexuais condenáveis, reduzindo um pouco os

limites da imagem do assassino, sem o sentenciar por seu crime verdadeiramente, ainda não

supre a angustia, o medo e o vazio. E é nesse vazio de justiça, de delegação de culpados que

se vão fomentar os primórdios da “boataria”; boatos gerados muitas vezes na necessidade de

suprir a realidade vaga e sem sentido. A romantização dessas lembranças, com o intuito de

imaginar uma solução ao menos ao nível das mentalidades e representações vai se dar no

caminho desse vácuo de impunidade:

...o silêncio completo sobre o assunto pode levar à errônea conclusão de


que as autoridades policiais perderam o interesse pelo caso, ou à
circulação dos mais descontrolados boatos. [...] Fala-se na descoberta
do criminoso, de criminosos e de cúmplices, citam-se nomes, afirmam-
se a influencia de personalidades de destaque no abafar do episódio. A
‘boataria está solta, nas artérias da cidade, nos estabelecimentos
comerciais, nos escritórios, nas repartições públicas, nos lares, de
ouvido a ouvido, de grupo a grupo. Circulam as versões mais
desencontradas, aumentando a angustia dos familiares da inditosa
criança e reacendendo a preocupação de todo o povo brasiliense. Os
boatos são incontroláveis. Impossível é se saber como surgem, de onde
surgem e quem os lançou. Mas acabam ganhando foros de veracidade,
se ninguém lhes contrapõe a verdade. Na sua circulação, o condicional
é logo substituído pela afirmação. E o que alguém lançou como
hipótese, verossímel[sic] ou não, passa a ganhar foros de fé jurada. No
ponto a que chegou a situação de boataria, envolvendo nomes e
enxovalhando reputações, impões um esclarecimento por parte da
secretaria de Segurança.38

37
CORREIO BRAZILIENSE 14 de setembro de 1973
38
CORREIO BRAZILIENSE , 28 de setembro de 1973. Boatos a desfazer. Editorial
Abrem-se aqui várias análises. O trecho acima publicado no Correio Braziliense (em

28 de setembro de 1973) fora citado novamente no Congresso, durante o discurso de Nelson

Carneiro39 em nova cobrança das autoridades. O que mais chama atenção nessa fala é o

aparecimento, além dos boatos em si, da alusão ao envolvimento de personalidades. Quem

seriam essas personalidades?

De acordo com o jornalista Renato Riella: “ a acusação era que o filho do ministro da

justiça [Alfredo Buzaid] e do senador Rezende estariam envolvidos com o tráfico de droga e

por conseqüência com a morte de Ana Lídia.”

O processo de envolvimento de filhos de personalidades políticas por via dos boatos

ocorreu com a própria diretriz de investigação ao envolvimento de narcóticos no crime contra

a menina Ana Lídia. Pois como na opinião de um delegado regional da Polícia Federal : “O

aumento da oferta de drogas é conseqüência direta do aumento da demanda. O consumo de

drogas é movido a dinheiro e poder. E Brasília tem os dois de sobra.”40

Tal representação da participação de filhos de políticos ligados ao governo ditatorial

vigente deve-se também diretamente aos próprios “temores do Ministro”. Alfredo Buzaid

esteve contra a criação de uma CPI para investigar a fundo as redes de tráfico de drogas na

capital brasiliense, inflamada pela opinião pública de se achar os culpados do caso Ana Lídia.

Suas justificativas eram que o Governo já dispunha de instrumentos legais suficientemente


41
para solucionar o problema. Para reafirmar tal posição colocou-se disposto até mesmo a

renunciar de seu cargo político.

Além da contrariedade à CPI, segundo João Carneiro Ulhôa (promotor designado para

defesa na época) em entrevista ao Correio Braziliense, comenta o pedido do Ministério

39
ANAIS DO CONGRESSO LIVRO I , VOLUME I , págs. 96-97.
40
CORREIO BRAZILIENSE 16 de abril de 2000
41
VEJA, 12 de setembro de 1973, p27.
Publico, no qual era solicitado para que a Polícia Federal investigasse mais profundamente os

filhos de autoridade. O pedido fora negado novamente pelo Ministério da Justiça,

representado na pessoa de Alfredo Buzaid.42 Dessa forma não é de se espantar que se

consolidassem até hoje os boatos surgidos na época.

