Professional Documents
Culture Documents
Curso de História
Disciplina: Monografia II
DA VIOLÊNCIA À MITIFICAÇÃO
Brasília
2007
Ana Lídia
Depois de te violar
Ana Lídia
Agradeço também a minha orientadora Helen Ulhôa por sua paciência e confiança em
meu trabalho.
E por último e não menos importante a todos meus amigos que me deram força e
fizeram parte desse percurso inovador e importante em minha vida: Adriana, Antonio, Carlo,
Érika, Hugo, Karlla, Leandro, Leonardo, Marcelo, Rodrigo, Sérgio, Thiago e Willians. Além
INTRODUÇÂO...............................................................................................................05
3.1 O 11 de setembro...................................................................................20
CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................................38
BIBLIOGRAFIA.............................................................................................................39
ANEXOS.........................................................................................................................40
INTRODUÇÃO
A proposta pesquisa visa analisar alguns aspectos do caso Ana Lídia. Este caso,
ocorrido na década de 70, portanto, durante o regime militar, foi extremamente polêmico.
Trata-se de uma menina de sete anos, raptada, estuprada e morta. Supostamente por jovens da
classe média, filhos de pessoas ligadas ao poder na esfera federal. Este caso, nunca
solucionado e já arquivado, repercute até hoje, pois Ana Lídia passou a ser cultuada e alguns
atribuem a ela poderes miraculosos. Podemos afirmar que ela faz parte da história da cidade e
de Brasília, durante a década de 70, é possível desenhar um esboço sobre como foi dada e
absorvida a experiência do caso Ana Lídia pela população, e entender como esta o guarda na
O contexto desse estudo tem sua origem na prévia de Brasília modelo, pensada e
continuidade de sua construção dada por Castelo Branco e os demais militares, a cidade ainda
tinha no começo dos anos setenta uma infra-estrutura incipiente, com falta de asfaltamento e
grama, alem de várias áreas desabitadas. Exemplos para uma visualização da cidade
inacabada podem ser citados como: em 1971 estaria sendo inaugurada a primeira etapa do
Conjunto Nacional; no ano de setenta e seis do mesmo decênio as duas asas (sul e norte)
possuíam apenas 50% de suas áreas ocupadas1; por fim, o Parque da Cidade só seria
inaugurado no ano de setenta e oito. O mesmo que atualmente, em um de seus setores, presta
homenagem por nome ao caso estudado. À época da ocorrência, a capital estava da mesma
forma como o resto do país, sob o regime militar e seu rigor. A nova capital do Brasil estava
1
GONZALES, Suely, Frando Neto. “ As formas da segregação residencial em Brasília” in PAVIANI, Aldo.
Brasília em questão – espaço urbano, ideologia e realidade. São Paulo, Projetos Editores Associados, 1985
diretamente influenciada pelas ferramentas do poder. A Universidade de Brasília (UnB) já
alinhar com os censores padrões do regime e mais posteriormente com uma portaria proibindo
Todos esses informes servem para desenhar a situação de Brasília nos meados de
setenta e aproximar-se da reação e sentimento para quando surge o mais impactante caso de
violência brutal dos primeiros anos da nova cidade: em 11 de setembro de 1973, dentro do
Plano Piloto; a menina Ana Lídia de sete anos é seqüestrada, estuprada e posteriormente
morta, sendo encontrada numa vala rasa próxima ao seu colégio tendo como principal
Cabe ressaltar-se aqui, que o estudo do caso Ana Lídia nesse trabalho não pretende dar
conta de todo o processo composto por milhares de páginas, mas tentar resgatar imagens e
Trata-se, portanto de uma pesquisa que trabalha com a memória de fatos e com as
representações sociais que a construíram, embasada por fontes dos discursos jornalísticos,
vezes incompreensíveis para quem não viveu ou conheceu com maior profundidade o caso e a
violência que chocaram e ainda chocam a cidade de Brasília e seus moradores. Casos como o
estudante Marco Antonio Velasco, espancado por uma gangue aos 16 anos, em 1993; o
também estudante João Cláudio Leal, 20 anos, agredido por dois jovens na saída da boate em
2
Responsáveis por cortes e proibições agora se consideram discriminados. Folha de S. Paulo. 30 out.2005
Disponível em: <http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=353ASP002> Acesso em 30,
mai.2007
2000. Além de Rodrigo Toledo Aguiar, 18 anos, morto com um soco no rosto durante a 8º
Exposição Agropecuária em 2001; o incidente com Ivan Rodrigo da Silva, espancado por um
grupo de cinco pessoas em 2006; e o recente caso de violência noticiada com a adolescente
A História Cultural ou Nova História Cultural e sua nova forma de trabalhar a cultura,
proveniente do que era chamado nos anos 70 de história das mentalidades, usa da valorização
pela sociedade humana, passíveis de leitura a partir dos códigos e símbolos temporais num
trabalho do historiador uma leitura conjuntural, tendo base nos pontos comuns e nas
discrepâncias das representações. Um enorme campo do imaginário coletivo com pilares nos
privilegiadas tradicionalmente.
políticas .
