You are on page 1of 36
A TECNOLOGIA DO GENERO* Teresa de Lauretis Nos escritos feministas ¢ nas préticas culturais dos anos 60 © 70, o conceito de género como diferenca sexual encontrava-se no cen- tro da critica da representacdo, da releitura de imagens e narrati- vas culturais, do questionamento de teorias de subjetividade e tex- tualidade, de leitura, escrita e audiéncia. O conceito de género como diferenca sexual tem servido de base e sustentagao para as intervengGes feministas na arena do conhecimento formal e abs- trato, nas epistemologias e campos cognitivos definidos pelas cién- cias fisicas e sociais e pelas ciéncias humanas ou humanidades. Em colaboracdo ¢ interdependéncia com tais intervencdes, claboraram-se praticas e discursos especificos criaram-se espa 0s sociais (espagos “‘gendrados”,** ou seja, marcados por espe- Cificidades de género, como o “quarto de mulheres”, os grupos de conscientizacao, os micleos de mulheres dentro das discipli nas, os estudos sobre a mulher, as organizacées coletivas de pe- riddicos ou de midia feministas, e outros) nos quais a propria diferenca sexual pudesse ser afirmada, tratada, analisada, espe- "The technology of gender" foi publicado em Technologies of gender, Indiana Uni- versity Press, 1987, pp. 30. Teresa de Lauretis ¢profesora do Departamento de Hist ria da Conscignsia da Universidade da California, Santa Cruz, e autora de lice doesn't Feminism, semioties, enema, The einematle apparatus, Fens studies ~ rial stud: ‘ese Technology of gender. ** Usiizo terme "gendrado” para designar “"marcado por espeificidades de géner” Assim, penso poder conservar 0 jogo que a autora faz ene 0s termos ‘gendrado" € encgendrado" (N. da) A TECNOLOGIA DO GENERO 207 Com sua énfase no sexual, a ‘‘diferenca sexual” é antes de mais nada a diferenca entre a mulher e o homem, o feminino (© masculino; e mesmo os conceitos mais abstratos de ‘“diferen- cas sexuais”” derivados nao da biologia ou da socializagéo, mas da significagdo e de efeitos discursivos (¢ a énfase aqui é menos no sexual e mais nas diferengas como “différance”) acabam sendo em tilkima andlise uma diferenca (da mulher) em relagéo ao ho- mem — ou seja, a propria diferenga no homem. Se continuar- mos a colocar a questéo do género em qualquer destas duas for- mas, a partir de um esboco completo da critica do patriarcado, © pensamento feminista permanecera amarrado aos termos do proprio patriarcado ocidental, contido na estrutura de uma opo- sigdo conceitual que esta “desde sempre ja” inscrita naquilo que Frederic Jameson chamaria de “o inconsciente politico”’ dos dis- cursos culturais dominantes ¢ das “‘narrativas fundadoras”” que Ihes sao subjacentes — sejam elas bioldgicas, médicas, leeais, fi- losdficas ou literarias — e assim tenderd a reproduzir-se, retextualizar-se, como veremos, mesmo nas reescritas feministas das narrativas culturais. ‘qualquer diferenca e todas as mulheres seriam ou diferentes per- sonificagGes de alguma esséncia arquetipica da mulher, ou per- sonificacdes mais ou menos sofisticadas de uma feminilidade metafisico-discursiva. 208 ‘TENDENCIAS E IMPASSES \der comecar a especificar este outro tipo de sujeito e articular suas relagdes com um campo social heterogéneo, ne- cessitamos de um conceito de género ane nao esteja tao preso a diferenca sexual a ponto de virtualmésww se confundir com ela, fazendo com que, por um lado, o género seja considerado uma derivacao direta da diferenca sexual ¢, por outro, 0 género possa ser incluido na diferenca sexual como um efeito de linguagem, ‘A TECNOLOGIA DO GENERO 209 investimentos conflitantes de homens e mulheres nos discursos e nas praticas da sexualidade, de fato exclui, embora nao invia- bilize, a consideracéo sobre o género. ‘A seguir, farei uma série de quatro proposigées, em ordem decrescente a partir da mais Sbvia, que serdo retomadas mais de- talhadamente no decorrer