O crescimento dos boatos frente ao silêncio dos frutos das investigações policiais fora

corroborado também pelo próprio Correio Braziliense, de forma propositada ou não,

dirigindo-se às pessoas de Álvaro Henrique (irmão de Ana Lídia) e Alexandre Duque (amigo

da família) respectivamente :

Tendo problemas com sua namorada, que engravidara pela segunda


vez, Henrique encarregou-se de passar uma partilha de marijuana.
Depois de descontar sua comissão, deveria entregar o valor das vendas
aos três outros, mas não o fez, utilizando o dinheiro no aborto
provocado em sua namorada. Como advertência, o bando decidiu
seqüestrar Aninha. Henrique deveria entregar o dinheiro aos seus três
parceiros, ou sua irmã seria assassinada. Henrique não atendeu. O
desfecho toda cidade e, logo, todo o Brasil já conhece.43grifos meus

[Duque] foi aposentado do DASP, por ter sido constatado, em laudo


médico, ser toxicômano, manifestando taras sexuais quando sob efeitos
de drogas [...] conhecido como bebedor, além de viciado em tóxicos. 44

Tal afirmação mostra primeiramente a leitura mais uma vez do crime como

relacionado ao tráfico de drogas local, a distribuição e consumo de maconha que se

implantava em Brasília. Porém é na segunda metade da referencia à Álvaro em que se afirma

duas vezes a participação de três cúmplices no seqüestro, e posterior estupro/morte de sua

irmã Ana Lídia. O jornal afirma claramente, além da participação de cúmplices, o número

exato dos mesmos: três.

42
CORREIO BRAZILIENSE. As falhas de um crime impune
43
CORREIO BRAZILIENSE, 29 de setembro de 1973. Caso Ana Lídia tem 3 suspeitos.
44
CORREIO BRAZILIENSE, 30 de setembro de 1973. Aglair insiste que não matou Ana Lídia
Tal afirmação e as especulações populares da época vão convergir como aspectos

constitutivos da representação do caso Ana Lídia, mostram-se pontos comuns associados na

memória do caso: drogas, impunidade e os nomes de Álvaro Henrique, Raimundo Duque,

Alfredo Buzaid Jr. e Eduardo Ribeiro de Rezende.

Destaca-se para essas afirmações a convicção em muitos relatos, tais como o de

Francisco Pedro Araújo em entrevista45: “Tinha [sic] pessoas envolvidas. Tinha [sic] pessoas

importantes, filhos de ministros que foram mencionados na época”.

Em entrevista durante este trabalho o vocalista Daniel de Almeida, da banda

brasiliense Metrópole Locomotiva diz sobre o caso:

A história que meu pai havia contado não tinha detalhes; ele
simplesmente tinha dito que a menina havia sido morta por pessoas
importantes de Brasília: filhos de ministros e senadores; e que eles
nunca haviam sido presos. Difícil foi saber alguns detalhes sórdidos da
história um pouco depois, quando tinha 14, da violência sexual e da
tortura. Mas até mais ou menos a época que eu escrevi a música (2003,
eu acho), eu não tinha noção mais real do que realmente havia
acontecido. Essa estória tem uma aura mitológica e distante em volta
dela. Todo mundo sabe o que aconteceu com a menina; mas ninguém
fala no assunto e nem discute mais profundamente. É uma espécie de
tabu compartilhado pelas pessoas comuns do Plano Piloto46

Sobre os filhos de personalidades da época completa :

Cara, os personagens centrais da trama eram filhos de gente do


altíssimo escalão, da cúpula central do governo Médici. E, por uma não
tão estranha coincidência, filhos de alguns dos políticos mais violentos
e reacionários da época. Um era o Eduardo Rezende, filho de Eurico
Rezende, praticamente o líder do ARENA depois de Felinto Muller. E o
outro era filho de Alfredo Buzaid, nada menos que o ministro da
justiça! Eu acho que, em meus poucos anos de vida e sociologia, eu
nunca vi um assassinato tão brutal e covarde, com tanta crueldade. Esta
história me tira o sono até hoje. E eu digo para você, trata-se do maior
caso de impunidade declarada que eu tenho conhecimento. Talvez este
seja um dos maiores disparates cometidos pela ditadura militar. E isso
em várias esferas: a legal, pois a justiça foi deturpada de modo
45
Em entrevista concedida ao programa jornalístico LINHA DIRETA : JUSTIÇA. Transmitido pela REDE
GLOBO em 22 de novembro de 2007
46
ANEXO I – Entrevista com Daniel de Almeida
grosseiro e caricatural; a social, pois mostra que Brasília era uma terra
sem limites para estas pessoas; a moral, pois se trata de uma violência
como eu nunca vi e me choca que, por mais violento que seja, um pai
queira salvar a pele de um filho desta estirpe. Para mim, um político
que salva a pele de um filho como este, é tão culpado e cruel quanto o
próprio. Este caso é uma fotografia fidedigna do lixo, da podridão, do
nojo que foi o governo Médici.

