You are on page 1of 5
Pen) Aimportancia do chamado soft power no paradigma realista classico Hugo R. Suppo! conceit de soft power atualmente domina praticamente todas as andlises da politica internacional, nas quais 0 fator cultural & evocado, Joseph S. Nye, preocupado em encontrar uma solugdo para © declinio relativo dos Estados Unidos, enunciado por Paul Kennedy (The rise and fall of the great powers, 1988), foi quem elaborou esse novo conecito (Sofi Power: the means to suc- cess in world politics, 2004). Existem, segundo Nye, dois tipos de poder com seus respectivos recursos de ago, como mostra o quadro a seguir: ‘Hard Power ‘Sofi Power Cerio Composigio da agenda Espectro de Convencimento Atragio comportamentos Comando Cooptagio = Forga Instituigdes 7 Pagamentos Valores Reeursos mais proviiveis Sao Caer Subornos Politicas 1. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Pen) A cultura, que faz parte do chamado soft power, 6 a base do poder dos estados na chamada “era da informagiio”: 5 Politicas Comportamentos | Meios Fundament Gee ' Cosrgio Diplomacia Poder Militar | Restrigdes Ameagas coereitiva Protegio Forgas Guerra Alianea : ‘Ajuda Poder Econdmico | fedusée Eocrmattes Subomo Coercio Sancies ‘Sangoes Valores Diplouucia piblica Atragiio Cultura Diplomacia SofiRawer Proposig&o da agenda | Politicas bilateral e Instituigdes multilateral A cultura norte-americana — uni versal, sincrética e capaz de esta- belecer um conjunto de normas ¢ instituigSes que possam exercer a govemnanga global — é, nesse sen- tido, um poderoso instrumento. A globalizagao econdmica © social niio produz homogeneidade cultu- ral, entretanto, a cultura, a ideolo- gia ¢ as instituigées norte-ameri- canas continuam a ser extraordi- narios meios de poder intangiveis, capazes de seduzir, persuadir atrair. Segundo Nye: “Nao ha como escapar 4 influéncia de Hollywood, da CNN e da internet. O5 {filmes e a televisdo americanos expri- ‘mem a liberdade, 0 individualismo e a ‘mudanca (tanto quanto 0 sexo e vio Hencia). Geralmente, 0 alcance global dda cultura dos Estados Unidos contr- Ibui para aumentar nosso soft power {poder brando}, ou seja, a atragio Ideologica e cultural que exercemos.” ive, 2002: 14) Esses recursos de poder brando (atragdo cultural, ideologia © instituigdes internacionais) ndo so novos, mas, no mundo atual, eles so os recursos de poder ‘mais importantes. A temitica jé tinha sido abordada, € no apenas de forma tangencial, pelo realismo classico, sem usar, evidentemente, 0 conceito de soft power. A cultura & considerada por Nye como um instrumento de poder, em certo sentido como os realistas j4 0 faziam, mas agora elevada a elemento principal. 0 objetivo deste trabalho é, justa- mente, analisar como o chamado soft power era apresentado e inte grado nos pressupostos da aborda- gem teérica realista classica O realismo clissico ¢ 0 “soft power 0s estados, para os realistas, sio os atores principais nas relagdes inter- nacionais, so monoliticos se comportam da mesma maneira - de uma forma racional - para maximi- zat seu poder. Nesse sentido, a cul- {ura nao teria, em principio, nenhu- ‘ma influéncia determinante no seu comportamento. Entretanto, o fator cultural nao é eliminado, a0 con- trario, ele € considerado uma fonte de poder que pode influenciar os meios, a forma ea intensidade pela qual esses estados procuram aumentar seu poder. A cultura pode, entio, transformar-se em elemento que pode até ser a causa principal das guerras entre os esta- dos, quando se transforma em ideologia messidnica Dessa forma, os trés grandes auto- res clissicos da escola realista, Edward Hallet Carr, Hans J. Morgenthau e Raymond Aron consideram o fator cultural rele- vante nos seus paradigmas. Para Morgenthau o papel da cultu- ra tem trés dimensdes: i? Pen) 1) 0 “imperialismo cultural”: Yo imperialismo militar