da andlise. (1) Genero é (uma) representagdo — o que nao significa que no tenha implicagdes concretas ou reais, tanto sociais quanto subjetivas, na vida material das pessoas. Muito pelo contrario. (2) A tepresentacdo do género é a sua construgao — e num sentido mais comum pode-se dizer que toda a arte e a cultura erudita ocidental sao um registro da histéria dessa construcdo. (3) A construcao do género vem se efetuando hoje no mes- ‘mo ritmo de tempos passados, como da eta vitoriana, por exem- plo. E ela continua a ocorrer nao s6 onde se espera que aconteca — na midia, nas escolas puiblicas e particulares, nos tribunais, nna familia nuclear, extensa ou monoparental — em resumo, na- quilo que Louis Althusser denominou “‘aparelhos ideoldgicos do Estado”. A construcdo do género também se faz, embora de for- ‘ma menos Sbvia, na academia, na comunidade intelectual, nas prdticas artisticas de vanguarda, nas teorias radicais, e até mes- mo, de forma bastante marcada, no feminismo. (4) Paradoxalmente, portanto, a construgdo do género tam- ‘bém se faz por meio de sua desconstrugo, quer dizer, em qual- quer discurso, feminista ou ndo, que veja o género como apenas uma representagdo ideolégica falsa. O género, como o real, é no apenas 0 efeito da representacdo, mas também o seu excesso, aqui- Jo que permanece fora do discurso como um trauma em poten- cial que, se/quando nao contido, pode romper ou desestabilizar qualquer representacéo. ‘Ao procurar o verbete “‘género”” no American Heritage Dictio- nary of the English Language, constatamos que se trata basica- mente de um termo classificatério. E uma categoria gramatical pela qual palavras ¢ outras formas gramaticais s4o classificadas de acordo nao sé com sexo ou com a auséncia de sexo (categoria 210 TENDENCIAS E IMPASSES (Lembro-me de um trabalho de Roman Jakobson intitulado ““O sexo dos corpos celestes”’, no qual, apés analisar o género das palavras sol e lua numa grande variedade de linguas, chega a es- timulante conclusao de que nao se pode detectar nenhum mode- Jo que apéie a idéia de uma lei universal determinante da mascu- linidade ou da feminilidade do sol ou da lua. Pelo que levanta- mos as méos aos céus!) fiano “genero” ¢ o francés “genre” nao possuem nem mesmo a conotacao do género de uma pessoa, que ¢ expresso pela pala- ‘ra sexo. Por isso, quer nos parecer que a palavra “genre”, ado- tada do francés para indicar a classificacdo de formas artisticas ¢ literdrias (originalmente a pintura), vera também esvaziada de qualquer denotacdo sexual, da mesma forma que a palavra “‘ge- nus”, etimologia latina de género, usada em inglés como um ter- ‘mo classificatério na biologia ¢ na légica. Um corolério interes- sante dessa peculiaridade lingitistica do inglés, i.., da aceitagao de género para se referir ao sexo, é que o conceito de género aqui discutido, e conseqiientemente a complexa questo da relacdo entre género humano e representagdo, so totalmente intraduziveis em qualquer lingua romanica, um problema, sem duivida, para al- guém que buscasse adotar uma postura internacionalista, para nao dizer universal, diante da teorizagio sobre género. A TECNOLOGIA DO GENERO au relacao de pertencer; assim, o género atribui a uma entidade, di- ‘gamos a uma pessoa, certa posicdo dentro de uma classe, ¢ por- tanto uma posigao vis-d-vis outras classes pré-constituidas. (Es- tou empregando o termo “‘classe’’ deliberadamente, embora sem querer aqui significar classe(s) social(ais), pois quero preservar aacepcdo de Marx, que vé classe como um grupo de pessoas uni- das por determinantes ¢ interesses sociais — incluindo, especial mente, a ideologia — que nao sfo nem livremente escothidos nem arbitrariamente determinado: (O género neutro em inglés, uma lingua que conta com géne- ro natural (devemos observar, a propésito, que a “‘natureza”” es- t4 sempre presente em nossa cultura, desde o seu