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urbano zilles antropologia teoldgica PAULUS Vv ORIGEM DO HOMEM: CRIAGAO OU EVOLUGAO? Recentemente surgiu uma onda de “novos” ateus que se apre- sentam como “apéstolos” da racionalidade cientffica contra a bar- barie da religiao: Richard Dawkins, cientista britanico, Sam Harris, neurocientista americano, Daniel Dennett, fildsofo, Michel Onfray, jornalista francés, e Christopher Hitchens, escritor britanico. Eles tém em comum o pressuposto de que a religidio € um atraso para a humanidade e para a ciéncia. Apontam os erros cometidos em nome da religiao, silenciando, é claro, os cometidos em nome da ciéncia. entam combater o fundamentalismo religioso, substituindo-o rr um fundamentalismo cientifico. Substituem dogmas religiosos por dogmas da ciéncia. Para mostrar a incompatibilidade entre teligiao e ciéncia, partem da alternativa: criacionismo ou evolucio- smo? Pressupde-se que um cristéo nao possa admitir a evolugao bioldgica. : A concepgao evolutiva da ciéncia mudou profundamente a Visio do mundo. Quando alguém hoje quiser falar de criagdo de Deus, precisa considerar o que Darwin e seus seguidores disseram. Na -Verdade, muitos cristaos formaram uma compreensdo de Deus nao -Suficientemente grande para assimilar a biologia contemporanea. Por Outro lado, bidlogos e evolucionistas, por vezes, apresentam ideias darwinianas de uma maneira tao materialista que colocam a ciéncia €m aparente oposi¢ao 4 fé. Quando se leem atentamente as criticas 134 ANTROPOLOGIA TEOLOGICA, de Dawkins e Onfray, percebe-se logo que seu atefsmo nao é resultado da ciéncia, pois extrapolam sua competéncia cientifica para chegarem a.uma versio atualizada de Nietzsche dentro de um fundamentalismo cientifico. Seus escritos parecem-se com uma autoajuda para ateus inseguros. Por outro lado, Francis S. Collins, diretor do Projeto Genoma, afirma: “E claro que a visio cientifica de mundo nao é totalmente _ suficiente para responder a todas as questdes interessantes acerca da origem do Universo, e nao hd nada essencialmente em conflito entre a ideia de um Deus criador e 0 que a ciéncia revelou. Na verdade, a hipdtese de Deus soluciona algumas questes de profundidade mais problematica sobre 0 que veio antes do Big Bang e porque o universo parece tao exatamente acertado para que estejamos aqui” (A lingua- gem de Deus, p. 87). Por isso perguntamos: o que diz a Biblia sobre a origem do mundo e do homem? A Biblia comega com as palavras solenes: “No princ{pio Deus criou 0 céu e a terra”. O Simbolo ou credo retoma-as, con- fessando: Creio em Deus, Pai todo-poderoso, “criador do céu e da terra”, “de todas as coisas visiveis e invisfveis”. Com essa profissao, a fé cristé dé uma resposta A pergunta origindria do homem: de onde vem tudo e para onde vai? De onde vem o homem e para que existe na terra? Desde cedo, a criagao é entendida ex nihilo (do nada). Os Padres muitas vezes retomam a formula do Pastor de Hermas: “Tu fizeste todas as coisas do nada”. Se Deus nao tira a criagdo nem de uma matéria preexistente (0 que seria dualismo), nem de sua prépria substancia (0 que seria pantefsmo), ele cria, portanto, do nada. A criacao ex nihilo significa que o dom do ser € um dom livre de Deus; é devido a sua bondade, e nao devido a alguma necessidade dele. Isso quer dizer que o mundo existe por uma livre deciséio de Deus, ou seja, é um mundo precioso, porque querido, dom gratuito. Muitas pessoas, hoje, procuram resposta a essas perguntas nas ciéncias da natureza. Elas sabem dizer-nos muitas coisas interessan- tes sobre a origem e a idade do mundo, sobre 0 cosmo e seus enig’ mas. As ciéncias nos proporcionam uma melhor visio dos mila- ORIGEM DO HOMEM: CRIAGAO OU EVOLUGAO? 135 gres no campo material do mundo, tanto no microcosmo como no macrocosmo. E fazem isso de maneira concreta. Entretanto, essas ciéncias, apesar de resultados admiraveis, nado indagam sobre a origem ultima e o sentido da realidade. Se admitimos a teoria evolucionista, pressupomos a existéncia de algo que possa evoluir. De onde veio esse algo? Explicagdes sobre a propria origem e de tudo que nos cerca sao impossfveis somente com o uso exclusivo da razio cientifica. No passado nao muito distante, houve grandes e dolorosos conflitos entre a visio do mundo como é testemunhada pela Biblia e pela tradicao da Igreja e a visao do mundo como € elaborada pela ciéncia moderna. No processo contra Galileu Galilei (século XVII), quem por primeiro formulou claramente a teoria de que 0 Sol nao gira ao redor da Terra (geocentrismo), mas a Terra ao redor do Sol (heliocentrismo), colidiram duas visSes do mundo. Quando, no século XIX, Charles Darwin (1809-1882) formulou a teoria ou hipétese de que as diferentes espécies de seres vivos nado teriam sido criadas diretamente por Deus, mas seriam o resultado de uma longa evolucio, inserindo o préprio homem nesse curso evolutivo, houve longas discussdes, geralmente estéreis, que pouco contribuiram para a fé cristé mem tampouco para a ciéncia, pois partiram de uma alternativa simpléria: o homem vem de Deus ou do macaco? Quem tem razdo: Moisés (o homem foi criado direta- “mente por Deus) ou Darwin (o homem é o resultado de uma longa evolucdo)? 1. Colocagdo do problema Desde a publicagao dos livros A origem das espécies (1859)! e A descendéncia do homem (1871) por Charles Darwin, o problema do evolucionismo no deixou de ser um tema atual nos diferentes 'E sua obra principal. O titulo no original é: On the Origin of Species by Means of Natural lection. 136 ANTROPOLOGIA TEOLOGICA campos da ciéncia. Desde entao, os representantes da ciéncia ex- perimental nao se cansaram de inquirir constantemente 0 fato a maneira, a estrutura e os limites da evolugao bioldgica. Darwin concebeu a evolugao biolégica como um processo que se realiza em dois passos: mutagao e selegao natural. Esta concep¢ao baseava-se na variabilidade genética de uma espécie e na seleco natural favorecida pelo meio ambiente, mas no conseguia esclarecer seus mecanismos porque ainda desconhecia as leis da hereditariedade descobertas pelo monge agostiniano G. Mendel (1822-1884). Para muitos cristaos, o evolucionismo veio a ser uma cruel alternativa. No fundo, as discussdes em torno do problema da teoria evo- lucionista radicam na velha controvérsia entre tedlogos e cientistas gerada pelo choque entre os adeptos da antiga mundividéncia ptolomaico-geocéntrica e€ a nova, copernicano-heliocéntrica. Os adeptos da primeira pretendiam argumentar contra a segunda com © texto sagrado da Biblia. Isso, evidentemente, logo causou suspei- tas entre muitos crist&os. Basta lembrarmo-nos de que os livros de Galileu, defendendo a cosmovisdo copernicana, estiveram no Indice dos livros proibidos até 1835. Nesse contexto de certa aversio gene- ralizada as ciéncias naturais, surge, no século XIX, o problema do evolucionismo. A pouca precisao e a inseguranga da ciéncia de entao por si s6 nao parecem explicar satisfatoriamente a violenta resisténcia dos cristaos 4 teoria evolucionista. Entre outros fatores, nado devemos esquecer que 0 marxismo cedo se apoderou do evolucionismo, provocando a antipatia de muitos cristdos. K. Marx (1818-1883) ¢ E Engels (1820-1895) nao s6 se fizeram advogados do proletariado. Também quiseram sé-lo para a nova ciéncia. Por isso logo integraram 0 evolucionismo em sua sintese doutrinaria. Em carta datada de 12 de dezembro de 1859, Engels j4 comunicava a seu amigo Marx tT lido Darwin. A partir de 1862, o darwinismo constitui parte inte grante da Weltanschauung marxista. Assim, a tensao entre a ciéncia natural e a teologia aumentou a tal ponto que as ciéncias positives —ainda que praticadas por sacerdotes — se desenvolveram quase ‘4° 4 margem da Igreja como o operariado no tempo da industrializa@#° t ORIGEM DO HOMEM: CRIAGAO OU EVOLUGAQ? 