procura a conquista militar, o imperialismo econdmico, a exploragdo econd- mica de outras nagdes ¢ o imperia- lismo cultural, a substituigio de uma cultura por —outra.” (Morgenthau, 1992: 83-84), Desses trés métodos o imperialis- mo cultural € © mais “sutil”, o mais efetivo, porque persegue “o controle das mentes dos homens como ferramenta para a modifica- fo das relagdes de poder entre as nagdes.” (Morgenthau, 1992: 84). Morgenthau prefere o termo cul- tura a ideologia porque ele englo- ba todo tipo de influéneia intelec- tual com 0 objetivo de preparar 0 terreno para a conquista militar ou a penetracio econémica. Dois exemplos ilustram este fendmeno de “quinta coluna”, caracteristica marcante dos sistemas totalitarios: = a grande influéncia da ideologia nacional-socialista na Austria e na Franga, explicaria o fato do governo dda primeira ter convidado, em 1938, o exército alemio a ocupar o pais; ¢ da segunda ter organizado um governo de colaboragio em Vichy. ~ a Internacional Comunista instru mentalizando todos os partidos comunistas do mundo em beneficio dos interesses da Unido Soviética, No entanto, alerta Morgenthau, “o emprego das simpatias cultu- raise das afinidades politicas como armas do imperialismo é quase to antigo como proprio imperialismo.” Nesse sentido, todas as poténcias utilizaram na histéria esse método: 0 Czar da Riissia a religido ortodoxa, a Franga republicana sua “mission civilisatrice” etc. 2) © “modelo cultural” de cada nagGo determina um certo “carter nacional”, elemento intangivel constitutivo do poder nacional. “carter nacional” é, junto com a “moral nacional”, as qualidades da diplomacia ¢ do govemo, um dos componentes qualitativos da poblagio de um estado. ‘Morgenthau considera importante esse fator, apesar de sua intangibi- lidade e, segundo ele, desconside- ré-lo levou a graves erros politicos como, por exemplo, ter menospre- zado a capacidade de recuperagio alema apés a primeira guerra mundial ou ter subestimado o poder russo em 1941-1942. 3) “O problema da comunidade mundial ¢ moral e politico, € no intelectual © —_estético.” (Morgenthau, 1992: 596), A cultura nfo constitu um fator de paz no processo de constituigo de uma hipotética comunidade mundial preliidio criagdo de um Estado mundial: “o fato que membros de iferentes nages compartilhem as mesmas experiéncias intelectuais € estéticas ndo cria uma sociedade, pois isso ndo origina ages morais © politicamente relevantes por parte dos membros de ditas nagdes com respeito a aqueles que ndo compartem ditas experiéncias.” (Morgenthau, 1992: 594). Nesse sentido, o papel da Unesco difun- dindo e fazendo progredir a cultu- ta € a educagdo, néo tem influé cia alguma em relagio & com- preensio internacional e & paz. Para Edward Hallet Carr, o lugar da moral, entendida na politica internacional como o “estoque internacional de ideias comuns” (Carr, 2001: 188), “é o problema mais obscuro e dificil de todo campo dos estudos internacio- nais” (Carr, 2001: 189). A aborda- ‘gem idealista erra, segundo ele, a0 considerar esas ideias comuns pairando de certa forma acima dos interesses nacionais como susten- taculo de uma comunidade inter- nacional porque as relagdes entre Estados sio baseadas exclusiva- mente na desigualdade e governa- das apenas pelo poder, ndo hd valores morais acima dele: “Qualquer ordem moral interna- cional deve repousar sobre algu- ma hegemonia de poder” (Carr, 2001: 216). © poder politico na esfera internacional é baseado, consequentemente, em trés pode- res interdependentes: o militar, 0 econdmico e sobre a opinido, que & exercido, no mundo modemo, através da propaganda de certas ideias, Entretanto, alerta Carr, cessas ideias s6 se tornam realmen- te politicamente eficazes quando um poder politico nacional as encama € as une ao poder econd- mico e militar. Foi isso que acon- teceu com