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"Um trabalho cuja importancia é de primeira linha e que deve ser largamente lido devido & sua erftica de mestre aos inimigos dda democracia, antigos e modemos. O seu ataque a Plato, embora nao ortodoxo, esté inteiramente justificado, em minha opinido. A sua andlise de Hegel é mortal. Marx € dissecado ‘com idéintica clareza‘e € em parte, devidamente. ‘esponsabilzado elas desgracas actuals, Ext io € ut "Este é um liyro importante ¢ poderoso. f uma crit ‘conjunto.de dogmas em que assentam as miais influentes leorias politicas © que, por isso, afectam seriamente-a conduta- - dos assuntos humapos...0.Dr, ee eee AGRADECIMENTOS Gostaria de deixar expressa a minha gratidio a todos os amigos que tornaram possive a redacgio dest livro. Professor C. G. F- Simkin no s6 me prestou atailio na elaboragio de uma versio prévia, como me permitiu © tsclarecimento de intimeras questdes através de minucioses discuss6es, que se prolongaram durante cerca de quatro anos. A Ds." Margaret Dalziel ajudou-me za preparacio de varios rascunhos e do manuscrito final. A sua incansével assiaténcia foi preciosa. 0 interesse do Dr. H. Larsen pelo problema do histori cismo constitulu para mim um enorme incentivo. O Professor T. K. Ewer releu ‘o manuscrito e apresentou diversas sugestées para o seu melhoramento. Tstou ainda em grande divida para com o Professor F. A. von Hayek, pois sem o seu interesse e apoio o livro no teria decerto sido publicado. O Professor EE. Gombrich encarregou-se da sua impressio, tarefa a que veio acrescentar-se 0 labor de uma minuciosa correspondéncia entre a Inglaterra e a Nova Zelindia.. Em tudo isso foi deta forma prestivel que nao poderia dizer o quanto lhe devo. (CHmustcHURCH, NZ, Abril de 1944 Na preparagio da edicio revista foram de inestimavel valor as anotag6es cxitcas detalhadas & primeira edico que o Professor Jacob Viner e o Sr. J.D. Mabbot colocaram a minha disposigio. Lonpres, Agosto de 1951 Na terceira edigdo, foram acrescentados um indice remissivo e um indice de citagGes de Platao, ambos preparados pelo Dr. J. Agassi, que me chamou a atengéo para alguns eros, agora corigidos. Ftou-ihe muito grato pela ajuda, Procure ainda mclhorarecmendareinda,emscia pontos ctagBeaoureferéneiae as obras de Platio,em conformidade com as crtcasestimulantes ebemvindas do ‘Sr Richard Robinson (Te Philosophical Review vol 6) &edigio americana desta obra STANFORD, CALIFORNIA, Maio de 1957 Devo grande parte dos melhoramentos desta quarta ediggo ao Dr. William. W. Bartley e ao Sr. Bryan Magee. PENN, BUCKINGHAMSHIRE, Maio de 1961 A quinta edicio contém algum material hist6rico inédito(especialmentena gina 312 do volume Ie nas Adendas), bem como uma nova e breve Adenda em. ‘um dos volumes. A minha obra Conjectures and Refulations contém ainda mate- riais adicionais, especialmente a segunda edigio (1965). O Sr. David Miller descobriu e corrigiu varios errs. PENN, BUCKINGHAMSHIRE, Julho de 1965 R INTRODUCAO Nao pretendo escamotear a minha repugnéneia... face a0 ‘Pretensiosiamo pomposo de todos estes volumes repletos de Sabedoria, tfo & moda do nosso tempo. Pois estou plenamente onvicto de que... os métodos preconizados s6 podem fazer proliferarinfinitamente tals loucuras e disparates eque, decer- to, a completa destrulodo destas obras fantasiosaa nunce seria tho nociva quanto a presenca desta cléncia fiticia chela de cexeoravel fullidade. Kew (O presente livro aborda quest6es que poderio nio ser evidentes a partir do indice. Pretende esbocar algumas das dificuldades com qu nossa civilizacio, caracterizada pelas suas agpiracées térias e pelos seus ideais de racionalidade,igualdade e liberdade; uma civiliza- ‘do que ainda yai na sua inféncia e continua a medrar, apesar de ter sido tantas vezes atraicoada por intimeros dos seus principais expoentes intelectuais. Procura mostrar que ela ainda nao recuperou inteiramente do,choque do seu nascimento— a transigio de uma "sociedade fechada” ‘ou tribal, regida por forcas mégicas, para uma "sociedade aberta”, que sanciona a liherdade critica do homem —-.explicando a forma como esse. ‘choque poderé ter sido determinante no surgimento de movimentos reaccionérios que tentaram, e tentam ainda, derrubar a civilizagio e restaurar o regime tribal, e sugerindo que aquilo a que actualmente chamamos totalitarismo deriva de uma tradicdo to antiga ou téo mo- derma quanto a propria civilizacao. ( presente livro procura, assim, contribuir para a nossa compreen- sio do totalitarismo e do significado da luta perene para o combater. Propée-se, ainda, examinar a aplicagéo dos métodos racionais cxiticos da ciéncia aos problemas da sociedade aberta. Analisa os vecto~ res que deverdo presidir a uma reconstrucio social democrética e os rincipios do que designaria por “engenharia social parcelar", por opo- sigdo & "engerharia social ut6pica” (expostos no capitulo 9) e pretende ultrapassar alguns dos obstaculos que impedem uma abordagem racio- nal dos problemas dessa reconstrucdo, criticando as filosofias sociais responsveis pelo preconceito generalizado da