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Lia Seixas2
Resumo:
Com as mídias digitais surgiram novos formatos na produção jornalística. Propriedades como a
multimidialidade são algumas das principais responsáveis por novas relações operadas entre
códigos lingüísticos (texto, áudio, imagem estática, imagens em movimento, animação) na
formação de novas composições. No entanto, mesmo com todas as mutações em prática, não se
construíram ainda novos gêneros. Por quê? Se temos novos dispositivos, com nova tecnologia e
novo tipo de interação, por que não se pode dizer que esses formatos seriam novos gêneros? Nossa
base de fundamentação está na Pragmática da Comunicação (Austin, Searle), na Análise do
Discurso (Maingueneau) e principalmente no conceito de “formação discursiva” de Foucault, em
que se inspira o conceito de FDJ (Ringoot e Utard).
Palavras-chave:
1 gênero jornalístico 2 jornalismo digital 3 discurso 4 formação discursiva 5 análise do discurso
Introdução
Os gêneros jornalísticos são estudados no Brasil por cada mídia em separado, mas nunca por
mídia e domínio, levando-se em conta a “formação discursiva” da atividade social. Fala-se de
'gêneros digitais', 'gêneros jornalísticos', 'gêneros televisuais' e 'gêneros radiofônicos'. Enquanto a
mídia é considerada um critério de genericidade, o domínio é colocado em segundo plano. Se “a
diferença entre as mídias é, igualmente, uma diferença de gêneros”3, como acreditam a sócio-
semiótica e setores do campo da comunicação, não seria possível falar em gêneros jornalísticos. Só
podem existir gêneros jornalísticos, se o domínio for determinante para a genericidade de tipos
discursivos.
Com o surgimento das novas mídias, o discurso freqüente é de que surgiram novos gêneros
jornalísticos, de maneira a pressupor que uma mudança na mídia seria, conseqüentemente, uma
mudança de gênero. Acreditamos que, para a cristalização de um gênero, são necessários, pelo
menos, três elementos: 1) que a composição seja uma unidade jornalística independente; 2) as
finalidades não mudam apenas por causa da mudança da mídia e, portanto, não mudam os
compromissos assumidos; e 3) que a instituição tenha incorporado tal 'formato' como prática
1
Este artigo é parte da minha tese de doutorado « Por uma outra classificação » sobre os gêneros jornalísticos,
defendida no mês de agosto de 2008 no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas
da Universidade Federal da Bahia.
2
Jornalista, mestre em comunicação, atualmente doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e
Cultura Contemporâneas da Universidade Federal da Bahia. liaseixas@gmail.com
3
Machado, Irene. Por quê se ocupar dos gêneros?, in: Revista Symposium, ano 5, nº 1, Pernambuco, FASA,
janeiro-junho de 2001, p. 12.
jornalística. O objeto deste artigo é discutir os motivos pelos quais novos formatos se tornam novos
gêneros ou como a mídia interfere nestas mutações. Nesta análise, então, é preciso situar
primeiramente duas noções: a de mídia e a de formação discursiva jornalística (Ringoot e Utard),
cuja base é o conceito de “formação discursiva” de Foucault.
Essas linhas por onde se deve analisar o médium são as propriedades que ditam seus
regimes, sua lógica. É exatamente do que se trata quando se definem as propriedades das mídias
digitais: representação numérica (0 e 1), convergência, personalização, mobilidade (espaço de
fluxo), circulação rápida, instabilidade, memória, interatividade, compressão do tempo,
distancialidade, hipertextualidade (permite atualização contínua). A lógica do sistema digital está
baseada na linguagem 0 e 1, na operação e processamento de bits e, conseqüentemente, na
transmissão de informação, mais do que nos movimentos de corpos materiais (Echeverría). Os bits
podem se transformar em qualquer sistema semiológico e vice-versa. O fato de a mídia digital ser
multimídia, enquanto a mídia impressa é bimídia, demonstrou, para a prática jornalística, que os
sistemas semiológicos, ao invés de serem um limite, permitem diferentes representações capazes de
ser utilizadas com fins informativos.