137 na Europa, no século dezenove. Por outro lado, também nao deve- mos esquecer que alguns bidlogos abusaram da ciéncia, tentando explicar a evolugao de maneira totalmente mecdnica, criando um substitutivo da religiao. Ernst Haeckel (1834-1919) criticou os textos biblicos sobre a criag¢io com ironia maléfica e simplificou os problemas cientificos. Essas criticas de Haeckel, cujas obras tém carater popular, geraram um clima de muita desconfianga nas esferas intelectuais no concer- ente A narracdo biblica do Génese, segundo a qual Deus formou o homem do barro da terra e lhe inspirou a alma. Entao, as descobertas sempre mais numerosas de ossos humanos e esqueletos pré-histdricos io convencem mais que a Biblia? Tais dados nao tornam plausivel a tese evolucionista? Cientistas e tedlogos discutiram acirradamente durante um ulo por causa das implicagées religiosas do problema. E claro, ambém entre os tedlogos houve honrosas excegdes, como no caso o cardeal Newman.’ Mas 0 primeiro catdlico de projegao universal o campo da ciéncia a assumir uma posi¢ao totalmente positiva em elacio A teoria evolucionista foi o discutido jesuita francés Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955). Ainda hoje muitos leitores, en- rando em contato com a obra de Teilhard, uma obra sem dtivida onumental, confrontam-se logo com o problema das relagGes entre iagdo e evolucdo, que tentaremos delinear sob alguns aspectos mais ‘eressantes. Desde 1920, nos Estados Unidos, hd um intenso debate sobre que deve ser tratado nas escolas de Ensino Fundamental e Médio om relagao a origem e ao desenvolvimento da vida e do homem. Ha disputas judiciais sobre a obrigatoriedade de incluir 0 criacionismo © evolucionismo nos curriculos escolares, ou excluir um ou outro ambos. No meio desses debates, alguns cientistas buscam novas SolugSes recorrendo as teorias da Relatividade, da Quantica, do Caos, Para encontrar alternativas. Dentro desse ambiente, surge um grupo, °C. NEWMAN, Essay on the Development of Christian Doctrine, Londres, 1845 (anterior ‘obras de Darwin). 138 ANTROPOLOGIA TEOLOGICA, entre os quais Michael Denton e Phillip Johnson, que, em 1993, comega a reunir adeptos do conceito de Intelligent Design (ID), pois, segundo essa teoria, “a natureza mostra sinais evidentes de ter sido concebida por uma inteligéncia preexistente”. Os representantes dessa hipétese, todavia, rejeitam a teoria criacionista por ter fundamento religioso, nao cientifico. O movimento ID (Design Inteligente) surgiu com estardalhago em 1991, época na qual o ensino do criacionismo nas escolas dos Estados Unidos sofreu uma série de derrotas judiciais. Nesse sentido, repercutiu, em 2005, a sentenga do juiz federal Jones, da Pensilvania, de que o Design Inteligente nao pertencia ao mundo da ciéncia, mas ao das crengas, como uma recente versao do criacionismo. A teoria do Design Inteligente baseia-se no pressuposto de que a evolugao gera uma visio ateia de mundo e que, portanto, os que creem em Deus devem opor-se a ela; e que a teoria evolutiva tem fundamentos falhos porque no consegue justificar a complexidade da natureza; nao conseguindo explicar a complexidade, deve ter existido um planejador inteligente que desenhou o curso da evolugao. Tudo indica que a teoria do Design Inteligente é sem perspectivas para a ciéncia e totalmente supérflua para a teologia e a fé. Cabe registrar que em nosso século as discussdes se tornaram mais brandas. De um lado, as ciéncias e os cientistas reconhe- cem melhor seus proprios limites. Sabem que cada ciéncia estuda a realidade de uma determinada perspectiva. No estudo das partt- culas minimas da matéria, tomou-se consciéncia de que as cate- gorias de espacgo e tempo sao insuficientes. Recorreu-se a conceitos complementares como onda e corptisculo. Assim, 0 conceito clas- sico de matéria foi revisto sem que se Ihe encontrasse um novo substituto claro e univoco. Em sintese, a ciéncia hoje € menos pretensiosa e mais humilde em relagio A interpretagao global da realidade. Francis S. Collins, bidlogo e médico, diretor do Projeto Genom@ Humano, em A linguagem de Deus, afirma: “Os exemplos aqui relatados com base no estudo dos genomas, somados a outros que poderia™ encher milhares de livros do tamanho deste, fornecem 0 tipo de res” ORIGEM DO HOMEM: CRIAGAO OU EVOLUGAO? 139 paldo molecular a teoria da evolugao que convenceu praticamente todos os bidlogos em atividade de que a estrutura de Darwin sobre a variagao e a selegao natural esta inquestionavelmente correta” (p. 146). O diretor do Projeto Genoma, mais adiante, no mesmo livro, da um conselho oportuno aos membros da Igreja evangélica: “Como pessoas que nele (em Deus) creem, vocés estdo certos em se manter firmes ao conceito de Deus como Criador; estdo certos em se manter firmes as verdades da Biblia; estao certos em se manter firmes & con- clusio de que a ciéncia nao dé respostas As questdes mais urgentes da existéncia humana; e esto certos em se manter firmes a certeza de que é€ preciso resistir firmemente as alegagdes do materialismo ateu. Essas batalhas, porém, nao serao vencidas se vocés basearem suas posigdes em fundamentos falhos. Continuar a fazer isso da aos oponentes da fé (que so muitos) a chance de obter uma série imensa de vitérias faceis” (p. 184). De outro lado, também a teologia passou a respeitar mais os seus limites. Tomou consciéncia de que a Biblia expressa a revelacao de Deus e a fé na visao de mundo da época, numa visdo hoje superada. A intengao e 0 objetivo da Biblia nao € ensinar ciéncia, ou seja, a maneira empirica de como se originaram o mundo e o homem. Quer ensinar, antes de tudo, que Deus € 0 criador e salvador do mundo e sua salvagao. Por isso, a maneira como Deus teria criado © mundo em seis dias ou que teria criado tudo como esta hoje nao € objeto de fé. O recente Catecismo da Igreja Catélica (n. 283) assumiu uma Posigao de equilibrio: ‘A questo das origens do mundo e do homem & objeto de numerosas pesquisas cientfficas que enriqueceram magnificamente os nossos co- nhecimentos sobre a idade e as dimensdes do cosmo, o devir das formas vivas, o aparecimento do homem. Estas descobertas nos convidam a admirar tanto mais a grandeza do Criador, a render-lhe gragas por todas as suas obras e pela inteligéncia e sabedoria que da aos estudiosos e aos pesquisadores. Com Salomdo, estes dltimos podem dizer: ‘Ele me deu um conhecimento infalivel dos seres para entender a estrutura do mundo, a atividade dos elementos... pois a sabedoria, artifice do mundo, mo ensinou. (Sb 7,17-21) 140 ANTROPOLOGIA TEOLOGICA 2. Visdo evolucionista de Teilhard de Chardin Enquanto o pensamento de Teilhard de Chardin a respeito da criagdo parece bastante vago, ele nao sé reformulou, mas também aprofundou a teoria evolucionista, dando-lhe novas perspectivas. Tentaremos resumi-la brevemente: 2.1 - Em todos os seus aspectos e dimensdes, 0 cosmos, inclusive o homem, 86 e unicamente se torna compreensivel em estado de evolugao permanente e progressiva, na qual cada fase ocupa seu proprio espago e tempo. A evolucdo é, pois, universal. 2.2 -Da matéria anorganica pode originar-se vida orgdnica, ié, da matéria aparentemente morta pode nascer vida, pois, em princfpio, a matéria nao est4 morta, mas consciente. Em toda a matéria existente germina consciéncia’. Mas a matéria exige uma existéncia organica bem desenvolvida para passar do limiar A consciéncia reflexiva. 2.3 - Na matéria atua uma dupla energia: uma tangencial, que une os elementos da natureza entre si no mesmo plano; uma radial, que impulsiona a matéria 4 sempre maior evolugio.* 2.4 - Entre complexidade e consciéncia existe uma relagio de parale- lismo. A natureza nao esta morta. Ela tem um psfquico interior, que apenas se manifesta completamente no homem: matéria e espirito sempre estao ligados entre si. 2.5 - Oespfrito humano nAo escapa da evolugao. A evolugao continua. Da nao-vida nasceu a vida. A vida chegou A autorrealizagaio no homem, na explosao da consciéncia autorreflexiva. Atualmen- te, a humanidade se encontra no limiar do indivfduo coletivo. Segundo Teilhard, aos poucos haver4 um pensar comum de todos os homens, uma superpessoa. Esta evolugao é, ao mesmo. tempo, o desenvolvimento do corpo mistico de Cristo na terra. A “Teilhard alarga o sentido costumeiro do termo consciéncia. Cf. Le Phénoméne Humain (Ed du Seuil, Patis, 1955) p. 38; 52-53; 56; 70-73; 159; 191; 195; 197; 256; 270; 287-88 etc ‘Ibidem: p. 62ss; 90-155 ete. ORIGEM DO HOMEM: CRIAGAO OU EVOLUGAO? 