inexequibilidade da re- forma democratica. Entre estas destaca-se uma que apelidei de histori- defronta a 13 cismo. A hist6ria do aparecimento e influéncia de algumas formas im- portantes dessa corrente filos6fica constitui um dos t6picos principais deste livro, que, de resto, poderia ser descrito como uma compilagao de notas sobre 0 seu desenvolvimento. Um breve comentario sobre a géne- se do presente livro poder esclarecer melhor o que se entende por historicismo e 0 modo como este se articula com as questées mencionadas. Embora tenha privilegiado no meu estudo a andlise dos métodos da fisicae, consequentemente, uma série de problemas técnicos inteiramen- te alheios ao assunto em foco aqui, interesso-me desde h4 muito pelo estado de certo modo insatisfatsrio em que vivem algumas ciéncias sociais e particularmente a filosofia social, decorrente dos métodos que preconizam. O ressurgimento do totalitarismo e a incapacidade de essas filosofias e ciéncias fornecerem uma explicacio do fenémeno veio avivar consideravelmente o meu interesse. Neste contexto, parece-me particularmente urgente salientar um aspecto. frequente ouvir-se proclamar a inevitabilidade de uma forma ou outra de totalitarismo, Muitos dos que, pela sua inteligéncia ou pela sua formacao, deveriam assumir a responsabilidade daquilo que afirmam, anunciam que nio ha altemnativa, Perguntam-nos se somos na realidade suficientemente ingénuos para acreditar que a democracia pode ser permanente; se ndo verios que ela é apenas uma das muitas formas de ‘governo que ciclicamentese alternam ao longo dahistéria. Argumentam ‘que, na sua luta contra o totalitarismo, a democracia é forcada a repro- duzir os mesmos métodos, tornando-se ela propria totalitaria, ou afir- ‘mam que o nosso sistema industrial no pode progredir se nao adoptar métodos de planificasao colectivista, incorrendo, portanto, segundo eles, necessariamente, numa forma de totalitarismo social. ‘Tais argumentos parecem muito plausiveis. No entanto, a plausibi- lidade nao constitui um guia seguro nesta matéria. De facto, s6 podere- mos rebaté-los depois de consideradas as seguintes questdes metodol6gicas: Podera uma ciéncia social, qualquer que ela seja, emitir profecias histéricas de carécter to generalizante? Serd possivel obter mais do que uma resposta irresponsavel deadivinho a inquietacio sobre ‘que o futuro reserva a humanidade? Este é um problema que tem a vercom ométodo das cigncias socias. £ claramente mais importante do que qualquer critica a um qualquer argumento particular que pretende justificar essas profecias hist6ricas, ‘Uma andlise atenta do problema levou-me a convicsao que profecias hist6ricas deste teor estio claramente fora do ambito da ciéncia. £0 futuro que depende do homem, nao o homem que depende de uma qualquer necessidade histérica. H4, no entanto, filosofias sociais influen- tes que defendem a opinio contraria. Alegam que o homem sempre se esforcou por antever acontecimentos iminentes; que é certamente legi- timo uum estratega tentar prever o resultado de uma batalha; e que as fronteiras entre este tipo de prognéstico e outro tipo de profecias histé- ricas mais generalizantes s4o, na verdade, ténues. Declaram, além disso, que 0 objectivo geral da ciéncia é estabelecer previsdes, ou melhor, aperfeicoar os nossos métodos quotidianos de previsdo, garantindo-lhes ‘uma base mais segura; e que é tarefa das ciéncias sociais, em particular, ‘emitir profecias de longo prazo. Estas filosofias, que designo geralmente por kistoricstas, partilham a convice46 de fer descoberto leis hist6ricas capazes de fazer antever o curso dos acontecimentos hist6ricos. Nomeu livro The Poverty of Historicism, procurei argumentar contra semelhantes pretensdes, mostrando que, apesar da sua plausibilidade, na verdade, elas resultam de uma interpretagio equivoca do método cientifico, ignorando em especial a distingio entre previsio cientfica © pro ‘histdrica, Ao mesmo tempo que me ocupava da andlise sistemética e da critica das pretensdes historicistas, procurei recolher algum material assivel de ilustrar a evolucao destas flosofias. As notas coligidas para este propésito constitufram a base do presente livro. A anilise sistematica do historicismo pretende ter um carécter cien- tifico de que no nos arrogamos neste livro, o qual exprime acima de ‘tudo opinides pessoais. O que ele deve aométodo cientificoéjustamente © reconhecimento das suas limitagOes: nao oferece provas onde nada pode ser provado, nem se dé ares de ciéncia em dominios que relevam apenas de uma visdo pessoal. Nao pretende substituiros velhos sistemas filos6ficos por um novo sistema, rem engrossar 0 ntimero desses volu- mes repletos de sabedoria, dessas teorias metafisicas da histéria e do destino, to 8 moda do nosso tempo. Antes procura evidenciar os maleficios de uma sabedoria profética, mostrando até que ponto a metafisica da historia impede a aplicacdo dos métodos graduais da ciéncia ans problemas de uma reforma social. E também tenta mostrar que pademos tornar-nos senhores do nosso destino, quando deixarmos de pecar como seus profetas. lise