3
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural.Rio Grande do Sul : UFRGS, 2003
Porém os caminhos teóricos aqui descritos usando dos instrumentos da história
oralidade encaixa-se aqui para uma averiguação das representações mais pessoais. A
utilização dos relatos pessoais, em conjunto com a percepção que as fontes escritas também
podem ser subjetivas, permite a abertura para o uso da História Oral. Segundo Verna Alberti :
“valorizar a análise qualitativa e o relato pessoal deixou de ser visto como exclusivo de seu
autor, tornando-se capaz de transmitir uma experiência coletiva, uma visão de mundo tornada
método da história oral, resulta não somente em pensar numa mudança de enfoque, mas
um caso policial para seu desdobrar não como resolução final, mas como desfecho no nível
das idéias e mentalidade. Da mesma forma, abranger novas áreas de investigação, tais como
memória, identidade e representação. A representação, aqui buscada sobre o caso Ana Lídia,
4
ALBERT, Verana. “Fontes Orais : Histórias dentro da História” in PINSKY, Carla Bassanezi(org). Fontes
Históricas. São Paulo, 2005.
5
THOMPSON, Paul. A voz do passado. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1992.
6
CHARTIER, Roger. A história cultural, entre práticas e representações. Rio de Janeiro, Ed Bertrand Brasil,
1987, p 87.
Essa representação será aqui o resultado da identidade dos indivíduos sociais,
proveniente muitas vezes dos discursos com os quais praticam o exercício do diálogo em seu
referências absorvidas do meio no qual estamos inseridos. Está na narrativa a matéria prima,
movimento, da qual a memória é passível. Nas palavras de Diehl: “Tempo como força de
identidade(s).”7
A percepção desse jogo de forças presente no caso em estudo se fará necessária para
de Brasília na década de 70, o impacto do caso à época e o posterior recorte nos dias atuais
estarão ligados por essas forças costituidoras da memória; através do desgastes, construções e
rememorizações.
7
DIEHL, Astor Antônio. Cultura historiografia : memória, identidade e representação. Bauru, SP : EDUSC,
2002. pág. 114
CAPÍTULO II – UMA HISTÓRIA LOCAL
a origem de Brasília
tentam iluminar[...]”
Inicialmente para se adentrar na temática do caso Ana Lídia faz-se necessário uma
ambientação da cidade de Brasília com suas peculiaridades imagéticas culturais: uma análise
época do caso em estudo. Uma percepção do discurso que permeia a capital, a fluidez do
O próprio discurso a ser analisado de Brasília está incrustado no conceito exposto por
Chauí de mito fundador : uma solução imaginária para tensões, conflitos e contrapontos que
não encontram soluções para serem resolvidos no nível do real.8 Os discursos sobre Brasília
vão homogeneizar uma visão cultural da cidade para resolver questões discrepantes tais como:
a desigualdade social entre a Cidade Livre assolada por incêndios e abuso de poder 9 e as
8
CHAUÍ, Marilena. Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo : Fundação Perseu Abramo, 2000.
9
CORREIO BRAZILIENSE, 21 de abril de 2000. Brasília em 40 atos, Freddy Charlson
Antes mesmo da própria empreitada real de transferência da capital ao interior do país,
o sonho de João Bosco parece já ser um marco referencial para os adjetivos e expectativas
Toda essa visão mística e de bem aventurança serão as bases quanto às expectativas a
respeito de Brasília. A percepção da nova capital será impregnada de referencias quanto seu
aspecto sagrado : “O traçado mágico da cidade representa um cruz sobre o chão, dando um
sentido místico...”11, assim como também mostram nos dois trechos a seguir. O primeiro de
sonhos de migrantes trabalhadores. Entre uma das inúmeras passagens do Correio Braziliense
10
CORREIO BRAZILIENSE 5 de agosto de 2003, Crônicas da cidade , Conceição Freitas
11
Newton Rossi: poeta e acadêmico da Academia de Letras de Brasília, tecendo comentários sobre o traço da
cidade. Citado no Correio Braziliense, caderno CIDADES. 21 de abril de 2000. pág32.
12
CORREIO BRAZILIENSE, 17 de outubro de 1973, O espírito de Brasília. Editorial
13
VASCONSELOS, José Adirson de. A epopéia da construção de Brasília. Brasília : Centro gráfico do Senado,
1989.
A construção de Brasília acontecia ao mesmo tempo em que várias
famílias encontravam ao redor da grande obra um lugar para chamar de
lar. As que se aventuravam junto com Juscelino Kubitschek propagam e
se sentem responsáveis pelo crescimento da cidade14 grifos meus
diferenciais: uma de simbologia de capital do futuro, das oportunidades que mesclam-se com
decorrentes do sonho de São João Bosco. Algo que se soma à idéia clássica de uma Brasília
programada urbanisticamente nos mínimos detalhes (dos edifícios administrativos até a cor do
uniforme dos rodoviários); inundada numa idéia ufanista da época de realização grandiosa, de
modernidade.