inicio, que & exatamente a linguagem), ¢ atribuido a palavras que se referem a entidades assexuais ou assexuadas, objetos ou individuos mar- cados pela auséncia de sexo. 10.5 O que a sabedoria popular percebe, entio, € que género ndo € sexo, uma condi¢ao natural, e sim a representagao de cada in- dividuo em termos de uma relacdo social preexistente ao préprio individuo e predicada sobre a oposicao “‘conceitual”” e rigida (es- trutural) dos dois sexos biolégicos. Esta estrutura conceitual € ‘© que cientistas sociais feministas denominaram “o sistema de sexo-género””. As concepgdes culturais de masculino e feminino como duas categorias complementares, mas que se excluem mutuamente, nas uais todos os seres humanos sao classificados formam, dentro de cada cultura, um sistema de género, um sistema simbélico ou um sistema de significapdes que relaciona 0 sexo a contetidos ct de acordo com valores ¢ hierarquias sociais. Embora os sig- a TENDENCIAS E IMPASSES a construc cultural do sexo em género ¢ a assimetria que ca- racteriza todos os sistemas de género através das diferentes cul- turas (embora cada qual de seu modo) sao entendidas como sen- do “‘sistematicamente ligadas a organizacao da desigualdade so- cial." sistema de sexo-género, enfim, é tanto uma construcao so- ciocultural quanto um aparato semiético, um sistema de repre- sentagdo que atribui significado (identidade, valor, prestigio, po- sigdo de parentesco, status dentro da hierarquia social etc.) a in- dividuos dentro da sociedade. Se as representacdes de género S40 posicdes sociais que trazem consigo significados diferenciais, entio © fato de alguém ser representado ou se representar como mas- culino ou feminino subentende a totalidade daqueles atributos sociais. Assim, a proposicao de que a representacdo de género €a sua construgdo, sendo cada termo a um tempo o produto € fesmo assim, continuando a ler Althusser, encontra-se a en- fética afirmagdo de que “‘toda ideologia tem a funcdo (que a de- fine) de constituir individuos concretos em sujeitos” (p. 171). Se A TECNOLOGIA DO GENERO 23 substituirmos a palavra ideologia pela palavra género, a afirma- do ainda funciona, com uma leve mudanca dos termos: 0 géne- ro tem a funcao (que o define) de constituir individuos concre- tos em homens ¢ mulheres. E exatamente nessa mudanca que a relacdo entre género e ideologia pode ser vista, e vista como um. efeito da ideologia de género. A mudanca de “‘sujeitos”” para “‘ho- mens e mulheres” marca a distancia conceitual entre duas ordens de discurso, o discurso da filosofia ou da teoria politica e 0 dit curso da ‘‘realidade”. O género ¢ atribuido (c inquestionavelmente aceito) na primeira ordem, mas excluido da segunda. Embora 0 sujeito da ideologia de Althusser derive mais do sujeito lacaniano (que é um efeito da significacao, fundado em uum reconhecimento erréneo) do que o sujeito unificado de clas- se do humanismo marxista, ele nao é igualmente “gendrado”, 4 que nenhum dos sistemas considera a possibilidade — muito menos 0 proceso de constituicdo — de um sujeito feminino.* Assim, pela propria definicao de Althusser, podemos indagai se 0 género existe na “realidade’, se ele existe nas “'relagdes reais que governam a existéncia dos individuos”, mas nao na filosofia ou na teoria politica, o que, com efeito, representam estas senao “as relagdes imagindrias dos individuos com as relagdes reais em A as teses de Althu u de que a ideologia opera nao s6 semi-autonomamente do nivel ‘econdmico mas também, e fundamentalmente, por meio de seu engajamento de subjetividade (‘“A categoria do sujeito é const tutiva de toda ideologia”, ele escrevia a pagina 171). E, portanto, 24 ‘TENDENCIAS E IMPASSES O contexto do argumento de Barrett (originalmente no li- vro Women’s oppression today, de 1980) é 0 debate suscitado na Inglaterra pela ‘teoria do discurso” e por outros desenvolvimentos