do desenvolvimento do historicismo permitiu-meconcluir que o pernicioso habito da profecia histérica, tio generalizado entre os rnossos mais eminentes intelectuais, encerra varias fungdes. £ sempre glorificante pertencer ao circulo restrito dos iniciados e ser detentor de uma assinalavel capacidade de previsdo hist6rica, até porque a tradicao confere geralmente aos lideres intelectuais poderes dessa natureza, podendo a auséncia deles significar exclusdo de casta. Além disso, 0 perigo de ser desmascarado como charlatao é bastante reduzido, uma vez que se torna sempre possivel alegar o direito a previsdes mais ‘modestas, sendo que a distingao entre estas e os vaticinios é bastante ténue. Hé, no entanto, outros motivos mais fundos que podem justificar a adopgao de conviccdes historicistas. Os profetas que pressagiam a che- gada de um milénio podem estar a dar expressio a sentimentos profun- dos ¢ enraizados de insatisfagao, constituindo os seus sonhos, muitas vezes, motives de esperanca e alento para aqueles que de outro modo sogobrariam. Mas temos que reconhecer, também, que a sua influéncia pode traduzir-se numa fuga as responsabilidades quotidianas da vida social e que a previsdo de determinados acontecimentos, tais como 0 ressurgimento do totalitarismo (ou do "gestorialismo",” pode transfor- ‘mar esses profetas menores em instrumentos inevitdveis dos eventos que apregoaram. O argumento sobre a efemeridade da democracia é tio verdadeiro, e tio pouco significativo, quanto a afirmacéo da efemeri- dade da razio humana, uma vez que s6 a democracia proporciona 0 ‘enquadramento institucional capaz de permitir reformas sem violéncia ¢,portanto, oexercicio da razaono ambito da actividade politica. Porém, tal argumento tende a desencorajar os que lutam contra o totalitarismo, promovendo a revolta contra a civilizacao. Outro motivo que justifica a influéncia da metafisica historicista consistena sua capacidade de aliviar © homem da sua carga de responsabilidades. Se pensarmos que deter- minados acontecimentos so inevitdveis, qualquer que seja a nossa actuagio, énatural quencs sintamos autorizados a deixarde lutar contra ‘les, especificamente contra os chamados males da sociedade, como seja ‘@ guerra, ou, para referir um mal menor mas nem por isso menos significativo, a tirania do funcionério subalterno. Nao quero com isto sugerir que o historicismo produz obrigatoria- mente tais efeitos. Historicistas ha — designadamente os marxistas — que nao pretendem furtar o homem da sua responsabilidade. Inversa ‘ante um cero mero de flosfias acne elgumas com casi hit ricista, outras nfo, proclamam a impoténcia da razo na construcéo. vida sociale, mercé do ant-racionalismo, fomentam atitudes do género: "Segue o Lider, o Grande Estadista, ou toma-te tumesmo num Lider”, 0 que para a maioria constitui sinénimo de submissao passiva as corren- tes, pessoais ou anénimas, que regem uma sociedade. E interessante verificar que alguns dos que denunciam a raz4o ou a responsabilizam pelos males das sociedades do nosso tempo, 0 fazem, por um lado, porque constatam que a profecia hist6rica esta para além do ambito da razao e, por outro lado, por nfo conseguirem atribuir as ‘ciéncias sociais ou azo outra fungao social que nfo a de ditar profecias histéricas. Trata-se, em suma, de historicistas desiludidos, isto é, de ‘homens que, apesar de reconhecerem a pobreza do historicismo, no se do conta de que persiste neles o grande preconceito historicista de que, is iplica a rejeicao da aplicabilidade da ciéncia ‘ou da razdo aos problemas de ordem social e, em ultima andlise, d4 origem a doutrinas de poder, dominio e submissao. ‘Porque é que todas estas filosofias sociais apoiam a revolta contra a civilizagdo? Qual‘o segredo da sua popularidade? Porque é que tantos + "Managerialiem’” no original. 16 intelectuais se deixam seduzir e conduzir porelas? A meu veriisso deriva talvez da sua capacidade de exprimir a insatisfacao profunda dos ho- mens relativamente a um mundo que nao esté, nem pode estar, & altura dos noss0s ideais morais e dos nossos sonhos de perfeicdo. A tendéncia dohistoricismo ( filosofias afins) para apoiar a revolta contra a civiliza- fo resulta talvez do facto de ele ser, em grande medida, uma reacéo contra as tensdes da nossa civilizacio e a sua exigéncia de responsabil- dade pessoal. Estas tltimas alusdes so talvez um pouco vagas, mas deverdo bastar como introdugio. No capitulo "A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos" sero fundamentadas com a inclusio de material hist6rico. Considerei a hip6tese de colocar este capitulo no inicio do livro; de interesse mais actual, teria certamente resultado numa introducéo mais convidativa, Mas achei que o peso total da sua interpretagao histérica 56 pode ser inteiramente sentido ap6s a leitura das matérias que compdem. 