Concluindo esses aspectos representacionais acerca do caso Ana Lídia, percebe-se a

constituição de tais lembranças e como elas se mostram presentes ainda hoje. Sua presença

mostra-se às vezes tão consistente que parece realizar-se a preocupação quanto aos boatos, já

supracitada: “acabam ganhando foros de veracidade, se ninguém lhes contrapõe a verdade.”

Ao ponto tal de serem tomados como verdades absolutas, publicados e disseminados. Em seu

Almanaque anos 70, Ana Maria Bahiana refere-se ao caso :

Em Brasília 11 de setembro de 1973, a menina Ana Lídia Braga,


de 7 anos, foi seqüestrada e morta. Ana Lídia foi raptada por seu irmão,
Álvaro Henrique Braga, na época com 20 anos de idade, a namorada
dele, Gilma Varela de Albuquerque, e Raimundo Duque, um conhecido
traficante. Segundo as investigação, Álvaro teria levado Ana Lídia ao
sitio do então vice-líder da Arena no Senado, Eurico Rezende, situado
em Sobradinho, uma cidade satélite de Brasília. Testemunhas disseram
que, à noite, Álvaro e a namorada saíram e deixaram a menina com
Alfredo Buzaid Júnior, Eduardo Rezende (filho do senador, dono do
sítio) e Raimundo. Quando voltaram ao sítio, encontraram Ana Lídia
morta. O caso extremamente polêmico, especialmente em Brasília, foi
abafado na imprensa – o principal suspeito, Alfredo Buzaid, era filho do
então ministro da Justiça47

De toda forma, tal trecho exemplifica a força com que esses aspectos de impunidade
deliberada e representações pessoais foram apropriados no imaginário cultural. E o peso que
antigas afirmações ainda carregam, podendo ser até descritas como próprias memórias.

47
BAHIANA, Ana Maria. Almanaque anos 70. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. pág. 80.
3.2 A ascensão da santidade

Ao tratar da memória do caso Ana Lídia outro aspecto percebido refere-se à imagem

da própria menina em si. Uma imagem ligada sim à brutalidade do crime, sua impunidade,

mas por si só uma faceta inédita como item cultural: sua representação como “santa”.

A partir do conceito extraído da obra Dicionário de Simbologia, os ‘santos’ podem ser

definidos como :

Originalmente pessoas com força misteriosa, distinguidas nas religiões


superiores por moralidade e vida piedosa[...] A veneração cristã aos
santos teve origem no culto aos mártires, que eram vistos como o
próprio símbolo do sofrimento, da morte e da vitória de Cristo48 (grifos
meus)

Com base nesse conceito, a análise a seguir sobre a representação da menina Ana

Lídia terá como pontos os itens grifados acima: força misteriosa, vida piedosa e símbolo de

sofrimento e da morte. Nos capítulos anteriores foi realçada muitas vezes a brutalidade do

crime, justificando suficientemente o fato de seu martírio ter se transformado em símbolo de

sofrimento e morte. A seguir serão analisados os demais pontos ainda em aberto de sua

imagem.