pés-althusserianos da teoria da ideologia, e mais especificamen- te a critica da ideologia promovida pelo periddico feminista bri- tanico M/F com base em conceitos de representacdo ¢ diferenca, apresentados por Lacan e Derrida. Ela cita “A note on the dis- tinction between sexual division and sexual difference”, de Par- veen Adams, em que a divisdo sexual se refere a duas categorias que se excluem mutuamente, de homens e mulheres como deter- minados na realidade: “Em termos de diferencas sexuais, por ou- tro lado, 0 que se tem que perceber é precisamente a producdo de diferengas por meio de sistemas de representacdo; 0 trabalho da representagao produz diferencas que néo podem ser prev mente conhecidas.”"? afirma Adams, 0 conceito de um sujeito feminino “se apdia nu- ‘ma opresséio homogénea de mulheres num estado, ou realidade, anterior as praticas representacionais” (p. 56). Ao enfatizar que a construcdo do género nada mais ¢ do que o efeito de uma va- iedade de representacdes e praticas discursivas que produzem di nistica”” entre os sexos, 0 que é a seu ver um obstaculo tanto a andlise feminista quanto & pratica politica feminista (p. 57). A resposta de Barrett a essa colocacdo é algo com que concordo, especialmente no que se refere a suas implicagdes para a politica ‘A TECNOLOGIA DO GENERO as No entanto, 0 arcabougo conceitual de Barrett nao permite compreender a ideologia do género em termos tedricos especifi camente feministas. Numa observacao acrescentada a edigao de 1985 do trabalho que venho citando, ela reitera sua conviccao de ‘que “a ideologia ¢ um /ocus extremamente importante para a cons- trugio do género, mas que deve ser entendida como parte de uma totalidade social e néo uma prética ou discurso autdnomo” (p. 83). Este conceito de ‘“totalidade social”” e 0 delicado problema da “‘relativa”” autonomia da ideologia (em geral e presumivelmente da ideologia do género em particular) dos “'meios ¢ forcas da pro- ducio” e/ou “das relacdes sociais de producao” permanecem bas- tante vagos e ndo resolvidos no argumento de Barrett, que se torna menos nitido e convincente quando ela passa a discutir 0s mo- dos pelos quais a ideologia de género é (re)produzida na prética iteraria) cultural. Uma outra forma talvez mais conveniente de se colocar a questo da ideologia do género é sugerida, embora no comple- tamente trabalhada, no artigo de Joan Kelly de 1979 “The dou- bled vision of feminist theory’. Uma vez que aceitemos 0 con- ceito fundamental do feminismo de que o pessoal é politico, ar- gumenta Kelly, ndo mais podemos afirmar que existem duas es- feras da realidade social: a esfera privada ou doméstica, da fa- milia, sexualidade ¢ afetividade, ¢ a esfera publica do trabalho e da produtividade (que incluiria todas as forcas e a maioria das relacdes de producao nos termos de Barrett). Em vez disso, po- deriamos imaginar varios conjuntos inter-relacionados de rela- cOes sociais — relagdes de trabalho, classe, raca ¢ sexo-género: “O que vemos nao sao duas esferas da realidade social, ¢ sim dois (ou trés) conjuntos de relagdes sociais. Por enquanto cha- maria estas relacdes de relacdes de trabalho ¢ sexo (ou classe € raga, ¢ sexo-género),”"" Os homens ¢ as mulheres ndo s6 se po- sicionam diferentemente nessas relagdes, mas — e esse é um ponto importante — as mulheres s&o diferentemente afetadas nos dife- rentes conjuntos. 