0s capitulos anteriores. Parece que é préciso primeiro sentirmo-nos perturbados pela semelhanga entre a teoria platénica da justiga ea teoria e pratica do totalitarismo modemo para que possamos sentir a urgéncia de uma interpretacao destes temas. wv O FASCINIO DE PLATA! Pela Sociedade Aberta (cerca de 430 a. C.) Embora s6 alguns estejam aptos a gar uma politica, todos sao capazes de a julgar. Pénicus be ATES Contra a Sociedade Aberta (cerca de 80 anos mais tarde) (© maior de todos os prineipios €o de que ninguém., homem ‘ou mulher, deve dispensar a orientagao de uin lider, ou men {alizar-se de que pode ter iniclativas proprias, quer par excessa de zelo. quer por diversio. Na guerra como ina paz 0 lider ue cle deve ohare seguirfielmente, mesmo nos assuntos mals {tiviais, Deve levantarse, ou mover-se, lavar-se ou tomar as ‘suas refeigbes.. exactamente como Ihe fol dito. A sua alma devers, paulatinamente, ir renunelando ao sono de agit por iativa, até se tornar totalmente incapaz deo fazer. Patio De Arexas O MITO DA ORIGEM E DO DESTINO CAPITULO 1: 0 HISTORICISMO EO MITO DO DESTINO Econviegdo corrente que uma atitude verdadeiramenteccientifica ou filos6fica em relacao & politica e uma maior compreensio da vida social ‘em geral devem basear-se na observacio e interpretacao da histéria da hhumanidade. Enquanto o homem comum tende a encarar as circunstan- cias da sua vida e a importancia das experiéncias e pequenos contflitos ‘como um dado adquirido, 0 filésofo ou cientista social deve perspectivar as situacdes de um ponto de vista mais elevado. Para ele, o individuo ‘do passa de um pedo, dum mero instrumento no desenvolvimento geral da humanidade, nas maos das NagGes Eminentes ou dos Grandes Lideres, das Classes Superiores ou das Ideias Dominantes, que consti- tuem os verdadeiros protagonistas no Palco da Historia. £ a compreen- 880 do significado desta Peca Historica, qualquer que ele seja, bem como a determinacdo das leis presidindo & sua evolugéo, que permitiré a Previsdo de acontecimentos futuros e a criacdo de uma ciéncia politica capaz de nos guiar em matérias préticas, designadamente, na consi- deracio do possivel sucesso ou insucesso das acg6es politicas. As caracteristicas que acabei de enunciar constituem uma breve descrigao daquilo que designo por historcismo ‘de uma concep- so antiga, ou melhor dizendo, de uma sériede ideias inconsistentemen- te ligadas, que, infelizmente, se tornaram parte integrante do nosso Universo mental, a tal ponto que constituem como que um dado adqui- ido e quase inquestionavel. Procurei demonstrar, noutra obra, que uma abordagem his das ciéncias sociais s6 pode produzir resultados ¢.intentei tracar as linhas gerais de um método que, a meu ver, seria bastante mais frutuoso. ~~ 7 ‘Mas seo historicismo é um método estéril, de que resultam neces- sariamente formulas pouco validas, entio talvez seja util investigar as condigdes do seu aparecimento e a forma como se enraizou com tanto éxito. Simultaneamente, este esboco hist6rico poder servir para anali- sar 0 conjunto de ideias galvanizadas por ésta doutrina, segundo a qual a historia € regida por leis especificas, historicas ou evolutivas, que 0 homem deve conhecer para prever o seu destino. hsm i, 28 Ohistoricismo, que procurei até aquidefinir de modo algoabstracto, pode ser ilustrado por meio de um dos seus modelos mais simples ¢_ antigos, a saber, a doutrina do povo eleito, que constitui, entre outras, uma tentativa de interpretar a hist6ria &luz de uma visto teista, ou seja, reconhecendo Deus como 0 autor da peca representada no Palco da Historia, Esta doutrina pressupde que 0 Criador tera escolhido como instrumento dilecto um entre todos os povos, que deveré assumir a heranca da Terra. Se a perspectiva teista partilha com outras formas de historicismo a convicsao de que ha leis hist6ricas especificas que permitem prever 0 futuro da humanidade, difere delas no tipo de leis postuladas: para © teismo, a evolugéo histérica resulta de uma imposigao divina; para o naturalismo hist6rico, porém, esta evolucio é regida por leis da nature- 2a;0 historicismo espiritualista, por seu lado, vé nela 0 produto de uma lei espiritual; enquanto o historicismo econémico a define como uma lei econémica, A doutrina do povo eleito tem indiscutivelmente a sua origem num modelo de sociedade tribal, caracterizada pela extrema preponderancia do grupo sobre o individuo. De resto, como veremos, muitas outras formas de historicismo estdo associadas aeste tipo de organizacao social, ou, mesmo que jé nao se prendam directamente com o tribalismo, ‘conservam um elemento de colectivismo!, o qual acentua aindaa impor tincia de determinados grupos ou associacdes colectivas — por exem- plo, uma classe — face & insignificancia do individuo. Outra caracteristica da doutrina do povo eleito diz respeito & longinquidade ‘que parece envolver o fim da hist6ria. Por outras palavias, embora ele 8eja descrito com um certo grau de preciso, é longo e sinuoso ocaminho que lhe dé acesso, desviando-se mais para cima ou mais para baixo, mais ara a esquerda ou para a direita. Esta indeterminacdo permite integrar zo seu esquema de interpretagao os mais diversos acontecimentos reais ou hipotéticos, impossibilitando a sua refutagéo por qualquer experién- cia vivida ou concebida?, Nao obstante, para os crentes, ela representa ainda uma certeza