A expectativa sobre o que tinha ocorrido com a menina, o envolvimento de todos em

torno do caso, os habitantes de Brasília aguardando notícias, a família ansiosa, os policiais

concentrados em seu trabalho, a aparência delicada e bonita da menina, as descrições que dela

faziam os que a conheciam, tudo isso contribuiu para que se criasse uma aura em torno da

48
LURKER, Manford. Dicionário de Simbologia. Tradução : Mario Krauss. São Paulo : Martins Fontes,
2005.pág 629.
imagem de Ana Lídia. Ainda hoje isso é reconhecido, o que podemos perceber pela fala de

Daniel Almeida sobre o ocorrido: “ estória [que] tem uma aura mitológica”49

Durante a busca do corpo de Ana Lídia tem-se o seguinte relato publicado em 13 de

setembro 1973:

Depois de investigações que duraram a noite toda, os homens da SEP


iniciaram ainda no fim da madrugada de ontem, por volta das 5 horas,
as buscas [...]Às 13 horas, os policiais Hermes, Teotônio e Moraes
descobriram o cadáver. O primeiro passo neste sentido foi dado por
Moraes, que, segundo ele, estava sentado orando a Deus, quando
passou um rato e entrou numa toca que estava quase tapada por terra,
com sinais de ter sido remexida recentemente. Desconfiado, Moraes
pegou um pedaço de pau e revolveu a terra. Os seus dois companheiros
imediatamente acorreram ao local, e encontraram o corpo[...]50

Tem-se aqui o primeiro ar de misticismo que vai englobar a construção da santidade

de Ana Lídia. A menina havia sido encontrada por alguém que estava “orando a Deus”, graças

à intervenção divina, seu corpo deveria ser encontrado. Ainda sobre as associações religiosas,

segue em outro relato de alguém que se dirigia ao assassino:

Para qualquer lado que olhe, estará vendo o rosto angelical daquela que
nunca fez mal. Pelo contrário, até na hora que você foi apanhá-la na
escola ela lhe recebeu com um sorriso. E aquele sorriso bastaria, para
que você se transformasse, em um homem melhor. Mas não quis.
Preferiu retribuir aquele sorriso, com um ato de desumanidade. De
desamor. E tirou-a de nós. Sem saber, a entregou a Deus.51

A imagem por si só de uma criança de 7 anos, loira, que estudava numa escola regida

por freiras talvez fosse suficiente para se associar a um pequeno anjo. Temos entre as várias

representações de anjos, quadros e pinturas com crianças puras, de olhar profundo e

49
Trecho da entrevista com Daniel de Almeida, encontrada na integra nos anexos deste trabalho
50
CORREIO BRAZILIENSE 13 de setembro de 1973. Polícia encontra morta a menor raptada
51
CORREIO BRAZILIENSE 17 de setembro de 1973. Carta a um assassino
esclarecido e é exatamente isso que encontraremos nas imagens de Ana Lídia. Entre suas

fotos publicadas posteriormente em manchetes e cadernos especiais não haverá em nenhuma

delas a imagem de Ana Lídia correndo, brincando ou mesmo sorrindo. Ana Lídia sempre

estará a encarar seu interlocutor, séria e de olhar compenetrado, passível de uma visão que

corrobore com uma força misteriosa. A escolha dessas fotos já indica que a imagem que se

fazia dela e que se queria perpetuar era a de uma criança especial. Essa escolha também indica

que os veículos de comunicação haviam encampado a idéia de sensibilizar a população contra

o crime em questão.

A citação supracitada referindo-se ao assassino e sua relação com a menina afirmam

que ela teria sorrido para seu algoz. Independente de estar prevendo seu fim ou não, e

sorrindo para a morte, como um cordeiro em sacrifício, o sorriso de Ana Lídia é qualificado

com o poder de mudar a atitude desumana de seu malfeitor. A menina “de rosto angelical[...]

que nunca fez mal” sorri para seu assassino, como se já o perdoasse previamente. Uma ação

superior de piedade sobrenatural, usando do perdão; virtude base do cristianismo. Ela é

apresentada e sentida como tendo sentimentos e atitudes incompatíveis com os de uma

menina qualquer: ela tinha um poder diferente.

Porém o assassino não se comoveu, insistiu em sua ação. Mas a frase final da citação

nos mostra que ele “Sem saber, a entregou a Deus”. Sem saber, o assassino teria feito a

vontade de deus? Afinal o deus cristão escreve certo por linhas tortas. Independente da

resposta, ali estava concretizado a ascensão da já apelidada Aninha aos céus. A ação do

assassino também é minimizada nessa passagem, pois afinal, ele foi o algoz, mas não teria

sido ele a cumprir providencialmente os desígnios divinos? Não estaria ele, como instrumento

dessa vontade superior, também sofrendo por isso? Não teria sido um grande sacrifício e
sofrimento pelo qual teve que passar para cumprir essa vontade superior e abrir o caminho

para a santificação da menina?