Na internet, a lógica da oferta coexiste com a lógica da demanda, pois os sistemas digitais de
transmissão e estocagem mantêm o conteúdo em permanentemente acesso, geram a possibilidade de
personalizá-los, a troca individual, além daquele modelo tradicional um para todos (Wolton, 1999).
Por isso o pesquisador Marcos Palácios prefere caracterizar a internet como sistema 4. Se a internet
funciona como um sistema compartilhado por uma multiplicidade de sistemas sociais é exatamente
porque se constitui num sistema tecnológico de transmissão e estocagem com determinadas
características: ‘memória artificial e externa’ – estocagem infinita, organizada e acessível;
reticularidade - acesso à rede de qualquer dos seus nós; distancialidade – cuja distância é
tecnológica e real; onde não há a obrigatoriedade da troca sincrônica (como na TV e no rádio), pois
o tempo é ‘multicrônico’; e cuja malha global permite constituições de redes de qualquer tamanho –
locais, regionais, nacionais.
Nas mídias analógicas, a interação é mais fortemente influenciada pelo sistema de
transmissão do que no ambiente digital, onde o sistema tecnológico de troca de dados permite
diversos níveis de interação e variados modelos de comunicação. Enquanto o sistema de
transmissão analógico (do impresso) só permite o modelo unidirecional um⇒todos, no ambiente
digital, coexistem vários modelos comunicacionais: um ⇔ todos, um ⇔ um e todos ⇔ todos.
Sincrônicas ou assincrônicas, as trocas também podem ser de papéis (emissão e recepção).
O que importa na análise da dimensão tecnológica são os regimes imanentes ao dispositivo:
sistema semiológico, sistema de transmissão (troca), estocagem, nível de interação, relação tempo-
espaço particular, os tipos de redes técnicas do qual fazem parte (situada social e historicamente), os
valores culturais associados (como no exemplo do tablóide), incluindo aqueles relativos à dimensão
suporte: material, mobilidade e tamanho. Não podemos falar em dispositivo sem falar em suporte e
sistema tecnológico. Um dispositivo pode ter mais de um suporte, desde que os regimes sejam os
mesmos.
No ambiente digital, os regimes sofrem grandes transformações. Os sistemas tecnológicos
não determinam os sistemas semiológicos, já que os bits podem constituir texto, áudio, imagem ou
gráfico. Assim, fica exposta a importância do sistema de transmissão, autônomo em relação ao
dispositivo digital. Sem tecnologia capaz da troca de bites, o dispositivo não pode ser considerado
“midiático digital”, embora dotado de tecnologia digital. A tecnologia digital implode as
determinações interativas das mídias analógicas. Os diversos níveis de interação passam a ser
condicionados pelos modelos de negócios, estatuto dos participantes e possibilidades efetivas de
troca, segundo os sistemas disponíveis. É uma das condições de realização do discurso - estatuto
dos participantes – ao lado da finalidade reconhecida, objetos e lógica enunciativa.
(...) No caso em que se possa descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante
sistema de dispersão, no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os
conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem,
correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se
trata de uma formação discursiva – evitando, assim, palavras demasiado carregadas de
condições e conseqüências, inadequadas, aliás, para designar semelhante dispersão, tais
como “ciência”, ou “ideologia”, ou “teoria”, ou “domínio de objetividade”. (...) (Foucault,
1969: 53)
Os conceitos constituem uma base fundamental do discurso, “a partir do que” se fala. Para
compreendê-los, é preciso, segundo Foucault, descrever a organização do campo de enunciados em
que aparecem e circulam. Esta organização compreende: 1) sucessão e disposição de séries
enunciativas (como explicar, como descrever, como nomear), os tipos de correlação de enunciados
e os esquemas retóricos segundo os quais se podem combinar grupos de enunciados; 2) formas de
coexistência: a) campo de presença, relações da ordem de verificação; experimentação e validação
lógica; e b) campo de concomitância com outros objetos que aparecem em nosso discurso; e 3)
procedimentos de intervenção que podem ser legitimamente aplicados aos enunciados, como:
técnicas de reescrita, métodos de transcrição, modos de tradução, aproximação e exatidão dos
enunciados.