quanto ao resultado final da hist6ria da humanidade. No titimo capitulo deste livro incluirei uma critica da interpretagio teista da histéria e, simultaneamente, uma demonstragéo de como al- guns dos mais eminentes pensadores cristdos a condenaram por idola- ‘ria, Pretendi, assim, evitar que a dentincia desta forma de historicismo fosse confundida com um ataque a religido. Neste capitulo, porém, a referéncia & doutrina do povo eleito tem sobretudo como fungao ilustrar 4s principais caracteristicas que ela partiha com duas das mais impor- tantes verses modernas do historicismo, a saber, afilosofia historica do acismo ou do fascismo (ituada a direita do espectro politico) ¢ a doutrina marxista (filiada & esquerda), as quais constituem o foco essen- cial deste livro. No que diz respeito & primeira, a concepgdo do povo eleitoiré ser substituida pela da raca eleita (aariana, segundo Gobineau), oy ‘como instrument do destino ¢ herdeira legitima da terra. Quanto & filosofia hist6rica de Marx, ¢ a classe escolhida que se pretende respon- sivel pela criagéo de uma sociedade sem classes, cabendo-lhe, portanto, odominio da terra. Qualquer uma destas teorias bascia as suas previsoes histéricas numa interpretagéo da hist6ria passivel de conduzir a elabo- ragio de leis evolutivas. No caso do racismo, corresponde a uma lei natural, que explica curso da historia (passada, presente e futura) através da superioridade biol6gica de uma raca, ou da luta racial pelo poder. O marxismo, por seu lado, postula a preponderdncia das leis ‘econdmicas; segundo ele, a historia deve ser interpretada como a luta das classes pela hegemonia econémica. Ocarécter historicista destes dois movimentos confere um interesse actual & nossa investigagao. Voltaremos a eles mais tarde. Na medida ‘em que cada um deste movimentos remete directamente paraa doutrina de Hegel, abordaremos também a filosofia deste autor. E, jé que, de um modo geral, esta segue o pensamento de determinados fildsofos antigos, serd necessério expor igualmente as teorias de Heraclito, Plato e Aris- {6teles antes de retomarmos o estudo das formas mais modernas de historicismo. 5 CAPITULO 2: HERACLITO S6 com Heraclito podemos encontrar na Grécia teorias cujo cardcter historicista € comparavel & doutrina do povo eleito. Na interpretagio {eista, ou melhor, politeista de Homero,a histéria é produto da vontade divina. No entanto, as divindades homéricas nao estabelecem leis gerais assiveis de orientar o devir hist6rico. O que Homero tenta sublinhar e explicar ndo é a unidade da histéria, mas a auséncia dela. O autor da grande pega no Palco da Histéria nao é o Deus tinico, mas sim uma Variedade de deuses que contribuem para a sua encenacéo. Assim, se a interpretacao homérica partilha com o judaismo de um vago sentido do destino e da ideia de poderes quese agitam atras dos bastidores, diverge daquela na crenca de que o destino final nunca é totalmente revelado, ermanecendo sempre um mistério. O primeiro autor grego em cuja obra se denota uma clara filiagdo historicista foi Hesiodo, provavelmente influenciado por correntes orientais, que adoptou a concepgao de uma tendéncia geral do devir histérico. A sua interpretacdo da hist6ria era pessimista; acreditava que © tempo conduz o homem da Idade de Ouro a uma era de progressiva degradagdo fisica e moral, As diversas concepgées historicistas dos pri- meiros fil6sofos gregos culminaram em Plato, que, na sua tentativa de interpretar a historia e a organizacdo social das tribos, particularmente as atenienses, elaborou um painel filoséfico monumental do mundo. As suas conviceées historicistas terdo sido herdadas de varios dos seus antecessores, principalmente de Hesfodo,masa influéncia mais marcan- te da sua filosofia deve-se provavelmente a Heraclito. Com este filésofo é inaugurada a teoria do devir, sendo que, até entio, 0s filésofos gregos concebiam omundocomo um enorme edificio, composto de todas as coisas materiais!. Este edificio representava a totalidade das coisas — o cosmos (originariamente assimilado a uma tenda ou a um manto oriental). As interrogacées dos pensadores decor- iam dessa concepgio, questionando-se sobre: "Qual a matéria de que 6 constituido o universo?” ou ainda "Como ¢ edificado, qual sua planta?”. Consideravam a filosofia, ou fisica (indistintas uma da outra durante ‘muito tempo), como a investigacéo da "natureza’, ou seja, da matéria 7 original que compunha este edificio, omundo. A ocorréncia de mudangas. era atribuida a fenémenos no interior desse edificio, ou & construcio ou ‘manutencio, & alteracéo ou reposicdo da estabilidade ou equilibrio de uma estrutura considerada fundamentalmente estatica, tratando-se por. tanto de processos ciclicos (A excepcéo daqueles que tinham que ver com 2 origem do proprio edificio; a interrogacio sobre o autor da construgao Preocupava os orientais, assim como Hesiodo e outros fl6sofos). Esta Concepgao natural, natural até para muitos de nés hoje em dia, foi superada pela visto genial de Heraclito, que negava a existéncia de qualquer estrutura estvel e, portanto, do proprio cosmos. "Na melhor