Em um soneto publicado no Correio Braziliense segue uma nova alusão ao perdão e

uma das primeiras referências a sua santidade:

Ana lídia perdoa, assassino cruel


Pede que você se debruce no túmulo
E se suicide, bebendo seu fel.
Que sua culpa não ficará sem acúmulo.

Vamos, se acuse, tenha coragem


De reduzir sua culpa, porque seu crime
Sua crueldade sumirá na voragem
Do tempo que corre mas não redime.

Olha sua imagem, Santa ela representa


Hoje ela é uma virgem dolente
Sua figura de monstro lhe afugenta

Essa linda criança que você sacrificou


Guarda sua máscara em sua mente
Na cruz que você a crucificou52

O poema supracitado está impregnado de sentimentos e alusões religiosas sobre o

caso. Nele também está um dos pontos principais do conceito de “santos” supracitado,

relacionado aos cultos dos mártires, vistos como se fossem o próprio símbolo do sofrimento

de Cristo. E que símbolo de sofrimento melhor para se fazer parecer ao próprio Cristo, do que

a ultima estrofe?

A imagem representacional de Ana Lídia vinculada a sua santidade, já tendo como

base todos os pontos supracitados, foi noticiada pela primeira vez em 1976 com a atribuição

52
Soneto deixado sobre o túmulo de Ana Lídia no aniversário do quarto ano de sua morte publicado pelo Correio
Braziliense em 03 de novembro de 1973.
de um milagre. Na manchete : “Ana Lídia opera milagre e cura doente” 53. Esse dado é

fundamental para a análise da construção de sua imagem como de uma santa, pois uma

característica de santidade é a sua capacidade de fazer milagres, de cuidar das pessoas, de

aliviar sofrimentos. Mas o que se tem hoje sobre esse lado do caso Ana Lídia?

O entrevistado Daniel de Almeida, que compôs a canção “Conversa com os espíritos”

conta como teve contato pela primeira vez com a história de Ana Lídia. Seu relato revela que

sua família compartilhava com boa parte da população de Brasília o imaginário da santidade

da menina. Seu pai o levou ao cemitério e ele se recorda de que:

A gente visitou o túmulo dela no dia de finados. Eu lembro muito bem:


o túmulo dela parecia uma espécie de altar, com pessoas rezando e até
fazendo pedidos. No meu imaginário de criança, ela era uma espécie de
santo. Na verdade mais fantasma do que santo. Fiquei cinco noites sem
dormir. 54

As descrições do dia de finados e as visitas ao cemitério Campo da Esperança de

Brasília, noticiadas pelo Correio Braziliense também trazem referência ao túmulo-altar de

Ana Lídia. Entre outras especificações, o túmulo da menina sempre está entre os mais

visitados, ocasionalmente recebendo mais visitas que o fundador da capital Juscelino

Kubistsheck e sua esposa Sarah55.

De forma geral a imagem relatada do túmulo está associada à variedade religiosa

brasileira. É notada a sua semelhança com um altar pagão, pois as pessoas levam oferendas,

presentes, tais como doces e bonecas56, mas também ela recebe outros tipos de homenagens,

como as prestadas aos santos católicos que é a oração: e rezam a Ana Lídia.
53
SILVA, Joelma Rodrigues. Amordaçadas e ruidosas : um estudo sobre estupro, assassinato e santidade de
meninas no Brasil : 1973-1996. Brasília : UNB. Pág.261
54
Arquivo pessoal
55
CORREIO BRAZILIENSE, 3 de novembro de 2006. Cemitérios recebem 500 mil visitantes. Adriana
Bernades. Pág 22 e CEMITÈRIOS do DF recebem 500mil visitantes. Tribuna do Brasil. 3 de novembro de 2005.
Disponível em : < http://www.tribunadobrasil.com.br/?ntc=6012&ned=1486> Acesso em : 6 set.2006
56
CORREIO BRAZILIENSE, 3 de novembro de 2006. Cemitérios recebem 500 mil visitantes. Adriana
Bernades. Pág 22.
“A santa pagã de Brasília [...] a quem se recorre para aliviar os muitos tormentos da

vida” 57 surgiu através de um processo coletivo cultural onde os relatos de milagres noticiados