216 ‘TENDENCIAS E IMPASSES Na “‘dupla’” perspectiva da andlise feminista contempora- nea, continua Kelly, podemos perceber duas ordens, a sexual e ‘a econémica, operando juntas: “Em qualquer das formas hist6- ricas tomadas pela sociedade patriarcal (feudal, capitalista, so- cialista etc.), um sistema de sexo-género e um sistema de relagdes, produtivas operam simultaneamente (...) para reproduzir as es- truturas socioeconémicas ¢ 0 dominio masculino da ordem so- cial dominante” (p. 61). Dentro dessa ““dupla” perspectiva, por- tanto, é posstvel perceber claramente como opera a ideologia do género: 0 “lugar da mulher", ic, a posicao atribufda a mulher or nosso sistema de sexo-género, como ela enfatiza, “nao é uma esfera ou um territorio separado, e sim uma posigdo dentro da existéncia social em geral” (p. 57). O que é um outro ponto importantissimo. , 8¢ 0 sistema sexo-género (que prefiro chamar simples- mente de género para conservar a ambigiiidade do termo, tornando-o eminentemente suscetivel ao alcance da ideologia, € também da desconstrucdo) ¢ um conjunto de relagdes sociais que se mantém por meio da existéncia social, entao o género ¢ efeti- vamente uma instdncia primaria de ideologia, e obviamente ndo sé para as mulheres. Além disso, trata-se de uma insténcia pri- méria de ideologia, independentemente do fato de que certos in- dividuos se vejam fundamentalmente definidos (e oprimidos) pelo género, como as feministas culturais brancas, ou por relacdes de raga e classe, como ¢ 0 caso das mulheres de cor. A importén- cia da formulagao de Althusser sobre o funcionamento subjeti- vo da ideologia — repetindo, em poucas palavras, que a ideolo- gia precisa de um sujeito, um individuo ou pessoa concreta so- bre o qual agit — fica agora mais clara e mais central para o pro- jeto feminista de teorizar o género como uma forga pessoal- politica tanto negativa quanto positiva, como irei propor. Ao afirmar que a representacdo social de género afeta sua construcdo subjetiva e que, vice-versa, a representagdo subjetiva do genero — ou sua auto-representaco — afeta sua construcdo social, abre-se uma possibilidade de agenciamento e auto- determinacao ao nivel subjetivo e até individual das préticas mi- cropoliticas cotidianas que o préprio Althusser repudiaria. Mes- mo assim defendo essa possibilidade e deixarei para discuti-la nas partes 3 ¢ 4 do presente trabalho. Por enquanto, voltando & pro- posigiio 2, que foi modificada para ‘‘a construgdo do género é tanto 0 produto quanto o processo de sua representacdo”, posso [A TECNOLOGIA DO GENERO aT Mas agora torna-se necessério discutir uma outra divergén- cia que tenho com Althusser em relagdo a teoria do género, e que € sua idéia de que “a ideologia nao tem exterioridade”. Trata-se de um sistema perfeitamente fechado, cujo efeito ¢ 0 de apagar completamente seus prdprios vestigios de modo que qualquer um que esteja “na ideologia”, preso em sua teia, acredite estar fora e livre dela. Na verdade, existe um lado de fora, um lugar do qual a ideologia pode ser vista como realmente é — mistificacdo, re- lacdo imagindria, engano; ¢ este lugar, para Althusser, € a cién- cia ou o conhecimento cientifico. Tal nao é absolutamente 0 ca- so do feminismo e do que eu proponho chamar, evitando maio- res equivocos, 0 sujeito do feminismo. Com a expressao “‘o sujeito do feminismo”” quero expressar uma concepeao ou compreensao do sujeito (feminino) nao ape- nas como diferente de Mulher com letra maitiscula, a represen- tagao de uma esséncia inerente a todas as mulheres (que jé foi vista como Natureza, Mae, Mistério, Encarnacdo do Mal, Obje- tivo do Desejo e do Conhecimento [Masculinos}, ““O Verdadeiro Ser-Mulher”’, Feminilidade etc.), mas também como diferente de mulheres, os seres reais, historicos e os sujeitos sociais que sio definidos pela tecnologia do género ¢ efetivamente “en- gendrados” nas relacGes sociais. O sujeito do feminismo que te- nho em mente nao é assim definido: € um sujeito cuja definicao ‘ou concep¢ao se encontra em andamento, neste e em outros tex- tos criticos feministas: ¢, insistindo neste ponto mais uma vez, © sujeito do feminismo, como o sujeito de Althusser, é uma cons- trugdio teérica (uma forma de conceitualizar, de entender, de ex- plicar certos processos ¢ nao as mulheres). Entretanto, assim co- mo 0 sujeito de Althusser, que, estando totalmente ‘‘na’” ideolo- gia, acredita estar