141 transfiguragao da terra sé tera lugar quando ela estiver preparada a partisia do Senhor. A Histéria —e aqui Teilhard supera o mito de Karl Marx — desemboca nao numa sociedade comunista, mas na eternidade, ou seja, em Deus. 2.6 - Consequentemente, a histéria de nosso planeta apresenta perfo- dos sucessivos: a) Noprimeiro perfodo, a superficie da Terra esfria e endurece. Ainda nao ha vestigios de vida (cosmogénese). b) Depois comega a vida (biogénese), e pouco a pouco desen- volvem-se sempre mais formas de vida. Bem cedo realiza-se a divisdo entre o reino vegetal e 0 animal. c) Avvida desenvolve-se em formas sempre mais complexas até nascer o homem (antropogénese). E a evolugao prossegue. d) O desenvolvimento ou a evolugao continua em diregao ao predominio do espirito (noogénese). e) Somente no fim, Cristo seré tudo em todas as coisas (cristo- génese). Trés elementos caracterizam, pois, as grandes fases na evolugao do mundo: matéria, vida e espirito. A Biblia fala, nas primeiras paginas, dentro de uma determinada visdo do mundo, da criagéo. Hoje, grande namero de cientistas parte da hipdtese de que todo o mundo material se desenvolveu no caminho da evolugao para formas de ser e de vida sempre mais complexas, até chegar ao homem como meta da evolucao. Segundo tais hipdteses, o mundo (big bang) teria uma histdria de cerca de 14 bilhdes de anos, e _ anossa Terra teria aparecido hé aproximadamente 5 bilhdes de anos em nosso sistema solar. A primeira forma de vida no planeta teria surgido ha 3,5 bilhdes de anos. ; A criagaio do mundo vista pela ciéncia hoje trabalha com os seguintes dados: Ha 13,7 bilhdes de anos, com um estouro inicial, uma gigan- tesca explosdo césmica (big bang), teve inicio nosso universo. No Comec¢o existia apenas uma bola de fogo primordial de mui pequena extensdo, mas de altissima densidade e temperatura. Claro, 0 fildsofo 142 ANTROPOLOGIA TEOLOGICA, eo tedlogo podem perguntar: De onde ela veio? O que provocou a explosao primordial? Ha cerca de 3,5 bilhdes de anos apareceram os primeiros seres vivos em nosso planeta. Na verdade ainda ignoramos como foi que do material sem vida surgiu a vida. Nao sabemos as ocorr€ncias exatas que originaram a biogénese. Seria tudo por mero acaso? Ha cerca de 200 mil anos os homens comegaram a existir, provavelmente na Africa. O ser humano evoluiu ao longo de varios ‘milhdes de anos a partir de seus ancestrais animais. Antes de mais nada, o ser humano possui consciéncia, condigao para o desenvol- vimento da linguagem. Consciéncia e linguagem sao as condigdes para 0 pensamento abstrato e para atitudes do espfrito orientadas e intencionais como ddio e amor, esperanga e medo. A ciéncia hoje sugere, com certa evidéncia, que a Terra perma- neceu drida até cerca de 4 bilhdes de anos atrés. Surgiram as plantas em terra firme, derivadas de formas de vida aquaticas. Trinta milhdes de anos depois, os animais se deslocaram para a terra. Os dinossau- ros, surgidos ha cerca de 230 milhdes de anos, dominaram a Terra, desaparecendo ha mais ou menos 65 milhdes de anos. Os primeiros espécimes que reconhecemos, como do moderno homo sapiens, datam de cerca de 195 mil anos atrés. Quase ao natural entao se coloca a pergunta: como se rela- ciona tal hipétese da teoria evolutiva, formulada pela ciéncia, com a afirmacao da revelacao de que Deus € 0 criador de todas as coi- sas? Serd correto continuarmos insistindo em que a vida, sobretudo © espirito humano, tenham surgido por intervengao direta de Deus? 3. Criacdo ou evolucado do mundo? A criagao € o fundamento de todos os designios salvificos de Deus: “A verdade da criagio € to importante para toda a vida human que Deus, na sua ternura, quis revelar a seu povo tudo 0 que é salutat que se conhega a esse respeito” (Catecismo, n. 287). ORIGEM DO HOMEM: CRIAGAO OU EVOLUGAO? 143 A experiéncia de Deus na histdria de Israel nao se centra na criagao. Nesse sentido, as afirmagées sobre criago nao constituem © inicio nem o centro da fé de Israel. Primeiro Israel dirigiu seu olhar para a agao de Deus na prépria histéria: libertagao do Egito... Israel buscou e encontrou resposta a suas perguntas a partir de sua experiéncia histérica com Deus. As narrativas sobre a criagao, que se encontram no comego do Génese, sao o resultado de uma longa historia de fé. O velho dilema criagao ou evolugdo é apenas aparente. Como tal, esta hoje superado em definitivo. A questao € bem outra: nao se trata de escolher entre criagao e evolugao, mas de determinar seu mituo relacionamento. Os dois conceitos referem-se a problemas diferentes, se bem que ambos abranjam a realidade sensivel do cosmos na sua totalidade. Criagao é algo muito mais radical e qualitativamente mais total. Fala-nos do comego absoluto de todas as coisas. Para evoluir, € preciso haver algo que evolua; para criar, € preciso nao haver nada, pois criacao diz comego absoluto. Deus cria livremente do nada. Por isso a Biblia comega com aquela frase lapidar: “No principio...” A criagao fala-nos da agao de Deus, no principio do mundo e da vida, exprimindo assim a relacao Ultima da criagéo com o proprio Criador. Tal relagio transcendente sempre escapard a verificagao da ciéncia empirica, pois ela é, por assim dizer, um a priori necessdrio da prépria -ciéncia. Neste sentido, J. Moltmann, tedlogo luterano, formula: “Exis- te uma criagao da evolugio, porque evolucao nao pode ser explicada a partir de si. Existe uma evolugao da criagdo, porque a criagio do mundo foi concebida com vistas ao Reino da gloria e por isso tem- Poralmente transcende-se a si mesma. O conceito de evolugao deve ser entendido como um conceito basico da automovimentagao do Espirito divino na criagio” (Deus na criagdo, p. 39). Criagao, em sentido estrito, significa o ato pelo qual Deus fez © mundo e o homem safrem do nada. A criago nao supée espécie alguma de matéria sobre a qual Deus agiria para formar o cosmo. Deus poe o mundo e o homem na existéncia por um ato livre de sua Vontade; mas 0 ato criador é, simultaneamente, 0 ato pelo qual Deus fonserva o mundo e o homem na existéncia. Por isso, as ciéncias 144 experimentais poderao estudar a evolugio do cosmo e a formagag dos mundos a partir da matéria origindria, mas esta fora do Process rigorosamente cientifico a ideia de criacdo, pois estd fora do alcance dos métodos das ciéncias empiricas. Situa-se em outro plano. A evolugio refere-se a realizagaio do mundo entre 0 prince‘ visdo de Teilhard, toda a obra da criagao converge a unidade no ponto que ele chama convencionalmente Omega. Essa convergéncia, orien- tada pela ortogénese, conduz a obra da criagao em desenvolvimento ascensional a Deus, que age nela de maneira imanente-transcendente, “A criagdo tem a sua bondade ea sua perfeicao préprias, mas nao saiy completamente acabada das méos do Criador” (Catecismo n. 302). Deus da as suas criaturas nao s6 a existéncia, mas também a dignidade de agirem elas mesmas, de serem causas e princfpios umas das outras e de assim cooperarem no cumprimento do seu designio. Deus age em todo o agir das suas criaturas. Ele é a causa primeira que opera nas causas segundas e através delas. Deus criou e mantém o mundo para manifestar e para comunicar a sua gléria. Nem no primeiro, nem no segundo relato da criagao, no Génese, fala-se de uma creatio ex nihilo. Esta concepgiio de que antes nao existia matéria foi desenvolvida muito mais tarde nas comunidades judaicas influenciadas pelo pensamento helénico. Aparece pela primeira vez no segundo livro dos Macabeus. Em outras palavras, a creatio ex nihilo € um conceito bibli- co-teoldgico, de natureza metafisico-religiosa. Relaciona radicalmente a criagao toda com o proprio Criador. A evolugao €, antes de tudo, uma categoria da ciéncia natural, de natureza cientifica. Em prin- cipio, a criagao do mundo nao exclui a evolugao biolégica, mesmo no sentido de originar novas espécies por forgas imanentes. Mas a evolugao pressupée'a criagao. 3.1 — O evolucionismo Oevolucionismo de Teilhard € universal. Realiza-se simultanea~ mente no plano bioldgico e psfquico, segundo a lei da paralelidade ANTROPOLOGIA TEOLOGIC4, ioe o fim absolutos; manifesta-nos a ascensao espagotemporal do mundo. Na IRIGEM DO HOMEM: CRIAGAO OU EVOLUGAO? 