das hipéteses, o cosmos sera como um amontoado de lixo espalhado a0 acaso", diz um dos seus fragmentos?, Considerava o mundo nao como um edificio ou somatério de todas as coisas, mas como um proceso colossal, integrando a totalidade dos eventos, mudancas ou facto, "To- das as.cofsas esto em fluxo; nada esta em repouso", é 0 lema'da sua filosofia A descoberta de Heraclito influenciou o desenvolvimento da filoso- fla grega durante muito tempo. As teorias de Parménides, Demécrito, Platao e Aristételes podem ser descritas como tentativas de resolver os Problemas colocados por esse mundo heraclitiano do devir, que teve un impacte compardvel ao de "um terramoto, cuja oscilagéo... faz sogobrar todas as coisas. Parece-me indiscutivel que esta descoberta oi revelada 20 filésofo pelas terriveis experiéncias pessoais causadas pela agitagao Politica e pelas convulsées sociais do seu tempo. A vivencia de um eriodo de transicao, em que as aristocracias tribais da Grécia comega vam a ceder a nova pressao da democracia emergente, tornou Herachto no primeiro filésofo a ocupar-se néo s6 da investigacao da ‘natureza", ‘mas principalmente a interrogar-se sobre questes ético-politicas Fara compreendermos oefeito desta revolucéo, devemos ter presen- te a estabilidade e a rigidez da vida social num regime aristocrético tribal, em que todas as condutas séo determinadas pelos tabus sécio-re_ ligiosos, em que cada um tem um lugar predestinado no seio da estru, {ura social, conhecendo de antemio o lugar que Ihe compete, o seu lugar “natural” — ou seja, designado pelas forcas que regem o universo todos "esti cientes do seu lugar". Segundo rezam as crénicas, o lugar de Heraclito erajustamente ode herdeiro da augusta familia de reis-sacerdotes de Efeso, Privilégio a que Tenunciou em favor do irmao, Apesar da sua orgulhosa recusaem tomar artena vida politica da cidade, apoiou a causa aristocrética quando, em ‘ao, a nobreza tentava travar a vaga crescente das novas forsas revolu.. cionarias. E essa experiéncia ao nivel social e politico ecoa nos fragmen- tos da sua obra que o tempo nao consumiu’. "Os homens de Eieso deviam enforcarse um por um e deixar a cidade ao comando das criangas", constitui uma das suas invectivas, ocasionada pela decisao Popular de banir Hermodorus, um dos amigos aristocratas de Heraclito. 28 AA sua interpretagdo das motivagdes que animavam o povo é deveras, inieressante, no sentido em que demonstra que o rol de argumentos, antidemocraticos tem-se conservado relativamente inalterdvel desde 05, primérdios da democracia até aos nossos dias. "Dizem eles: ninguém deverd ser o melhor entrenés;e se quiser destacar-se, que ofaca allwures enoutro meio,” Esta posicao de hostilidade relativamente a democracia ressurge em todos os seus fragmentos: .. O.yulgo enche a barriga como as bestas...Tém por guia os bardos ea crenca popular, ignorando que @ maioria é sempre reles e 56 alguns sfo bons... Em Priena vivia Bias, filho de Teutames, cujas palavras valem mais do que as de muitos outros (Dizia: ‘A maioria dos homens ¢ perversa.’).. O vulgo é indiferente, mesmo em relagio as coisas com que esbarra; nem compreende uma ligio — embora se convenga do contrério," No mesmo tom, prossegue: "A lei pode exigir, também, que seja acatada a vontade de Um Homem. ‘Uma outra expresséo da sua visdo antidemocritica e conservadora poderia ser, curiosamente, subscrita pelos defensores da democracia, Sendo na intencio, ao menes no significado literal "Um povo deve combater pelas leis da cidade como se elas fossem as suas muralhas." Mas foi debalde que Heraclito procurou preservar as velhas leis da sua cidade, e rapidamente o sentimento de efemeridade de todas as coisas se apoderou dele, marcando-o indelevelmente. A sua teoria da mudanga da voz a este sentimento®: "Tudo € devir", diz 0 filésofo, e “ninguém pode entrar duas vezes no mé ru ele préprio em defesa do principio segundo o qual nenhuma ordem Social pode subsistir etemamente: "Nao devemos agit como as criangas ‘educadas no principio esteito ‘Assim como nos transmitiram a nés’ “Nao é apenas na filosofia de Heraclito que a ideia de devir assume uma imporlaucia vital, Também o historicismo considera que todas as coisas estio sueitas a mudanca, até mesmo os res, e que essa verdade deve ser incutida no espirito daqueles que tendem a encarar o meio social como um dado seguro. Sem diivida estas premissas sio razodveis. ‘Menos razodvel seré a combinacao, caracteristica do historicismo e que erpassa na obra de Heracito, entre esta hipervalorizagao da ideia de, evigeacrencacomplementarnumale/inexorvel eimutavel do destino. A primeira vista, parece-nos contraditdria a jungao de um principio inalterével & nogdo de mutabilidade de todas as coisas, Mas ela define, nna realidade, a posicéo de quase ou mesmo todos os defensores do historicismo. Esta atitude pode talvez explicar-se se interpretarmos a sobrevalorizagao da mudanca como 0 resultado de um esforgo no sen- tido de compensara resisténcia inconsciente propria deia de mudanca. {sso justiticaria também a tensfo emacional que leva muitos histoicstas (mesmo