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A Presenga Holandesa no Brasil: memoria e imaginario Livro do Seminario Internacional Organizacao: Vera Licia Bottrel Tostes Sarah Fassa Benchetrit Aline Montenegro Magal Ministério da Cultura / Instituto do Patriménio Historico e Artistico Nacional Meee) Go por acaso, a marca “Livros CR lel surge no momento des comemo- eet eet ented dessa tradicional cosa de cultura e meméria. A producto editorial Poe ea CRU Reed eT ee Re colts ie eee td Te ee oe eee ee ce en ee ee Peete nee eee mua Pee eae) Clee tel CU 1383-1583", em 2000), além Cee en See Eada) Deo ure reste Tk Nee sy CT aos Ce aero el ree es a.com uma morca editorial que See eer Deen ad Dee eee ea Cocco dos pela instituicao, a marca “Li- Ree ey cca en Ed ce aol eRe Masel ee Brea oe Pe A Presenga Holandesa no Brasil: memoria e imaginario Livro do Seminario Internacional Organizacao: Vera Lucia Bottrel Tostes Sarah Fassah Benchetrit Aline Montenegro Magalhaes MUSEU HISTORICO NACIONAL Rio de Janeiro ' 2004 Presidente da Republica Luis Inacio Lula da Silva Ministro da Cultura Gilberto dos Passos Gil Moreira Presidente do Instituto do Patrimonio Historico e Artfstico Nacional Anténio Augusto Arantes Neto Diretor de Museus e Centros Culturais José do Nascimento Janior Diretora do Museu Histérico Nacional Vera Licia Bottrel Tostes Comissio de Editoracio Alina Skoiecany, tradugao, resumos e abstracts Andréa Montenegro Magalhaes, Assistente editorial Laura Figueira, reviséo ‘José Neves Bittencourt, coordenagao editorial e preparagao dos originais Mauricio Ennes de Souza, projeto gréfico As opinides e conceitos emitidos nesta publicacdo s4o de inteira responsabilidade de seus autores, no refletindo necessariamente o pensamento do Museu Histbrico Nacional. permitida a reprodugio, desde que citada a fonte e para fins nio comerciais. ‘S471 Semindro Internacional “A Presenca Holandesa no Bras: Membria e Imagindio™ (2004 : Rio de Janeiro, RI) Live do Seminiro Internacional /organizacao ‘Vera Licia BottelTostes, Sarah Fazze Gencheti Rio de Janifo: Museu Histéreo Nacional, 2005, 378 p. +: 23cm. (Livros da Museu Mistrico Nacional : v3) Liv baseado no Seminirio Internacional: A Presence Holandesa no Bes Memoria € Imaginirio,celindo to Museu Histérico Nacional entre 4 e 7 de outubro de 2004. ISBN 85.85-822-05-8, 1, museus 2. Museu Historica Nactonal (Brasil) 3. Wstéva do Brasil 4. Gast Holandés (1620- 1654) 5. Pernambuco, Brasil 6. Mauricio de Nassau-Siegen (1604-1679) I. Titulo I. Tostes, Vera ela Botuet II. Benchetit, Satoh Fass. £00,069 Apresentagao Vera Licia Bottrel Tostes A presenca holandesa na Brasil: memoria e imaginario Sarah Fassa Benchetrit A organizacdo politica do Brasil holandés e o papel das liturgias de poder no governo de Nassau ‘Amo Wehling Velho Mundo e Novo Mundo Alberto da Costa e Silva Instrumentos da conquista 0 papel da cartografia no desenvolvimento do poder naval batavo Max Justo Guedes “Brasiliano”, “tupinambs”, “tupi"-"tapuya', “tarairiu’: a questao dos titulos dos retratos de Albert Eckhout e de Zacharias Wagener (1641-1643) Ingrid Schwamborn ‘A guerra de papel Confeccdo e disputa pelos mapas Beatriz Piccolotto Siqueira Bueno 45, “A mais deliciosa, préspera e abundante” A capitania de Pemambuco e o projeto holandés no Brasil Marcos Guimardes Sanches 169 A cidade de Maurici Observagdes sobre a historia urbana de Recife José Luiz Mota Menezes 185 Jodo Mauricio e suas plantas 0 jardim como teatro do mundo Maria Angélica da Sitva 197 Sociedade e vida privada no Brasil holandés Leonardo Dontas Silva 2 225 Historia dos feitos recentemente praticados... A presenga holandesa no Brasil no texto literario de Gaspar Barleus Rolf Nagel oe «981 ‘A questo dos judeus novos Roneldo Voingas 0 mito da natureza intocada: a historia natural do Brasil holandés (1624-1654) e sua contribuiggo para 0 conhecimento da hist6ria recente da fauna do Novo Mundo 259 Dante Martins Teixeira. o 271 Realismo pictérico e Nacao: as pinturas brasileiras de Frans Post Fmest van den Boogaart . 307 Johann Moritz. Vida e tegado Gerhard Brunn Um panorama da colecio de obras flamengas do Museu de Arte de Sao Paulo Eugénia Gorini Esmeralda erections 341 ‘A demissio de Nassau ‘A crise do Brasil holandés ¢ a retacdo de forcas entre os Estados Gerais e « Companhia das Indias Ocidentais Evoldo Cabrat de Melo . 353 Apresentacao Vera Lacia Bottrel Tostes periodo da histéria brasileira conhecido tradicionalmente como “Invasdes Holande sas” 6 alvo do interesse dos especialistas desde o século XIX. A época atribui-se ao fato importancia capital, chegando a acrescentar a idéia de nascimento do sentido de ago, na populacao da coldnia portuguesa. Apesar de politicamente til, embora improva- vel, o “sentimento nativista”, desde Varnhagen, tornou-se ponto destacado na obra de impor- tantes nomes da nossa historiografia. Entretanto, ao longo do século passado, com o avango da pesquisa, novas hipéteses foram levantadas e novas fontes documentais e metodolégicas contribuem para ampliar 0 conhecimento sobre o periodo, langando novas perspectivas na cena. Mas alguns de seus aspectos, combinados a tais novas perspectivas, ao contrario de embaciar, tornaram-se mais brilhantes. A luta pela reconquista do solo pemambucano é obje- to da atencao de muitos cronistas e historiadores contemporaneos. Desde muito tempo, esse conjunto de fatos passa a ser considerado, com quase unanimidade, um dos episédios mais significativos de nossa historia militar, sendo a segunda Batalha de Guararapes tida como 0 evento militar mais importante de nossa histéria. Se em outros tempos, esse episédio foi dado como momento do nascimento da nossa nacionalidade, hoje questiona-se afirmacdes dessa natureza. No entanto, nao pode-se deixar de apontar sua importancia como um dos agentes basilares na formagao da nossa sociedade. A longa permanéncia dos holandeses em Pernambuco construiu um novo tipo de civilizago, em muito diversa daquela que a coloniza- o portuguesa tinha plantado em meio a exuberante paisagem tropical da América. Os trinta anos de governo batavo na costa americana implicaram o estabelecimento de normas de convivéncia politica, administracao e tolerancia religiosa até entdo desconhecidas na socie- dade portuguesa do Antigo Regime. A “civilizagao holandesa no Brasil", perfeita expressdo que serviu de titulo ao Livro classico de José Hondrio Rodrigues, foi muito significativa e deixou vestigios permanentes, que até hoje tornam o Nordeste brasileiro uma regigo particu- lar com relagao ao patriménio cultural, seja ele edificado ou museolégico. Muito do conjunto do que José Honério assim denominou deve-se ao governo do principe Joo Mauricio de Nassau Siegen. Seu curto governo em Pernambuco marcou um perfodo de excepcional britho, tanto econémico quanto cientifico e artistico. Nao @ exagero dizer que a inteligéncia, a sofisticagao e o dinamismo fizeram do Nordeste a regido mais desenvolvida da colénia ameri- cana de Portugal. 0 que o coloca, decididamente, como evento a ser comemorado. A comemoracdo, 0 “lembrar em comum” (é este o significado desse verbo latino), visa lembrar o passado em fungio dos pésteros. Trata-se, por exceléncia, de um dos “trabalhos da -the uma meméria”, talvez um dos mais nobres. A “comemoracio” vivifica o passado e atrib fungGo social de crucial importancia: € uma das formas através das quais o passado torna-se fonte de identidade e, por conseguinte, de coesio social. Os museus, instituigbes de meméria, por exceléncia, “recolhem, preservam, pesquisam € dinamizam” itens gerados pela dindmica das sociedades, participando ativamente da produ- «80 de conhecimento das sociedades modernas. Mas, para além disso, a dinamizagio de tais itens implica extrair deles o maximo de potencialidades, o que nos autoriza a afirmar que, além de preservar e produzir conhecimento, os museus comemoram. Podemos dizer que, em sua fase moderna, é essa uma dentre suas principais fungées. Tendo em vista essas questes, o Museu Histérico Nacional, uma das principais institui- Ges museolagicas brasileiras, retne, por ocasiao da passagem dos trezentos e cinquenta anos da reconquista portuguesa do Nordeste brasileiro e dos quatrocentos anos do nascimento do conde Jodo Mauricio de Nassau-Siegen, especialistas de diversas reas do conhecimento liga- das & pesquisa das ciéncias histéricas, para discutir questées que remetem a essas duas efemérides. Cumpre assim o Museu sua fungao de disseminar conhecimento cientifico, abrin- do espaco ao debate académico de alto nivel sobre o tema, mas sem deixar de levar em conta que sua principal fungao é também a caracteristica que o distingue perante aos outras insti- tuigdes produtoras de conhecimento: lidar com artefatos. Gustavo Barroso, fundador e diretor, 20 longo de quatro décadas, do Museu Histérico Nacional, atributa grande importancia ao “Brasil Holandés”, a ponto de fazé-lo figurar em posi¢ao de destaque nas galerias da instituicao. Também nao foi pequeno seu esforco em recolher artefatos que remontassem ao periodo: armamento e acessOrios militares, documen- tos, livros e obras de arte, Esse esforgo resultou na formagao de pequena mas significativa colegio, na qual se destacam armas do periodo, moedas obsidionais cunhadas no Brasil por fordem dos holandeses (das quais ndo se conhecem outros exemplares) ¢ até mesmo um ‘exemplar do raro livro de Gaspar Barleus e uma pintura ex-voto comemorando a vitéria luso- brasileira em Guararapes. Todos esses objetos estiveram, durante décadas, em exposicéo nas salas do Museu, tendo enfatizado seu cardter de testemunhos e de reliquias sobre esse impor- tante periodo da histéria brasileira. Também foram abordados em alguns artigos, hoje de reconhecida importancia, aparecidos nas paginas dos Anais do Museu Histdrico Nacional. A passagem do tempo e o avango tanto da Histéria quanto da Museologia nos fizeram relativizar © papel eo lugar das colegdes barroseanas. Os artefatos recolhidos pelo fundador foram estudados & luz de conceitos © métodos entao inexistentes. Esses estudos s6 fizeram reforcar e estender a importancia que Barroso {hes atributa. Como forma de chamar atengdo para o acervo preservado no Museu Histérico Nacional, bem como de néo perder de vista a singularidade e importancia do trabalho de Gustavo Barroso, resolveu a equipe institucional investir numa pequena exposicao que devolvesse 20 pablico, potencializado por novas abordagens, o referido acervo. E da mesma forma que o encontro de especialistas reveste-se de forte sentido interdisciplinar, @ exposigdo buscou a colaboragio do Museu do Instituto Histérico e Geografico Brasileiro, Essa instituigdo congénere dispos-se a emprestar uma colecao de pinturas feitas no século XIX por Niels Aagar Liitzen. ‘So pequenas pecas que copiam as pinturas feitas no século XVII por Albert Eckhout, por encomenda de D. Pedro IT, 0 que acrescenta outro dado de destaque ao evento. Orgulha-se o MHN em promover tal evento. 0 “Seminario Internacional A Presenga Holandesa no Brasil: Meméria e Imaginario” que, durante quatro dias do més de outubro de 2004, ajudou a comprovar a exceléncia da pesquisa cientifica brasileira, bem como, pelo destaque dos pesquisadores internacionais convidados, a importancia atribuida ao tema nos principais centros universitérios europeus. “Livro do Seminério”, como se tornou praxe, 6 0 ciltimo produto do evento. Sua fungio 6 registrar os debates, fixando assim a memoria do evento e permitindo que os indmeros interessados tenham pleno acesso ao conteddo. Por diltimo, 0 “Livro do Semingrio” também acaba tomando-se registro, ainda que néo-intencional, da competéncia e dedicagéo dos funciondrios deste Museu Histbrico Nacional que, no pasado e no presente, empenham-se em do deixar que importante parcela dos testemunhos da histéria brasileira percam-se na invisibilidade da dissolugao. A presenca holandesa no Brasil: meméria e imaginario ‘Sarah Fassa Benchetrit Useus, monumentos, fortalezas, casas de habitagao e centros histéricos tratados ‘como arquivos de documentos de cultura material oferecem dados preciosos sobre as técnicas e a matéria-prima empregadas e informam sobre as relagdes de produ- ‘¢40 que 0s originaram, possibilitando uma leitura critica e interpretava das praticas sociais, econdmicas, politicas e culturais vigentes 4 época de sua construcio. ‘A ocupacao holandesa no Brasil - em particular em Pernambuco ~ legou significative acervo, niéo apenas do ponto de vista da arquitetura e tracados urbanos, mas um rico acervo de meméria social constituido por documentos escritos e fragmentos de produtos da cultura material dentro de um universo diversificado de objetos em suportes variados. Mais especificamente, o periodo mauriciano - embora em termos relativos tenha sido de curta duragdo ~ legou importante acervo de meméria social, uma grande quantidade de documentos escritos, de pinturas e produtos de cultura imaterial. Sem alterar de forma significativa as relagées de producao na colénia ou a base econd- mica sobre a qual se estruturava a sociedade, fez sentir sua presenga de forma bem intensa e constitui um episédio da historia brasileira sobre o qual muitos especialistas tém escrito, geralmente com énfase no periodo entre 1636 e 1644 - quando foi governador-geral e coman- dante militar do Brasil holandas 0 conde Joao Mauricio de Nassau Siegen. No periodo, essa regio do Nordeste brasileiro conheceu indimeras mudangas, de cara- ter politico e sociocultural e um novo tracado urbano, reunindo uma sociedade constituida de franceses, flamengos, italianos, belgas, alemaes e judeus oriundos da peninsula Ibérica e Norte da Europa. 0 conde Jodo Mauricio de Nassau-Siegen aparece na historiografia brasileira como um homem tolerante no campo religioso, preocupado em trazer, para o Brasil, artistas, intelectu- ais, literatos e cientistas, um administrador que buscou criar condi¢des para o estabelecimen- to de uma dinamica cultural que fizesse do Recife um verdadeiro centro urbano. 10 Em 2004, comemoraram-se os 350 anos da reconquista da Capitania de Pernambuco pelos luso-brasileiros, bem como os 400 anos do nascimento do Conde Jogo Mauricio de Nassau-Siegen e dado que o Museu Histérico Nacional realiza anualmente um seminario inter- rracional abordando topicos das areas das Ci seminério de 2004, nos propusemos a abordar aspectos referentes & presenca holandesa no Brasil, e, tendo como pano de fundo a segunda metade do séc. XVII, tangar um olhar sobre icias Humanas e Sociais, por oportuno, para o questées relativas a formagao nacional, a partir do regionalismo histérico. Para ampliar o debate, propusemos contemplar também questdes relativas a construgao de uma identidade nacional, pois, se em termos relativos foi de curta duracdo, a ocupacao holandesa em Pernambuco legou junto a um rico patriménio material também uma série de rmitos que se enraizaram no imagindrio brasileiro, Buscamos, também, estabelecer um espaco ‘no seminério, criando as condigdes adequadas para incluir a andlise e o debate sobre 0 “lugar” ocupado por esse evento na formacao politica e sociocultural brasileira, quando os “documentos” foram examinados como fontes de interesse significativo para a construgdo da identidade brasileira e avaliados sob a luz da “meméria de um Brasil que néo houve". ae A organizacao politica do Brasil holandés e o papel das liturgias de poder no governo de Nassau Arno Wehling Historiador, pesquisador, presidente do Instituto Histérico e Geografico Brasileiro, doutor e livre-docente em Historia Ibérica pela Universidade de Sio Paulo, catedratico em Teoria e Metodologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, professor da Universidade do Rio de Janeiro e da Universidade Gama Filho. Entre suas obras publicadas, “Direito e Justiga no Brasil Colonial” (2004). 