145 “complexidade-consciéncia”.’ Segundo essa lei, formulada por Tei- [hard, o mundo atual é nada mais que o resultado de um movimento continuo descontinuado da nao-vida (cosmogénese) a vida (biogénese) eda vida a autorreflexao do homem (antropogénese). A originalidade de Teilhard é: a evolugao prossegue. De fato, nado temos nenhum motivo razo4vel para supor que o homem - eixo da evolugao em marcha — tenha chegado ao termo da evolugao de si mesmo. A humanidade caminha para uma planetizagao, para uma unidade upercomplexa, superconcentrada, superconsciente e superpersona- lizada. O evolucionismo, como Teilhard 0 concebe, é progressivo e orientado. Distingue-se, pois, das teorias retroevolutivas. Tem uma meta a alcangar: Omega (Cristo). Vale a pena familiarizarmo-nos com aquilo que os cientistas, em. nosso tempo, nos dizem a respeito do evolucionismo, pois a evolugao éum fenémeno que podemos observar em diversos planos epistemo- légicos: ciéncia, filosofia e teologia. Sendo questao-limite, cabe ao tedlogo escutar também, e antes de tudo, a ciéncia natural. ) A ciéncia empfrica Entre os cientistas mais sérios, existe a tendéncia geral de ad- mitir 0 evolucionismo nas suas diversas formas como sendo um fato (ou ao menos a tinica hipétese razodvel de trabalho no momento), apesar de ainda ignorarem sua estrutura interna e seus limites. Pode dizer-se que hoje toda a discussdo sobre o evolucionismo gira menos em torno do fato da evolugao do que em torno de seus fatores. E ver- dade que até hoje todas as teorias evolucionistas ainda apresentam a penosa lacuna da falta de prova empifrica de laboratério. Alguns até pensam que a evolugao é um fendémeno tinico e irreversivel da 5 Dizer, por exemplo, que a molécula é mais complexa na sua estrutura que o étomo significa que a) a molécula se compée de maior niimero de elementos e b) estes elementos se acham Mais profundamente organizados entre si. A complexidade de um dtomo no € determinada sé pela quantidade de elementos que o compdem, mas também pela qualidade das ligagdes entre 5 mesmos, a qualidade da unio dindmica entre os mesmos. Teilhard cré poder observar um Paralelismo entre o crescimento de complexidade e o crescimento de consciéncia no cosmo, Sem concluir todavia daf um nexo causal. Cf. T. de CHARDIN, Vie et Plantes. Etudes, Paris, Maio-junho de 1946 (Oeuvres V, p. 137a). 146 ANTROPOLOGIA TEOLOGICA Histéria. Outros esperam que, no futuro, a ciéncia ainda conseguirg despertar vida da matéria. Para Teilhard, além disso, a evolugao ¢ uma exigéncia do intelecto a fim de poder compreender 0 mundo no seu vir-a-ser. O renomado cientista Francis S. Collins escreve: “Se os hu- manos evolufram rigorosamente por meio de mutagao e selegio natural, quem precisa de Deus para nos explicar? A isso, retruco: eu preciso. A comparagao entre sequéncias de chimpanzé e de ser humano, embora interessante, nao nos explica o que € preciso para ser humano” (A linguagem de Deus, p. 146). O estudo do genoma, sem dvida, fornece um tipo de respaldo molecular A teoria da evolugio que convenceu a quase totalidade de bidlogos, hoje, de que a estrutura de Darwin sobre a variagdo e a selecao natural est4 inquestionavelmente correta. Os cientistas mostram-nos a grande possibilidade do evolucio- nismo. Hoje parece que nada tem sentido na biologia a nao ser a luz da evolugao. Os dados das escavagées paleontol6gicas e geolégicas realizadas em mais de cem diferentes lugares da superficie terrestre nos Ultimos cem anos, as pesquisas embriolégicas e os estudos ana- témicos, indicam, com sempre maior probabilidade, que de fato ha evolugao. Com métodos relativamente seguros, j4 conseguimos reconstruir, por assim dizer, uma verdadeira histéria natural. As conhecidas formas de vida apresentam-se tanto mais primitivas quanto mais antigas. O homem entra bem tarde na historia da vida de nosso planeta. Duas a trés geragies de cientistas conseguiram penetrar no passa- do da hist6ria humana. Assim, hoje conhecemos as seguintes camadas na evolugao da humanidade, comegando pelas mais recentes: 1) Homo sapiens (o homem atual: a raga de Aurignac e Cromag- non) até a idade de mais ou menos cem mil anos atrds. 2) Ohomem de Neandertal ( Fontéchevade, Swanscombe) que viveu entre 100-200 mil anos atrds. 3) Sinanthropus (o homem chinés, descoberto em 1929 e estu- dado in loco por Teilhard), que viveu hd mais ou menos 300 mil anos. ORIGEM DO HOMEM: CRIAGAO OU EVOLUGAQ? 147 4) Pithecanthropus (descoberto em 1891, na ilha de Java, e o homem de Heidelberg) ha 400-500 mil anos. 5) Australopithecus (descoberto em 1924 na Africa do Sul), ha 500 mil ou até dois milhdes de anos. 6) Zinjanthropus Boisei (descoberto em 1959, no Quénia, pelo casal Leakey), datado em 1,75 milhao de anos. Foi encon- trado na garganta de Olduvai. Como se originou o primeiro homem A luz da hipdtese evolu- cionista? A apologética catélica tradicional argumentava metafisicamen- te: “O efeito nado pode ser maior que a causa”, para rejeitar a teoria evolucionista. Se o homem resultasse da evolugao do macaco, o efeito (homem) seria maior que a causa. Por outro lado, 0 conceito de criagao era usado de maneira acritica, como se Deus devesse ter criado diretamente o mundo e as coisas como as encontramos hoje. Ora, Deus com certeza pode agir de maneira direta na criagdo, mas normalmente age através dela. Evidentemente nao devemos imaginar a transigao do animal para o homem como se se tratasse do animal como o de nossos jar- dins zooldgicos e do homem tal qual o conhecemos hoje. Trata-se, antes, de um salto do superanimal ao pré-homindide. A transi¢ao histérica do animal ao homem certamente nao foi tao abrupta como _ aseparagao que hoje existe entre ambos. Mas no homem explicita-se algo de novo que antes no estava explicitado: a erupgao do espirito. Teria ele estado presente desde a criagdo, como a razao na crianga recém-nascida, agindo, no entanto, por instinto, por atos reflexos? N&o sabemos se 0 espirito reflexivo irrompe num salto repentino ou se 86 lentamente aparece em toda a sua pujanga. Na visao de Teilhard, 0 espfrito caracteriza o homem e o faz eixo sobre o qual a evolugio continua. A transi¢ao teria sido preparada lentamente até realizar o salto A autorreflexdo na consciéncia, a partir da qual apenas podemos falar de homem. Tentaremos situar tal desenvolvimento dentro de um possfvel contexto, silenciando, todavia, os dados da microffsica e suas pers- 148 ANTROPOLOGIA TEOLOGICA pectivas, que fazem plausivel a evolugao. Apenas referimos aqui, a titulo de informagao, algumas hipéteses da macrofisica. Os cientistas em nosso século esperam adquirir melhor co. nhecimento sobre a origem, a estrutura, 0 vit-a-ser e 0 futuro do mundo, do qual fazemos parte integrante, no campo da Astronomia, Deixou ela de ser objeto de incontrolaveis especulagies e fantasias, no concernente ao nosso problema. Na era dos foguetes e satélites interplanetarios, a Astronomia conquistou nova posigao no conhe- ‘cimento humano. Francis S. Collins esboga uma visao teista da evolugao em A linguagem de Deus (p. 206), obedecendo as seguintes premissas: 1. Ouniverso surgiu do nada, hé aproximadamente 14 bilhdes de anos. 2. Apesar das improbabilidades incomensurdveis, as proprie- dades do universo parecem ter sido ajustadas para a criaco da vida. 3. Embora o mecanismo exato da origem da vida na terra per- manega desconhecido, uma vez que a vida surgiu, 0 processo de evolugao e de selegaio natural permitiu o desenvolvimento da diversidade biolégica e da complexidade durante espagos de tempo muito vastos. 4. Tao logo a evolugdo seguiu seu rumo, nao foi necessaria nenhuma intervengao sobrenatural. 5. Os humanos fazem parte desse processo, partilhando um. ancestral comum com os grandes simios. 6. Entretanto, os humanos sao exclusivos em caracteristicas que desafiam a explicagao evolutiva e indicam nossa nature2a espiritual. Isso inclui a lei moral (0 conhecimento do cert© e do errado) e a busca por Deus, que caracterizam todas as culturas humanas. No momento, as discusses ainda sao da algada dos especialistas- Por isso, ainda é muito cedo para querermos tirar maiores conclus0es de uma ou outra dessas hipéteses ou de muitas outras semelhantes- A ciéncia interplanetaria ainda est4 no comego. O futuro talvez nos _ ORIGEM DO HOMEM: CRIAGAO OU EVOLUCAO? 