nos nossos dias) a propalar a novidade e o carécter inédito das revelagées que tencionam fazer. Estas consideragées sugerem que, na verdade, eles temem a mudanca e no conseguem aceité-la sem um profundo conflto interior, fazendo pensar, até, que a descoberta de uma 29 dei inalteravel regendo a mutabilidade das coisas representa a procura de um consolo para a perda de um mundo estével. __Nocaso de Heraclito, esta mesma inconstincia universal inspiroua vvisdo de que todas as coisas materiais, slidas,liquidas ou gasosas, si como chamas, ou seja, processos resultantes da transformacao do fogo: a aparente solidez da terra (que se compe afinal de cinzas) ndo é senao um dos estados metamérficos do fogo, e assim também os Iiquidos (a4gua, omar) que por issomesmo podem converter-se em combustivel, em dleo. “A primeira transmutagao do fogo é 0 mar; do qual metade é terra e a outra metade ar quente.* Portanto, o at, a gua e a terra Tepresentam transformagies do elemento igneo: "Todas as coisas cons- tityem cambios do fogo e 0 fogo é o cambio de todas as coisas; tal como 0 Ouro por mercadorias ¢ estas pelo ouro." Convertida a totalidade das coisas em elemento igneo, segundo processos de combustio, Heraclito considera que ha uma lei, uma medida, uma razo, uma sabedoria presidindoa todasas transmutac6es; arrasado o edificio do cosmos e reduzido a um amontoado de lixo, 0 filésofo vai recuperar a nogio de estrutura através da aceitacao de wma ordem inelutavel num mundo em constante devi. Qualquer proceso universal, em especial o que caracteriza 0 fogo, desenvolve-se de acordo com uma lei definida, a sua "medida’?. Esta lei ¢ inexoravel e inevitével, a semelhanca das leis naturais da ciéncia moderna, assim como do conceito historicista de leihist6rica eevolutiva, Difere, no entanto, destas concepgées na medida em que se assimila A azo, secundada por medidas punitivas, isto é, tem um funcionamento idéntico ao de qualquer lei imposta pelo Estado. Esta incapacidade de distinguir entre legislagao ou norma legal e padrio de regularidade ou lei natural é caracteristica do pensamenta primitivo, segundo o qual ambas so consideradas mégicas, o que toma tio impraticavel uma critica racional dos tabus criados pelo homem, como a tentativa de aperfeigoar o conhecimento ou racionalizacao das leis ou padrdes de regulatidade domundonatural. simentos procedem deuma necessidade do destino... 0 Sol nunca transpée a medida da sua Tota, pois se 0 fizesse certamente as deusas do Destino, as servas da Justiga saberiam onde encontré-lo.” Mas o Sol nao se limita a obedecer & Iei0 Fogo, sob a forma de sole (como veremos) do raio de Zeus, observa alleie ajuiza de acordo com ela. "Q Sol é 0 perpetuador e o guardigo dos perfodos, imitando, ulgando, anunciando emanifestando as mudancas © as estagbes que originam todas as coisas. Esta ordem 1 queéa ‘mesma para todas as coisas, néo foi criada nem por homens nem por deuses, pois sempre existiu, existe e existiré, como um Fogo sempre vivo, que se acende segundo a medida e segundoamedida seextingue... ‘Na sua progressdo, 0 Fogo captura, julga e condena todas as coisas." Vinculada & ideia historicista de um destino inexor4vel surge, mui- tas vezes, um componente mistico. O capifalo-Z Tornece uma analise 30 critica mais aprofundada desse aspecto. Para jé, desejo apenas eviden- ciar o papel desempenhado pelo anti-racionalismo e pelo historicismo na filosofia de Heraclito®: "A naturéza gosta de se esconder", escreve 0 filésofo e "O Deus soberano, cujo ordculo esté em Delfos, nao revelanem culta, antes se manifesta por meio de indicios.” O desprezo heraclitiano pelos cientistas mais empiricos ¢ tipico dos que pensam que: "Aqueles que sabem muitas coisas no precisam de muita massa cinzenta; de outro modo, Hesfodo e Pitagoras, assim como Xen6fanes, teriam tido ‘muito mais... Pitigoras €0 pai de todos os impostores.” Decorrente deste despreza pelos cientistas surge a teoria mistica do conhecimento intuir tivo. A teoria heraclitiana da razao tem como ponto de partida a consta- tacdo de que, se estamos acordados, é porque vivemos num mundo real uu ‘que podemos comunicar, observar.e controlar os outros, isso significa que ndo somos vitimas de uma ilusio. No entanto, esta teoria tem um segundo sentido, simbélicoiistico, segundo oquals6aalguns eleitos, aqueles que verdadeiramente esto despertos e podem ver, ouvir falar, é concedida a intuigo mistica: "Nao devemos agir ou expressar- nos como se estivéssemos a dormir... Aqueles que despertaram parti- Iham de Um mesmo Mundo; os que dormem continuam encerrados nos seus mundos préprios...incapazes de ouvir ou de falar. Mesmo quando ‘ouyem ndo se distinguem dos surdos. A eles se aplica este dito: “Estio presentes e contudo nao estdo presentes..” A sabedoria é $6 uma coisa: ‘compreender o pensamento que tudo conduz através de tudo." O mun- do vivenciado por todos aqueles que esto acordados corresponde & unidade mistica, isto é, & unicidade de todas as coisas, apreensivel apenas através da razao: "Devemos seguir exclusivamente aquilo que é comum ao todo... A razo €¢omum ao