1 Appresenca holandesa no Brasil: memoria e imaginario 12 resumo / abstract 0 artigo considera a situagao conflituosa das Jiferencas de religido, lingua e costumes, o papel que se esperava de Mauricio de Nassau-Siegen, & a expressio politica da cultura barroca. Parece fora de di Ada que as liturgias de poder exerceram, na intengao do governante, destacada importancia para a consolidago do domfnio holandés. 0 ensaio analisa a participagio de Nassau no processo de definigao da administragao politica e das relacdes comerciais apés a consolidagao da conquista do terstéri Descreve detathadamente as ceriménias, signos, objetos etitulos que buscavam, utilizando- se dos valores hierarquicos das sociedades européias, legitimar 2 conquista efetuada pela Companhia das Indias Ocidentais e garantir certo ‘grau de nobreza a ela. A figura de Nassau, ajustada a0 modelo pretendido, soube utilizar-se das Uiturgias de poder como mais uma estratégia do exercicio da dominagao. The article considers the tense situation, of the differences of religion, language and customs, the role that Mauricio de Nassau-Siegen wos expected to play and the political expression of baroque culture. Itappears that the liturgies of power held great importance for the governor in the consolidation of Dutch rule. The essay analyses Nossou's participation in the definition of ‘administrative politics and the commercial relations after the consolidation of the conquered territory. Describes in detail the ceremonies, signs, objects ‘ond titles that sought, using hierarchicol volues of European society, to legitimate the conquest caried out by the West India Company and to guarantee «@ certain degree of nobility. Nassau adjusted to the desired model and knew how touse the fturgies of power as one more strotegy to exercise dominance. Arno Wehling questao da organizacao politica dos Pafses Baixos no século XVII € apresentada classicamente na historiografia como uma excegio ao modelo politico-institucional da monarquia absoluta, Constituiam-se outras excecdes, por diferentes motivos, a Polénia, a Repiblica de Veneza e algumas unidades politicas alemés, essas teoricamente; sob 0 Sacro Império. A soberania estava nas provincias que formavam o pats, expressando-se nos estados gerais regularmente reunidos e constituidos pelos representantes das respectivas oligarqui- as provinciais. Um representante da Casa de Orange ocupava, quase sempre, mas nao obri- gatoriamente, 0 cargo de stathouder, por escolha dos estados gerais. ‘A esta organizagdo politica justapunha-se a forca econdmica das duas “Companhias das Indias", gerando uma simbiose entre razdo de estado e objetivos comerciais, tipica dos estados mercantilistas mas fora do padrio definido para estes por Hecksher em seu classico estudo, onde as atividades comerciais submetiam-se as estratégias estatais. A organizacao politica do Brasil holandés e o significado da contratagéo de Nassau No caso do Brasil holandés, @ mesma questo possui ndo sé essas mas também outras varidvels, Tratava-se de uma conguista militar, que no ocorreu simultaneamente em toda a extensdo do territério, mas que no governo de Nassau estendeu-se do Maranhao ao sul de Pernambuco. A conquista em progresso obrigava portanto, antes de tudo, a consolidagio militar do dominio, para em seguida definir-se o mando politico e as relagdes comerciais. Resolvido © problema da estabilidade fisica da conquista, reproduzia-se no Nordeste brasileiro, em ponto menor, 2 questo institucional das Provincias Unidas: @ conquista era uma realizagao da Companhia das indias Ocidentais, mas o seu governo precisava compatibilizar 0s interesses comerciais que haviam presidido o empreendimento e a administracao politica propriamente dita. Acrescente-se a esse caldo de cultura, evidentemente, as dificuldades inerentes as relagdes entre catélicos e calvinistas num contexto de guerra generalizada na Europa e a preexisténcia de uma organizacao politica luso-brasileira, caracterizada pelos governadores das capitanias, ouvidores, provedores e camaras municipais, que se extinguia ante a nova realidade mas que estava na mente e no comportamento da elite social e politica das regides conquistadas. 13 A presenca holandesa no Brasil: meméria e imaginario 14 ‘As circunstncias préticas acabaram ditando o governo da conquista: o Supremo Conse- tho, nomeado pela Companhia, os comandantes militares e algumas camaras de escabinos, sucedaneas do governo municipal portugués. A historiografia do periodo holandés jé analisou extensamente essas “formulas polfticas”, na expresséo de Mario Neme, apontando para sua inconstancia e ineficécia, particularmente na aplicagao da justiga.” A experiéncia mais bem sucedida, apesar dessas limitacées, certamente foi a criagao das quatro camaras de escabinos, avaliada por Evaldo Cabral de Mello como uma estratégia de cooptac3o dos homens bons luso- brasileiros, a fim de esvaziar a reacdo a conquista.* A propria “assembléia” de representantes das capitanias conquistadas, convocada por Nassau em 1640,? foi um ato que, pela sua singu- {aridade, aponta mais para um gesto politico conciliador em relacao as elites locais do que @ uma nova formula politico-institucional intermediéria entre o poder central do Supremo Con- selho e 0 governo municipal. Nesse quadro, destaca-se a contratagio de Mauricio de Nassau-Siegen para 0 governo do Brasil holandés, que exerceu de 1637 a 1643. Sua relacao com os representantes cotoniais da Companhia era tio ambigua como a da Casa de Orange com os dirigentes das Companhias. Tratava-se, afinal, de alianga da antiga nobreza medieval com burgueses enriquecidos no comércio, 0 que, se nao era um fato inusi- tado nem incomum em varios pafses, envolvia dificuldades e arestas a resolver. 0 significado potitico da nomeacdo de Nassau deve ser sublinhado: em lugar de uma {junta ou consetho de burgueses pragmaticos e competentes na administragao privada de seu interesses mercantis, mas jejunos em matéria de governo, sobretudo numa area em que preexistiam formas politicas de origem ibérica e havia diferencas religiosas que, & época, tinham 0 papel de fundamentar ideologicamente modelos institucionais antagénicos, sobre- punha-se um nobre de tradi¢do, ainda jovem mas com estudos e experiéncia da arte militar e de governo. Na historiografia brasileira essa presenga atipica de Nassau no contexto da conquista nao passou despercebida: Capistrano de Abreu disse que a “origem principesce (sic) de Nassau lisonjeou os colonos e tornou-thes mais repugnantes 0s outros governadores, simples burgue- ses, meros dependentes da Companhia’.* José Antonio Gonsalves de Melo Neto reconheceu-o ‘Aro Wehling ‘como um gro senhor, que “s6 se sentia bem em palécios”,* juizo que também foi o de Charles Boxer.* Foi o que poderfamos chamar de “senso de governo”, de Nassau, tao semelhante 20 de outros governantes de sua época, a primeira metade do século XVII, que o fez destacar-se para seus contemporaneos no Brasil e para grande parte da historiografia posterior. Isso se eu nao 6 em relacdo aos burgueses da Companhia, como 20s governantes luso-brasileiros do governo central da Bahia e das capitanias do Nordeste e Norte, algumas entdo recém- criadas e em plena fase de instalagéo da sua estrutura institucional. Se a cada uma das apregoadas qualidades de governante de Nassau, alegadas por seus admiradores, corresponde uma restrigéo aposta por seus criticos, sem divida nao se pode negar-lhe aguda capacidade de observacio, traduzida numa relaco de empatia com os venci- dos. A percepcao dos tracos psicol6gicos destes e dos holandeses revela como Nassau captava com fidelidade os valores estamentais portugueses e 0 pragmatism econdmico dos invaso- rs, séculos antes de os sociélogos descobrirem a ética protestante e o espfrito do capitalis- mo: no seu “Testamento Politica”, ao recomendar a seus sucessores tratar os portugueses com brandura, explicou por que: mais de uma vez observei que os anima ou contenta mais o mostrar-se-thes honrosa estima do que a esperanga da riqueza. 34 aos holandeses: 0 thes toqueis nos bens, como se fossem coisas sagradas...”* Com o papel politico que the foi atribuido pela Companhia das indias Ocidentais e 0 perfil psicolégico de principe renascentista que, como os documentos levam a crer, ostentava, pode ser fecundo trabathar a hipétese de que as liturgias de poder foram instrumento impor- tante para a afirmacdo de sua imagem e mando durante o periodo em que governou o Brasil holandés,? Cultura politica barroca, etiqueta barroca e liturgias de poder Respirava-se um clima barroco nos dois lados da Atlantico, nas décadas de 1630 e 1640." Isso significava, em termos de cultura politica, como nas manifestagdes estéticas, uma ‘exacerbacao da forma. A monumentalidade, a policromia e a hipérbole eram expresses que 15 ‘A presenca holandesa no Brasil: meméria e imaginério 16 procuravam acentuar a grandiosidade, respectivamente no volume arquiteténico, na pintura e na disseminacao da palavra. Buscava-se impressionar pelo superdimensionamento, reforgar 0 argumento pela redundancia ou pela erudicdo macica. Se o poder do principe somente poderia manifestar-se de modo retumbante, por outro lado fazia parte dessa cultura politica, seja na sua vertente catélica, seja na protestante, a ‘déia de que ele era um representante de Deus na Terra. Se para os catélicos isso transformava © antigo padroado do direito senhorial no moderno “Vicaciato”, que tomava forca no século XVIT, a despeito da oposicgo da Caria Romana,"' entre os protestantes difundia-se na mesma época, pela Biblia do Rei Jaime I da Inglaterra, a teoria do direito divin dos reis. Uma e cutra doutrina, ao mesmo tempo que afirmavam a incontestével soberania dos reis em relacdo a fontes concorrentes de poder - senhores, Igreja, cidades -, refutavam, por sua raiz religi- ‘sa, a tirania, 0 que implicava admitir a monarquia temperada pelo direito natural e pelo respeito aos direitos, prerrogativas e privilégios legftimos dos siditos. A Republica de Bodin, muito mais do que 0 Principe, de Maquiavel, corresponde 8 realidade politico institucional dos regimes dos séculos XVI e XVII, conforme a historiografia do “absolutismo” vem sobe- jamente demonstrando. As “tensbes da sociedade estamental’, a que se refere José Antonio Maravall, refletem as dificuldades para se encontrar sucessivos pontos de equilibrio em sociedades crescentemente complexas pela diversificacao econdmica e pela diferenciacao social, conquanto ainda presas, institucionalmente, a formulas juridicas que ainda nao haviam perdido - como ocorreria no século XVIII - sua eficdcia social.*® A atuacdo politica de Mauricio de Nassau reflete o mundo cambiante desta sociedade & deste estado, transplantados para uma realidade tropical em que novos atores sociais se apresentavam - do serthor de engenho ao escravo negro e 20 indigena “brasilian”, incorpo- rado as hostes militares de portugueses e holandeses. Por outro lado, entre o clima barroco e as liturgias de poder como 4 época se expressa~ vam, deve ser lembrada a etiqueta do “grand monde” europeu seiscentista. Em sua altima obra, fruto de densa pesquisa e de uma vida de meditago sobre 0 fendmeno histérico, Roland Mousnier biografa o Cardeal Richelieu, Em seu milhar de paginas, ‘Arno Wehling, um dos pontos que o historiador destaca é justamente o da etiqueta, em especial o papel do louvor ou elogio, em geral repetitivo e hiperbélico, que caracterizava as relacdes interpessoais. Indagou-se 0 historiador francés sobre o real significado dessa atitude, isto é, se trata- va-se de mera adulacio ou de um habito da época, correspondendo a um cédigo de compor- tamento. Inclinando-se para a segunda explicagdo, como o faria também o historiador Bernard Bray, autor de um estudo sobre o louvor como exigéncia civilizatéria, Mousnier considera que a pratica do elogio mituo se impés na conversagao, na correspondéncia e nas dedicaté- rias de livros, desde a segunda metade do século XVI ate o século XVIII, Néo é sem motivo, alias, que se multiplicaram neste periodo os manuais de etiqueta. 0 louvor grandilogiente impés-se, para Mousnier, como “um ideal social de grandeza e de gléria, numa sociedade aristocratica e holista, isto 6, uma sociedade de corpos hierarquizados’.* Por ltimo, vamos considerar 0 angulo das “liturgias de poder”, Esta abordagem, que metodologicamente remonta 3 “teologia politica” de Carl Schmidt e ao “Laudes Regiae” de Emst Kantorowicz,¥ foi desenvolvida na historiografia e em outras ciéncias sociais por auto- res como Lévy-Strauss, Riviére, Boureau e Chartier, entre outros. Ela coloca questao seme- thante a anterior: as liturgias de poder, nas suas diferentes formas (formulas rituais, signos, ceriménias, utitizagéo de monumentos, procissées, desfiles, comemoragées) possuem um sig- nificado apenas epidérmico, no maximo lddico, para a cultura que as pratica ou, ao contrario, tm significado mais profundo, contribuindo para a legitimacao e, portanto, para a consolida- ¢80 do proprio poder? ‘No caso do Estado do Antigo Regime, a resposta tem sido encaminhada pela historiografia para afirmar uma estratégia de legitimacao do poder. Entre as varias classificacdes propostas, a de Roger Chartier contempla trés registros diferentes destas liturgias legitimadoras do Esta- do, as “ordens” do discurso, do signo e da ceriménia."* Independentemente da forma destas manifestaces, porém, elas afirmam, por sua ex- pressio nitidamente litdrgica, a sacralidade e a majestade do poder, distinguindo as institui- ces representadas (0 rei, os magistrados, os governadores) e aqueles que as encarnam cit- cunstancialmente (0s seus titulares) dos demais membros da sociedade. Por seus cargos, merecem o respeito e a admirag3o dos que so por eles conduzidos. aw A presenca hotandesa no Brasil: meméria e imaginério 18 Considerando, de um lado, a cultura politica barroca, a etiqueta sofisticada e as liturgias de poder como eram concebidas e praticadas na primeira metade do século XVII e, de outro lado, os gestos politicos de Mauricio de Nassau-Siegen como governador do Brasil hotandés, procuraremos comprovar a hipétese de que as liturgias representaram uma estratégia legitimadora do seu poder nos territorios conquistados a Portugal. Aces, gestos e signos politicos de Nassau — 0 cerimonial Mauricio de Nassau procurou sempre, a crer nas fontes holandesas e portuguesas, comportar-se como um principe, ainda que nio o fosse de fato, enquanto esteve no Brasil, JA que o titulo foi-lhe concedido somente mais tarde, pelo Sacro Império. Se o fazia por inclinago pessoal, em fungo da educacao nobre recebida, ou por mero calculo politico, nao 6 relevante: relevante é constatar que tal representacdo se impés a boa parte dos ‘contemporéneos, com poucas excegdes, e aos pésteros. 