149 possa tragar melhores perspectivas para um conhecimento mais exato do vir-a-ser de nosso mundo. _b) A filosofia As duas cosmologias to opostas que acima expusemos apre- sentam-nos um problema comum: colocam-nos diante do problema metaffsico do evolucionismo. Uma concepgio evolutiva do mundo, como a teilhardiana, pa- yece expressar mais e melhor a continua atividade criadora de Deus, uma vez que o mundo nao foi criado em estado de acabamento pleno. O proprio Darwin, que estudou para ser clérigo da Igreja da Inglaterra, ites de dedicar-se 4 ciéncia, conclui A origem das espécies com as palavras de admiragao: “Hé uma grandeza nessa visao da vida, com “seus varios poderes, tendo ela sido langada como o sopro da vida ori- ginalmente pelo Criador em poucas formas ou uma; € que, enquanto ste planeta vinha orbitando de acordo com a lei da gravidade esta- belecida, a partir de um inicio tao simples, inimeras formas, cada vez ais belas e maravilhosas, foram, e continuam, evoluindo”. Se nosso mundo como hoje o conhecemos € 0 resultado de uma longa série de evolugdes, passando de estados menos perfeitos a mais erfeitos, evidentemente nao poderemos concluir dai que o mundo al seja um resultado maior que sua causa. Tal argumento € ficticio, ois se baseia numa causalidade mal compreendida. Deus, como causa cendente, nao pode ser imaginado como primeira numa corrente e causas segundas. Seria errdneo. E preciso superarmos a ideia de -primeiro-elo-numa-cadeia, pois ele est4 presente em cada elo. E endente e imanente e, por isso, age de dentro no préprio curso a evolucio, através e nas causas segundas. Pode também interferir fora (milagres), mas isto acontece raras vezes, pois nao faz extra- dinariamente 0 que pode fazer de maneira ordindria mediante as sas segundas. Nessa perspectiva filosdfica, o problema da origem primeiros homens é semelhante ao problema do nascimento de lualquer crianga que nasce hoje. Ela nasce do amor miituo dos pais. Oderemos nds dizer que os pais apenas so pai e mae de um corpo 150 ANTROPOLOGIA TEOLOGICA ORIGEM DO HOMEM: CRIAGAO OU EVOLUGAO? 151 humano? Nao. Os pais geram uma crianga, um homem. Deus age neles e através deles. Se imagindssemos Deus como sendo o primeiro anel de uma corrente de causas segundas, diminuirfamos sua trans- que ponto a alma humana poderd ser objeto da ciéncia experimental, sendo 0 evolucionismo, em primeiro lugar, um problema da ciéncia experimental. A origem do corpo humano nao pertence as questGes de fé € costumes, as quais se limita a infalibilidade da Igreja. Do ponto de vista da fé, a questo é de somenos importancia. O Magistério da Igreja s6 teria motivo de condenar uma teoria cientffica se a mesma contrariasse direta ou indiretamente alguma verdade revelada. Tais casos s6 sao possiveis na aparéncia. Entre uma verdade cientifica comprovada e uma verdade revelada, entendida em seu sentido genufno, nao havera contradigao, pois o Criador e o Redentor sao um e o mesmo Deus. E, admitindo a possibilidade tedrica de uma contradigao entre a fé e a ciéncia, ainda restaria examinar se a hipotese evolucionista é€ tal. Quando tedlogos falam da “criagao da alma” por Deus como dado fundamental do ser humano, certamente querem significar sua relagao com Deus. Talvez 0 conceito de alma humana se possa resumir como telagio pessoal com Deus. Assim a criagao da alma deve ser entendida, simultaneamente, como agao de Deus e reagao do homem. O conceito de criagao da alma sugere, a primeira vista, tratar-se de obra unilate- tal de Deus da qual o homem é a matéria, mas deverd entender-se a criagao da alma segundo o modelo personalista de proposta-resposta: consciéncia de si e consciéncia da transcendéncia do homem sao ‘ondigao indispensdvel para a comunicagao entre Deus e o homem. alma humana une a finitude do homem, enquanto comegou no po, com a infinitude de Deus, enquanto é imortal. Hoje ha cientistas a admitir que, no inicio da humanidade, iO est apenas um casal (monogenismo), mas que a vida humana se tenha desenvolvido no processo de evolugao simultaneamente em diversos lugares do planeta (poligenismo ou até polifiletismo). A essas ‘ipsteses da ciéncia o Magistério da Igreja Catdlica objeta que, no aso do poligenismo (varios casais na origem) e do polifiletismo (na tigem estao diversos phyla ou familias), ndo se veria claramente ‘Como concilié-las com a doutrina da transmissio do pecado original. cendéncia no mundo. Muitos atefstas afirmam a eternidade da matéria para rejeitar Deus e a ideia de criagao. O proprio Tomas de Aquino (1225-1274), seguindo Aristételes, admite que, filosoficamente, néo se pode de- monstrar que a matéria nao é eterna. Com isso, todavia, nao elimina a necessidade da criagao, pois o préprio movimento intrinseco implica uma causa transcendente de que o universo depende no seu ser. c) A teologia Nem sempre nosso racioc{nio acima foi formulado com bastante clareza. Por isso, ainda hoje, muitos cientistas cristdos, homens de boa cultura geral, vivem em conflito artificial com a fé. Sabemos isso das lutas no Ultimo século. Tais conflitos sao, as vezes, apoia- dos pela instru¢ao religiosa superficial dos manuais de religiao. Na catequese, 0 jovem cristo aprende literalmente que Deus formou o homem de barro (Gn 2,4-7). Com facilidade associamos a acao de Deus com a do oleiro. Mas nas aulas de biologia, os professores ensinam que o homem descende dos primatas. E 0 jovem, consciente ou inconscientemente, encontra-se diante do dilema: existe, pois, incompatibilidade entre a ciéncia natural e a Biblia? Afinal, que nos diz o Magistério da Igreja? Na Enciclica Humani Generis (de 12 de agosto de 1950), Pio XII reconhece e respeita o direito da ciéncia de estudar o problema da origem do corpo humano. Pio XII diz que o Magistério da Igreia nao se opde a que especialistas de ambas as facgdes (pré e contra 0 evolucionismo) inquiram o problema da evolugao dentro dos critérios e métodos préprios da ciéncia e da teologia modernas naquilo que s¢ refere a origem do corpo humano de matéria preexistente. Mas log? adiante acrescenta que a fé catélica nos obriga a perseverar na cria2° direta da alma humana por Deus. Notamos que Pio XII nao diz com? Deus cria diretamente a alma. E verdade que se poderia discutir at bora o poligenismo e 0 polifiletismo nao passem, até o momento, hipoteses cientificas, parece que, em nome da fé, a questo ainda 152 ANTROPOLOGIA TEOLOGICA ficard aberta, pois de acordo com a visao unitdria que a Biblia da da humanidade, mesmo que amanha ou depois se confirmassem tais hipéteses, a doutrina sobre a universalidade do pecado original per- maneceria intocada. Se a Bfblia fala do casal no inicio, quer, dessa forma, expressar a unidade e igualdade de todos os homens. Por isso, os estudiosos da Sagrada Escritura salientam que Addo nao é apenas o nome de uma pessoa individual, mas é também um nome coletivo para ohomem oua humanidade. Monogenismo ou poligenismo na origem da humanidade, a rigor, nao € questao teoldgica, mas cientifica. Joao Paulo II, em 1985, no discurso dirigido aos participantes de um Simpésio sobre Fé cristé e teoria da evolugdo, afirmou: “Nao ha obstéculo em aceitar uma fé na criagdo adequadamente compreendida e um ensino da evolugao retamente entendida. A evolugao supée a criagao; mais, a criagao aparece a luz da evolugiio como um aconte- cimento que se estende no tempo como uma criagao continua”. Em 1996, em discurso 4 Academia Pontificia de Ciéncias, disse que “a evolugao deixou de ser mera hipétese”. No mundo cientffico, a evolugio biolégica representa a chave interpretativa da histéria da vida sobre a Terra e o marco cultural da biologia moderna. 