Esses simbolismos: modernista, ordeiro e místico sobre a nova cidade vão ao encontro
Brasília. Qualidades essas que servem de referência e representação para um conteúdo que
fará parte dos discursos sobre a cidade, ora conservador e fiel às origens, ora confrontado e
reinterpretado, pois ainda de acordo com a filósofa Chauí : “Um mito fundador é aquele que
não cessa de encontrar novos meios para exprimir-se, novas linguagens, novos valores e
idéias, de tal modo que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si
mesmo”15
Brasília (21 de abril de 2007), José Roberto Arruda faz as seguintes menções a Brasília :
14
CORREIO BRAZILIENSE, 21 de abril de 2007, Os primeiros gêmemos. Redação. Pág10
15
CHAUÍ, Marilena. Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo : Fundação Perseu Abramo,
2000.
[...] O sonho é uma realidade. [...] é hoje uma cidade linda, adulta, que
traduz e sintetiza o sonho dos brasileiros de todas as regiões, de todas as
culturas, raças, religiões e origens. Brasília, capital do país, é a cidade
símbolo [...] uma cidade única e plural. Única, porque criação singular
da arquitetura e do urbanismo contemporâneo. Plural porque ponto de
encontro de pessoas e emoções que reinventaram a história do país. E
agora, olha o céu de Brasília! Ficamos 450 anos sem saber que o
Planalto Central era mágico. [...] Brasília, aos 47 anos, tem saudades do
futuro, e quando faz referências à história busca energia vital para
consolidar-se no tempo e no coração das pessoas.[...]16grifos meus
(principalmente aqueles que datam sua publicação em 21 de abril) e do mesmo modo está
presente no imaginário da população de Brasília. Essa imagem vai ser incorporada, além do
mito fundador presente nos mais variados discursos, na identidade coletiva da própria
proteção vão dar a Brasília – principalmente nos primeiros anos - características ímpares que
em dados momentos amenizam a imagem de uma cidade como as outras, amenizam a vista de
O caso Ana Lídia em específico vai ser um desses momentos de confronto com a
caso) referindo-se a morte de Ana Lídia: “Brasília era uma cidade leve [inaudível]. As
crianças andavam sozinhas e soltas. A partir dessa data Brasília tornou-se uma cidade igual a
Correio Braziliense :
16
CORREIO BRAZILIENSE, 21 de abril de 2007. Brasília 47
17
Entrevista concedida ao programa jornalístico LINHA DIRETA: JUSTIÇA. Exibido pela REDE GLOBO em
22 de novembro de 2007
Onze de setembro [..] está para a história das maldades humanas como
o Natal está para aquilo que nos sobra de bom. Muito antes de abalar o
mundo, o 11 de setembro feriu de morte o coração da cidade. Uma
tragédia daquelas que a gente custa a acreditar arrancou Brasília de sua
ilusão de paraíso e a jogou no mundo real. Foi o primeiro grande murro
no estômago da ilha da fantasia. 18
“Trata-se, evidentemente do crime que maior emoção provocou em Brasília, e delito que
população brasiliense vai lançar novos olhares à sua cidade, um momento em que os discursos
18
CORREIO BRAZILIENSE , 7 de setembro de 2007. ESPECIAL : ANA LÍDIA. O que fizeram com você,
menina? Conceição freitas
19
ANAIS DO CONGRESSO. LIVRO I, VOLUME I. 1974
CAPÍTULO II – UMA HISTÓRIA LOCAL
A censura, a censura.
O contexto de uma cidade não se faz somente com a alteridade e imaginário social de
sua população, uma cidade (com raríssimas exceções) está intimamente ligada com a presença
do Estado. Uma presença política ainda mais forte no simbolismo quando observada a
pressão com o discurso de combate ao comunismo e à corrupção fez nascer o regime militar
sob um golpe de Estado, elegendo de forma irregular o marechal Alencar Castello Branco, o
à estabilidade de um país que sofre uma intervenção pela força. Mesmo com novo regime
tentando evitar uma ruptura completa com os fundamentos constitucionais da democracia
primeiro que conduziria o país ao maior período de repressão política de sua história. Sua
diretriz era suspender por dez anos os direitos políticos de todos aqueles cidadãos que
enquadrando subversivos.
Dentro de poucos anos com a vinda dos outros atos, o Ato Institucional Número Cinco
(AI-5) seria o ápice dos outros atos instrumentais repressores anteriores. O decreto de lei
violência direta, quanto na mentalidade com a censura. Entre as diretrizes da censura escrita e
das imagens publicadas estava a proibição sumária de notícias “negativas” que prejudicassem
20
BAHIANA, Ana Maria. Almanaque anos 70. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006...
censurava o jornal, sonegava notícias, mentia, manipulava índices de custo de vida [...] Houve
Foi dentro deste contexto de repressão e forte propaganda política que se passou o
caso Ana Lídia. Durante o período, a Censura Federal transmitia determinações especificas
para as redações dos jornais. Entre os exemplos claros sobre o envolvimento de censura no
caso está a ordem que dá diretrizes sobre o pronunciamento do senador Jarbas Passarinho :
Assim como se mostra também a censura no comentário de Edina, hoje delegada, mas
que ingressou na Polícia Federal como censora no concurso público de 1972. Lembra-se de
que, no ano seguinte, uma portaria tentou proibir a cobertura jornalística em Brasília sobre
Ana Lídia. Comenta sobre a época “Isso aconteceu porque haveria participação de filhos e
políticos no assassinato.”23
papel da censura jornalística em cima dos relatos iniciais sobre o caso, não houve uma
preciso atentar-se aqui para a estratégia da censura mostrada por Joelma Rodrigues :
21
ABRAMO, Cláudio. A regra do jogo. O jornalismo e a ética do marceneiro. São Paulo, Companhia das
Letras, 1998.