0 cronista frei Manuel Calado, que com ele conviveu mas néo pode ser tachado de anti-lusitano, diz no “Valeroso lucideno”, ‘ecoando o imaginario da época em relagdo & majestade dos reis: “bem inclinado de nature- za, € 0 sangue real donde procedia o inclinava ao bem”, "benigno de natureza’.”* ‘A associacao da bondade, da tolerancia e da magnanimidade como atributos dos detentores de sangue real chama a atencdo para o papel atribufdo aos reis nos discursos legitimadores das monarquias modernas. Submetidos aos destgnios de Deus e aos ditames do direito natural, isso os fazia “naturalmente” justos e justiceiros - por isso a justiga era a principal fungao do rei. Eram portanto os responséveis pelo equilibrio da sociedade: quando as Ordenagdes portuguesas e mais remotamente as “Sete Partidas” de Afonso X recomendavam que protegessem os fracos e humildes dos abusos dos poderosos, nao esta- vam fazendo mais do que aplicar os preceitos cristdos, impondo uma telagdo justa onde hravia ocorrido uma deformagio ou injusti¢a, provocada pelo desmando de um senhor. Era a “realeza juscéntrica”, na expresséo de Kantorowicz."* 0 Nassau justo e tolerante de frei Manuel Calado extrapola, portanto, a figura de um nobre (conde) que governava um territério conquistado, para alcar-se a figura de um vice- rei ou principe de sangue, cuja “natureza” o impelia ao bem agit. Nao serd por acaso, aliés, ‘Aro Wehting que o frade chama-o sempre de “principe” e ndo de “conde” e em didlogo o trata por “exceléncia’® A apropriaco da fun¢io majestética principesca da justia na figura de Nassau ecoava fundo na tradigao afirmativa do poder real conforme este se delineou na Europa ocidental desde os séculos XIL-XIIT. Era a idéia de um rei nao apenas justo, mas responsavel pela aplicagao da justica, por si ou seus prepostos, como na representagio de Lufs IX, distribuin- do-a sob o carvalho de Vincennes. No caso portugués, conforme estudado por Antonio Manuel Hespanha, a severa cominaco de crimes pelas leis reais, senhoriais ou eclesiasticas poderia ser amenizada por um gesto do rei: 0 direito de graca.®! Assim, a apelac3o ao rei ou a seus prepostos estava nas priticas sociais e no inconsciente coletivo e a imagem de Nassau como um governante justo, a confiar em algumas crénicas, adota esse perfil. Esse mesmo traco de psicologia real, a munificéncia, a generosa magnanimidade, con- funde-se, em Nassau, com o preciosismo da etiqueta barroca. £ como pode-se interpretar 0 episédio, também narrado por frei Manuel Calado, da entrega de sua espada preferida a um tenente-general portugués. Ou, nas palavras do frade: + €. noite antes que se partissem convidou o conde de Nassau ao Tenente [General] Pedro Correia da Gama a cear com ele s6 por s6, ¢ the fez par a espada de parte, eno fim da ceia quando se despediam, pedindo Pedro Correia da Gama a sua espada 0 CCamareiro do Conde de Nassau o ornou com uma rica espada de grande feito, pendu: ‘ada de um vistoso tahali, bordado de fio de ouro, 2 qual espada o Conde costumava trazer nos dias festivas; e replicando Pedro Correia da Gama, que nio era aquela a sua espada, the disse o Conde de Nassau: "Senhor Tenente-General, essa espada é a minha mimosa, com a qual eu me acostumava omar nas ocasides de honra, e agora fago a vossa mercé servigo dela, para que ma faga em sua mao valorosa, ¢ honrada, ea vossa mercé eu tha mandarei levar a casa.* 0 cuidado com os eventos e comemoracées foi outra preocupacao explicita do conde de Nassau como governador do Brasil holandés. O episodio da conquista de Bréda pelo Principe Frederico Henrique de Orange, stathouder das Provincias Unidas, 6 emblemético da agdo de Nassau.? 19 A presenga holandesa no Brasil: meméria e imaginario 20 No contexto da Guerra dos Trinta Anos, 1635 foi o ano da intensificagao dos conflitos opondo diretamente Franca (aliada as Provincias Unidas) e Austria, compreendendo 0 Sacro Império e a Espanha. A tomada de Bréda pelo Principe de Orange pouco mais tarde foi parti- cularmente cara a Mauricio de Nassau, pois a praca-forte, 8 qual sua familia estava estreita- mente ligada,** tinha sido conquistada em 1625 a seu primo e homénimo em episodio anteri- or da guerra. A vitoria dos tercos espanhdis, em 1625, foi celebrada na tela de Veldzquez expressou 0 orgulho pela competéncia militar espanhola, No Brasil continuavam os conflitos entre holandeses e luso-brasileiros, mas a balanga {nctinou-se para os primeitos, com as vitérias em Olinda e Porto Calvo e contra 0 exército de Bagnuolo, que retirou-se de Sao Crist6vao de Sergipe a 17 de novembro de 1637,** permitido a sua ocupacao por Schkoppe. Nassau associou, como narra Barleus, a reconquista de Bréda por sua Casa 3s proprias vitérias no Nordeste: Para se renderem gracas a bondade de Deus, solenizou Nassau o dia da vitoria, a fim de que nem a distancia dos lugares, nem o renome dos holandeses reproduzidos no Novo Mundo parecessem obliterar os sentimentos patriéticos no dnimo dos que se achavam_ longe da Patria. Atributram-se a Deus, simultaneamente, os prospérrimos sucessos das. querras ocidentais e a vit6ria sobre Bagnuolo, recentemente posto em fuga.* ‘Quando da Restauracdo portuguesa, ocorrida em dezembro de 1640, Mauricio de Nassau fez uso de estratégia comemorativa semelhante. Logo que foi recebida a noticia, determi- nou que se fizessem festas, pois a aclamagao de D. Joao IV implicava a abertura de uma nova frente politica e militar para a Espanha, tornada inimigo comum. A organizacao dessas festividades, que se realizaram em abril de 1641 e duraram trés, dias, coube ao proprio governados. Mandou terraplenar uma extensdo de terra defronte 3 seu palicio, conforme narra frei Manuel Catado, e construiu palanques de madeira para a assisténcia. Identificou em toda a capitania os proprietérios de “cavalos regalados” que estivessem em condigdes de participar de corridas e jogos, convidando-os para “festas solenes” que pretendia promover. ‘Arno Wehiing Como informa o ctonista, os “mancebos cavaleiros” sentiram-se lisonjeados pelo convi- te, formulado em cartas pessoais de Nassau, esforcando-se por atendé-lo, alguns além do permitido por suas posses.” Mesclava-se af a honra de distingdo e a homenagem ao novo rei portugués, cuja aclamacéo, nascimento, casamento ou morte eram acompanhados por sole- nes manifestagdes coletivas. No inicio das solenidades, Nassau recebeu-os “com alegre semblante, e os hospedou a sua ‘mesa com espléndidos manjares, e com muitas misicas, e diversos e acordes instrumentos’* 0s cavaleiros foram organizados em dois grupos, um de holandeses, franceses, ingleses @ alemies, liderado por Nassau, e outro de Luso-brasileiros, dirigido por Pedro Marinho Falc3o, Do lado holandés, o cronista menciona, incluindo o conde, 17 cavaleiros, todos militares, a excegdo de um esculteto e de um pajem. Do lado portugues foram citados 18, embora nos dois, ‘grupos existissem outros. Dos 18 luso-brasileiros, alguns jé tinham ou viriam a ter estreitos contatos comerciais com os holandeses: comparando-se a relacdo de frei Calado com a “Lista dos devedores portugueses da neerlandesa Companhia das Indias Ocidentais”, elaborada por ‘casio das negociacdes que levaram ao Tratado de 1661, verifica-se que cinco deles com certeza - inclusive o lider Pedro Marinho Falco ~ e possivelmente oito participaram da cavalhada de 1641. Desses, destacou-se num dos jogos, que consistia em recother com a langa argolas de ouro ou pedras preciosas, Jodo Fernandes Vieira, que disputou o segundo lugar com o secretério de Nassau. Vencedor, 0 futuro lider da insurrei¢go pernambucan, num ‘outro gesto da etiqueta barroca, deu o prémio, um anel de diamantes, ao derrotado, “dizendo- the que a ele pertencia, por methor cavaleiro”®® No segundo dia de festa houve jogos, banquetes e disparos de artitharia. 0 terceiro dltimo dia transcorreu com simulagdes de combates, ceia e representacao de uma peca teatral “em lingua francesa, com muita ostentacio, suposto que poucos, ou nenhum dos portugueses entendeu a letra da comédia"." A despeito de pequenas estocadas nos estrangeiros, frei Manuel Calado, que descre- veu as festas, atribuiu a Nassau um papel central nos eventos, nao apenas como incentivador © organizador, mas como ator, j4 que liderava todo 0 tempo o grupo ou “quadrilha” de holandeses. 2a A presenga holandesa no Brasil: meméria e imagindrio 22 Na despedida, que ocorreu no quarto dia, Nassau despediu “os cavaleiros portugueses com muitos agradecimentos dz mercé, que the haviam feito em se querer achar nas suas festas’? Antes de sair do govemo, em maio de 1644, Nassau concluiu a ponte que ligava Mauricéia 20 Recife, inaugurando-a com festas, a que ndo faltou uma pantomina tornada célebre, a do “boi voador”,* sequida de banquetes. Logo apés, em uma reunigo em Mauricéia, despediu-se solenemente das principais figuras de Pernambuco, tanto portugueses como holandeses.* Sua safda do Recife foi também solene, com tropas alinhadas, salvas e grande acompanhamento de fidalgos e populares, conforme as descrigdes dos cronistas de ambos os lados: “.. toda a infantaria holandesa se pas em ala, e deu trés surriados de mosqueteria, e todas as fortalezas a terra, € naus que estavam no mar dispararam sua arvilharia ..."°* descreveu Calado e, Nieuhof, por sua vez... Todo 0 povo ¢ as personalidades de projeco do Recife e Cidade Mauricia comparece- ram armados a0 embarque, formando duas alas que iam desde a cidade velha até @ Porta do Mar. Insignias, brasées, monumentos, pinturas A preocupagao de Mauricio de Nassau com as acdes, gestos e signos politicos expres- sou-se nao apenas de forma cerimonial, mas também em emblemas iconograficos e monumen- tos, nos quais se evidenciavam os objetivos das liturgias de poder. Um trago da “cultura do bartoco” a que aludia José Antonio Maravall era justamente o dos objetivos sociopoliticos do emprego de meios visuais. Por isso, diz este autor, “a presenca direta ou, quando menos, as representacées simbolicas, ... tem uma forca incomparével”,” 0 que explica inclusive a estrei- ta relagdo da obra de Velazquez com os feitos politico-militares do conde-duque de Olivares. Os oficiais que combateram Luis Barbalho em 1639, por exemplo, receberam medathas de ouro comemorativas de seu bom desempenho, com a effgie e o nome de Nassau no anverso € 2 inscrigdo “Deus abateu o orgutho dos inimigos”* Reproduzindo a tradigao européia de atribuir brasbes de armas as distintas regides, ou instituigdes, pratica que, como notou Varnhagen, a Espanha introduzira na América,“® Nassau ‘Arno Wehling fez o mesmo no Brasil holandés. A partir dos pedidos das cAmaras para que fossem autoriza- dos selos de autenticacao dos seus atos, Nassau, segundo Barleus, concebeu ele proprio os brasées, dando-os também a0 Conselho Supremo e ao Senado Politico. Conforme a descricao de Barleus, a iconografia destes brasdes era rica em significado: 6 brasio do Supremo Conselho possufa um escudo com as insignias de cada provincia brasilei- 'a, caracterizando os elementos constitutivos do dominio holandés, encimado pelas armas das Provincias Unidas e tendo na base a divisa da Companhia das fndias Ocidentais; 0 brasio do Senado Politico, que tinha fungées judiciats, trazia também um escudo contendo as insig- nias das provincias, encimada pela figura de Astréia, a mitolégica filha de Zeus e de Themis (deusa da justica), que fora expulsa para o céu devido aos crimes praticados pelos homens. Astréia trazia em cada uma das maos a espada, para combater os crimes, e a balanga, padréo dos comerciantes. As antigas capitanias, agora provincias do dominio holandés, receberam para cada ‘camara um brasao. Em Pernambuco, destacava-se 0 brasdo de Olinda, representando uma virgem admirando-se no espelho, com uma folha de cana-de-agicar na mo e a inscricgdo Olinda’, As demais cdmaras - Igaracu, Serinhaem, Porto Calvo e Alagoas - receberam brasées semelhantes. A cmara de Itamaracé tinha em seu braséo um cacho de uvas, porque, ainda segundo Barieus “nenhuma parte do Brasil as produzia tao helos e suculentos”*! A camara da Paratba representava-se por pies de accar em forma de pirémide, enquanto na do Rio Grande havia um rio, & margem do qual pousava uma ema, animal comum na regio. O sentido aristocratico desta iniciativa de Nassau nao passou despercebido a0 monar- quista Varnhagen, para quem os brasdes... tinham origem em pensamentos elevados, de representar também o pats na arte heral- dica, a qual se reduz a uma tinguagem hieroalifica e simbélica, que fala ao coragdo e que por todos os homens civilizades & entendida, qualquer que seja a sua lingua. 0 desenho urbano de Mauricéia e-a construgao de edificios com aspiragées monumen- tais foi sublinhada por muitos cronistas e historiadores como trago importante do perfil de Nassau. Associar essas praticas com as liturgias de poder para proclamar a legitimidade e a grandeza do governante é perfeitamente razodvel e logico, mesmo que nao houvesse nenhum 23 A presenca holandesa no Brasil: mem6ria e imaginario 24 documento a testemunhé-lo. Entretanto, ele existe, pois 0 préprio Barleus, cujo texto afinal foi uma encomenda de Nassau e que no conheceu essas construgées, delas disse, arrimando- se na referéncia que Tucidides fez a Alcebtades: “o esplendor dos edificios, tanto entre os concidadaos na patria, como entre estrangeiros, mormente inimigos, costuma dar aparéncia de poder..." Nao deixa 0 cronista, entretanto, de sublinhar a este respeito 0 conceito aristocrstico de honra: Nada vate engrandecer uma dignidade com um edificio, se se busca toda a dignidade $6 com 0 edificio, pois convém que ele se honre mais com 0 dono do que este com ele 0 trabatho cientifico, de coleta e descrigao de espécies da flora e fauna desenvolvido por Piso e Marcgrav entram 3 conta de munificéncia dos principes e grdo-senhores renascentistas @ barrocos e nao podem, em si, considerar-se uma liturgia de poder, embora indiretamente refletiam-se sobre sua ado, também legitimando-a e certamente valorizando-a. No caso da pintura, entretanto, hé em geral um sentido comemorativo e grandilogiiente, utilizado com frequéncia pelo poder estatal a época. Se Velazquez glorificou a conquista de Bréda a Nassau em 1625, Juan Baptista Maino fez o mesmo com outra vitéria espanhola do mesmo ano, a conquista da Bahia aos holandeses.