os idéais da Revoluedo Francesa durante 0 Império ‘Napolednico, com o livre comér- cio com a Grd-Bretanha, com 0 comunismo com o stalinismo, com o sionismo pelas grandes poténcias ete. regime soviético foi o primeiro a utilizar a propaganda (Inter- nacional Comunista) como um instrumento normal das relagdes i? intemacionais, por causa de sua fraqueza militar ¢ econémica. A propaganda tomou-se, assim, uma “arma politica nacional”, utilizada no tertitério do inimigo. O exem- plo sera rapidamente imitado, Por exemplo, a criagdo, em 1935, do British Council teve como objeti- vo “tomar a vida e 0 pensamento do povo britinico mais ampla- mente conhecidos no exterior”. O enorme poder desta nova arma politica levou a varias tentativas de regulamentar seu uso entre as grandes poténcias. Por exemplo, uma série de acordos bilaterais para climinago da propaganda hostil foram —_assinados: (Alemanha ¢ Polénia, em 1934; Alemanha e Austria, em 1936; Gra-Bretanha € Itélia, em 1938). Durante a Segunda Guerra mun- dial, chegou-se mesmo a impor a censura direta da radiodifusio, cinema e imprensa. © poder sobre a opinido & condi- cionado “pelo status ¢ pelo interes- se”, assim como pela superiorida- de econémica e militar, que permi tem facilmente impor essas ideias a outros. Quer dizer entio que o poder da propaganda é ilimitado? 2, “Quelle que soit la constance que Von atsi= bbue aux Frangais, aux Allemands, aux [Espagnols, aux Anglais ental que peuple un earactrepsycho-cultuel n'est jamais seul re ponsable de a condute diplomatico-stratégi- ‘que d'une unit politique.” 3. (..) “se manifest parle échange commer au, es migrations de personnes, les eroyan- ees communes, les organizations qui passent par-desss les fntires, enfim les céeémonies ‘ou compétitons ouvertes aux membres de tou tes les unis" E, H. Carr responde que nfo, ele é limitado de duas maneiras: ~ as ideias t8m que conservar um minimo de veracidade, algum grau de relacionamento com os fatos. ~ a propria natureza humana tende a rejeitar “a doutrina de que a forga faz direito”. E. H. Carr conelui: “Una ondem internacional ndo pode se basear apenas no poder, pela simples raat de que a huumanidade, a longo raze, sempre se revoliaré contra 0 ‘poder puro. Qualguer ondem internacio- ral pressupie uma dase substancial de ‘consentimento geral." (Care 2001, 301) Raymond Aron se exprime em ter- mos similares quando define os trés_objetivos perseguidos por todos os Estados na sua politica extema; poténcia, gloria e ideia, ‘Toda politique de puissance, quan- do se exerce em tempo de paz, entre dois paises amigos, limitada pela falta de meios econémicos ¢ politicos de pressdo, privilegia ou se limita apenas ao uso da persua- sto, Nessa situago, segundo Aron, entram em jogo dois grandes ato- res: 05 diplomatas e os intelectuais, “os soldados dos tempos de paz”. Os primeiros procurando sempre “recrutar aliados ou a reduzir 0 niimero de seus inimigos” (Aron, 1984: 101) e os segundos cons- truindo ligagdes profundas, esti- mulados pela defesa ¢ busca da grandeza e gloria da patria, Aron estabelece uma tipologia dos sistemas intemacionais basea- do em valores: homogéneo (Estado do mesmo tipo ¢ concei- Go politica) e 0 heterogéneo (valores contraditérios). Para Aron, o cultural tem ainda duas outras dimensdes: 1) as singularidades do “carter nacional” (a cultura) determinam a conduta diplomitica ou estraté- gica de um Estado. Ha um estilo particular de politica estrangeira que esti ligado, segundo as situa- ges, a0 céleulo racional, ou as tendéncias psicossociais do siste- ma cultural, Por exemplo, na Gra- Bretanha é a economia e no caso da Franga € a gloria. Entretanto, alerta Aron: “Qualquer que seja a constincia atribuida aos france- ses, alemaes, espanhois e ingleses como povos, um cariter psicocul- tural jamais € o ‘nico responsével pela conduta diplomética-estraté- gica de uma unidade politica.”