fora c livre dela, 0 sujeito que vejo emergir dos escritos e debates correntes dentro do feminismo esté ao mesmo tempo dentro e fora da ideologia do género, e est consciente disso, dessas duas forcas, dessa divistio, dessa dupla visto. Meu préprio argumento em Alice doesn’t procurava mos- trar exatamente isso: a discrepancia, a tensdo, e 0 constante des- lize entre, de um lado, a Mulher como representagao, como 0 ob- jeto ¢ a prépria condicdo da representagdo ¢, de outro lado, as mulheres como seres hist6ricos, sujeitos de “relagGes reais", so motivadas e sustentadas por uma contradicao em nossa cultura, 218 ‘TENDENCIAS E IMPASSES ‘uma contradicdo irreconciliavel: as mulheres se situam tanto den- tro quanto fora do genero, ao mesmo tempo dentro e fora da re- presentacdo.” Que as mulheres continuem a se tornar Mulher, continuem a ficar presas ao género assim como 0 sujeito de Al- thusser a ideologia, e que persistamos em fazer a relacdo imagi- naria mesmo sabendo, enquanto feministas, que no somos isso, sim sujeitos historicos governados por relagGes sociais reais, que incluem predominantemente 0 género — esta é a contradi¢o sobre ‘a qual a teoria feminista deve se apoiar, contradicao que é a pré- , lizer que a mudanga que vem ocor- rendo na consciéncia feminista nesta década comegou (se é que uma data se faz necessaria) em 1981, ano da publicacao de This bridge called my back, uma coletanea de textos de mulheres de cor radicais, editada por Cherrie Moraga e Gloria Anzaldua, se- guido em 1982 pela antologia da Feminist Press editada por Glo- ria Hill, Patricia Bell Scott e Barbara Smith com o titulo All the women are white, all the blacks are men, but some of us are bra- ve." Foram esses os livros que colocaram a disposicao de todas, as feministas os sentimentos, as anzilises, as posig&es politicas das, feministas de cor, e suas criticas ao feminismo branco ou domi- nante. A alteracdo que comeca a set causada por trabalhos co- ‘mo esses na consciéncia feminista € melhor caracterizada pela conscientizacdo e pelo esforco de trabalhar a cumplicidade do feminismo com a ideologia, tanto a ideologia em geral (incluin- do classismo ou liberalismo burgués, racismo, colonialismo, im- perialismo, e, acrescento eu com alguns sendes, humanismo) a ideologia do género em particular — isto é, o heterossexismo. Falei em cumplicidade, endo em completa adesao, pois é Sbvio que o feminismo ¢ uma completa adesdo a ideologia do género sdo incompativeis em sociedades androcéntricas. E acres- centaria, ainda, que a conscientizacio de nossa cumplicidade com a ideologia de género, ¢ as divisdes e contradi¢des nela envolvidas, € 0 que deve caracterizar todos os feminismos hoje nos Estados Unidos, nao mais apenas o das mulheres brancas e de classe mé- dia, que foram as primeiras a serem forcadas a examinar nossa relacdo com instituigdes, préticas politicas, aparatos culturais, e A TECNOLOGIA DO GENERO 219 posteriormente com o racismo, anti-semitismo, heterossexismo, classismo, e assim por diante: pois a conscientizacdo da cumplici- dade com as ideologias de género de suas culturas e subculturas es- pecificas comesa a emergir também nos escritos mais recentes de mulheres negras ¢ latinas, e das lésbicas, de qualquer cor, que se identificam com o feminismo.* Até que ponto essa nova ¢ emer- gente consciéncia de cumplicidade age com ou contra a conscién- cia de opresstio é uma questao crucial para a compreensio da ideo- logia nestes tempos pos-modernos e pés-coloniais. E por isso que, apesar das divergéncias, das diferencas poli- ticas e pessoais, ¢ da angiistia que acompanha os debates fe nistas dentro ¢ além das linhas raciais, étnicas sexuais, deve- mos ser encorajadas pela esperanca de que o feminismo conti- nue a desenvolver uma teoria radical e uma pratica de transfor- magdo sociocultural. Para que isso ocorra, entretanto, a aml Bilidade do