“* Nassau, ao trazer Franz Post ao Brasil, promoveu a producdo de centenas de pecas iconogréficas, entre esbocos, desenhos e telas, que reproduziram quase fotograficamente 0 Brasil holandés. Se neles nao ha situacdes épicas, provavelmente pelas caracteristicas técni- cas do pintor, celebram diretamente a natureza e os tipos humanos dos tréopicos e indireta- mente o governante que os propiciou e que, aliés, preocupou-se com cuidado em dissemina- los estrategicamente pela Europa, doando-os, entre outros, ao principe Frederico de Brandenburgo e a Luis XIV. Este comportamento muito provavelmente visou, em outro contexto, reafirmar sua ima- gem de grao-senhor, reiterada por sua participagao em outros eventos politicos importantes posteriores e na recepgao do titulo de Principe do Sacro Império. ‘Ammo Wehling Hierarquias e titulos Numa sociedade estamental e estruturada em corpos sociais e institucionais, os titulos representam uma importante fonte de legitimacao da posicdo e da ascensdo social. Nesse sentido, ndo havia diferenga social ou mental mais profunda, época, entre, por exemplo, 05 paises ibéricos decadentes e as dindmicas Provincias Unidas. ‘A atuacdo de Nassau caracterizou-se, também neste ponto, por uma vigorosa observan- cia das regras estamentais de legitimacdo do poder. Seu papel como um governante contrata- do pela Companhia das indias Ocidentais, partilhando a autoridade com 0 Consetho dos Dezenove, era o de um verdadeiro principe ou vice-rei. Pelo menos, esse era o entendimento de Barleus, afinal seu porta-voz ex-post facto: A referida Companhia geriu, sob a forma aristocritica, essa Repiblica e, com sSbios alvitres, dirigiu, por intermédio do Consetho dos Dezenave, esse dominio estrangeiro. {Nao, porém, sem um principado, porquanto, suprimido ali o titulo de rei e de vice-rei, sob cujos auspicios se governava antes o Estado, receteu legitima autoridade para {sso 0 ilustrissimo Mauricio, com o titulo de Governador e Capitdo General, com supre- mo poder na terra e no mar? Mesmo no Brasil, 0 carater senhorial de sua gestio foi varias vezes afirmado. Exemplo claro € a da homenagem que the foi prestada pela camara de Olinda, atribuindo-the o titulo de Patrono que, ainda na interpretacao de Barleus, envolvia o estabelecimento de lagos mituos de fidelidade, obediéncia e benevoléncia.* ‘Na ceriménia de sepultamento de Joao Ernesto, irmao de Mauricio de Nassau, no Reci- fe, ocorreu um imponente ritual fanebre, assistido por grande quantidade de pessoas, gradas @ populares, conforme a descrigao de frei Manuel Calado. Liderada por Mauricio de Nassau, a ceriménia foi oportunidade para a afirmacao da sua condigdo de gréo-senhor, pela sébria pompa com que transcorreu e pelo papel central que assumiu em todos os seus momentos. 0 féretro, como j& observou Evaldo Cabral de Mello, a propésito da descricio de frei Manuel Calado, foi organizado hierarquicamente. Encabesado pelo conde de Nassau, era composto sucessivamente pelos membros mais importantes da sociedade encerrando-se, diz Calado, pelos indios armados e, finalmente, por “toda a outra turbamulta do povo’.* 25 A presenca holandesa no Brasil: meméria e imagindrio 26 Evidéncia de como titulos e cerimoniais sinalizavam hierarquias e comportamentos socialmente desejéveis ou indesejéveis foi o episédio, também relatado por frei Manuel Cala~ do, do desentendimento entre Nassau € 0 governador da Bahia, Antonio Teles da Silva, apés a Restauragéo portuguesa. Tendo recebido uma carta do governador em que este o tratava por “exceléncia”, preo- cupou-se Nassau, na sua resposta, com o tratamento que the deveria dar, tendo sido informa- do que the correspondia o de “senhoria’, 0 fato aparentemente enfureceu a autoridade portu- ‘guesa, que respondeu uma carta contendo vinte e nove vezes a expressio “senhoria”. Confu- so, Nassau orientou-se com frei Calado. Este lembrou-se de acontecimento semelhante ocor- rido na dominacao espanhola, em Portugal, entre o Duque de Braganca, que tinha direito a0 titulo de exceléncia, e o Duque de Uzeda, que acompanhava o Rei Felipe III em visita ao pats, que tinha - na 6tica portuguesa ~ direito ao titulo menor de senhoria. No caso especitico, frei Calado explicou a Nassau que a primeira carta do governador da Bahia fora em cardter pessoal, o que permitia qualquer tipo de tratamento. Como a resposta de Nassau tivesse sido formal, a explicacao de frei Manuel Calado, exemplo de etiqueta barro- a, fot: + vendo que Vossa Exceléncia 0 nio tratava a foro de amigo, e lhe dava a Senhoria, que ele tinha enquanto Governador e Capitao General; também tratou de dar a Vossa Exce- léncia a Senhoria que Lhe era devida, e nao a Exceléncia que n3o tem, sendo enquanto os préprios holandeses thes querem dar. E ainda digo mais, confiado na ticenga a que Vossa Exceléncia me tem dado para falar, se tratamos da representagio dos cargos, Vossa Exceléncia representa o Conselho dos Dezenove da Companhia das Indias Ocidentais, que s4o uns mercadores, e alguns deles judeus, a quem o Senhor Principe de Orange chama por vés € a gente ordinaria por vossa mercé. E ‘como ninguém pode dar 0 que nao tem, como é possfvel que quem ndo tem mais que mercé, e vés, possa dar Exceléncias. 0 Governador da Bahia representa a Sua Majestade el-Rei de Portugal Dom Joao Quarto, o qual pode dar Senhorias, Exceléncias e Altezas a quem (he parecer e com eles os Principados e dignidades competentes a tais titulos; e ‘suposto que nao dé mais que Senhoria aos seus Governadores do Brasil, todavia vai muita diferenga na representacao de um Rei soberano a mercadores ...” ‘Arno Wehling A perspectiva das liturgias de poder no dominio holandés pode, portanto, colaborar para melhor compreender as estratégias de dominacao politica numa area colonial conquista- da a outro povo europeu e com economia e relagdes sociais ja estruturadas. Parece fora de divida que o papel atribuido a Nassau pela Companhia fot o de consoti- dar e mesmo viabilizar o dominio, pelo estabelécimento de um governo que se articulasse junto a aristocracia local e fosse um referencial seguro para a populagdo em geral, 0 que no parecia assegurado - ou mesmo plausfvel, na avaliagao de Evaldo Cabral de Mello - numa administragéo de comerciantes. ‘sso mesmo evidenciou-se quando da saida de Nassau, a crer no depoimento do cronista Moreau, referindo-se aos trés conselheiros que o substitufram: Possuiam eles étimo senso comum para fazer o balanco, num escritério, das vendas e compras, despesas e receitas da Companhia (...) mas nao os dotara a natureza com as qualidades necessérias para sustentar 0 timao de um governo soberano e sua educagao. rnas artes mecdnicas mostrava que eram incapazes do julgamento e previdéncia reque- ridos para manter e conservar uma tao grande extensdo de territarios e tantos povos e diferentes nacdes.!? Se considerarmos, assim, a situac3o conflituosa, as diferencas de religiao, lingua e costumes, e 0 papel que se esperava de Mauricio de Nassau-Siegen, e a expressao politica da cultura barroca, parece fora de divida que as liturgias de poder exerceram, na intengdo do governante, destacada importancia para a consolidago do dominio holandés. Ceriménias, signos, objetos e titulos buscavam, utilizando-se dos valores hierarquicos das sociedades européias, legitimar a conquista efetuada pela Companhia das Indias Ociden- tais e garantir certo grau de nobilitacao estamental a ela. A figura de Nassau, ajustada ao modelo pretendido, soube utilizar-se das liturgias de poder como mais uma estratégia do exercicio da dominagio. 27 ‘A presenca hotandesa no Brasil: meméria e imaginario 28 Notas 1. CE NEME, Mario. Férmulas potiticas no Brasitholandés. So Paulo: Difel, 1971. p. 30. 2... MELO, Evaldo Cabral de. Olinda restaurada, Rio de Janeiro - Sio Paulo, Forense-Edusp, 1975, p. 259. 3. MELO NETO, José Antonio Gonsalves de. 0 dominio holandés na Bahia e no Nordeste. In: HOLANDA, Sergio Buarque de (ti). Hstéria Geral da Civilizagao Brasileira (Tomo I Vol. I - A época colonial). Sio Paulo: Difel, 1972. p. 235. “4, ABREU, Jodo Capistrano de. Capitulo de istéria colonial. Ro Janeiro: Briguet, 1954, p. 167-8. (1" ef, 1907). 5. MELO NETO, José Antonio Gonsalves de. Tempo dos flamengos. Recife: Massangana, 1987. p. 83. 6. CF. BOXER, Charles R. Tho Dutch in Brozil, 1626-1656, Oxford, Oxford Univ. ress, 1957. p. 115. 7. BRASIL, Instituto HistOrico e Geogréfico Brasileiro. Testamento potitico do conde Jo8o Mauricio de Nassau, Reviste do Instituto Histrico e Geogrdfico Brasileiro, $8 (91), 1895. p. 223 ss. 8, Idem. Ibidem. 9. CF. RIVIERE, Claude As liturgias politicos. Rio de Janeiro: Imago. p. 15; tb. WENLING, Arno e WEHLING, Maria Jost. Direito ejustica no Brasil colonial: © Tribunal da Relagdo do Rio de Janeiro (1751-1808), Rio de Janeiro, Renovar, 2004, p. 133. 10. Cf. FRANCA, Eduardo ¢ Oliveira. Portugal na época do Restouracéo. Sao Paulo: Hucitec, 1997. p. 10 ss; th. MARAVALL, José Antonio. La cultura det Baroco. Barcelona: Ariel, 1996. p. 336. 11 CF, HERA, Alberto de la. Zglesa y Corona en la América Espafiola. Madri: Mapfre, 1992. p. 255 ss. 12, Cf, MARAVALL, José Antonio. Estado modemo y montalidad social. Madri: Revista de Occidente, 1972, vol. II, p. § 55. 13. Cf BRAY, Bernard. La louange, exigence de civilité et pratique épistolair. In: Revue XVITe. Siete (abr Jun, 1990, n. 167). p. 135 ss. 14, MOUSNIER, Roland. homme rouge ou (a vie do Cardinal de Richelieu (1585-1662). Paris: R. Laffont, 1992. p. 65. 15. Cf. KANTOROWICZ, Ernst. Los dos cuerpos del rey: Un estudio de teologia politica medieval. Madi Alianza, 1985, p. 168, 16. CF. CHARTIER, Roger. A histna cutural entre prdtcos e representagées. Lisboa: Difel, 1991. 9. 226. 17. CALADO, Manuel. 0 velorose lucideno ou o triunfo da liberdade. So Paulo: Edusp, 1987. vol. I, p. 6. 18, Idem. vol. I, p. 92. 19, KANTOROWIC2, Ernst. Op. cit. p. 93 ss Frederico Il Hohenstaufen apresentava-se come "Pater et Filius ‘ustitiae"(CF op. cit, ps 102). 20. CALADO, Manuel. Op. cit. vol. I, p. 93. Arno Wehling 21. HESPANHA, Antonio Manuel. La gracia del derecho, economia de (a cultura en ta eded moderna. Madr: CEC, 1993. p. 151 ss 22. CALADO, Manvel, Op. cit. vol. I, p. 179-180. 23. TAPIE, Victor Tapié e PRECLIN, Edmond. Le XVII. siécle ~ monarchies centralisées. Pai 90. PUF, 1949. p. 24, HAUSER, Henri. La préponderonce espagnoe (1559-1660), Pars, Alcan, 1933: p. 298 25, VARNHAGEN Francisco Adofo de. Historia das Lutes contra os holandeses. Rio de Janeiro: Bibles, 2003, p27, 26, BARLEUS, Gasper. Histéra dos feitos recentementepraticodes durante oito anos no Brasil Sto Paulo: Edusp, 1974, p. 67-8. 27. CALADO, Manuel. Op cit: vo. I, p. 167. 28. Ibidem, 29. Lista dos devedores portugueses da noertandess Companhia das Indias Ocidentais, in DUSSEN, Adrian van der, Reltério sobre as copitaniasconguistadas no Brasil pelos hlandeses (1639). Rio de Janeiro: IAA, 1947. p. 149s, 30, CALADO, Manvel. Op. ci. vol. I. p. 170. 31, Ibidem. 32. dem. vol I, p. 171, 33. dem. vol I, p. 194. 34, NIEUHOF, Johan. Memeravel viagem martime e tereste ao Brasil. Sio Paulo: Edusp, 1981. p. 126-7. 35, CALADO, Manuel. Op lt. vol. I, p. 195, 36. NIEUHOF, Johan. Op cit p. 126. 37, NARAVALL, José Antonio. La eutur... Op. it. p. 505 38. Idem. p. 506. 38, BARLEUS, Gasper. Op. cit. p. 195 40, Francisco Adolfo de Vatnhagen, op. cit. p. 212, 41, BARLEUS, Gasper, Op cit. p, 194. 42. Ibidem. 43, VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Op. ci. p. 212. 44 VARNHAGEN, Francisco Adolfo de, Op. cit. p19. 45, Thidem, 46, Atela de Nain faz parte do acervo do Museu do Prado, em Nadrie dela se fez copia, que se encontra 29 ‘A presenca holandesa no Brasil: membria e imaginério na embaixada do Brasil, na mesma cidade. 47. BARLEUS, Gasp. Op. cit. p. 323. 48, Idem. p.163. 49, CALADO, Manuel. Op. cit vol. p. 49. 50. lem, vol I, p. 186. 51, MOREAU, Pierre e BARO, Roulox. Histéra das dltimas lutas no Brosil entre holandeses e portugueses € Relacdo da viogem ao pats dos topuis, S40 Paulo, Edusp, 1979. p. 33-4, 30 Velho Mundo e Novo Mundo Alberto da Costa e Silva Diplomata de carreira, foi embaixador em paises da Africa, Europa e Américas. Presidente da Academia Brasileira de Letras (2002-2004), € membro do Instituto Hist6rico e Geografico Brasileiro. Dedicado nos Gltimos anos & Histéria da Africa, tem, entre suas obras publicadas, “Um Rio Chamado Atlantico: A Africa no Brasil e 0 Brasil na Africa” (2003), “Francisco Félix de Souza, mercador de escravos” (2004). 31 AA presenca holandesa no Brasil: meméria e imaginario 32 resumo / abstract 0 real e 0 imagindrio; a criagdo de uma realidade, de uma imagem ao ver 0 desconhecido, os encontros do Velho Mundo com o Novo Mundo — esses sdo os assuntos abordados neste artigo. 0 autor faz um relato das relacées existentes entre o Ocidente e 0 Oriente, intensificados através das viagens de descobrimento e o comércio de especiarias no inicio do século XV, As referéncias sobre a navegacao maritima e a preferéncia inicial pelo Mediterraneo e 0 Indico, para efetivagao deste comércio, séo destacadas. Os mundos diferentes daquele que os europeus conhe- ciam eram objetos de curiosidade, ambicdo e medo. Neste trabalho, o autor analisa as visdes que a Europa tinha do Novo Mundo, com énfase na vinda e estabelecimento dos holandeses no Brasil e na forma como esses retrataram esta nova terra conquistada. The real and the imaginary; the creation of a reality, of an imoge upon seeing the unknown, encounters of the old world with the new world, are the subjects of this article. The author relates the existent relations between the West and the East, intensified through expeditions and the spice trade of the beginning of the XV century. The initial preference of maritime navigation in the Mediterranean Sea and Indian Ocean, are highlighted in the article. The different worlds that the Europeans got to know became objects of curiosity, ambition ‘ond fear. In this commentary, the author ‘analyzes the visions that the Europeans had of the new world, with on emphasis on the ‘arrival ond establishment of the Dutch in Brazil and the form in which they portrayed this newly conquered land. Alberto da Costa e Silva © inicio do século XV, o mundo de nossos antepassados europeus ~ @ os distingo, porque somos também descendentes de ndo-europeus, com outras visdes do mundo ~ tinha por centro um mar quase fechado, o Mediterraneo. Esse era o mundo que se considerava 0 nosso, ainda que dividido em duas metades antagGnicas. Nas terras que ficavam 20 norte daquele mar, vivian os cristios; ao sul, os mugulmanos. Viam-se como adversérios, ‘mas eram semelhantes, ainda que o no soubessem, nas suas concepcdes da vida, do tempo e da eternidade. Tanto uns quanto os outros eram monoteistas e assentavam suas culturas sobre a heranga dos povos da Mesopotamia, dos egipcios, dos fenicios e, sobretudo, dos judeus e dos gregos. Mas, enquanto para os europeus o Mediterraneo era o mar por exceléncia, os arabes, 0s arabizados e outros povos islamicos se tinham feito os principais condéminos do fndico, um oceano de comércio antigo e riquissimo, o mais mercantil de todos os mares.’ Os europeus sabiam, porém, de outros mundos: do que se estendia para leste de uma linha atém dos rios Vistula e Dniester a Rissia ainda nao assumira a sua unidade - , e do que ficava ao sul do Saara. Esses mundos diferentes eram objetos de curiosidade, ambico e medo. De 8 vinham noticias e amostras de grandes riquezas, mas também todos 0s tipos de mons- tros: antropéfagos, homens com olhos, nariz e boca no peito, com focinho e rabo de cio ou com os pés virados para trés, quimeras, hidras e dragies. Um desses mundos, a Asia longfn- qua, geraria, no que chamamos Ocidente, uma literatura de maravilhas, de que s80 exemplo Marco Polo e John de Mandeville. Em alguns desses numerosos livros que se diziam de viagens reais, mas se entreteciam de experiéncias e visées imaginadas, falava-se de um outro mar, 0 indico, ja conhecido pelos gregos antigos e com o qual tinham relacdes estreitas Génova e Veneza, um mar que em certos mapas se mostrava, como o Mediterraneo, fechado, com a Africa a alongar-se, em cfrculo, para leste até a China. E nao era de estranhar-se que o pensassem cercado de terras, uma vez que semi-fechados eram também os outros mares conhecidos, como 0 Negro, 0 Vermelho, 0 Golfo Pérsico e 0 Baltico. E como tal se podia considerar até mesmo o chamado Mar do Norte, que fazia parte de um mar muito maior, do qual pouco mais se conhecia além das praias européias: 0 Atlantico. 