3.2—A criagdo na Biblia e 0 evolucionismo E sabido que entre os povos da Mesopotamia e do Egito existiam narragoes sobre a criagao do mundo por um Deus criador. A mais conhecida dessas narrativas € 0 poema babilénico Enuma Elish. O texto foi descoberto em 1875 na Biblioteca de Assurbanipal. Esta gravado em placas de argila em escrita cuneiforme. Trata da origem dos deuses, do homem, dos astros, do mundo e da vida apéds a morte Enfim, no mundo que cercava Israel também encontramos mitos da criagao e da origem do mundo que, certamente, j4 existiam antes da formagao do povo de Israel. Se Israel nao possufa tradigSes proprias, podia hauri-las da t~ digdo de outros povos, dando nova forma a figuras e representagoes as. A uy set mitoldgicas para colocé-las a servigo da fé, reinterpretando~ criagdo do nada salienta a estrita transcendéncia de Deus e se' ORIGEM DO HOMEM: CRIAGAO OU EVOLUGAO? 153 totalmente diferente de todas as coisas criadas, sua absoluta supe- tioridade sobre o mundo e sua plena autonomia, como também sua benevoléncia para com 0 mundo e com o homem. Por isso a hipétese da evolugao nao elimina a fé; tampouco a confirma, mas ela a provoca aque se entenda mais profundamente a si mesma, ajudando o homem a entender-se a si mesmo e a tornar-se mais e mais aquilo que é: o ser que deve dizer eternamente tu a Deus. O desenvolvimento da ciéncia positiva ou experimental contri- bui, a0 menos indiretamente, para uma compreensao melhor e mais profunda do texto sagrado. A ciéncia nao alterou o contetido da fé, _ contido nos textos revelados, mas modificou-lhe nossa compreensao. A Biblia expressa-se na mundividéncia estatica de seu tempo. A visdo cosmolégica sempre esta condicionada pelo tempo e como tal _nao pertence 4 revelagao divina. Esta refere-se as coisas religiosas -e existencialmente importantes para nds. Todo o resto situa-se na esfera de maiores ou menores probabilidades humanas. A mudanga alizada na mundividéncia nos tiltimos séculos também obrigou os logos a estudarem e reformularem melhor o sentido e 0 contetido igiosos da revelagao. A Biblia, evidentemente, nao pretende ser anual de ciéncia, e sim 0 livro de nossa histéria salvifica. Por isso, deverd ser explicada de maneira querigmitica e religiosa, interpretan- 9 sua mensagem naquilo que diz para todos os tempos, discernindo © invdlucro meramente cultural, pois a Igreja hoje é iluminada pelo nesmo Espirito de Deus que outrora inspirou os autores biblicos. S6 Por essa razdo est4 autorizada a traduzir a mesma mensagem salvifica Biblia na linguagem do nosso tempo. Mas uma interpretagio indamentalista da Biblia podera ser tao ou mais prejudicial ao tes- temunho de fé quanto uma interpretagio liberal. A partir da Sagrada Escritura, nao podemos argumentar con- ao evolucionismo, nem a favor. Seria tao ingénuo defender o ixismo apoiado em Gn 2,19 (Javé, o Senhor, formou da terra todos 8 animais dos campos e todos os passaros do céu), como afirmar o €volucionismo, porque em Gn 1,11.24, Deus manda a terra produ- ait plantas ¢ animais. Ao leitor atento bastam tais acenos para nao ‘fgumentar imprudentemente com textos sagrados. A Biblia em 154 ANTROPOLOGIA TEOLOGICA si nao depende da cosmovisio einsteiniana nem da aristotélica, para anunciar-nos a mensagem divina. Em outras palavras, os dogmas ¢ as verdades da revelagao divina nunca serao objeto das provas de laboratorio. A Biblia € 0 livro da histéria salvifica, porque nele Deus fala aos homens por meio de homens a maneira humana, isto é, na linguagem e no horizonte cultural do tempo, a fim de revelar-nos verdades de importancia salvifica. Nessa obra comum de Deus e dos homens, que é a Biblia, ao tedlogo interessam as verdades salvificas, Alias, é missdo fundamental do tedlogo traduzir, sem trair, a verdade da fé para dentro da linguagem e da cultura de seu tempo e para as pessoas do seu ambiente cultural. Ora, 0 evolucionismo é, antes de tudo e, sobretudo, um problema cientifico, de consequéncias para a mundividéncia. Em nada fere a fé ou a moral cristas. E ninguém deverd impor sua mundividéncia a outros em nome da fé. No campo teoldgico, todas as discussées em torno do evolu- cionismo vao paralelas 4 exegese da narragao biblica do Génesis. Sé nos primeiros capftulos do Génesis encontramos uma descrigio mais extensa e detalhada sobre a origem do mundo e do homem. Ulteriores afirmagdes quase sempre e exclusivamente remontam &s primeiras. Alias, nesse sentido, afirma o Catecismo da Igreja Catélica: Entre todas as palavras da Sagrada Escritura sobre a criacio, os trés pri- meiros capitulos do Génesis ocupam um lugar tinico. Do ponto de vista literdrio, esses textos podem ter diversas fontes. Os autores inspirados colocaram-nos no comego da Escritura, de sorte que eles exprimem, na sua linguagem solene, as verdades da criagao, da origem e do fim desta, em Deus, da sua ordem e da sua bondade, da vocagao do homem e, finalmente, do drama do pecado e da esperanca da salvacao. Lidas a luz de Cristo, na unidade da Sagrada Escritura e da Tradigao viva da Igreja, essas palavras sao a fonte principal para a catequese dos mistérios do principio: criagao, queda, promessa da salvagao (n. 289). Nos dois primeiros capitulos do Génesis, encontramos duas narrativas paralelas sobre a criagio do mundo: Gn 1, 1-2, 4a € 2s 4b-2, 25. Os autores de ambas as narrativas empregam tantas imagens e comparagées que, de nenhuma maneira, nos obrigam a admitit 4 formagio do corpo humano diretamente do pé da terra. Alias, tal ORIGEM DO HOMEM: CRIAGAO OU EVOLUGAO? 155 afirmagao, que tem paralelos em outras literaturas do antigo Orien- te, s6 a encontramos na segunda narrativa. Na primeira, que é mais teoldgica, o homem simplesmente foi feito “a imagem e semelhanga de Deus”. Se compararmos essas duas narrativas entre si, logo encon- traremos uma série de contradigdes aparentes. Basta comparar, por exemplo, a ordem da criagao, a qual ainda nos referiremos. Em ambos (0s casos, a preocupagio € doutrinal (a posi¢ao singular do homem na criagao), sem a menor ambi¢ao cientifica, no sentido hodierno. Os autores nao se preocupam em descrever-nos como, mas que e por que o homem foi criado por Deus. A partir dessas consideragdes, vemos que a alternativa criagdo ou evolugdo é postiga. Se o autor da segunda narrativa nos descreve com plasticidade que Deus formou o homem de barro, ele certamente quer significar a ligacao estreita do homem com o cosmo e, dizendo que Deus lhe inspirou o espfrito, expressa, ‘ao mesmo tempo, sua relagiio de proximidade com Deus e de trans- cendéncia ao mundo. Era intengao do autor mostrar, antes de tudo, relagao de dependéncia da criatura com o Criador, descrevendo que le criou o mundo e nao como. A questo da descendéncia do homem pés muitos em conflito com a fé, porque, durante séculos, os fiéis liam as narrativas do Génesis como hoje lemos reportagens policiais. Ora, tal leitura conduziu-os ao conflito com a ciéncia moderna, a qual nos traga outra visao do mundo. Sé lentamente percebeu-se que a Biblia nao pretende ser ma- nual de ciéncia e de Hist6ria, no sentido modero da palavra. E obra comum de Deus e dos homens, uma obra escrita para ser entendida com inteligéncia e sensatez. Os autores humanos nao dispunham de fontes histéricas para seu trabalho. No maximo puderam basear-se em tradigdes orais populares. Os estudos biblicos das tiltimas décadas mostram-nos que a narragao acima mencionada faz parte de um contexto maior. Os primeiros Onze capitulos do Génesis constituem uma retrospec¢ao para situar 8 patriarcas e profetas nas grandes linhas da histéria salvifica, mas @historia do mundo € a hist6ria obscura e gigantesca de bilhdes de nos. Para isso, os autores nao dispunham de fontes escritas nem de 156 ANTROPOLOGIA TEOLOGICA ORIGEM DO HOMEM: CRIAGAO OU EVOLUGAO? 