(...) Esta noção de dispersão permite pensar a heteronomia do jornalismo como constitutiva
e intrínseca. (...) Dispersão, no quadro da formação discursiva, não significa separação : ela
está sempre circunscrita no jogo de relações. A tensão entre ordem e dispersão do discurso é
traduzida aqui na estabilidade das lógicas de atores diversos. Se se reconhece uma ordem de
discurso jornalístico, se reconhece também uma dispersão extra-discursiva. (...) (Ringoot e
Utard, 2005, p. 43)
Ringoot e Utard defendem a necessidade de se analisar sistematicamente, portanto, as
realizações editoriais tomadas na rotina produtiva, os discursos, as lógicas de atores e ações extra-
discursivas e os dispositivos organizacionais e institucionais. A intenção, assim, é considerar a
comunidade discursiva jornalística, incluindo fontes e públicos, não limitada apenas à comunidade
profissional estrito senso.
Como analisado, a mídia não pode ser compreendida como uma condição de realização do
ato comunicativo, ao lado da finalidade reconhecida e do estatuto dos participantes. O dispositivo,
enquanto ambiente, matriz do enunciado, faz parte da lógica enunciativa, pela qual se configuram
os parâmetros de interpretação. No caso do gênero discursivo, não se pode dizer que qualquer
modificação no médium modifica o gênero. A questão é que tipo de modificação em qual
potencialidade pode implicar numa modificação e se é o caso de uma única propriedade ou uma
dada conjunção de propriedades. De saída, temos o fato de que uma grande quantidade dos
chamados gêneros jornalísticos existem nas duas mídias comparadas, tanto a impressa como a
digital. Pode-se começar a análise por aqueles que não existem numa mídia ou em outra.
Obviamente, o fórum e o chat só existem nas mídias digitais. A obviedade é explicada por
um dos elementos do médium: o sistema de transmissão. A interatividade exigida com a troca
simultânea para o chat e abertura do pólo de emissão em ambos só existe na tecnologia digital.
Outra necessidade é que a temporalidade seja sincrônica, quando todos estão em conexão ao mesmo
tempo, situação de troca impossível para os impressos. Mesmo com a mesa redonda (Table ronde)
dos jornais franceses (que ocorre no Brasil e na Espanha, mas não é considerado como um gênero)
em que se reúnem várias pessoas numa única entrevista, dentre estas pessoas não estão os agentes-
receptores, que apenas vão ler. É a mesma situação de troca de um notícia, porque é efetivamente o
ato de leitura.
A interatividade que a mídia tem como potencialidade não implica absolutamente que toda
composição desta mídia opere com o seu nível máximo, digamos. É o que se pode falar sobre a
televisão, cuja instantaneidade potencial do dispositivo foi submetida à lógica do médium. A grade
de programação da televisão analógica não permite que, a todo momento, se transmita um “ao
vivo”, embora seja obviamente possível esta estratégia de credibilidade do jornalismo televisual.
Vidéo
Affrontements à la gare du Nord
LEMONDE.FR | 28.03.07 | 09h17 • Mis à jour le 28.03.07 | 09h59
L'interpellation par des gendarmes d'un usager du métro circulant sans billet a dégénéré, mardi 27 mars, à la gare du
Nord, à Paris, en affrontements entre jeunes et forces de l'ordre.
Com a multimidialidade, o infográfico parece ter ganhado mais independência do que tem
em impressos. Semiologicamente, como explica Alberto Cairo, os infográficos são adequados para
“transmitir os dados frios, os dados duros”. A autonomia do infográfico enquanto unidade
discursiva independente e editoria, depende, assim, dos tipos de objeto de realidade que compõem a
ocorrência noticiosa:
(...) No caso do acidente de metro que houve em Valência, onde morreram 42 pessoas, a
infografia não permite contar como as famílias das vítimas experimentaram a tragédia. Por
outro lado, a infografia é muito melhor para explicar por que é que o comboio descarrilou,
por que chocou, onde chocou, quanta gente morreu, quanta gente está viva. A infografia é
muito melhor para transmitir os dados frios, os dados duros.5
5
Branco, Carina. "Infografia não é uma linguagem do futuro, é do presente". Entrevista com Alberto Cairo, in:
PortoNet, 11 de julho de 2006. Disponível em:
http://jpn.icicom.up.pt/2006/07/11/infografia_nao_e_uma_linguagem_do_futuro_e_do_presente.html.