33 A presenga holandesa no Brasil: memoria e imaginario 34 Fazia-se nele, a servico do comércio de cereais, sal, azeite, vinhos, cobre, estanho e peles, uma navegagao que podemos qualificar de costeira, desde o Biltico até o estreito de Gibraltar, e deste até 0 arquipélago das Canérias ¢ 0 sul do Marrocos ocidental. Ao passar-se do continente para as ithas Britanicas, cruzava-se apenas um canal, o da Mancha, e eram dots canais, 0 Saint George e o North, que separavam a Gra-Bretanha da Irlanda. $6 se entrava no mar aberto, quando se ia pescar o bacalhau ou viajar @ Islandia, quase tao fabulosa para os nao-escandinavos quanto a itha fantastica de Sao Brandao. 0 Atlantico era uma vasta area mitica, cujos limites se desconheciam, cheia de monstros e maravilhas. E, a contrastar com 0 Mediterraneo e com o Indico, percorridos incessantemente pelos barcos do comércio, um mar quase vazio. Cem anos mais tarde, tudo mudara: os portugueses, acompanhados em seguida pelos espanhéis, haviam descoberto o Atlantico, tinham comecado, no inicio da segunda metade do Quatrocentos, a povoar as suas ithas distantes - os Acores, a Madeira, 0 Arquipélago de Cabo Verde - e a olhar para ele como o Mar Oceano, como um imenso espaco aquético a ser aberto e dominado. E bem verdade que outros antepassados nossos, que nao eram europeus, mas africanos, tinham, ainda no século XIV, tentado chegar, de onde hoje é o Senegal, a Gambia e as Guinés, até a outra margem do que tinham por um grande rio, Isso foi o que narrou Mansa Nusa, o rei do Mali, a0 passar pelo Cairo, em 1324, a caminho de Meca. Contou ele ao grande geografo 4rabe Al-Umari que seu antecessor, Muhamed, convenceu-se de que 0 rio salgado que banha- va seus dominios devia ter outra margem. Aprestou 200 almadias e as fez a0 mar. S6 uma voltou, para informar que as demais haviam sido sorvidas pelas éguas. Mandou preparar outra frota, de 2.000 canoas, E, apés ter passado © poder a Musa, partiu ele proprio numa delas. Nunca mais se soube dete. Al-Umari, autor de geografia e histéria universais que nao se publicaram na integra, foi, assim como seu contemporaneo, o famoso viajante Ibn Battuta, o continuador de uma tradigdo de livros sobre as terras que ficavam dentro e sobretudo fora do Dar al-Islam, livros Alberto da Costa e Silva do género surat al‘ard (ou tratados sobre “imagens da terra”) e al-masalik wa-mamatik (ou livros “sobre rotas e reinos”), Essas obras comecaram a aparecer com a expansio arabe e foram mudando de tom a medida que essa se consolidava e ampliava. Os textos mais antigos ainda so freqiientados pelo maravilhoso - em Gana, 0 ouro crescia na terra como cenoura, € entre os negros havia uma raga de mutheres com um s6 seio -, mas rapidamente o real se vai impondo sobre 0 imaginario, ainda que aqui e ali se dé abrigo @ uma crendice ou fantasia, que freqiientemente, para quem a contava, era rigorosamente verdade. 0 mesmo se passaré com a literatura da expansdo crista no Atlantico. Alcangado 0 Rio Senegal, que separava o mundo dos brancos do mundo dos negros, os livros de maravilhas véo sendo substituidos por relacées e roteiros de viagens, nos quais o que buscamos ¢ admiramos ‘no é mais 0 fabuloso, que ainda se insinua em alguns paragrafos, porém o real, 0 que no iludia nem trafa 0 que os olhos viam, as mos apalpavam, a boca provava e chegava 20s uvidos. Cada vez mais esses textos aspiravam a ser praticos, a ensinar como avancar pelo Atlantico abaixo. Gomes Eanes da Zurara, em sua Crénica do descobrimento e conquista da Guiné, tem ainda, @ certo, 0 sabor de um livro de cavalaria, do qual tivessem desertado a zoologia ¢ a humanidade fantasticas. Mas suas personagens vdo nas caravelas como cavaleiros andantes. ‘S6 que, em vez do Santo Graal ou da reconquista de Jerusalém, buscam 0 ouro da Guiné eo reino do Preste Joao. Queriam esses autores ser praticos, mas no perdem o gosto pelo diferente, como se pode ver no Duarte Pacheco Pereira do Esmeraldo de Situ Orbis, no Rui de Pina da Relagto do reino do Congo, e no préprio Joao de Barros das Décadas da Asia. € diante do até entdo nao sabido nem imaginado, mas recortado da realidade, e nao da fantasia, que suas prosas ga- nham volume, colorido, entusiasmo. Cedo, ampliou-se a grande aventura. Os navios deixaram de acompanhar as linhas das costas, Bartolomeu Dias afasta-se inovadoramente da terra, para ultrapassar o Cabo das Tor- mentas, voltado em Boa Esperanca. Seria, assim, Bartotomeu Dias quem primeiro teria aberto, 35 ‘A presenga holandesa no Brasil: meméria e imaginério 36 “no largo mar”, “novas vias” — para usar as palavras de Camées. Dias arriscou-se, sem medo de no chegar a outro sitio que nao a morte, 2 perder-se num espaco que parecia infinito, ‘num tabirinto de safda ainda mais dificil do que o do Minotauro, porque sem paredes, balizas @ corredores que demarcassem ou definissem 0 percurso e os seus enganos. Contava apenas com os astros, para localizar a posicgo dos navios no alto mar. E 0 céu também era novo, estava a ser redescoberto. Seria, porém, a um genovas, Crist6vao Colombo, de cuja educago constaram as via- gens portuguesas pela Guing, que estaria reservada a facanha maior de percorrer 0 Atlantico ‘sem lembranga ou promessa de ilhas ou terra firme, de avancar para ocidente na “grandeza do Mar Oceano” e lograr sair de seu labirinto invisfvel. Por isso, José Sarney escreveu que a maior proeza do almirante no foi ter vindo, mas voltado. Chegou ele 2 um mundo de que nao havia meméria, nem estava nos livros das maravilhas. A um mundo inteiramente novo e a um homem também novo, que nunca dantes havia sido pintado ou descrito, mas que, ao mesmo tempo, confirmava a unidade adamica do ser humano. E seré o préprio Colombo o primeiro a desmentir, 6 em 1493, que houvesse monstros humanos nas margens ocidentais do Atlantico, @ de modo categérico: “Até agora, eu no vi nenhum.” esse homem novo 0 melhor dos primeiros retratos foi escrito por um portugues, apés 1 chegada as terras brasileiras, e esta intelro na famosa carta de Pero Vaz de Caminha ao rei D. Manuel. Como tantos outros textos portugueses de seu tempo, mostra como fora ampla- mente aceita a boa ligdo de saber ver. Todo o conhecer, eles parecem dizer-nos, nasce da experiéncia, a experiéncia que, segundo Duarte Pacheco Pereira, “é a madre das cousas”, “nos desengane e de toda diivida nos tira”, e por ela sabemos “radicalmente a verdade”. Todo saber, repetem, é de “experiéncia feito”, Esses textos queriam ser praticos, repito, e, por isso, sao em geral claros e objetivos, sem engodos ou fantasias. A zoologia e a botanica fantasticas dos livros de maravithas euro- peus podem ser espiadas de relance numa carta jesuitica, em Gabriel Soares de Sousa ou Pero de Magalhaes Gandavo, mas ou vém quatificadas ou sio excegdes que saimos a catar exata- Alberto da Costa e Silva mente porque nos parecem pitorescas. Prevalece em quase todos esses textos o bom senso realista: narrar o que se viu, ouviu, provou, apalpou, sentiu, experimentou, viveu, 0 que me espanta neles é 0 muito que acertam, e ndo 0 pouco, 0 pouguissimo que erram ou que cedem as invencionices e a tentacao do maravithoso. Diante de paisagens em tudo distintas daquelas a que estavam acostumados, de paisa- gens com Srvores desconhecidas e povoadas de seres que nunca dantes tinham visto, era natural que ndo descartassem e até aceitassem o que lhes contavam sobre um Anhanga que tinha os pés virados para tris e tomassem por monstros semi-humanos o ledo-marinho, 0 TIpupiara, e a preguica, o Hat. Nao se estranhe que ficassem pasmos de assombro e medo, a0 ver, ainda que morta, uma sucuri, Quando nos descrevem a cotia, fazem-no bem. E ndo poem enfeites na anta, nem no jabuti, nem no cajueito, nem na jaca. Veja-se a precisdo das ilustra- Ges e dos textos - sobre peixes, por exemplo - na Histéria dos animais e drvores do Maranhdo, de Frei Crist6vao de Lisboa. Sabiam descrever o que viam. E alguns deles, desenhar também. E quando procuram explicar 0 que encontravam nas terras que viriam a ser o Brasil que, algumas vezes, cediam a fantasia. Ou a0 que hoje nos parece fantasia, mas era a aplicagao ao Novo Mundo do que na Europa se tinha por ciéncia, ou do que, embora j4 contestado ou negado pelas elites intelec- tuais, continuava a prevalecer ndo s6 entre o geral das gentes, mas também entre muitos letrados. Nao se censure Yves d'Evreux, por exemplo, por acreditar na geracdo espontanea de certos peixes do Maranhao e faca os grilos nascerem da conjungo sol com a palma nova. A crenga de que seres vivos podem se originar da matéria inerte era entdo corrente, e continu- aria a ser até o século XIX, na forma apresentada pelo sacerdote francés, to distinta da biogénese, como hoje concebemos. Ninguém esta diante do mundo de otho inteiramente desarmado, mas com as lentes das idéias de seu tempo, em geral conflitantes ou contraditérias. No amerindio, ou via-se 0 selvagem bérbaro, antropéfago, sem rei ¢ lei, aderido ao diabo, ou o bom selvagem, a viver num mundo sem estado, hierarquias e classes, em inocéncia edénica e, quem sabe?, talvez 37 ‘A presenca holandesa no Brasil: meméria e imaginario 38 isento do pecado original. A prépria nudez ou semi-nudez do fndio brasileiro podia falar em favor de sua pureza ou contra ela. Daf que, em textos produzidos em sua maioria por religio- sos, que para cA vinham exercer a catequese, a visio do indio varie entre o naturalmente bom € 0 naturalmente mau, conforme o caminhar das conversbes. Ngo faltam alguns pardgrafos de decepgao, desengano e desalento na literatura, em geral euférica e esperancosa, que religiosos e colonos produzem sobre a nossa parte do Novo Mundo. 0s trépicos sao vistos como imagem do paratso, do purgatério ou do inferno, confor- me a vivencia de cada um. 0 que é excepcional é o cuidado, a justeza e o gosto pelo pormenor ‘com que Anchieta, NObrega, Ferndo Cardim, Claude Abbeville, Jean de Léry ou André Thevet descrevem 0s seus trabalhos e dias, e a natureza em que estes se desenrolaram. Eram homens de f6, e nao, de ciéncia, Mas nos deixaram, com os outros que ja citei e tantos mais, as primeiras informagées sobre a flora, a fauna, os homens e até mesmo as crendices que encon- traram no Brasil. 0 que no registraram, a ndo ser esporadicamente e de forma répida, enviesada e incompleta, foi como eram vistos os europeus - os animais que traziam e as armas e instru- ‘mentos que possufam - pelos habitantes da terra. Nao nos ficou um relato circunstanciado de como um tupinambé via um homem desnecessariamente vestido e a sofrer calor, um cachorro, um boi, um cavalo, um arcabuz, um martelo ou um serrote. Nem o que pensavam os indios dos ertos e tolices que os europeus praticavam no dia- a-dia, da ignorancia que tinham de tudo que era sagrado ¢ das blasfémias e profanagbes em que reincidiam. Os brancos nao pareciam gente. Tampouco se preocuparam em saber que persavam os Indios sobre os homens de ciéncia que vieram para o Brasil com Mauricio de Nassau. No entanto, a eles devemos 0 primeiro othar sistematico e o primeiro meditar cientifico sobre a geografia, a boténica, a Zoologia e ~ perdoem-me o anacronismo - a etnografia de uma parte do continente america- tno. As obras que nos deixaram Marcgrav, Piso © Barlaeus ndo do apenas testemunho da profundidade de seus saberes, da amplitude de descortino e da fidelidade ao real; cada uma Alberto da Costa e Silva delas trai a intencao coletiva da empreitada. Somadas, formam o mais importante levanta- mento sobre qualquer regido da América até o século XVII. Nessa empresa tiveram parte proeminente os pintores, os primeiros pintores europeus que, como artistas, procuraram fixar a vida e os cenérios do Nove Mundo. E 0 fizeram com encantamento, finura e originalidade, ndo $6 ao ilustrar os livros dos naturalistas e do histo- riador, mas sobretudo em dleos que cada vez mais nos emocionam, porque os aprendemos melhor a ver Franz Post teve, pelo resto da vida, a paisagem de Pernambuco como 0 assunto de sua pintura. Os que the compravam os quadros buscavam, provavelmente, 0 exdtico. Mas ele talvez no pintasse o diferente, e, sim, a meméria do que vivera. Por isso, poder-se-ia dizer que 0 esfumado de seus dleos, a maior parte criada apés o regresso aos Pafses Baixos, deno- taria a distancia da saudade. Creio, porém, que ele soube mais e antecipou Armando Reverén, © grande pintor venezuelano que nos revelou o que talvez ja soubéssemos: que a paisagem nos tropicos tem as cores abrandadas, azul-embranquecidas, acinzentadas e amareladas, por uma espécie de véu produzido pela intensidade do sol contra a poeira e a forte umidade no ar. Nos trépicos, € s6 nas horas apés-chuva, que as cores se mostram limpas e brilhantes, Em Post, o homem é sempre, ou quase sempre, visto a distancia. Pequenino. Imével. Ou a dar, em alguns exemplos, um lento movimento & paisagem. Foi Albert Eckhout quem 0 trouxe para junto de nés, que olhamos os seus quadros. Jé foram amplamente louvades, como pintura e como documento, 2 sua “Danca dos tarairiu”, os seus retratos de um indio e de uma ‘india tupi, de uma mameluca, de um guerreiro aca e de uma negra com crianca. Mas peco que, por um momento, desviemos o olhar das figuras humanas e 0 concentremos nas &rvores € arbustos que thes estdo préximos, quase colados. Nesse quadro, ha um pé de bananeira que um hiper-reatista contempordneo ficaria feliz de ter por obra sua. Nesse outro, um mandiocal. Naquele, um cajueiro, a combinar cajus amarelos com vermelhos. Naquele outro, uma touceira de cana-de-agéicar. E, no chao, aqui, uma aranha; ali, um sapo; mais adiante, um caranguejo, ou dois preas. 