? (Aron, 1984: 293). As “constan- cias” esto mais ligadas a fatores geograficos, técnicos e politicos. 2) existe uma sociedade interna- cional (antecipando um dos temas centrais da abordagem transnacio- nal dos anos 1970) que “se mani- festa através dos intercdmbios comerciais, das migrages de pes- ssoas, das crengas comuns, as orga- nizagSes que passam por cima das fronteiras, enfim das ceriménias ‘ou competigdes abertas aos mem- bros de todas as unidades.”3 (Aron, 1984: 113) Consideragées finais Em 1979 Kenneth N. Waltz elabo- ra uma resposta (Theory of i? Pen) Ey ee tars International Politics) as criticas que vinha sofrendo o realismo, Kenneth Waltz distingue, nesse texto que se tomaria o manifesto do chamado neorealismo, dois niveis de anilise: o sistema intemacional (0 Imico que Ihe interessa) e o comportamento dos ato- res (os estados). Em consequéncia, Waltz na sua pro- posta de “realismo sistémico” deixa de lado todas as variaveis (regime interno, ideologias, cultura, siste- ma econémico etc) que explicam para o realismo clisssico 0 comportamento ¢ a personalidade dos estados, concentra unicamente suas anélises na uni- dade do sistema e no papel das estruturas. O sistema, cuja dindmica é baseada em uma tinica variavel inde- pendente (a assimetria da configuragao sistémica), ¢ em uma iinica varivel dependente (a grande proba- bilidade de uma guerra entre as grandes poténcias, sobretudo quando elas sio numerosas), ¢ uma totali- dade abstrata que impde aos atores restrigdes e thes condiciona o comportamento. A estrutura do sistema internacional determina o comportamento das unida- des que 0 compoem, funcionalmente indiferenciadas, na base de trés principios: ordenador (hierirquico ou andrquico), de diferenciagao e de distribuigao, chamado realismo estrutural, situado no aprofun- damento das questoes levantadas em Theory of International Politics, ignora também completamen- te a dimensio cultural, como fica evidente no livro Theory of international Politics publicado em 1993, por Barry Buzan, Charles Jones ¢ Richard Little. Dessa forma, apenas os trés “pais fmdadores” da teoria realista (Edward Hallet Cart, Hans J. ‘Morgenthau ¢ Raymond Aron) consideram impor- tante o fator cultural e ele aparece sob as quatro dimensdes evocadas anteriormente: 4) instrumento essencial na luta pelo poder: ~ imperialismo cultural (a sedugdo) - politica de prestigio = ideologia b) elemento do poder nacional = 0 cardter nacional (elemento imaterial, intangivel) ~ a identidade cultural nacional ©) uma espécie de “limitador” do poder nacional ~ a moral internacional - a opinido piblica - 0 direito intemacional 4) uma “provivel” causa das guerras: os “messianis- mos” Concluindo, para 0 realismo classico 0 chamado soft ‘power & um recurso de poder que pode nao s6 influen- ciar os meios, a forma ¢ a intensidade pela qual esses estados procuraram aumentar seu poder, como tam- bém tomar-se um elemento que pode até chegar a ser © motivo principal da guerra entre os Estados, quando se transforma em ideologia messianica. Referencias Aron, Raymond (1984) Paix et Guerre entre les nations, Paris, Calmann-Lévy. Carr, Edward Hallet (2001) Vinte anos de crise: 1939-1945, Uma introdugao ao Estudo das Relagoes Internacionais, Brasilia, Editora Universidade de Brasilia, Morgenthau, Hans J (1992) Politica entre las nacio- nes. La lucha por el poder y la paz (1948 1* ed.), Buenos Aires, Grupo Editor Latinoamericano. Nye Jr, Joseph S (2002) O paradoxo do poder ame- ricano. Por que a itnica superpoténcia do mundo nao pode prosseguir isolada, Sio Paulo, Editora UNESP. Nye Jr., Joseph S. Soft Power (2004) The means to success in world polities, New York, PublicA ffairs. Waltz, Kenneth N (2002) Teoria das relagdes inter- nacionais, Lisboa, Gradiva, i?

You might also like