com o passar dos anos pelo Correio, junto aos que visitam seu túmulo, vão corroborar a

principal característica atribuída a Ana Lídia : o perdão. Essa tônica aparece realçando sua

santidade: “Ela não quer vingança. Ela quer o perdão, para que todos perdoem os

responsáveis por sua morte. Isso vai torná-la, ainda mais pura. Enquanto todo o trabalho

existir para a vingança, vai ficar muito difícil descobrir o assassino”.58

O que leva à atribuição de santidade, muitas vezes independe do que a pessoa fez, é

muito mais relacionado ao que cada sociedade teme ou necessita. Ana Lídia não se fez santa

por si só. Muito da carga emocional da época, do impacto da violência de que foi vítima e a

impunidade com que foram agraciados os envolvidos contribuíram para que se misturassem

esperança e desilusão. O sonho de Brasília estava desfeito, mas quem sabe a solução do caso

não traria a paz de volta? Quem sabe tanto sofrimento não contribuiria para aliviar outras

tensões? Quem sabe uma menina não teria sido sacrificada para que a cidade se redimisse de

tanta hipocrisia? Esperança e desilusão serão então componentes básicos, vão ajudar a forjar a

representação mítica em torno do caso de Ana Lídia. Essas conclusões nos encaminham para

o outro elemento presente no processo de criação da aura de santidade em torno da menina.

Além da brutalidade e desfecho do caso em si, a sua mitificação deve muito ao

próprio local onde este caso ocorreu: Brasília. A capital e sua representação cultural de mítica,

fundadora de uma nova época, ungida por Deus, abre precedente para a possibilidade de uma

santa brasiliense no imaginário populacional. Uma santa vinda do sacrifício de uma criança;

porém um sacrifício necessário para se fazer mostrar a degeneração da população jovem da

capital, sua corrupção frente as drogas e o comprometimento dos lares; seu afastamento de

57
CORREIO BRAZILIENSE , 7 de setembro de 2007. ESPECIAL : ANA LÍDIA. O que fizeram com você,
menina? Conceição Freitas
58
CORREIO BRAZILIENSE, 3 de novembro de 1987. Ana Lídia : outra multidão
Deus. Brasília e sua população pecadora estão sendo punidos. Estão recebendo um exemplo

punitivo, forte, perpassado por muita dor e do sacrifício, um batismo de sangue, algo para não

mais se esquecer, algo para se evitar se quiser de volta a paz e a felicidade que a construção

da cidade prometeu.

Ana Lídia e seu túmulo-altar estão incutidos nas representações de Brasília como um

mito fundador. Um mito fundador, segundo Chauí é “uma solução imaginária para tensões,

conflitos e contrapontos que não encontram soluções para serem resolvidos no nível do

real”. Ela indica que as sociedades necessitam construir mitos que iniciem uma tradição em

busca de elementos importantes para a constituição do grupo. De acordo com esses conceitos,

faz-se claro o papel do mito construído em torno de Ana Lídia e sua transformação em santa

protetora das crianças, protetora de Brasília.

A mitificação de Ana Lídia faz-se necessária no nível cultural para amenizar a tensão

coletiva da população brasiliense, uma tensão e desconforto decorrente do vácuo de

impunidade sofrido por esta tanto à época do crime quanto atualmente.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pudemos observar por essa pesquisa, fazendo uso dos conceitos de representação e

mito fundador, a origem da percepção de Brasília como uma cidade otimista, coberta por um

futuro promissor e sua estreita relação religiosa ligada à proteção de sua população imaculada.

O caso Ana Lídia mostrado aqui como ruptura brutal deste contexto é o crime

inaugural da capital. O peso de sua repercussão, mesmo dentro da ditadura militar e nas

décadas posteriores à queda do regime ditatorial, será sentido pelo coletivo da cidade e

transformado em inconformismo frente a sua impunidade.

Um inconformismo interpretado nos campos culturais que, com base nas lembranças e

memórias atestadas pela população da cidade, nos mostra sua face e instrumentos para sua

própria solução.

Assim sendo, o processo cultural impulsionado pelo caso se desdobra com força igual

em dois campos distintos. O primeiro político-social na intenção de suprir a impunidade do

crime com o apontamento de nomes de personalidades políticas, através da validação de

boatos como verdades. O segundo no aspecto religioso, no qual a população buscou seu

conforto espiritual através da mitificação de Ana Lídia, e na imagem construída sobre sua

santidade e perdão ao assassino.