22
DOSSIE CENSURA: 1972,1973,1974. A presença da censura na vida cotidiana da imprensa. Folha de São
Paulo. 5 mar. 1978. In Acervo on line
Disponível em : < http://almanaque.folha.uol./ilustrada_05mar1978 >. Acesso em : 06.dez. 2007
23
ÉBOLI, Evandro. Ecos da Ditadura. Observatório da Imprensa. 1 nov.2005.
Disponível em : < http://observatório.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=353ASP002>
Acesso em : 06.dez.2007
No ‘caso Ana Lídia’ [...] o crime não apenas foi divulgado como o foi
exaustivamente [...]. A censura pode ser encontrada na forma como as
narrativas foram construídas.[...] em todas as narrativas conhecidas do
‘Caso Ana Lídia’ encontramos a referência ao uso/tráfico de drogas
(principalmente a maconha) e a associação à práticas sexuais
‘desviantes/anormais’[...]24
Ainda segundo a autora, essa taxação e referências ao crime servem para degenerizar,
mascarando o ato sexual abusivo e usá-lo de maneira coercitiva frente aos inimigos do
regime: os subversivos.
Subversivos os quais ofendem à moral e aos bons costumes, os quais vão de encontro
aos valores éticos e à segurança da formação juvenil brasileira. Consequentemente, por sua
24
SILVA, Joelma Rodrigues. Amordaçadas e ruidosas : um estudo sobre estupro, assassinato e santidade de
meninas no Brasil : 1973-1996. Brasília : UNB. Pág.105
CAPÍTULO III – O CASO ANA LÍDIA
Conceição Freitas
3.1 O 11 de setembro
Madre Carmen Salles na L2 Norte, trazendo Ana Lídia para as aulas de reforço do período
vespertino. A mãe, Eloyza é quem desce do carro e acompanha a filha até dentro do colégio,
homem alto, magro de cabelos loiros chama por Ana Lídia e sai com a mesma por um portão
lateral, sem que ela grite ou resista. A garota é vista ainda mais uma vez em outro momento
Pelo final da tarde a empregada da família aparece para buscar a criança, mas descobre
que ela não assistira às aulas. A família é comunicada por Madre Celina, responsável pelo
colégio e com a confirmação de Eloyza de ter deixado sua filha começam as buscas. Álvaro
supermercado SAB (408/409 Norte) endereçada a Álvaro Braga com um novo pedido de
descobrimento é dedicado ao agente Antônio Morais enquanto este sentado rezava e viu um
rato entrar numa toca, com sinais de ter sido remexida recentemente.
O corpo de Ana Lídia estava numa cova rasa no descampado deserto próximo ao
Centro Olímpico da UNB, no local haviam duas camisinhas usadas, papel higiênico com
esperma e madeixas de cabelos cortados da menina, a qual foi enterrada nua, de bruços e com
O laudo mostrou que antes de assassinada Ana Lida foi torturada. Além dos cabelos
arrancados rente ao couro, os cílios esquerdos também o foram, seu corpo estava marcado
com escoriações e manchas roxas pelo corpo (sinais que teria sido arrastada pelo cascalho).
Além disso, foi constatado que sofreu estupro depois de morta, tendo sua vagina e ânus
dilacerados.
3.2 Gritos e ecos
Lídia, faz-se necessário uma digressão sobre suas bases históricas, os primeiros relatos. Esse
diálogo que será aqui travado entre a década de 70 e os dias atuais, sob interpretações
compreensão de como surgiram muitas das atuais lembranças intrínsecas ao caso e sua
responder a eles, a memória do caso Ana Lídia foi construída em vários momentos, desde o
dia do crime. Assim sendo, será buscado aqui o dinamismo desse processo histórico cultural:
como foi iniciada sua construção imagética, as transformações sofridas ao longo do tempo e o
que essa memória conserva hoje, o que ela significa para os moradores de Brasília atualmente.
Como já dito no tópico anterior deste mesmo capitulo, o corpo de Ana Lídia fora
encontrado no dia seguinte ao seu desaparecimento. Desta forma, os principais relatos sobre o
25
DIEHL, Astor Antônio. Cultura historiografia : memória, identidade e representação. Bauru, SP : EDUSC,
2002 pág115.
caso darão enfoque, além da angústia da população, ao seu(s) assassino(s): sua procura; sua
táxi vermelho em que Ana Lídia teria entrado com seu raptor. Trezentos táxis vermelhos da
Iniciara-se também logo depois uma nova frente com o apoio da Marinha e do
Exercito a denominada “Operação Pente Fino”, com o objetivo de vasculhar a Asa Norte
Porém os esforços do aparelho estatal, como não foram coroados de êxito, não se
mostraram suficientes para conter a crescente angustia e clamor de justiça da população. Esta,
recém retirada do conforto conferido pela sensação de ordem e segurança dada pela
ameaçada. A quebra e o desconforto gerado pelo caso Ana Lídia é sentido desde seu
relatos e cartas publicadas nas semanas seguintes ao crime mostram o apelo dirigido pela
Você deve ter notado, que a grama de Brasília está mais verde. Não
pela chuva que ainda não caiu. Mas pelas lágrimas de todos nós que
moramos nesta cidade e a vimos de repente sem uma de suas flores.