todo... todo torna-se Um eeste toma-se 0 Todo... A Unidade que encerra toda a sabedoria deseja e nda deseja ser designada pelo nome de Zeus... 0 raio que governa todas as coisas.” ~~ Referidas as caracterfsticas mais gerais da filosofia heraclitiana do devir universal e da impenetrabilidade do destino, resta salientar a teoria da forma condutora, seu coroldrio, que preside a todas as trans- formagdes e onde é notério o cardcter historicista da "dinémica social”, substituindo a antiga visio “social estética’. A concepgaoheraclitiana da dindmica da natureza em geral, e em particular da sociedade, confirma a hipétese da filosofia ter sido contagiada pela vivencia de um tempo social e politicamente conturbado. & nesse sentido que ele declara que a controvérsia e a guerra constituem o principio dinamico e criativo do devir, marcando as diferencas existentes entre os homens. E como bom historicista, considera que o julgamento da histéria € um julgamento mora?’ assim, 0 resultado de uma guerra seré sempre justo", “A guerra €0 paie orei de todas as coisas. Permite comprovar a natureza divina de alguns e a natureza meramente humana de outros, tornando os primeiros senhores e os segundos escravos... Devemos reconhecer que 31 2 guerra é universal e a justica — a acco judicial — feita de discérdia, e ‘que todas as coisas nascem da luta e da necessidade." Porém, se ajustica resulta da controvérsia e da guerra, se "as deusas do Destino” coincidem com “as servas da Justica’: se a historia, mais Propriamente a vit6ria (nomeadamente a vitéria guerreira) constitu Prova do mérito, isso significa que também 0 padrao do mérito esta Sujeito "ao devir”. Heraclito resolve o dilema através do relativiemo eda Sua doutrina sobre a identidade dos opostos. Segundo esta teoria (que deveré constituir a base da filosofia de Platio e, sobretudo, de Aristote. Jes) as coisas, no seu constante devir, perdem algumas das suas proprie~ dades-para_adquirir as propriedades inversas, nio constituindo, portato, realmente coisas, mas sim processos de tranisic&é de umrestade ara o seuicontréri¢, ou\a unificacdo de estados opostos:"As coisas frias fomamse quentes'e as quentes tomnam-se frias; aquilo que era himido, Seca, € 0 que é seco, humidifica...A doenga faz-nos prezar a satide... Vide © morte, sono e vigilia, uventude e velhice, tudo a mesma coisa, sendo que uma dé origem a outra e esta se transforma na primeira... Aquilo que se rebela contra si mesmo acaba por ceder em favor de si mesmo, ois hd uma conexéona tensio ena distenséo, como no arco ouna lira, Geopostos pertencem im ao autzo,amais bela harmonia resulta sempre da discérdia e tudo floresce na controvérsia..O caminho da ascensto ¢ Ocaminho da descensdo no séo sendo 0 mesmo... caminho do justo € igual ao do pecador... Para os deuses, todas as coisas séo belas ¢ boas ¢ justas; os homens, contudo, elegeram umas como justas, outras como injustas... O bem e 0 mal sto idénticos um ao outro, O relativismo de valores (que poderiamos designar talvez por rela- tivismo ético) expresso neste fragmento nao impede Heraclito de desen- Volver, a partir da sua teoria da justica da guerra e do veredicto da historia, uma ética romantica e tribal sobre a Fama, o Destino © a Superioridade dos Grandes Homens, estranhamente aparentada com algumas concepcdes dos nossos tempos": “Aquele que sucumbe no fulgor da batalha serd cantado pelos deuses e pelos homens... Quanto ‘maior a queda, mais glorioso o destino... Os melhores aspiram acima de fudo a fama etema... Um homem vale mais do que dez mil, quando é grande." Hid algo de surpreendente no facto de estes fragmentos, datados mais ou menos de 500. C,, veicularem ideias téo préximas das moder. nas concepeées historicistas e antidemocrdticas. Mas, & parte o facto de Se tratar de um pensador extraordindrio e profundamente original, que, Por isso mesmo, legou algumas das suas ideias A tradicdo flosética (em grande medida por intermédio de Platio), este paralelismo doutrinal pode talvez explicar-se pela semelhanca das condigées sociais que pre- sidiram as épocas em questo, sendo que, provavelmente, as ideias !istotcistas tendem a tomar-se proeminentes nos perfodos dé transfor. masio social. Surgiram numa altura em que a vida tribal sofria, na 32 Grécia, um processo de desmembramentoigualmente, num momento em que a organizagio judaica se ressentia do embate da conquista babilénica"®, Parece-me incontestivel que a filosofia de Heraclito € ex- dem sentimento deincerteza, constituindo este, provavelmen- © tipica a dissolucdo das velhas formas tribais de onganizacao social. Na Europa modema, as concepgies historicistas foram ressuscitadas durante a revolucio industrial, nomeadamente. em consequéncia do impacte das revolugées politicas ocorridas na América ¢ em Franga's. Nao se tratard, decerto, de mera coincidéncia o facto de ‘Hegel ter, por um lado, adoptado em grande medida o pensamento de Heraclito, transmitindo-o.a0s movimentos historicistas modernos, e, por outro lado, representar a voz da reacgdo contra a Revolugdo Francesa,

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