Formas ambas que em conjunto e/ou separadamente dão fim à tensão causada pela

ruptura imagética do equilíbrio pacífico conferido à cidade, permitindo a ela não se desfazer

de sua áurea mítica fundadora.


BIBLIOGRAFIA

ABRAMO, Cláudio. A regra do jogo. O jornalismo e a ética do marceneiro. São Paulo,

Companhia das Letras, 1998.

ALBERT, Verana. “Fontes Orais : Histórias dentro da História” in PINSKY, Carla

Bassanezi(org). Fontes Históricas. São Paulo, 2005.

BAHIANA, Ana Maria. Almanaque anos 70. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.

CHARTIER, Roger. A história cultural, entre práticas e representações. Rio de Janeiro, Ed

Bertrand Brasil, 1987.

CHAUÍ, Marilena. Brasil. Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo : Fundação

Perseu Abramo, 2000.

DIEHL, Astor Antônio. Cultura historiografia : memória, identidade e representação. Bauru,

SP : EDUSC, 2002

GONZALES, Suely, Frando Neto. “ As formas da segregação residencial em Brasília” in

PAVIANI, Aldo. Brasília em questão – espaço urbano, ideologia e realidade. São Paulo,

Projetos Editores Associados, 1985

LURKER, Manford. Dicionário de Simbologia. Tradução : Mario Krauss. São Paulo :

Martins Fontes, 2005.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural.Rio Grande do Sul : UFRGS,

2003

THOMPSON, Paul. A voz do passado. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1992.


VASCONSELOS, José Adirson de. A epopéia da construção de Brasília. Brasília .Centro

gráfico do Senado, 1989.

SILVA, Joelma Rodrigues. Amordaçadas e ruidosas : um estudo sobre estupro, assassinato e

santidade de meninas no Brasil : 1973-1996. Brasília : UNB.


ANEXO I

Entrevista sobre Ana Lídia com Daniel Kirjner ( 20/11/2007)

1- Nome Completo

Daniel de Almeida Pinto Kirjner

2- Idade

23 anos

3- Escolaridade

Graduando em sociologia (formando agora)

4- Ocupação

Músico

5- Como foi a primeira vez que ouviu/leu sobre o caso Ana Lídia?O que sentiu a respeito?

Meu pai me contou a estória quando eu tinha nove anos. Neste ano, agente visitou o
túmulo dela no dia de finados. Eu lembro muito bem: o túmulo dela parecia uma espécie de
altar, com pessoas rezando e até fazendo pedidos. No meu imaginário de criança, ela era uma
espécie de santo. Na verdade mais fantasma do que santo. Fiquei cinco noites sem dormir.

6- Levando em consideração que não viveu a época do caso, descreva um pouco da(das)
narrativa(as) atual(ais) com que teve contato sobre o caso Ana Lídia.

A história que meu pai havia contado não tinha detalhes; ele simplesmente tinha dito
que a menina havia sido morta por pessoas importantes de Brasília: filhos de ministros e
senadores; e que eles nunca haviam sido presos. Difícil foi saber alguns detalhes sórdidos da
história um pouco depois, quando tinha 14, da violência sexual e da tortura. Mas até mais ou
menos a época que eu escrevi a música (2003, eu acho), eu não tinha noção mais real do que
realmente havia acontecido. Essa estória tem uma aura mitológica e distante em volta dela.
Todo mundo sabe o que aconteceu com a menina; mas ninguém fala no assunto e nem discute
mais profundamente. É uma espécie de tabu compartilhado pelas pessoas comuns do Plano
Piloto.

7- Já ouviu sobre nomes de personalidades importantes em meio à narrativa do caso

Ana Lídia? Em caso de afirmação positiva: O que pensas a respeito?