[...] Nossos jardins são feitos desse mundo de criancinhas, que são os
verdadeiros habitantes de nossa cidade. E quando arrancam uma de
nossas flores, choramos. [...] Não sei como deve estar se sentindo neste
26
CORREIO BRAZILIENSE 15 de setembro de 1973. Táxis Vermelhos, chamada
27
CORREIO BRAZILIENSE 20 de setembro de 1973. Exercito e Marinha na busca de objetos pertencentes à
menina morta na Asa Norte, p.12
28
Oswaldo Montenegro em entrevista ao programa jornalístico LINHA DIRETA: JUSTIÇA
momento. Mas não posso acreditar que possa estar se sentindo com um
ser humano [...] Não acredito que você possa estar conseguindo dormir.
29
população de Brasília por um próprio morador. E é claro em sua fala que os “verdadeiros
habitantes de nossa cidade” são as “criancinhas”. Por mais labuta e suor decorrente ao
candango, sua referência sempre será como o migrante trabalhador, agente externo e não
brasiliense. As crianças, essas sim, são a primeira geração de Brasília que herdará o papel de
paz 31 .
Em “Carta a um assassino”:
Sei que esta carta vai chegar ao seu conhecimento. Ela não é somente
do autor destas linhas; é também, da população de Brasília e de muitos
brasileiros que acompanharam estarrecidos o seu crime hediondo [...]
Canalha, miserável![...] Matou uma criança inocente [...] Ela não pede a
sua morte; ela clama por justiça [...] Melhor seria que se entregasse logo
a justiça dos homens antes que alguém o descubra e faça justiça com as
próprias mãos. Como todo assassino, você também é um covarde![...]
Vá e se apresente logo, antes que seja tarde demais.32
um cidade composta por pessoas unidas, uma população unida na indignação frente também
população frente ao caso, tanto quanto a sua barbárie em si, quanto ao seu desfecho vazio.
29
CORREIO BRAZILIENSE 17 de setembro de 1973. Não arranque mais uma flor. Editorial, pg. 17
30
CORREIO BRAZILIENSE, 17 de outubro de 1973, O espírito de Brasília. Editorial
31
VASCONSELOS, José Adirson de. A epopéia da construção de Brasília. Brasília: Centro gráfico do Senado,
1989. pág.217
32
CORREIO BRAZILIENSE, 17 de setembro de 1973, O espírito de Brasília. Editorial
Toda essa manifestação se mostrará tão presente a ponto de atingir até mesmo os debates do
que corrompe os lares e desfaz a ordem presente (diretrizes do AI-5) será associada ao
narcotráfico, o qual assume seu papel de agente externo ao País; 90% das pistas do caso de
Ana Lídia levam aos tóxicos e pederastas34. Uma linha de investigação que também vai
profetizada por Bosco corre perigo frente à corrupção de seus jovens pelas drogas e
O crime cometido contra a menina de sete anos será taxado de crime contra as
famílias, contra a segurança nacional; contra a própria Nação : “em face dos reflexos
negativos ao bem-estar de toda uma coletividade e das repercussões negativas que se projetou
33
ANAIS DO CONGRESSO LIVRO I , VOLUME 9, pg 406. 1974
34
VEJA. Eles são os que mais necessitam de Cristo, porque lá está a maioria dos viciados de Brasília. 17 de
outubro de 1973. nº267, p34
35
CORREIO BRAZILIENSE 17 de outubro de 1973. O espírito de Brasília. Editorial
36
CORREIO BRAZILIENSE, 2 de novembro de 1973. Polícia desarticula rede de traficantes
[...]profundamente atingidos pelo brutal seqüestro e assassinato
da menor Ana Lídia Braga, vem apelar à autoridade do ministério da
Justiça no sentido que o autor dessa ignomínia, eventualmente, seja
processado e julgado na forma do Decreto-Lei nº898, de 29 de setembro
de 1969[..]‘os crimes dessa natureza’ [...] podem e devem ser
caracterizados como atentatórios à Segurança e à Ordem Política e
Social. Atingem o País violentamente na mais estável de suas
instituições – a Família.”37
limites da imagem do assassino, sem o sentenciar por seu crime verdadeiramente, ainda não
supre a angustia, o medo e o vazio. E é nesse vazio de justiça, de delegação de culpados que
suprir a realidade vaga e sem sentido. A romantização dessas lembranças, com o intuito de
imaginar uma solução ao menos ao nível das mentalidades e representações vai se dar no
37
CORREIO BRAZILIENSE 14 de setembro de 1973
38
CORREIO BRAZILIENSE , 28 de setembro de 1973. Boatos a desfazer. Editorial
Abrem-se aqui várias análises. O trecho acima publicado no Correio Braziliense (em
Carneiro39 em nova cobrança das autoridades. O que mais chama atenção nessa fala é o
De acordo com o jornalista Renato Riella: “ a acusação era que o filho do ministro da
justiça [Alfredo Buzaid] e do senador Rezende estariam envolvidos com o tráfico de droga e
a menina Ana Lídia. Pois como na opinião de um delegado regional da Polícia Federal : “O
vigente deve-se também diretamente aos próprios “temores do Ministro”. Alfredo Buzaid
esteve contra a criação de uma CPI para investigar a fundo as redes de tráfico de drogas na
capital brasiliense, inflamada pela opinião pública de se achar os culpados do caso Ana Lídia.