157 Imagina a construgao do mundo em forma de uma pirdmide, em cujo cimo est4 o homem, como cabega da criagao. Na segunda narragao, o homem aparece em primeiro plano, como representante tinico da espécie humana. E todo 0 resto gira ao seu redor (circulo). Na primeira, Adao pode significar muito bem o homem genericamente (homem _coletivo). S6 depois do homem — na segunda narra¢ao — sao criadas as plantas, os animais e a mulher. Isso jé nos mostra suficientemente testemunhos histéricos, como podemos admiti-los para outros capi. tulos sobre a histéria dos patriarcas, o éxodo de Israel do Egito ete, Nos primeiros onze capitulos do Génesis, encontramos uma visio da Histéria, uma reflexdo teolégica sobre a histéria passada, ndo uma narra@ao histérica. Nessa visdo, o autor se interessa pela relagao real existencial entre Deus-homem-universo. Para isso, nao usa do mé- todo historiografico, mas da linguagem concreta e viva dos antigos orientais. E certo que Deus também poderia ter procedido na maneita racionalista do Ocidente. Mas de fato nao lhe aprouve assim. Destarte, podemos dizer, até certo ponto, que o desenvolvimento das ciéncias experimentais ajuda-nos a ver com maior clareza a men- sagem religiosa da Biblia. O destinatario dessa mensagem é sempre que, se quiséssemos interpretar ambas as narrativas com o critério da historia natural, logo notariamos evidentes contradigoes. Na Biblia, devemos distinguir 0 contetido da palavra revelada de sua forma, pois ela é obra comum de Deus e dos homens para os homens. O que € necessdrio & nossa salvagao é revelagao divina e tera o homem, o homem concreto. Toda a antropologia se concentra no validade eterna. Porém, a sequéncia na criagao das plantas e animais problema da origem, natureza e destino do homem. Este preocupa-se -€ outras coisas semelhantes sao acidentais. com sua entrada na histéria do mundo porque ela o relaciona inti- ___ Naprimeira narragao, logo nos cai em vista a intengao artistica mamente com o futuro. Mas os primeiros capitulos do Génesis nao do autor, manifestada na simetria dos ntimeros € no uso consciente nos informam no concernente as questdes cientificas, reservadas ao ‘de certas palavras. Por que o autor, um sacerdote, redigiu a primeira homem no oficio de “administrar a terra”. Gn 2,15 fala do “jardim do marragao nessa forma? — Ele quis dizer que o mundo foi criado por Eden”, que os homens devem guardar e cultivar. O domfnio do homem Deus com sabedoria e ordem, que Deus € tinico e origem de todas as sobre a terra deveria corresponder & atividade de um jardineiro que isas e o homem foi criado a sua imagem e semelhanga. O sabado é cultiva e preserva. Nao se fala de exploragao ou cultura exaustiva. 0 dia do descanso. E conhecido que o texto foi escrito para ser lido A dupla narragao do Génesis permanece sendo a primeira fonte ‘nas sinagogas, onde o preceito de santificar 0 sabado jé existia antes para a visdo do problema teoldégico. O primeiro capitulo é 0 portal da redagao do Génesis, particularmente o primeiro capitulo, que de entrada a Béblia porque apresenta a relagdo fundamental entre 0 posterior ao segundo. O autor entende mostrar que Deus quer 0 homem, Deus e 0 mundo. E 0 grande prélogo a histéria salvifica e no ‘itmo do trabalho e do descanso. O Deus que descansa é o Deus que uma introdugio a ciéncia natural. Isso decorre claramente de toda se alegra com a sua criagao. Por isso, somente o sdbado é a plenitude a leitura atenta e imparcial quando comparamos as duas narrativas € a coroa da criagao. Os homens que celebram o sdbado percebem entre si. Os autores constroem-nas a partir de diferentes pressupostos- © mundo como criagao de Deus. Deus cria o mundo e logo faz dele ua morada. O sdbado é a prefiguragao do mundo futuro. Os cristaos celebram o primeiro dia da semana como a festa da ressurreigdo, pois © primeiro dia da nova criagao. A sequéncia da segunda narrativa contraria claramente os dados fa primeira e da ciéncia atual. Por isso podemos admitir que a sequén- Cia nao pertence a fé, pois, do contrario, o autor da redagiio final teria liminado tais contradigdes evidentes. O autor da obra dos seis dias O autor da primeira supe um estdgio inicial cadtico das aguas. Cov mega a narra¢ao da obra dos seis dias com aquela frase lapidar: “No principio Deus fez o céu e a terra”. O autor da segunda narracao us? 0 deserto da estepe como pano de fundo, a estepe como 0 beduino 4 conhece. A sequéncia, na ordem da criagao, difere bastante entre 4 primeira e a segunda narrativas. A primeira orienta-se na ordem dos graus de ser tais como o homem hoje ainda os encontra no mundo. 158 ANTROPOLOGIA TEOLOGICA ORIGEM DO HOMEM: CRIAGAO OU EVOLUGAQ? 159 3 - Ohomem ocupa posigao de sua preferéncia a todas as cria- turas (visiveis). Tudo foi criado em vista do homem. E o homem foi criado & imagem e semelhanga de Deus. 4- Ohomem foi criado bom. “Deus viu que tudo era bom”, mas o homem era “muito bom”. 5 - Apesar disso o homem caiu em pecado. 6- Deus criou o homem varao e a mulher. Homem e mulher constrdi artisticamente seu discurso para mostrar a perfeigao de Deus, que fez tudo bom. A segunda narrativa € orientada mais antropolo- gicamente. A sequéncia é: terra, homem, plantas, animais, mulher... Ambas as narrativas tém, pois, o homem como centro qualitativo da criagao na sua relagaio com o Criador. Javé cria tudo com uma simples palavra. Mas ele fez o homem & sua imagem e semelhanga. Lendo a Sagrada Escritura, interrogamo-nos acerca da inten- tém igual dignidade, coisa naquele tempo nada evidente. (Nenhum animal era companheiro digno para o homem.) 7- O matriménio e sua consumagao constituem parte inte- grante do plano da criagao. Nao sao apenas consequéncia da queda do homem. Gao do autor inspirado para sabermos o contetido da fé. Nao é facil discernir, 4 primeira vista, até que ponto o problema da origem e do futuro do homem se situa no campo da fé ou da ciéncia natural, Sabemos que o contetido da fé revelada sempre permanece 0 mesmo através dos tempos. Pode, contudo, mudar nossa relagao 4 mesma, a sua formulagao, a qual nao poderd ser atemporal. Por isso, a formula- Gao querigmatica de nossa fé sempre estd condicionada também pela nossa viséo do mundo. Quando pregadores e tedlogos trabalharem numa viséo do mundo ultrapassada, facilmente comprometem a compreensao do contetido da fé, dando a impressio de que, para ser cristao, € preciso ser retrégrado ou até mesmo reaciondrio. Criam uma barreira entre a fé e a razao. Sabemos que algum dia o homem entrou na Histéria. Mas ele entrou tao silenciosamente que nao percebemos os vestigios de seus primeiros passos. Nao sabemos como, quando e onde nasceu 0 primeiro homem. Em todo o caso, a revelagiio divina silencia esse problema. Debrugarmo-nos sobre 0 livro do Génesis para buscar tais respostas seria inutil. Em breve terfamos que desistir decepcionados, tao de- cepcionados como a crianga que abre a barriga de uma boneca para ver o que hd dentro. Nao vé nada do que gostaria de ver. As referén- cias que encontramos no Génesis as quest6es acima citadas sao tao Seré dificilimo descobrir mais contetido de fé nas duas narrativas do Génesis. Tal dificuldade, em parte, esta condicionada pelo préprio género literario, problema que aqui s6 mencionamos. Cremos que também sera dificil para a exegese ultrapassar essas verdades funda- mentais. Elas esto emolduradas numa forma extensa, impressionante e épica. A importancia do tema levou a narracao dupla. Mas a verdade expressa é simples. As particularidades que af encontramos estado em. fungao do todo. Podem tornar-se ridiculas quando isoladas. Se o autor biblico escrevesse hoje, certamente usaria forma literaria adaptada ao nosso tempo. Por outro lado, também sabemos que nio teria sentido se a revelagao tivesse chegado a nés em formas totalmente abstratas, pois a revelagao é a entrada palpavel da palavra de Deus no mundo da histéria concreta. Encarnou-se ela na linguagem. humana, numa determinada linguagem humana. Por isso, a Biblia € obra comum de Deus e dos homens. Os autores humanos sao teste- Munhas da revelagao, pensando e falando na lingua do tempo e de Seu povo, pois quiseram ser compreendidos. O homem moderno chegou a uma mundividéncia dindmica, como no caso do evolucionismo. Nem por isso tornou-se ele menos Teligioso e mais ateu, se bem que 0 evolucionismo nio seja varinha igica para resolver todos os problemas. O homem tem o sagrado lever de estudar o mundo porque o Senhor lhe ordenou: “dominai marginais que certamente nao pertencem & revelagao divina. Para @ fé convém buscar apenas 0 que 0 autor inspirado intencionou dizer. No que se refere ao nosso problema, podemos resumir brevemente todo o contetido de fé do Génesis: 1- O mundo foi criado por Deus do nada. 2- O homem € criatura de Deus, isto é, Deus 0 colocou 9° mundo e na Histéria por livre decisao. 