39 A presenca holandesa no Brasil: meméria e imaginério 40 0 othar de Eckhout 6 mais do que compreensivo com o diferente: € um olhar de admiragao pelas novas formas que tinha diante de si. E esse encantamento, sobretudo com © mundo vegetal brasileiro, fez com que ele pintasse aquela série de naturezas-mortas, com as quais 0 abacaxi, a melancia, as bananas, a goiaba, 0 maracuja, 0 caju, as cabagas, a abébora, a mangaba, 0 aragé, 0 coco, 0 mamao, 0 abacate, a mandioca, 0 jambo e a pitomba entram, na plenitude da beleza, na arte do Ocidente. Sé lamento que ele, provavel- mente, nao tenha nunca visto uma flor de pequi. Pintou © que jamais tinha visto na Europa, mas o fez quase sempre sem actescentar- the toques de extraordinario ou maravilhoso. Pintou um fndio ou um mameluco, como o pintaria um brasileiro, se fosse um artista como ele. Aponto uma excecdo, uma obra em que cedeu a uma idéia feita que corria a Europa, aplicada aos habitantes do Novo Mundo. No seu grande quadro a figurar uma india tarairiu, esta aparece segurando u'a mao cortada e tendo nna canastra que leva as costas um pé e possivelmente outros pedacos de um corpo humano. Se quis sugerir 0 endocanibalismo ritual daquele grupo j@, Eckhout foi infiel a realidade, seu quadio lembra a imagem, que talvez Américo Vespiicio tenha sido o primeiro a introdu- ir na Europa, de que havia entre os amerindios comércio de carne humana, uma imagem que, posteriormente, seria também aplicada a Africa, com suas barracas no mercado para servir aos antropéfagos. A mesma india tapuia reaparece com sua carga macabra no Livro de animais, de Zacharias Wagener,* porém acompanhada de um texto no qual se descreve com preciséo indignada 0 endocanibalismo dos tarairius. Nao se tinha Wagener por artista, ainda que treinado como cartégrafo. Quando fez os esbocos para esse livio, era secretario de Nassau e nem sequer imaginava a carreira brithante que viria a fazer nas companhias de comércio holandesas. As suas aquarelas e os seus textos, que mutuamente se ilustram e completam, mostram uma excepcional aderéncia a realidade. Os bichos e frutas que pds no papel bus- cam ser fieis a0 que via e possuem o mesmo verismo dos que desenhara, alguns anos antes, Frei Cristovao de Lisboa, Wagener nao era crédulo e tinha 0 vezo de antecipar com expres- Alberto da Costa e Silva sbes como “ao que dizem”, coisas que the contavam. Numa dnica vez, resvalou: quando, a0 referir-se a uma lagartixa de cauda azulada, disse como cousa certa que sugava o sangue das mulheres na hora do parto. ‘A Wagener devemos 0 que talvez seja o mais antigo registro gréfico de um mercado de escravos no Brasil. Um texto explica a aquarela e nele Wagener, além de descrever como se processava a venda e compra de seres humanos, deixa clara a sua inconformidade com a infamia daquele comércio: os escravos - escreve ele ~ sdo uma pobre gente, tratada como porcos ou carneiros. Ha muito de inovador e antecipatorio nesse conjunto de obras em que um grupo de holandeses e alemaes a servigo daqueles viu, estudou e pensou uma parte do Brasil, numa época em que se transformava a visdo que a Europa tinha do planeta, pois se aprendera que as terras no envolviam os mares, mas, ao contrério, eram as &guas que cercavam as terras. O que talver thes tenha escapado é que as relacdes entre o Velho e o Novo Mundo, mais do que como oposi¢ao ou contraste, se iriam desenvolver no plano do complemento e da continuidade. Os andincios dessa mudanca se acumulavam e repetiam na vida comum. Os indios dos pampas e das estepes norte-americanas jé se haviam apossado do cavalo europeu como se © tivessem sempre conhecido. 0 boi, o carneiro, a cabra, 0 porco, o jegue e a galinha se ajuntaram aos xerimbabos. Neste lado do Atlantico, cultivava-se o trigo, 0 centeio e a couve. Na Europa, a batata, o milho e o tomate ganhavam os campos. 0 tabaco saira das tabas e ganhara os saldes. As linguas européias competiam com as autoctones. Um crescen- te nimero de pessoas era da terra e de fora ao mesmo tempo, e se via semethante a seus pais, sabendo-se diferente, ou se via diferente, sendo semelhante. Os valores do barroco europeu comecavam a impor-se no Brasil, num padre Vieira a dizer sermdes, na Bahia ou no Maranhao, em tudo semethantes aos que pronunciava em Lisboa. A América infiltrava-se na Europa, e a Europa comecave a prolongar-se na América. at A presenga holandesa no Brasil: meméria e imaginério 42 Notas 4. WAGENER, Zacharias. Thier Buch. Dresden: Kupferstich-Kabinett, s/d, (Exste uma tradugio para o por- tugués, organizada por Edgard de Cerqueira Falcdo, Zoobiblion: livio de animals do Brasil. Sto Paulo: Brasilionse, 1964). Wagerer nasceu em Dresden, em 1614, e morreu em Amsterda, em 1668. Foi desenhis- ta, escrivdo e soldado da Companhia das Indias Ocidentais. Esteve no Brasil durante o governo de Mauricio de Nassau, de quem foi despenseiro, Desenhou 2 vida silvestre brasileira, tipos humanos encontrados no pats e também paisagens e cenas utbanas. Instrumentos da conquista O papel da cartografia no desenvolvimento do poder naval batavo Max Justo Guedes Contra-Almirante e especialista em histéria naval. Foi diretor do Servigo de Documentacao Geral da Marinha, secretério-geral do Comité Internacional de Historia Nautica e da Hidrografia, conselheiro do Conselho de Protegio do Patriménio Histérico e Artistico Municipal/ RJ, membro do Instituto Histérico e Geogréfico Brasileiro. Entre suas obras publicadas “As Primeiras Expedicbes Portuguesas e o Reconhecimento da Costa Brasileira” (1970), “Brasil Costa Norte - Cartografia Portuguesa Vestutissima” (1970). 43 A presenga holandesa no Brasil: meméria e imaginario 44 resumo / abstract Este estudo resume a cartografia produzida pela Companhia Unida da india Oriental — ¥.0.C — que, obviamente, prosseguiu em sua expanséo para o Oriente com novos descobrimentos que seus cartégrafos foram registrando com muita proficiéncia. 0 autor segue descrevendo detalhadamente as expedigdes da West India Company (WIC) para © Atlantico, incluindo o ataque 8 Bahia em 1624 e a ocupacao de Pernambuco, que resultaram em mapas que retratam o Brasil holandés de uma forma que nem a América nem a Europa viram até hoje outros mais completos. 0 artigo consegue mostrar que 0s Patses Baixos, gracas a pléiade de grandes navegadores, gedgrafos, cartégrafos gravadores, possuiam a lideranga mundial da cartografia, suplantando a até entao ‘imbativel congénere portuguesa. This study resumes the cartography produced by the East India Trading Company, which, obviously, aided in its expansion in the Orient with new discoveries that their cartographers registered with much proficiency. The cuthor {follows in meticulously describing the expeditions of the West Indian Company (WIC) in the Atiantic including the Dutch attack on Bahia in 1624 and the occupation of Pernambuco that resulted in maps that neither America nor Europe have seen more complete to date. The article is able to show that the Netherlands, thanks to an abundance of great navigators, geographers, cartographers, and recorders held world leadership in cortography surpassing even the unbeatable Portuguese. Max Justo Guedes A evolucdo do poderio maritimo batavo e a cartografia m 1543, os Estados da Holanda tevaram ao Imperador Carlos V petigo respeitante destinagao maritima da mesma: = € inteiramente veridico sera Provincia da Holanda territorialmente muito pequena, tanto em extensio quanto em largura e quase inteiramente cercada, em trés lados, pelo mar ... Por esse motivo, os habitantes da dita Provincia, a fim de conseguir 0 sustento de suas mulheres, criancas e familias, devem manter-se por meio de manufa- turas e comércio, de tal forma que eles buscam matérias-primas em terra alheia e reexportam produtos transformados, incluso varias qualidades de tecidos e panos, para muitos tocais como Espanha, Portugal, Alemanha, EscOcia e, especialmente, Di- namarca, Baltico e Noruega |...] de onde retornam com mercadoria deles oriundas, notadamente trigo e outros grics. Conseqlentemente, o negécio principal da provin- cia necessita ser feito por via maritima ou semethante, da qual numerosas pessoas arham a vida, tais sejam comerciantes, comandantes, mestres, pilotos, mariaheiros, construtores navais e todo o pessoal correlato. Estes homens navegam, importam ¢ exportam toda a sorte de mercadorias de locals proximos e distantes e os bens que trazem negociam e vendem nos Pafses Baixos, Brabante, Flandres elugares vizinhos...! Era importante, por isso, que Carlos V compreendesse e apoiasse 0 comércio maritimo feito pelos Paises Baixos, notadamente com as muitas parcelas de seu gigantesco império. Também Portugal era parceiro relevante no dito comércio; o sal, azeite, vinhos, frutas @ couros, mais os que Lisboa recebia de suas col6nias e feitorias eram negociados em troca de manufaturas, principalmente tecidos e vasta quantidade de produtos europeus que os flamengos. centratizavam a distribuigdo: ferto, merctirio, armamentos, equipamentos para construcao naval e cereais tinham Antuérpia como pélo de exportacao. Possivelmente, a Pentnsula Ibérica absorvia duas tercas partes dessa exportacao. Foi natural, destarte, que, desde o inicio dos 500, procurassem os batavos enfronhar-se na arte de navegar que os portugueses ativamente desenvolviam e os espanhéis buscavam, por meios muitas vezes ilfcitos, acompanhar. Sendo a navegacao flamenga basicamente costeira, interessavam aos seus pilotos, de modo especial, os roteiros (leeskoarten); em 1532 eles passaram de manuscritos a letra de 45 A presenca holandesa no Brasil: meméria e imaginario De kaert vadersee forma: De kaerte vader zee deu inicio a intensa publicagao de roteiros, livros nauticos e cartas de marear, que, na tltimas décadas do século XX ja dominavam o mercado especializado. Foi este facilitado pelo magnifico panorama artistico e grafico existente nos Paises Baixos; bons exem- plos séo a Kaerte van de Oostlant (1543), do pin- tor Comelis Anthonisz, acompanhado do respec- tivo roteiro Die Caerte van die Oosterse See(fig.1).. Em 1558 foi impresso 0 tratado de néutica Onderwijsinge vander zee om stuermanschap te leren. Cabe nao esquecer que as bases tedricas para tal desenvolvimento estavam firmemente assentadas por notabilidades do porte de Gemma Frisius (0 fundador da cartografia cientifica flamenga), Jacob van Deventer, Pieter van der Beke, os Surhorns, Cristiaen Sgrooten, Jost Jans, Hieronymus Cock, Gerard de Jode, Bernard van de Putte e 0s famosissimos Gerard Mercator & Abraham Ortelius. Quando os horizontes dos navegadores batavos ampliaram-se para a vastidao do Ocea- no Atlantico, seus editores cuidaram de traduzir © difundido manual de Pedro de Medina, a Arte de navegar, publicado originalmente em Valladolid por Francisco Fernandez de Cordova, no ano de 1545(Fig. 2). 0 editor foi Hendrick Hendricksen, em 1580: De Zevaert oft Conste van der zee te varen, impresso em Antuérpia, com notavel apén- dice do antuerpiano Michiel Coignet, abordando Max Justo Guedes pontos importantes da ciéncia nautica que Medina nao cuidara, inclusive tentando solucionar ‘a complexa questao da determinagao das longitudes no mar. Na ocasiao em que isto aconteceu, gravissimos problemas politicos estavam ocorrendo nos Pafses Baixos (fig. 3). Eles principiaram a surgir, principalmente, apés 2 abdicagao de Carlos V, ocorrida em 1555, em favor de seu filho Felipe II, que recebeu com ela os menciona- dos Pafses Baixos, Frizia, Espanha e os dominios desta na Italia, América e Oriente. Em 1559, a paz com a Franca havia sido acordada, e o monarca pode deixar no governo dos Patses Baixos sua meio-irma Margarida de Parma, casada com Alexandre Farnersio, duque de Parma e dedicar-se, durante toda a década de 1560, aos problemas do Mediterraneo. Apds © falecimento de Solimdo, 0 Magnifico, em 1566, foi possivel a vitéria em Lepanto (1571) e aquele mar deixou de ser o principal cenério europeu, que se transferiu para o Atlantico e, logo depois, também para os mares orientais. Mas nos Patses Baixos surgiriam logo os principais problemas de Felipe II, ja latentes desde os tempos de seu pat: a gigantesca questo religiosa, exacerbada apds 0 Concilio de Trento, a necessidade de expanséo de mercados ¢ a dificil questao dos privilégios. [As poucas concessées feitas pelo monarca nao acalmaram 2 situagio; a0 contrario, serviram elas para unir as elites em tomo de Willem de Orange (1533-1584), soberano do pequeno principado de Orange e detentor de vastos rendimentos? e dos condes de Egmont e Horn, Nem a substituiggo do cardeal Granvelle, ao qual eram feitas severas restrides, ativiou © descontentamento, pois, em 1565 0 duque de Aerchot, principal adversdrio de Orange foi rnomeado para o Conselho de Estado. Isto possibilitou o avango dos calvinistas e 0 surgimento do Compromisso, que uni a baixa nobreza em torno de Heinrich van Brederode e Luis de Nassau (irmao de Willem) numa tentativa de impedir a entrada da Inquisicdo nos Patses Baixos. A negativa da Princesa Margarida em atender a requisigdo que the foi feita para tal, somada & escassez e elevacio dos precos dos alimentos foram o pretexto para a beeldenstorm, a “desordem de 10 de agosto”, quando foram invadidas igrejas e mosteiros e destrufdos altares e imagens, notadamente, em Bruxelas e na Flandres. Mercenérios e a alta nobreza catélica conseguiram dominar a situacdo; mesmo assim, isto nao satisfez Felipe II, que decidiu cortar mal pela raiz. Para fazé-lo, foi enviado aos 47 A presenca holandesa no Brasil: memoria e imaginario 48 Paises Baixos D. Fernando Alvarez de Toledo, duque de Alba, a frente de fortes tropas. Chegando a Bruxelas, em agosto de 1567, logo o duque criou o Conseil des Troubles; Egmont e Horn foram prontamente presos e posteriormente decapitados, enquanto Willem refugiou- se na Alemanha, sob a protecdo de principes protes- tantes. La, recrutou forgas e invadiu os Paises Baixos, mas foi derrotado por Alba, militar bem mais experien- te. Ja aquela altura era ele governador e capitao-gene- ral dos Paises Baixos, dispondo da totalidade de pode- res, ante a renincia de Margarida. A distancia nos permite ver hoje — e esta é quase sempre a dificuldade de militares quando exer- cem o poder politico — ter faltado a Alvarez de Toledo a sensibilidade naquela melindrosa situacdo, princi- palmente, quando obrigou os Estados Gerais a vota- rem o dizimo, imposto de 10% sobre as importacées, exportacdes e vendas. Logo surgiu a desobediéncia civil e as acgdes no mar, passiveis pelas cartas de corso que Willem distribuiu entre os armadores da nobreza exilada. Apelidados de gueux-marins (ou gueux-de-mer) e abrigando-se em portos ingleses, auxiliados por Elizabeth I, passaram aqueles marujos a assolar a costa da Flandres e mesmo a Frisia e Ameland, ostentando o pavilhdo laranja, da Casa de Orange, com o ledo de Nassau. Nascia, assim, a marinha militar batava, que tantos dissabores traria a Espanha, e, apds 1580, tam- bém a Portugal. Z pont - D{ PICARDVA sort oft de \ WY*din. Hattie » oo ER Horace LG aersagite ti Spe Oot Pel Ir 4 Max Justo Guedes | [oem sy dor HV MA) ER ee eee : “her ashe sgaF. ve ‘yrs MAN Yt Se Bynckl of MePIES A 8 Mdev robs ~ ae ; ,. FF part KS, «fs eee yf DVR Cage roighon : Bonk e woerighen "hE i id , {f PAaRs Lage aot oe gh - (ersleS rosie Sor S=Io= pars’ “Fos ae =o lo ied fe feyele=rorsars angen Ru iS NEU Re AR? : = mM. * aie ab fa gage 49 A presenga holandesa no Brasil: meméria e imaginario Em 1572 0s gueux capturaram Den Briel, Vlissingen e diversos portos das provincias da Zelandia e Holanda. Estava, portanto, no mar e na terra, em pleno curso a guerra da indepen- dencia batava, que no cabe aqui historiar; basta lembrar que, em 1585, quando Alexandre Farnesto retomou Bruxelas, ampliou-se enormemente o éxodo de ricos comerciantes, calvinistas principalmente, bem assim de artistas, gravadores e gebgrafos, muitos dos quais se foram estabelecer em Amsterdam, Middelburg e outras cidades das Provincias Rebeldes.* E preciso no esquecer que essas questdes politico-militares nao privaram a Antuérpia de ser, na segunda metade do século XVI, 0 mais importante centro do comércio de livros, produgio de gravuras e de mapas impressos, sendo indispensével lembrar 0 preponderante papel do editor Christoffel Plantijn (1520-1589) e também a relevancia do grande ge6grafo Abraham Ortelius (Ortels, 1527-1598). . Ortelius teve em sua educagao boa base cientifica, que aprofundou em viagens e pro- funda dedicagio ao estudo da geografia e da cartografia; além disto, tornou-se amigo e quase discipulo de seu conterréneo Gerard Mercator, de quem logo tratarei. Pode, deste modo, em 1564, desenhar seu importante mapa-miindi NOVA TOTIVS TERRARVM ORBIS IVXTA NEO TERICORVM TRADITIONES DESCRIPTIO (87x148cm.); foi gravado em cobre por gravador igno- rado e editado por Gerard de Jode. Deste mapa sdo conhecidas duas cépias, uma na British Library, outra na Offentliche Bibliotek, da Universidade da Basiléia (fig. 4). Embora a relevancia deste mapa, a obra que imortalizou Ortelius foi o Theatrum Orbis Terrarum, editado em 1570, atlas contendo originalmente 70 mapas (115 fothas duplas) gravados por Frans Hogenberg e impresso no atelié de Egide Coppens; para elaboré-lo, 0 cartografo consultou nada menos de 87 autores (fig. 5). 