Além da contrariedade à CPI, segundo João Carneiro Ulhôa (promotor designado para
39
ANAIS DO CONGRESSO LIVRO I , VOLUME I , págs. 96-97.
40
CORREIO BRAZILIENSE 16 de abril de 2000
41
VEJA, 12 de setembro de 1973, p27.
Publico, no qual era solicitado para que a Polícia Federal investigasse mais profundamente os
O crescimento dos boatos frente ao silêncio dos frutos das investigações policiais fora
dirigindo-se às pessoas de Álvaro Henrique (irmão de Ana Lídia) e Alexandre Duque (amigo
da família) respectivamente :
Tal afirmação mostra primeiramente a leitura mais uma vez do crime como
irmã Ana Lídia. O jornal afirma claramente, além da participação de cúmplices, o número
42
CORREIO BRAZILIENSE. As falhas de um crime impune
43
CORREIO BRAZILIENSE, 29 de setembro de 1973. Caso Ana Lídia tem 3 suspeitos.
44
CORREIO BRAZILIENSE, 30 de setembro de 1973. Aglair insiste que não matou Ana Lídia
Tal afirmação e as especulações populares da época vão convergir como aspectos
Francisco Pedro Araújo em entrevista45: “Tinha [sic] pessoas envolvidas. Tinha [sic] pessoas
A história que meu pai havia contado não tinha detalhes; ele
simplesmente tinha dito que a menina havia sido morta por pessoas
importantes de Brasília: filhos de ministros e senadores; e que eles
nunca haviam sido presos. Difícil foi saber alguns detalhes sórdidos da
história um pouco depois, quando tinha 14, da violência sexual e da
tortura. Mas até mais ou menos a época que eu escrevi a música (2003,
eu acho), eu não tinha noção mais real do que realmente havia
acontecido. Essa estória tem uma aura mitológica e distante em volta
dela. Todo mundo sabe o que aconteceu com a menina; mas ninguém
fala no assunto e nem discute mais profundamente. É uma espécie de
tabu compartilhado pelas pessoas comuns do Plano Piloto46
constituição de tais lembranças e como elas se mostram presentes ainda hoje. Sua presença
mostra-se às vezes tão consistente que parece realizar-se a preocupação quanto aos boatos, já
Ao ponto tal de serem tomados como verdades absolutas, publicados e disseminados. Em seu
De toda forma, tal trecho exemplifica a força com que esses aspectos de impunidade
deliberada e representações pessoais foram apropriados no imaginário cultural. E o peso que
antigas afirmações ainda carregam, podendo ser até descritas como próprias memórias.
47
BAHIANA, Ana Maria. Almanaque anos 70. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. pág. 80.
3.2 A ascensão da santidade
Ao tratar da memória do caso Ana Lídia outro aspecto percebido refere-se à imagem
da própria menina em si. Uma imagem ligada sim à brutalidade do crime, sua impunidade,
mas por si só uma faceta inédita como item cultural: sua representação como “santa”.
definidos como :
Com base nesse conceito, a análise a seguir sobre a representação da menina Ana
Lídia terá como pontos os itens grifados acima: força misteriosa, vida piedosa e símbolo de
sofrimento e da morte. Nos capítulos anteriores foi realçada muitas vezes a brutalidade do
sofrimento e morte. A seguir serão analisados os demais pontos ainda em aberto de sua
imagem.
concentrados em seu trabalho, a aparência delicada e bonita da menina, as descrições que dela
faziam os que a conheciam, tudo isso contribuiu para que se criasse uma aura em torno da
48
LURKER, Manford. Dicionário de Simbologia. Tradução : Mario Krauss. São Paulo : Martins Fontes,
2005.pág 629.
imagem de Ana Lídia. Ainda hoje isso é reconhecido, o que podemos perceber pela fala de
Daniel Almeida sobre o ocorrido: “ estória [que] tem uma aura mitológica”49
setembro 1973:
de Ana Lídia. A menina havia sido encontrada por alguém que estava “orando a Deus”, graças
à intervenção divina, seu corpo deveria ser encontrado. Ainda sobre as associações religiosas,
Para qualquer lado que olhe, estará vendo o rosto angelical daquela que
nunca fez mal. Pelo contrário, até na hora que você foi apanhá-la na
escola ela lhe recebeu com um sorriso. E aquele sorriso bastaria, para
que você se transformasse, em um homem melhor. Mas não quis.