160 ANTROPOLOGIA TEOLOGICA ORIGEM DO HOMEM: CRIAGAO OU EVOLUGAQ? 161 Diz 0 Catecismo: “Eis uma verdade inseparavel da fé em Deus Criador: Deus age em todo o agir das suas criaturas. E € a causa pri- meira que opera nas causas segundas e através delas: Pois é Deus quem opera em v6s 0 querer e 0 operar, segundo a sua vontade (Fl 2,13)” (n. 308). Por isso, se admitimos a evolugao, contudo nao podemos pres- cindir do Criador, no qual tudo tem sua origem e seu destino tiltimo. Pelo fato de nao ter criado direta e imediatamente todas as coisas, ‘nao deixa de ser criador de tudo. Ele cuida de sua obra através dela, uu seja, mediatamente. Louvemos nosso Criador e Senhor, pois ele Jo s6 fez, mas ainda faz maravilhas. No seu Comentério ao Génesis, Agostinho adverte, e sua adver- ncia permanece atual a terra” (Gn 1,28). A fé nao exige o sacrificio da razdo do crente, Também 0 evolucionismo deverd supor a criagao e 0 futuro do homem, Assim, ser dificil haver inconciliabilidade entre ciéncia e fé nessa questo. De momento, 0 tedlogo apenas devera interrogar se convém, expressar-se na mundividéncia evolucionista, sem ser mal-entendido, pelos ouvintes. A pregagdo tem o dever de fazer a revelacgao presente em nosso tempo. Essa é uma consequéncia da encarnagao de Cristo, ea Igreja fé-lo desde o inicio. Uma das causas de os quatro Evan- gelhos e Paulo se expressarem de maneira completamente diferente um do outro esta condicionada pela compreensao dos ouvintes. Na Palestina, a pregacao primeiro se serviu da cultura judaica; depois, no Império Romano, da grega e da romana. No curso da Historia, essa cosmovisao foi superada, mas nao o contetido da fé. Os antigos Padres da Igreja, evidentemente, criam que Deus fizera o homem de barro, no sentido literal de nosso texto. Isso, porém, nao constitufa nenhum problema de fé para eles. Alguns até apresentam vestigios de visio evolutiva. Santo Agostinho compara a terra com uma mae Normalmente, mesmo um nfo cristo sabe alguma coisa sobre a terra, os céus e outros elementos deste mundo, sobre o movimento e a 6rbita das estrelas e mesmo seus caminhos e posigies relativas, sobre eclipses previsfveis do sol e da lua, os ciclos dos anos e das estagdes, os tipos de animais, arbustos, pedras, e assim por diante. Tais conhecimentos ele sustenta, tendo-os como certos por conta da raz4io e da experiéncia Agora, € algo vergonhoso e perigoso para um infiel ouvir um cristo que tira conclusées precipitadas a respeito do sentido das Sagradas Escrituras e diz frivolidades sobre esses tépicos; devemos empregar todos os meios para evitar esse tipo de situagdo constrangedora, na qual as pessoas mostram seu vasto desconhecimento sobre os cristaos e fazem pouco caso deles. E muita vergonha, nao porque um individuo ignorante ¢ ridicularizado, mas porque as pessoas que no conhecem a religidio acham que nossos sagrados escritores sustentam tais opinides e, infelizmente, para aqueles Por cuja salvacao trabalhamos com ardor, os autores de nossas Escritu- ras so criticados e rejeitados como se fossem homens ignorantes. Se encontrarem um cristaéo cometendo um erro em um campo que eles conhecem bem e 0 ouvirem defendendo suas opinides idiotas sobre nossos livros, como acreditarao nesses livros e em assuntos referentes & ressurreigdio dos mortos, a esperanga de vida eterna e ao reino dos céus, quando pensam que suas paginas se acham cheias de falsidade sobre fatos que eles aprenderam pela experiéncia a luz da razio? (19, 39) gravida, da qual brota continuamente vida nova. Com isso queria explicar o aparecimento de vida nova. A teoria evolucionista conduz-nos a representagdes mais sdbrias sobre Deus, nao 0 colocando mais tao 4 margem dos acontecimentos, 1 onde a fraqueza humana fracassa. Deus esta presente e ativo em cada momento da evolugdo do mundo, transcendendo-a. Assim, a visdo evolucionista apresenta chances grandiosas para uma melhor compreensio da hist6ria salvifica. A hist6ria da natureza, convergindo para o homem e nele para Deus, ganha sentido. O homem ¢, assim, ao mesmo tempo, eixo e flecha da evolugo. Nele e gracas a ele, a criagdo converge para Cristo. Ele é 0 acabamento final da cria¢a0- E, da mesma maneira como 0 nascimento de Cristo foi preparado n° povo de Israel, toda a humanidade agora deverd preparar sua segunda vinda para o acabamento total, através do trabalho, da ora¢a0; da ciéncia e da técnica. Segundo Teilhard de Chardin, esta humanidade se concentra mais através da economia, ciéncia e relagdes sociaiss 2 fim de ser mais, isto é, de saber mais, unit-se mais e amar-se M4 Para a fé do crist’io, ndo constitui nenhuma dificuldade aceitar para unir-se, enfim, a pessoa de Cristo no amor. Deus deu o inicio ao mundo, seja na forma de algo material ou de 162 ANTROPOLOGIA TEOLOGICA design inteligente, inserindo nele todas as leis que dirigem sua evoly_ Gio. Por que Deus criaria do nada o que se pode originar por evolugaio? Enfim, o cristao nao deve ter medo das ciéncias. Deixa a ciéncia ser ciéncia. Hipéteses ou crengas cientificas como a do evolucionismo ou do Design Inteligente nao abalam sua fé. Se a ciéncia nao prova a existéncia de Deus, muito menos provard sua nao-existéncia. Deus € 0 criador nao s6 do mundo, mas também da inteligéncia humana, com suas possibilidades e seus limites. Por que Deus nao agiria de maneira ordindria no mundo por meio de sua obra? O tedlogo Hans Kiing, em seu O principio de todas as coisas, afir- ma que ciéncia e religido (fé) possuem, uma e outra, suas razdes, sua autonomia e suas leis préprias. Mas, no ambito de uma visao global de todas as coisas, elas se podem completar: — A religido pode interpretar a evolugao como criagao. — Oconhecimento cientifico pode ver na criagao um problema evolutivo concreto. — Assim, a religiao pode atribuir um sentido a evolugao como um todo que a ciéncia nao consegue deduzir, mas do qual, no maximo, ela consegue suspeitar (p. 206). Do ponto de vista teoldgico, 0 ato da criagao € um ato fora do tempo, pois € através dele que surge o tempo. Na concepgao dos bi- logos, parece desnecessdria uma intervengao sobrenatural de Deus na origem e no desenvolvimento da vida. Por outro lado, a biologia, enquanto ciéncia, nao inclui nem exclui um criador nem uma meta ultima de sentido. Mas, como pessoa humana, também o cientista defronta-se com a questo da origem e do sentido tltimos de todo o processo. Embora 0 cientista nao saiba respondé-la, nao deveria fugit. Os cientistas até podem inquirir 0s cristdos se estes percebem que sua consciéncia continua atrasada de séculos em relagdo 4 Modernidade- Mas, por sua vez, os cristaos também devem inquirir os cientistas 5° estdio conscientes da irresponsabilidade de muitas de suas atividades na manipulagao da prépria vida e da exploragio de nosso planeta Enfim, podemos concluir: a) Criagéo do nada é um conceit biblico-teolégico e refere-se ao comego absoluto do mundo ¢ 4° _ ORIGEM DO HOMEM: CRIAGAO OU EVOLUGAO? 163 homem. Todavia, nao significa que Deus tenha feito o homem e o mundo diretamente como sao hoje. b) Evolugdo é um conceito cien- tifico e refere-se ao dinamismo presente e atuante no universo em transformagao. c) Criagdo e evolugao sao conceitos complementares, pois a evolugao pressupde algo que possa evoluir (energia, matéria). Deus € a causa primeira que normalmente age no mundo através das causas segundas. Por isso 0 cristéo nao deve ter medo de deixar a ciéncia ser ciéncia, pois ela apenas € ciéncia. Foi Deus quem deu a inteligéncia ao homem para fazer ciéncia e administrar responsa- yelmente sua obra maravilhosa. A fé abre-nos e orienta-nos para o mistério que sempre permaneceré mistério. Referéncias CHARDIN, Pierre Teilhard de. Le phénoméne humain. Paris: Editions du Seuil, 1955. __. L’Activation de l'énergie. Paris: Editions du Seuil, 1963. Le Milieu divin. Paris: Editions du Seuil, 1957. Lapparition de "homme. Paris: Editions du Seuil, 1956. Die Schau in die Vergangenheit. 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