Cara, os personagens centrais da trama eram filhos de gente do altíssimo escalão, da
cúpula central do governo Médici. E, por uma não tão estranha coincidência, filhos de alguns
dos políticos mais violentos e reacionários da época. Um era o Eduardo Rezende, filho de
Eurico Rezende, praticamente o líder do ARENA depois de Felinto Muller. E o outro era filho
de Alfredo Buzaid, nada menos que o ministro da justiça! Eu acho que, em meus poucos anos
de vida e sociologia, eu nunca vi um assassinato tão brutal e covarde, com tanta crueldade.
Esta história me tira o sono até hoje. E eu digo para você, trata-se do maior caso de
impunidade declarada que eu tenho conhecimento. Talvez este seja um dos maiores disparates
cometidos pela ditadura militar. E isso em várias esferas: a legal, pois a justiça foi deturpada
de modo grosseiro e caricatural; a social, pois mostra que Brasília era uma terra sem limites
para estas pessoas; a moral, pois se trata de uma violência como eu nunca vi e me choca que,
por mais violento que seja, um pai queira salvar a pele de um filho desta estirpe. Para mim,
um político que salva a pele de um filho como este, é tão culpado e cruel quanto o próprio.
Este caso é uma fotografia fidedigna do lixo, da podridão, do nojo que foi o governo Médici.

Ouvi também boatos sobre o envolvimento de Fernando Collor e até de Luiz Estevão;
mas isso, creio que não passou de especulação.

8- Sobre a música "Conversa com os Espíritos", qual foi sua inspiração e intenção com a
mesma?

Quando ocorreu o assassinato da Liana Friedenbach, eu relacionei aquilo que estava


acontecendo muito com a Ana Lídia Braga, não sei porque. De certa forma, estes dois
acontecimentos não saíam da minha cabeça. Quando estava sozinho, eu demorava a dormir,
não conseguia ler direito, nem estudar. Tinha dias que eu não dormia nada. Ficou uma
situação meio difícil, uma tristeza muito intensa que eu não conseguia me livrar. Foi aí que eu
comecei a compor a harmonia da música, fiquei alguns meses trabalhando nela. Quando
terminei, tentei botar letra várias vezes e não consegui; com certeza eu rasguei umas trezentas
folhas de papel tentando escrevê-la. Mas um dia eu acordei meio afobado, no meio da noite,
não lembro se tinha sonhado alguma coisa ou não, e escrevi a letra e o Poema para a Liana
sem mudar uma linha sequer. Era como se eu tivesse composto dormindo, ou que alguém
tivesse me ajudado, um espírito quem sabe. Esta hipótese não pode ser levada muito a serio,
por mais que eu acredite nela, por que ela é resultado da idealização que construí, enquanto
criança, da Ana Lídia Braga. Para mim, ela é a figura que chega mais próxima, no meu
imaginário, do que as pessoas adoram como santos: ela é um mártir, um símbolo da minha
própria humanidade e também da minha identidade brasiliense. Neste sentido, a música é uma
espécie de oração. Nela, eu estou conversando com o espírito de Ana Lídia Braga e contando
sobre a minha tristeza em relação à morte de Liana Friedenbach, como se ela fosse uma
espécie de espírito superior e idealizado, que olha pelas meninas mortas em situações
extremas. Outra coisa importante a se dizer é que no poema dos últimos segundo de Liana,
muito da carga emocional e do relato dela se mistura com a do caso Ana Lídia. Você pode
notar que o relato do poema serviria também para a morte da Ana Lídia, mas trata-se de um
relato de uma adolescente e não de uma criança pequena. Ana Lídia, para mim, é uma figura
distante e uma história que me causa uma tristeza que nada foi capaz de causar até hoje.
9- Que tipo de retorno os ouvintes da música "Conversa com os Espíritos" lhe mostraram a
respeito do tema abordado pela canção.

Cara, se existe esse negócio de "obra-prima", eu não tenho a menor dúvida


que essa é a minha. Não acho que qualquer música que eu vá compor vai ter a força e a beleza
desta. Eu já vi muitas pessoas chorarem nos shows da Metrópole Locomotiva quando o som
está bom o suficiente para escutar a letra. No FINCA, eu via as pessoas chorarem na minha
frente; é uma experiência que não tem como descrever. Minha irmã falou que tinha um cara
bombado do lado dela que começou a chorar e saiu pq não conseguia disfarçar mais. Foi um
dia intenso demais esse, maravilhoso. Recentemente, tive outra enorme satisfação: a família
da Liana Friedenbach elogiou a música. Cara, isso foi o máximo na minha carreira de
compositor.
ANEXO II – Fotos

Imagens exibidas pelo programa LINHA DIRETA: Justiça. Exibido pela REDE
GLOBO, em 22 de novembro de 2007

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