género deve ser mantida — o que é um paradoxo ape- nas aparente, Nao podemos resolver ou eliminar a incmoda con- dicdo de estar ao mesmo tempo dentro e fora do género, seja por ‘meio de sua dessexualizacao (tornando-o apenas uma metfora, uma questao de différance, de efeitos puramente discursivos) ou de sua androginizacdo (reivindicando a mesma experiéncia de con- dices materiais para ambos os géneros de uma mesma classe, raga, ou cultura). Mas jé estou me antecipando ao que vou dis- cutir a seguir. Estou novamente transgredindo, pois ainda nao trabalhei a| ‘A maioria de nés — mulheres: aos homens isto ndo se aplica — provavelmente assinala o F e no o M ao preencher um formu- lario. Nunca nos ocorreria assinalar 0 M. Seria como enganar- mos a nés mesmas, ou pior, como nao existir, como nos apagar do mundo. (Se homens assinalassem o F, caso fossem tentados a fazé-lo, as implicagdes seriam bem diferentes.) Isto porque, 220 ‘TENDENCIAS E IMPASSES ‘que a letra F assinalada no formulario grudou em nos como um vestido de seda molhado? Ou que, embora pensdssemos estar mar- cando o F, na verdade era 0 F que estava se marcando em nds? Este é, com efeito, o processo descrito por Althusser por meio da palavra interpelacdo, o processo pelo qual uma representago social ¢ aceita e absorvida por uma pessoa como sua prdpria re- presentacdo, ¢ assim se torna real para ela, embora seja de fato imagindria. Mas meu exemplo ¢ simples demais. Nao explica co- mo a representagao é construida e depois accita e absorvida. Pa- +a explicar isto, nos voltaremos inicialmente para Michel Foucault. primeiro volume da Histéria da sexualidade de Foucault se tornou influentissimo, especialmente por sua audaciosa tese de que a sexualidade, normalmente considerada como uma ques- to natural, particular e intima, ¢ de fato totalmente construfda na cultura de acordo com os objetivos politicos da classe domi- 805 (classificacdo, mensuracao, avaliacdo etc.) sobre quatro guras”” ou objetos privilegiados do conhecimento: a sexualiza- ‘so das criancas e do corpo feminino, o controle da procriacao, a psiquiatrizagao do comportamento sexual andmalo como per- verso. Esses discursos, implementados pela pedagogia, medici- na, demografia e economia, se ancoraram ou se apoiaram nas instituigdes do Estado e se consolidaram especialmente na fami- Jia: serviram para disseminar e “‘implantar”’, empregando o su- A TECNOLOGIA DO GENERO 2 kestivo termo de Foucault, aquelas figuras e modos de conheci ‘mento em cada individuo, familia ¢ instituicdo. Essa tecnologia, como observou ele, “tornou 0 sexo nao s6 uma preocupacdo se- cular, mas também uma preocupacdo do Estado: para ser mais exalo, 0 Sexo se tornou uma questao que exigia que 0 corpo so- cial como um todo e virtualmente todos os seus individuos se co- locassem sob vigilancia”." ‘A sexualiza¢ao do corpo feminino tem sido, com efeito, uma das figuras ou objetos de conhecimento favoritos nos discursos da cigncia médica, da religido, arte, literatura, cultura popular e assim por diante. A partir de Foucault surgiram varios estudos abordando 0 tépico, com maior ou menor explicitagao, dentro de seu arcabouco metodoldgico histérico;* mas a conexao en- tre a mulher e a sexualidade, ¢ a identificagdo do sexual com 0 corpo feminino, to difundidas na cultura ocidental, j4 hd mui- to vém sendo uma das preocupacdes centrais da critica feminista edo movimento de mulheres independentemente, ¢ légico, de Fou- cault. A critica de cinema feminista, em particular, ja vinha abor- dando a questao num arcabouco conceitual que, embora nao de- rivado de Foucault, nao Ihe € totalmente estranho. J4 algum tempo antes da publicacao do volume I da Histo- ria da sexualidade na Franca (La volonté de savoir, 1976), te6ri- cas feministas na area do cinema vinham escrevendo sobre a s xualizacdo das estrelas do cinema em filmes narrativos e anal sando as