Preferiu retribuir aquele sorriso, com um ato de desumanidade. De
desamor. E tirou-a de nós. Sem saber, a entregou a Deus.51
A imagem por si só de uma criança de 7 anos, loira, que estudava numa escola regida
por freiras talvez fosse suficiente para se associar a um pequeno anjo. Temos entre as várias
49
Trecho da entrevista com Daniel de Almeida, encontrada na integra nos anexos deste trabalho
50
CORREIO BRAZILIENSE 13 de setembro de 1973. Polícia encontra morta a menor raptada
51
CORREIO BRAZILIENSE 17 de setembro de 1973. Carta a um assassino
esclarecido e é exatamente isso que encontraremos nas imagens de Ana Lídia. Entre suas
delas a imagem de Ana Lídia correndo, brincando ou mesmo sorrindo. Ana Lídia sempre
estará a encarar seu interlocutor, séria e de olhar compenetrado, passível de uma visão que
corrobore com uma força misteriosa. A escolha dessas fotos já indica que a imagem que se
fazia dela e que se queria perpetuar era a de uma criança especial. Essa escolha também indica
o crime em questão.
que ela teria sorrido para seu algoz. Independente de estar prevendo seu fim ou não, e
sorrindo para a morte, como um cordeiro em sacrifício, o sorriso de Ana Lídia é qualificado
com o poder de mudar a atitude desumana de seu malfeitor. A menina “de rosto angelical[...]
que nunca fez mal” sorri para seu assassino, como se já o perdoasse previamente. Uma ação
Porém o assassino não se comoveu, insistiu em sua ação. Mas a frase final da citação
nos mostra que ele “Sem saber, a entregou a Deus”. Sem saber, o assassino teria feito a
vontade de deus? Afinal o deus cristão escreve certo por linhas tortas. Independente da
resposta, ali estava concretizado a ascensão da já apelidada Aninha aos céus. A ação do
assassino também é minimizada nessa passagem, pois afinal, ele foi o algoz, mas não teria
sido ele a cumprir providencialmente os desígnios divinos? Não estaria ele, como instrumento
dessa vontade superior, também sofrendo por isso? Não teria sido um grande sacrifício e
sofrimento pelo qual teve que passar para cumprir essa vontade superior e abrir o caminho
caso. Nele também está um dos pontos principais do conceito de “santos” supracitado,
relacionado aos cultos dos mártires, vistos como se fossem o próprio símbolo do sofrimento
de Cristo. E que símbolo de sofrimento melhor para se fazer parecer ao próprio Cristo, do que
a ultima estrofe?
base todos os pontos supracitados, foi noticiada pela primeira vez em 1976 com a atribuição
52
Soneto deixado sobre o túmulo de Ana Lídia no aniversário do quarto ano de sua morte publicado pelo Correio
Braziliense em 03 de novembro de 1973.
de um milagre. Na manchete : “Ana Lídia opera milagre e cura doente” 53. Esse dado é
fundamental para a análise da construção de sua imagem como de uma santa, pois uma
aliviar sofrimentos. Mas o que se tem hoje sobre esse lado do caso Ana Lídia?
conta como teve contato pela primeira vez com a história de Ana Lídia. Seu relato revela que
sua família compartilhava com boa parte da população de Brasília o imaginário da santidade
Ana Lídia. Entre outras especificações, o túmulo da menina sempre está entre os mais
brasileira. É notada a sua semelhança com um altar pagão, pois as pessoas levam oferendas,
presentes, tais como doces e bonecas56, mas também ela recebe outros tipos de homenagens,
como as prestadas aos santos católicos que é a oração: e rezam a Ana Lídia.
53
SILVA, Joelma Rodrigues. Amordaçadas e ruidosas : um estudo sobre estupro, assassinato e santidade de
meninas no Brasil : 1973-1996. Brasília : UNB. Pág.261
54
Arquivo pessoal
55
CORREIO BRAZILIENSE, 3 de novembro de 2006. Cemitérios recebem 500 mil visitantes. Adriana
Bernades. Pág 22 e CEMITÈRIOS do DF recebem 500mil visitantes. Tribuna do Brasil. 3 de novembro de 2005.
Disponível em : < http://www.tribunadobrasil.com.br/?ntc=6012&ned=1486> Acesso em : 6 set.2006
56
CORREIO BRAZILIENSE, 3 de novembro de 2006. Cemitérios recebem 500 mil visitantes. Adriana
Bernades. Pág 22.