0 atlas foi dedicado a Felipe II e alcangou retumbante éxito; sucederam-se as edigGes em varios idiomas (s6 em vida de Ortelius foram 25), surgindo, na segiiéncia, os Additamentum e o Paregon, atlas histérico publicado em 1583. € curioso lembrar que 0 Theatrum foi a obra mais cara editada no século XVI. No ano anterior ao surgimento do atlas orteliano, isto é, em 1569, Gerard Mercator (Rupelmonde, 1512) finalmente publicara seu extraordinério mapa-mdindi NOVA ET AVCTA ORBIS TERRAE AD VSVM NAVIGATIVM EMENDATA ACCOMODATA (132x200cm), dedicada ao duque de Cleves.* Trata-se de carta ndutica desenhada segundo a projegdo que recebeu 0 nome do 50 Max Justo Guedes y kG 1 Ns BIL WRI NU Lay A presenga holandesa no Brasil: mem 52 PVS ORBIS TERRARVN. e Fig. 5 autor: projecao de Mercator. Até hoje, é extremamente itil aos navegantes, visto que dois pontos da superficie terrestre podem ser unidos por uma linha reta e a distancia entre eles medida da escala de latitudes que margeia a carta A genial idéia desta projecao nao foi bem ida nas legendas que Mercator inseriu na carta; somente 30 anos apés 0 matematico inglés Edward Wright, no seu Certaine Errors in Navigation (1599), explicou a concepcao tebrica da projecao de Mercator. Nao obstante suas indiscutiveis vantagens, os marinheiros, sempre conservadores, muito relutaram em adotar no cotidiano esta carta de latitudes crescidas. Nao podem ser esquecidas, ainda dentre as obras de Mercator, seu mapa-miindi em proje 0 cordiforme dupla (1538, hoje na American Geographical Society), as Tabulae geographicoe Cl Ptolomoe ad mentem autoris restutitae et emendatae (27 cartas) e 0 célebre “Atlas”, que ele € seu fitho Rumold publicaram em trés entregas, a primeira abrangendo Bélgica, Franca e Alema Max Justo Guedes Ghedguet tot Leyden/ by Lheittoffel ¥ ‘e902 Lucas Yangfy Wagheriacr oan Encfhunfens ano M.D. L XXX LLL Fig. 6 A presenca holandesa no Brasit: meméria e imaginario nha, em 1585, a segunda, Italia, Eslavonia, Grécia e Candia, e a terceira, um mapa-mindi, Europa, Africa e América (Atlantis pors altera geagraphica nova totus), em 1595. Mercator mor- reu em 1594, um ano antes da conclusdo desse empreendimento. Antes do infcio das grandes navegagées holandesas, ha que ser mencionado também 0 atlas Speculum Orbis Terrae, editado por Gerard de Jode em 1578, mas ensombrecido pelo sucesso do Theatrum. A proporcao que as navegacées batavas adquiriram maior amplitude, foi natural 0 surgimento de roteiros mais aperfeicoados que os citados no inicio deste trabalho, havendo que serem destacadas as obras do experimentado marinheiro Lucas Jansz Waghenaer (Enkhuizen, 1534-1605), autor de trés magnificos atlas/rotetros: Spieghel der Zeevaerdt (dois volumes, 1584 e 1585),' Thresoor der Zeevaert (1592) e, finalmente, Enchuyser Zee-caert-boek (1598). (Fig. 6) Ja entao emigrara para Amsterdam aquele que seria o grande impulsionador da expan- so maritima batava, para a qual prontamente percebeu serem indispensiveis mapas moder- nos; foi ele o tedlogo calvinista, doublé de geégrafo e cartégrafo, Petrus Plancius (1552- 1622) que, em companhia de outro exilado, Cornetis Claesz, dariam inicio, nas Provincias Rebeldes, a grande escola cartogréfica que lé surgiria, hoje denominada Escola do Norte. Para impulsioné-la, havia que recorrer a cartégrafos portugueses, que entao possufam, indubitavelmente, as mais recentes e melhores informaces sobre o objetivo pretendido por Plancius e pelos comerciantes halandeses: o Oriente. Dentre os cartégrafos lusos da época, os dois principais eram, seguramente, Luis Teixeira, que jé efetuara levantamentos carto- hhidrograficos no Brasil, e Bartolomeu Lasso. Teixeira, apés a unio das Coroas espanhola e portuguesa, sabedor da producao de Abraham Ortelius, oferecera-lhe seus servicos para efetuar as cartas da “tierra de! brasil, e sus capitanias enpartes persi ... y son nueve o diez peizas: a fuera otras muchas que tengo y le ‘mandare”, cujos prot6tipos, provavelmente, constavam do célebre “Roteiro de todos os si- nais” (costa do Brasil), hoje na Biblioteca da Ajuda, em Lisboa. Petrus Plancius, conforme desde o inicio do século XVI faziam italianos, espanhdis e franceses, nao hesitou em recorrer ao suborno. Em 1592 ou 1593, por sugestio sua, foram 54 Max Justo Guedes enviados a capital portuguesa os irmios Cornelis e Frederick Houtman para obter material cartografico moderno (a, chegaram até a serem presos); ja entdo Cornelis Claesz possufa um mapa-mundi e 25 cartas particulieres desenhadas por Bartolomeu Lasso, sendo interessante notar que no Museu Maritimo “Prins Hendrik” de Rotterdam hé diversas cartas portuguesas que datam, aproximadamente, de 1590. Essas cartas devem ser de autoria de Lasso. Puderam, deste modo, Plancius e Claesz elaborar, entre 1592 e 1594, seis cartas: uma do Atlantic Norte, duas da América do Sul, Africa Ocidental, Africa Oriental e Extremo Oriente, que foram gravadas por Joannes van Deutecum. Mais importante ainda, demonstran- do a transferéncia de conhecimentos jé efetuada e a indiscutivel influéncia do Mercator, de 1569, @ 0 mapa-miindi NOVA ET EXACTA TERRARVM ORBIS TABVLA GEOGRAPHICA AC HIDROGRAPHICA (1592), cuja Ginica copia hoje conhecida acha-se no Colegio del Corpus Cristi, em Valencia, Espanha. Foi gravado por Joannes van Deutecum e seu filho Baptista. Elaborada por Petrus Plancius, foi editada em Amsterdam por Cornelis Claesz. No entanto, para que pudesse circular livremente nas chamadas “Provincias Fiéis” e na Espanha, 0 editor 20 local da impressao foram alterados, no titulo: “ANTVERPIAE APUD IOANNEM BAPTISTAM VRIENT”. (fig. 7) Naquele mesmo ano de 1592, no més de setembro, regressou de Goa para Enkhuizen um holandés que se tornaria personagem capital na ampliag3o dos conhecimentos batavos sobre as navegagées {uso-espanholas: Jan Huigen van Linschoten.* Desejando conhecer 0 mundo, estivera na india, onde fora secretério do Arcebispo de Goa, 0. Vicente da Fonseca. Sua curiosidade natural o levou a obter preciosas informagées sobre aquelas navegacies, ¢ a respeito do comércio oriental, que cuidadosamente anotou. Na Holanda casou-se, em 1595, com uma calvinista, convertendo-se a esta seita. Na conversdo de Huigen, coube importante papel a Petrus Plancius, que também 0 convenceu a transformar em livros suas anotagées e informacées. Esses foram trés, editados por Cornelis, Claesz: em 1595, Reys-gheschrift van de Navigatien der Portugaloysers in Orienten ..., seguido, em 1596, por Itinerario, Voyage ofte Schipvaert van Jan Huigen van Linschoten naer Oost ofte Portugaels Indien ... (no qual 0s mapas foram gravados por um dos irmaos van Langren), e, 55 A presenca holandesa no Brasil: memo6ria e imaginario MONUMENTA CAR TOGR AVTHOS FOUrED BY De FC. WIEDER Paves MAR DEL re Bet NORT ee Pm IR be PETRUS PLANCIUS. WORLD MAP PUBLISHED IX AMSTERDAM BY CORNELIS CLAESZ AND IN ANTWI RP BY?) Max Justo Guedes “- pan te a por fim, no mesmo ano, Beschrijvinghe van de gantsche Custe van Guinea, Manicongo, Angola, Monomotapa, ... volcht noch de beschnijvinghe van West Indien .... Esse conjunto de roteiros e informagées (sé Reys-gheschnft inclui 67 roteiros), acrescidas das que sobre o Oriente foram, quase simultaneamente, da- Ae Rankncssha ti nhete das por Dirck Gerritsz Pomp, que muito havia viajado Sg ead naquela regido — era amigo de Jan Huigen — a ponto de haver sido apelidado de Dirck China, deram aos batavos as bases nauticas para iniciarem suas nave- gac¢oes de longo curso, quer no Atlantico, quer muito especialmente, no rumo dos mares orientais.° Fracassadas as trés tentativas de ser encon- trada a Passagem do Noroeste, que os holandeses logo procuraram utilizar, a conselho de Linschoten e tendo como piloto o notavel Willem Barentsz, a solucao foi recorrer as rotas tradicionais, o Cabo da Boa Esperanca e o Estreito de Magalhdes. A primeira armada a partir (quatro navios) foi comandada pelo nosso ja conhecido Cornelis de Hootman’® que, entre 1595 e 1597, visitou Bantam, Madura e Bali; embora o éxito comercial nao hou- vesse sido de vulto, em 1598 nada menos de 22 navios, armados por cinco diferentes companhias, navegaram com idéntico destino, sendo a segunda a fazé-lo a frota capitaneada pelo almirante Jacob Cornelis van Neck, que, apds dobrar o Cabo da Boa BAPTISTA V'RIENT, 1593 Esperanca, esteve em Bantam e de La visitou as 57 A presenga holandesa no Brasit: meméria e imaginério Molucas. 0s oito navios que compuseram esta armada regressaram a Holanda carregados de especiarias, com apreciéveis Lucros que chegaram ordem de 400%. ‘Com pequeno intervalo, mas pela via do Estreito de Magalhies, partiram outras duas armadas. A primeira - e desastrosa ~ viagem teve como comandantes Jacob Mahu e Simon de Cordes; velejaram de Rotterdam cinco navios, em junho de 1598 e passado mais de um ano a armada foi dispersada por forte tempestade; dois navios foram apresados pelos espanhéis, um naufiagou e outio, o te Liesde, chegou a0 Japio, em abril de 1600. Somente o het Geloof., comandado por Sebald de Weert, repassou o estreito e conseguiu retornar & Holanda; trouxe excelente carta néutica do Estreito de Magalhaes, cujo levantamento foi feito por Jan utghersz, piloto de Enkhuizen."™ A segunda armada, tendo a chefid-la 0 almirante Olivier van Noort, também velejou de Rotterdam em julho de 1598. Antes de aventurar-se na travessia do Estreito de Magalhaes, tentou entrar na Bata de Guanabara e aportar na Ilha de Sao Sebastiio, mas foi repelido com perdas. J4 no Oceano Pacifico, costeou o Chile e 0 Peru, ap6s 0 que tomou o rumo das Tlhas Marianas (Ladrones) e Molucas. S6 um dos quatro navios que haviam partido, o Mauritius, voltou a Rotterdam, em 1601, tendo efetuado a quarta viagem de circunavegacao."* No ano do regresso de van Noort era tal o entusiasmo, nas Provincias Unidas, pela “empresa do Oriente” que nada menos que 14 frotas, totalizando 65 navios, partiram de seus portos com aquele destino. Disto resultou intensa concorréncia que na Holanda baixou os precos dos produtos trazidos, ao mesmo tempo que eles substancialmente elevaram-se nas fontes produtores.” A criagao da Vereenidge Oostendische Compagnie e seus reflexos cartograficos Para impedir que tal estado de coisas prosseguisse, foi criada, em 1602, por inspiracéo do grande estadista Johan van Oldenbarnevelt, com o apoio do Principe Maurits van Orange (1567-1625), a Vereenidge Oostendische Compagnie (V.0.C.), isto 6, a Companhia Unida da india Oriental. Recebeu monopélio por 21 anos e teria a frente 17 diretores (os Heeren XVII). Seu campo de agao iniciava-se no Cabo da Boa Esperanca e terminava no Estreito de Maga- hades, cuja a travessia ficou vedada a navios outros que nao os da V.0.C. Na mesma ocasigo, foi criado 0 cargo de cartgrafo da Companhia, ocupado sucessivamente por Petrus Plancius 58 Max Justo Guedes (até 1608), Augustijn Robert (1608-1617), Hessel Gerritsz (1617-1632), Willem Blacu (de 1633 até seu falecimento, em 1638), Joan Blaeu (1638-1673) e pelo filho deste, também Joan (1673-1705). Obviamente, isto daria ainda maior impulso a Escola Cartografica do Nor- te, com Amsterdam desempenhando papel capital. ‘Ap6s a criagao da V.0.C., a primeira armada que velejou para o Oriente, composta por 15 navios, foi comandada pelo almirante Wybrandt van Waerwijck tendo, como seu segundo, ‘© também nosso conhecido Sebaldt de Weert; partiu este em marco de 1602, enquanto o alimirante o fez em junho. Sebaldt visitou a Ilha do Ceildo e de lé velejou para Achin (Sumatra) para encontrar-se com trés dos navios de Waerwijck e juntos retornarem ao Ceilao (1603). E sabido que, quando 0 fez, foi morto a mando do Rei de Kandy. 0 almirante, por seu turno, alcangou Bantam em abril de 1603, ali fundando a primetra feitoria batava nas Indias Orientais; a seguir, visitou Djohor, Patane e, talvez, a China, tetornando 3 Holanda em junho de 1607. Se ndo ha certeza da ida de Waerwijck ao Cataio, pelo menos dois dos navios de sua armada (0 Erasmus e 0 Nassau) la estiveram, sob 0 coman- do de Cornelis van de Venne. Na seqiiéncia desta importante viagem, a V.0.C. prontamente despachou outra armada com 12, ou talvez, 15 navios, capitaneada pelo almirante Steven van der Hagen (1603-1606). 0 propésito principal dessa expedicao era disputar com portugueses e espanhdis 0 comércio dire- to com as Tthas Molucas. Nessa viagem, os batavos ocuparam fortalezas em Amboina e Tidore, dando infcio ao desmoronamento da posse das “Ihas do Cravo” pelos s(ditos de Felipe IIT. AV.O.C. continuou a enviar poderosas expedicdes ao Oriente. € interessante assinalar as de Cornelis Matetief (1605-1608), que pds cerco a Malaca, travando violenta batatha com uma esquadra portuguesa, e a de Paulus van Caerden (1606-1609), constituida de oito navios; apés talar Mogambique, sem, contudo, conseguir tomar a fortaleza,” passou a Goa, Caticute, Coromandel e, finalmente, as Motucas. Ali foi van Caerden aprisionado pelos espa- nhéis e, juntamente com seu pessoal, condenado as galés; no entanto, foi trocado por prisioneiros peninsulares que haviam sido feitos pelos holandeses, pois teve infcio a cha- mada “trégua dos 12 anos” entre a Espanha e as Provincias Unidas, trégua assaz relativa, pois no Oriente os batavos prosseguiram na sua expansio; ainda nao haviam sido iniciadas 59 A presenca holandesa no Brasil: meméria ¢ imaginario as negociagdes para a mesma quando velejou mais uma armada, com 13 navios, sob 0 ‘comando do almirante Pieter Willemsz Verroeff,* que partiu da Holanda em 1607. Embora sua missao fosse apoderar-se das Molucas tentou antes, sem sucesso, conforme acontecera a van Caerden, ocupar Mocambique; continuando a navegagio, perlongou as costas do Malabar, Coromandel e Malaca, chegando a Bantam em fevereiro de 1609. Apés muitas peripécias, Verroeff e seus dois vice-almirantes foram mortos em combate com a esquadra espanhola que velejara de Manilha para enfrenté-Los. De grande relevéncia para o sucesso das conquistas flamengas no Oriente foi a designa- 480 do primeiro governador-geral que a V.0.C. nomeou para os territérios que naquela ocasio 4 dominava. A escotha recaiu em Pieter Both que, em 1610, estabeleceu feitoria em Jacarta: seu sucessor, Jan Pietersz Coen, alguns anos depois fundaria Batavia, cidade que seria a capital das Indias Holandesas até a independéncia da Indonésia, No ano de 1614 dois acontecimentos relevantes ocorreriam: primeiro, mais uma volta ao mundo, efetuada pela armada de Joris van Spilberghen (1614-1617) que, apés cruzar 0 Estreito de Magalhées uma vez mais, efetuou os habituais ataques as colénias espanholas do Pacifico, Chile, Peru e Nova Espanha (México). Na seqiiéncia, a armada cruzou o Mar del Sur até alcancar as Ithas Marianas; dali passou as Molucas e finalmente aportou a Batévia, encon- trando-se com 0 governador-geral Coen. 0 