técnicas cinematograficas (iluminaco, enquadramen- to, edi¢do etc) e os cédigos cinematicos especificos (por exem- plo, a maneira de olhar) que constroem a mulher como imagem, como objeto do olhiar voyeurista do espectador; e vinham desen- volvendo nao sé uma descricdo, mas também uma critica dos di cursos psicossocial, estético e filos6fico, subjacentes 4 represen- tagao do corpo feminino como locus primario da sexualidade e do prazer visual.” A compreensio do cinema como uma tecno- logia social, como ‘‘aparelho cinemético”, se desenvolveu na teoria do filme paralela a, mas independentemente, de Foucault; pelo contrario, como sugere a palavra aparelho, essa compreensao foi diretamente influenciada pelo trabalho de Althusser ¢ de La- can.” Nao ha quase dtivida, de qualquer modo, de que o cine- ma — 0 aparelho cinematografico — é uma tecnologia de géne- ro, como argumentei em Alice doesn’t, se néo exatamente nestes termos, pelo menos de modo convincente. 22 TENDENCIAS E IMPASSES A teoria do aparelho cinematografico se preocupa mais do que Foucault em responder a ambas as partes de meu questiona- mento inicial: no apenas 0 modo pelo qual a representacio de género é construida pela tecnologia especifica, mas também co- mo ela é subjetivamente absorvida por cada pessoa a que se diri- ze. Para a segunda parte da questdo, a idéia crucial é o conceito de platéia, que a teoria feminista estabeleceu como um conceito marcado pelo género; 0 que equivale dizer que as maneiras pelas uais cada pessoa ¢ interpelada pelo filme, as maneiras pelas quais sua identificagdo é solicitada e estruturada no filme especifico,” estdo intima e intencionalmente sendo explicitamente relaciona- das ao género do espectador. Tanto nos estudos criticos quanto nas préticas feministas de cinema, a exploracdo da platéia femi- nina vem nos proporcionando uma anélise mais sutilmente arti- culada do modo pelo qual as mulheres apreciam filmes e formas cada vez mais sofisticadas de interpela¢do na cinematografia (con- forme discutido nos capitulos 7 e 8). Esse trabalho critico vem produzindo um conhecimento de cinema e da tecnologia do sexo a que a teoria de Foucault, em seus prdprios termos, ndo poderia chegar; pois Id a sexualidade nao ¢ entendida como “‘gendrada”’, como tendo uma forma mas- culina e outra feminina, e sim como idéntica para todos — e con- seqiientemente masculina (esse assunto é discutido de forma mais completa no capitulo 2). Nao estou falando da libido, que Freud disse ser apenas uma, e que eu acho que pode ser certo. Estou falando aqui da sexualidade enquanto uma construgdo ¢ uma (auto-representacao; e nesse caso, com uma forma masculina e outra feminina, embora na conceitualizacao patriarcal ou andro- céntrica a forma feminina seja uma projecdo da masculina, seu oposto complementar, sua extrapolacdo — assim como a costela de Addo. De modo que, mesmo quando localizada no corpo da mulher (vista, como escreveu Foucault, “‘como que completamente saturada de sexualidade”’, p. 104), a sexualidade é percebida co- mo um atributo ou uma propriedade do masculino. Conforme coloca Lucy Bland em resposta a um artigo so- bre a construgao histérica da sexualidade na linha foucaultiana — artigo esse que, como ndo é de surpreender, omite 0 que ela considera “‘um dos aspectos centrais da construcao histérica da sexualidade, a saber, sua construgdo como sendo uma especifici- dade de género” — as varias concepgdes da sexualidade na his- A TECNOLOGIA DO GENERO 223 t6ria ocidental, embora diferentes entre si, basearam-se no “*pe- rene contraste entre a sexualidade ‘masculina’ e a ‘feminina””.® Em outras palavras, a sexualidade feminina tem sido invariavel- mente definida tanto em oposigo quanto em relagao & masculi- na, A concep¢do que as primeiras feministas, na virada do sécu- lo, tinham da sexualidade ndo era excecdo: quer clamassem por “

You might also like