“A santa pagã de Brasília [...] a quem se recorre para aliviar os muitos tormentos da
vida” 57 surgiu através de um processo coletivo cultural onde os relatos de milagres noticiados
com o passar dos anos pelo Correio, junto aos que visitam seu túmulo, vão corroborar a
principal característica atribuída a Ana Lídia : o perdão. Essa tônica aparece realçando sua
santidade: “Ela não quer vingança. Ela quer o perdão, para que todos perdoem os
responsáveis por sua morte. Isso vai torná-la, ainda mais pura. Enquanto todo o trabalho
O que leva à atribuição de santidade, muitas vezes independe do que a pessoa fez, é
muito mais relacionado ao que cada sociedade teme ou necessita. Ana Lídia não se fez santa
por si só. Muito da carga emocional da época, do impacto da violência de que foi vítima e a
impunidade com que foram agraciados os envolvidos contribuíram para que se misturassem
esperança e desilusão. O sonho de Brasília estava desfeito, mas quem sabe a solução do caso
não traria a paz de volta? Quem sabe tanto sofrimento não contribuiria para aliviar outras
tensões? Quem sabe uma menina não teria sido sacrificada para que a cidade se redimisse de
tanta hipocrisia? Esperança e desilusão serão então componentes básicos, vão ajudar a forjar a
representação mítica em torno do caso de Ana Lídia. Essas conclusões nos encaminham para
próprio local onde este caso ocorreu: Brasília. A capital e sua representação cultural de mítica,
fundadora de uma nova época, ungida por Deus, abre precedente para a possibilidade de uma
santa brasiliense no imaginário populacional. Uma santa vinda do sacrifício de uma criança;
capital, sua corrupção frente as drogas e o comprometimento dos lares; seu afastamento de
57
CORREIO BRAZILIENSE , 7 de setembro de 2007. ESPECIAL : ANA LÍDIA. O que fizeram com você,
menina? Conceição Freitas
58
CORREIO BRAZILIENSE, 3 de novembro de 1987. Ana Lídia : outra multidão
Deus. Brasília e sua população pecadora estão sendo punidos. Estão recebendo um exemplo
punitivo, forte, perpassado por muita dor e do sacrifício, um batismo de sangue, algo para não
mais se esquecer, algo para se evitar se quiser de volta a paz e a felicidade que a construção
da cidade prometeu.
Ana Lídia e seu túmulo-altar estão incutidos nas representações de Brasília como um
mito fundador. Um mito fundador, segundo Chauí é “uma solução imaginária para tensões,
conflitos e contrapontos que não encontram soluções para serem resolvidos no nível do
real”. Ela indica que as sociedades necessitam construir mitos que iniciem uma tradição em
busca de elementos importantes para a constituição do grupo. De acordo com esses conceitos,
faz-se claro o papel do mito construído em torno de Ana Lídia e sua transformação em santa
A mitificação de Ana Lídia faz-se necessária no nível cultural para amenizar a tensão
Pudemos observar por essa pesquisa, fazendo uso dos conceitos de representação e
mito fundador, a origem da percepção de Brasília como uma cidade otimista, coberta por um
futuro promissor e sua estreita relação religiosa ligada à proteção de sua população imaculada.
O caso Ana Lídia mostrado aqui como ruptura brutal deste contexto é o crime
inaugural da capital. O peso de sua repercussão, mesmo dentro da ditadura militar e nas
décadas posteriores à queda do regime ditatorial, será sentido pelo coletivo da cidade e
Um inconformismo interpretado nos campos culturais que, com base nas lembranças e
memórias atestadas pela população da cidade, nos mostra sua face e instrumentos para sua
própria solução.
Assim sendo, o processo cultural impulsionado pelo caso se desdobra com força igual
boatos como verdades. O segundo no aspecto religioso, no qual a população buscou seu
conforto espiritual através da mitificação de Ana Lídia, e na imagem construída sobre sua
Formas ambas que em conjunto e/ou separadamente dão fim à tensão causada pela
ruptura imagética do equilíbrio pacífico conferido à cidade, permitindo a ela não se desfazer
BAHIANA, Ana Maria. Almanaque anos 70. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.
CHAUÍ, Marilena. Brasil. Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo : Fundação
SP : EDUSC, 2002
PAVIANI, Aldo. Brasília em questão – espaço urbano, ideologia e realidade. São Paulo,
2003
1- Nome Completo
2- Idade
23 anos
3- Escolaridade
4- Ocupação
Músico
5- Como foi a primeira vez que ouviu/leu sobre o caso Ana Lídia?O que sentiu a respeito?
Meu pai me contou a estória quando eu tinha nove anos. Neste ano, agente visitou o
túmulo dela no dia de finados. Eu lembro muito bem: o túmulo dela parecia uma espécie de
altar, com pessoas rezando e até fazendo pedidos. No meu imaginário de criança, ela era uma
espécie de santo. Na verdade mais fantasma do que santo. Fiquei cinco noites sem dormir.
6- Levando em consideração que não viveu a época do caso, descreva um pouco da(das)
narrativa(as) atual(ais) com que teve contato sobre o caso Ana Lídia.
A história que meu pai havia contado não tinha detalhes; ele simplesmente tinha dito
que a menina havia sido morta por pessoas importantes de Brasília: filhos de ministros e
senadores; e que eles nunca haviam sido presos. Difícil foi saber alguns detalhes sórdidos da
história um pouco depois, quando tinha 14, da violência sexual e da tortura. Mas até mais ou
menos a época que eu escrevi a música (2003, eu acho), eu não tinha noção mais real do que
realmente havia acontecido. Essa estória tem uma aura mitológica e distante em volta dela.
Todo mundo sabe o que aconteceu com a menina; mas ninguém fala no assunto e nem discute
mais profundamente. É uma espécie de tabu compartilhado pelas pessoas comuns do Plano
Piloto.
Ouvi também boatos sobre o envolvimento de Fernando Collor e até de Luiz Estevão;
mas isso, creio que não passou de especulação.
8- Sobre a música "Conversa com os Espíritos", qual foi sua inspiração e intenção com a
mesma?
Imagens exibidas pelo programa LINHA DIRETA: Justiça. Exibido pela REDE
GLOBO, em 22 de novembro de 2007