Por trás, a premissa de que esta composição discursiva pertence à lógica informativa,
servindo assim como parte da força argumentativa. Embora a infografia digital possa ter várias
apresentações, condicionar a informação por navegação orientada (com um limite de poucos
caminhos) tem como base as categorias institucionalizadas no impresso e em outros domínios,
como a tabela para a hierarquização de dados, os gráficos para a visualização de uma tendência, as
pizzas para as porcentagens, os mapas para localizações espaciais, e assim por diante. Em alguma
medida, pode-se relacionar ao mesmo funcionamento dos tópicos, pois dialogam com parâmetros e
formatos de outros domínios, do próprio domínio do jornalismo e daqueles do saber social comum.
A editoria de Multimídia da Folha Online existe, independente, com uma equipe de quatro
pessoas, dois câmeras cinegrafistas e dois repórteres. A produção inclui, diariamente, um vídeo
chamado de “vídeo factual”, video-casts e programas fixos, um para cada dia da semana.
Consciente da necessidade de encontrar a linguagem audiovisual para o jornalismo digital, a editora
afirma que os video-casts – formato com linguagem televisiva em que a editora apresenta uma
notícia escolhida com os editores, como num telejornal – seriam um “adicional” para a matéria
informativa.
Esse exemplo revela que, por esta autonomia originada pela tecnologia, alguns formatos
venham a se institucionalizar como um gênero, mas a composição precisa ter autonomia também
6
Entrevista realizada com a editora de Multimídia Vivian Hetz no dia 23 de abril de 2008 para a tese « Por uma outra
classificação ».
como unidade discursiva, capaz de “dar conta” de uma notícia. As separações necessárias devido ao
sistema semiológico (texto, aúdio, imagem em movimento, gráfico) e ao sistema de estocagem (ao
próprio sistema de publicação, arquivamento) e transmissão dão independência discursiva a alguns
formatos, mas não é apenas essa independência que pode dar a autonomia necessária para se
configurar em um gênero jornalístico. A seção multimídia do Lemonde.fr tem vídeos, portfólios,
infografia e até mesmo som – que pode conter apenas uma declaração parte de uma notícia, uma
breve entrevista com um especialista ou ainda depoimentos de testemunhas –, todos, entretanto,
exceto a infografia, sem independência discursiva ou mesmo de estrutura organizacional.
Esta característica da audiência explica porque algumas colunas não são publicadas na Folha
de S.Paulo e na Folha Online, como as de Eliane Cantanhêde e Gilberto Dimenstein. As colunas
mais lidas na Folha de S.Paulo são as de José Simão, Carlos Heitor Cony e Clóvis Rossi.
Entretanto, são colunas não disponibilizadas no site noticioso. Talvez pela audiência que têm.
Espaço, condições tecnológicas existem no site da Folha Online, mas algumas colunas não
são publicadas senão no impresso. Ou seja, as características, propriedades ou potencialidades das
mídias influenciam na constituição de gêneros; não é qualquer modificação tecnológico que muda o
dispositivo de enunciação. Ele deve ser compreendido tendo-se em conta as condições das
finalidades reconhecidas e do estatuto.
Se realmente podemos falar de gêneros jornalísticos, então a mídia deve ter um lugar
secundário. Se colocarmos a mídia como uma condição determinante do ato de comunicação,
estaremos situando todas as propriedades da mídia com o mesmo grau de influência. A FDJA existe
para todas as mídias em que atua. Existe, portanto, uma regularidade entre objetos, estatutos, lógica
enunciativa, conceitos e estratégias. De uma forma geral, é razoável dizer que, seja na imprensa
escrita, seja na mídia digital, a atividade jornalística trabalha com a mesma formação discursiva,
principalmente se tratamos de um mesmo país.
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