segundo acontecimento a ser destacado foi a fundacao da Noordsche Compagnie, a Companhia da Austrdlia, inspirada por Tsaac le Maire, ex- diretor da V.0.C., que com ela rompera. Le Maire teve, nesta empresa, 0 apoio de poderosos comerciantes de Hoorn. ‘Aproveitando-se de uma abertura nos privilégios da ¥.0.C., aquele que vedava a passa- gem de navios pelo Estieito de Magalhdes que nio fossem de sua propriedade, Le Maire imaginou a possibilidade de encontrar alternativa pare chegar ao Pacifico. Para tenté-ta, foram armados dois navies, o Eendracht e o Hoom, sob o comando dos irmaos Schouten, sendo a expedicio chefiada por Jacob le Maire, filho de Isaac. A esquadritha velejou de Hoorn em 1615 e, efetivamente, descobriu o estreito que foi batizado com o nome do chefe da expedi- ‘do - Le Maire -, conseguindo rota alternative que no burlava o privilégio da companhia. No Pacifico foram descobertas algumas ilhas e, facanha importante, cartografada toda a costa 60 Max Justo Guedes norte da Nova Guiné; no entanto, quando os dois navios alcancaram Batavia, 0 governador- geral Coen, convicto de que o privilégio da V.0.C. havia sido ignorado, apreendeu todos os papéis de bordo, prendeu Jacob le Maire e despachou-o, com tudo o que apresara, na capitania da ja citada expedicéo de Joris van Spilberghen, que chegou a Holanda no verdo de 1617. Tendo Le Maire falecido no trajeto, a gléria de nova volta ao mundo e do descobrimento de até entao desconhecida passagem para o Pacifico foram transferidos a Willem Cornelis Schouten, tendo sido o diario da viagem logo publicado em Amsterda, pelo editor e grande cartégrafo Willem Jansz (Blaeu), no ano de 1618. No notével mapa-mdindi que Blaeu editou, em 1619, NOVA ET ACCVRATA TOTIVS TERRARVM ORBIS TABVLA (fig. 8) ainda é mantido no desenho do novo estreito o esquecimento do nome de Jacob le Maire. Apesar desta fatha, a grande carta tradu2, perfeicio, os conhecimentos geograficos j4 ento existentes na Europa. Calcula-se que, pelo menos 1.000 c6pias deste monumento cartografico tenham sido impressas; no entanto, um Gnico exemplar chegou até 15 nossos dias. Adquirido, em 1948, 2 um particular pelo Museu Maritimo Prins Hendrick, de Rotterdam, é hoje uma das jéias desta notavel instituigo museolégica. ‘Quase simultaneamente com o retorno de Spilbergen e Schouten (1617), a situacao politica na Espanha comegou rapidamente a modificar-se. 0 duque de Lerma, valido de Felipe ILL, foi afastado e substituido por seu sobrinho, o futuro duque de Uceda; se isto nao signi- ficou, de imediato, o fim da “trégua dos 12 anos”, j6 havia preniincio deta porquanto comeca- ra a subir a estrela de D. Gaspar de Gusman, futuro conde-duque de Olivares, respaldada pela influéncia de seu tio D. Baltazar de Zuniga, aio do Principe 0. Felipe (depois Felipe IV). ‘Ambos anteviam os prejutzos da trégua. Aquele prentincio foi logo confirmado pela designacdo do Marqués de Bedmar (Cardeal de la Cueva) para embaixador em Bruxelas, onde passou a chefiar os que viam na retomada da guerra a solugao para a crise econémica que se instalara na Espanha. Da Inglaterra, 0 embai- xador Gondomar alertava insistentemente para o problema, o mesmo fazendo Carlos Colona, governador de Cambrai. Este, as vésperas do fim da trégua, afirmou que em 12 anos os holandeses haviam construido império que custara 120 anos a ser formado pelos espanhéis. 61 A presenga holandesa no Brasil: meméria e imaginario Fig. 8 62 Max Justo Guedes Obviamente, os varios alertas fizeram com que algumas providéncias fossem tomadas, principalmente as orientadas para a ampliagao do poderio naval espanhol, o que traria, con- forme adiante veremos, resultados positivos alguns anos apés. Em 1619 as possiveis divides na Peninsula Ibérica chegaram 2o fim, quando Felipe IIT @ seus principais conselheiros, com decidido apoio dos Conselhos de Portugal e Indias, con- clufram que a permanéncia do status quo s6 era vantajosa para as Provincias Unidas, tanto no Oriente quanto nas col6nias americanas. Por estranhio que isto possa parecer, entre os batavos havia igualmente forte corrente favordvel & retomada da guerra. Tornou-se ela vitoriosa apés a iniqua execugio de Oldenbarnevelt, * em 18 de maio de 1619; dentre os varios motivos que levaram a to trégico fim — que nao caber aqui serem esmiucados — um deles foi exatamente sua veemente oposicdo & suspensio da trégua, em posigao contréria a corrente capitaneada pelo Principe Maurits, Amsterdam e a maioria dos Estados Gerais. 0 falecimento de Felipe II1, que se deu em marco de 1621, em nada alterou a situacdo na Espanha, porquanto Zuniga e Gusman, conforme mostrado, eram partidarios do rompimen- to; por seu turno, pouco depois desapareceu 0 Arquiduque Alberto (julho de 1621) pacifista e contemporizador. Embora sua atuacdo ja houvesse sido praticamente neutralizada por Bedmar, ‘© campo dos belicistas ainda mais fortaleceu-se: Espanha e Holanda aceleraram rapidamente seus preparativos e a guerra foi retomada."" “ Refere-se ao process e execusio do estadistaholandés Johann van Oldenbarnevlt (1547-1619). Depots de intensapartilpagdo no movimento de inéependéncia das Frovincos Unidas, e indicad, em 1586, parao cargo de “advogado permanente”, passou a controlar os assuntos ivs da Provincias Unidas, representando os interesses das clases comerconte. Durante sua administrag, © coméccio holands expandiu-s deforma espetacolr, 02 Companhis das fasias Orientas fo fundad. Negocio, junto & Espanha, da “tégue des 12 anos", qual Mauricio de Nassau opos-seenergicamente, Essa tegua possibiito, se no de drlt, pelo menos de fto,o reconhec mento da independénci. Ra longo de sua adminstragio,passou a opor-e de forma crescente, 4 Casa de Orange conflito que se agravou com a dura disputa religiosa entre os Remenstiants, dissidénci calvinista, e 0s calvinistas ortodoxas. Nesta querela, Oldenbarnevelét e Mauricio de Nassau se encontraram em lados opostes, Em 1638, Nassau determinou que a doutrina dos Remonstrantsfosse probida, e seus praticantes, condenados. Oldenbarneveldt foi preso e julgado por traicio. Embora sem evidéncias que a incriminassem, acabou condenado 3 morte, devido 3 intensa pressio de seus adversirios politicos sobre o tribunal. (NE.) 63 A presenca holandesa no Brasil: meméria e imaginério ‘A maior parte dos recursos com que © rei de Esparha por tantos anos perturbou a paz da cristandade e hostilizou tio gravemente estas Provincias Unidas veio-the principal mente das suas riqutssimas possessdes na América... ‘Assim afirmou Joannes de Laet, na introducio de sua famosa histéria da Companhia das Indias Ocidentais.* Esta era, certamente, a opiniao compartilhada por ingleses, franceses € holandeses. A instituigéo da West-Indische Compagnie Coube a outro estadista ilustre, Willem Usselinx (1567-1647), em oposicao a Oldenbarnevett, insistir na cria¢ao de companhia comercial e colonizadora que permitisse as Provincias Unides abalar 0 poderio espanhol. 34 praticamente rompida a trégua, foi publicado © edital para o estabelecimento da companhia, isto &, 0 Placcaet By de Hooghmo: Heeren Staten General ... ghemaeckt op't besluyt vande West-Indisch Compagnie, do qual resultou 0 Octroy By de hooghe mogende heeren Staten Generael verleent cende West-Indische Compagnie in date den berden Junij 1621, 0 “Privilégio concedido pelas nobres e altas poténcias os senhores Estados Gerais 3 Companhia das Indias Ocidentais, na data de 3 de junho de 1621”. 0 Octroy, nas consideracées iniciais, praticamente repete a peticdo de 1543(!), pois afirma que “o progresso deste pats [as Provincias Unidas] ... consiste principalmente na navegagio e comércio que de tempos imemoriais se tem estendido 2 todos os paises e rei- nos”, pelo que os Estados Gerais, no intuito de manter e empliar ditos comércio e navegacao, julgaram necessério 0 “auxilio, assisténcia e metos de uma companhia geral” pelo que “apés madura deliberac3o e por motivos urgentes, que a navega¢ao, tréfico e comércio nas regides das Indias Ocidentais e Africa e outras que vao designadas abaixo, nao sejam feitas de outra forma a nio ser pelo esforco unido e geral dos comerciantes e habitantes deste pats e para este fim seja organizada uma Companhia Geral” que teria privilégios e isencdes reunidos em nada menos de 45 artigos.” Logo no primeira deles, ficou estabelecido que, pelo prazo de 24 anos “nenhum habi- tante dos Paices Baixos Unidos ou do estrengeiro” poderia “a nao ser em riome desta Compa- nihia Unida, negociar ou navegar nas costas e paises da Africa desde 0 Tropico de Cancer até 64 Max Justo Guedes © Cabo da Boa Esperanca nem nos patses da América ou Indias Ocidentais, a comecar da extremidade sul da Terra Nova, pelos estreitos de Magalhaes, Le Maire ou outras passagens e estreitos préximos até o Estreito de Anjam’ [sic], tanto no Mar do Norte como no Mar do Sul, nem em algumas ilhas situadas de um ou outro lado entre ambos os meridianos e atingem a leste 0 cabo da Boa Esperanca e a oeste a extremidade oriental da Nova Guiné, inclusive”. A excegio nica era o trafico de sal em Punta del Rei, isto &, nas Salinas de Arraya,”* proibicao revogada por ato de ampliacdo no ano seguinte. Para inteirar-se dos privilégios em pauta, remeto o leitor & andlise sucinta que deles fiz no estudo sobre As guerras holandesas no mar.® Basta aqui lembrar que a Companhia teria 19 diretores (os Heeren XIX), poderia fazer contratos, pactos e aliancas com principes e naturais dos paises compreendidos nos limites atribuidos a mesma, construir fortes e fortificagoes, contratar tropas, nomear funciondrios e governadores-gerais (estes, desde que seus nomes fossem aprovados pelos Estados Gerais) ¢ efetuar presas cuja legalidade seria decidida pelo Conselho do Almirantado). Pode, assim, @ W.LLC. — mesmo contrariando a vontade de Willem Usselinx, 0 maior defensor da criago da companhia, que se opunha a qualquer a¢do contra o Brasil — iniciar 0 planejamento do ataque ao territério brasileiro, propugnado pelos comissarios dos grandes estados maritimos da Holanda e Frisia Ocidental. Os conhecimentos geo-cartograficos disponiveis para o ataque ao Brasil Jé foi mostrado o répido e impressionante progresso que a cartografia dos Patses Bai- xos conseguiu a partir da segunda metade do século XVI. Embora sem objetivar diretamente 0 Brasil, a produzida em Antuérpia por Abraham Ortelius, quer no seu famoso mapa-méndi de 1564, quer no Theatrum Orbis Terrorum, com a notavel carta do Nove Mundo,* ampliou subs- tancialmente aquilo que, fora da Peninsula Ibérica (nomeadamente em Portugal, como & * Refere-se a0 Estreito de Anian, acidente geogrifico mitico, citado por Marco Polo, e que ligaria os oceanos Allanticoe Pactfico, Quando descoberta a passagem norte entre os dois oceanos, foi he dada, inicialmente, esse name, pasando depois a ser chamada estreito de Bhering.(N.E.) 65 A presenca holandesa no Brasil: meméria e imaginario lagico) era sabido do desenho de nossa costa. Também Mercator contribuiu poderosamente para isto, tanto no seu mapa-miindi, de 1569, quanto com a carta da América do seu Atlas. Coube, no entanto, a Jan Huigen van Linschoten a maior contribuicdo para facilitar aos, batavos a navegacao para os diversos portos do Brasil quando redigiu o Reys-gheschrift van de Navigatien der Portugaloysers in Orienten, onde foi incluida a Als oock van gantsche Custen van Brasilien, ende alle die Havens van dien, ou seja, uma seqléncia de importantes informacdes sobre a costa brasileira e os roteiros para a navegacao, a partir do hemisfério norte, para seus principais portos. Tao notvel foi esta contribuigao que, passados apenas cinco anos, em 1600, Richard Hakluyt, em Londres, traduziria para o inglés os principais daqueles roteiros. Linschoten incluiu no Itinerdrio e no Reys-gheschrift, além de um mapa-mdndi, cinco belos mapas, um deles da América do Sul e Antithas, de autoria de Amoldo Florentius — a van Langren. No Beschrijvinghe, de 1596, o editor Cornelis Claesz julgou que “a bela obra de Jan Huigen” merecia os custos necessérios para nela incluir mapas elegantes e exatos, com sua descrigdo; além disto, no “fim do livro encontrar-se-é [escreveu ele no longo titulo] en fus uma descrigio minuciosa da india Ocidental, com sua carta”, descri¢éo que ficou a dever ao sabio médico Bernard ten Broecke (Paludanus), a quem agradeceu noutra inschoten de suas obras. Em 1610, com o titulo de Histoire de la Navigation de Jean Hugues de Liscot Hollandois etc. .., foi impressa, por Henri Laurent, a primeira traduclo para o francés. Provavelmente, 0 locat da impressio - Amsterda - foi falsificado, porquanto deve ter sido ela feita em Frank- furt. A segundo edicéo desta tradugdo, de 1619, inclui Le Grand Routier de Mer, De Jean Hugnes de Linschot Hollandois etc., por Evertsz Cloppenburch, em Amsterda (primeira edigao francesa deste Gltimo), com 0 roteiro e descricéo da América, cujo mapa da América do Sul esta incluido. Finalmente, ha que serem mencionados os roteiros de Dierick Ruiters — que esteve prisioneiro no Brasil e conseguiu fugir — 0 Toortsee der zee-Vaert, impresso em Viissinghen, 1623, as vésperas da primeira invasio holandesa na Bahia.® A estes roteiros e mapas deve- 66 Max Justo Guedes mos acrescentar os conhecimentos obtidos diretamente dos ataques feitos por alguns navios. da gigantesca esquadra de Pieter van der Does, que velejara da Holanda no final de 1599 para assolar a Africa e a América. Sete desses navios, comandados pelos capitdes Hartman e Broer, tentaram saquear a cidade do Salvador; apresaram alguns navios no porto, mas foram impedi- dos de desembarcar em razao das providéncias defensivas tomadas pelo governador interino Alvaro de Carvalho, 0 que os levou a saquear e incendiar engenhos e casas no Recncavo, 0 mesmo fazendo na Ilha de Itaparica. Neste assalto perderam muitos homens, pela tenaz resisténcia oferecida pelos luso-brasileiros; no entanto, ao regressarem ao seu pafs levaram substanciais conhecimentos sobre Salvador e a Bafa de Todos os Santos, pois durante 55 dias haviam desta altima sido senhores. Em 1604, houve idéntica tentativa, realizada pela esquadritha (sete navios, capitanea- dos pela nau De Hollandtschen Thuyn) de Paulus van Carden, de quem j4 tratei quando de sua navegacdo para o Oriente, Também ele nao conseguiu ocupar Salvador, gracas as muitas medidas defensivas tomadas pelo governador Diogo Botelho; por isto, contentou-se em apre- sar barcas dos engenhos carregadas de aclicar e duas caravelas com igual carregamento. Van Carden havia chegado a Bahia em 20 de jutho, lé permanecendo até 28 de agosto; rumou, a sequir, para as Antithas e na rota procurou reconhecer a costa do Recife, com pouco éxito, gragas a reagdo das fortificagdes. Embora isto, novos e importantes conhecimentos sobre 0 Nordeste brasileiro obtiveram os batavos, principalmente sobre a viabilidade da ocupagao da capital do Estado do Brasil. Bastante atrativa era ja tal ocupacao, uma vez que a agroindistria do acdcar e as relagdes com Buenos Aires (um dos escoadouros da prata peruana) tornava a cidade uma rica presa. Pronto perceberam os flamengos a dificuldade da sua defesa, pois era simples 0 acesso Bafa de Todos os Santos e inexistia esquadra permanente para repelir qualquer tentativa de invasao. Foi, entao, facil para os Heeren XIX escolherem seu primeiro alvo no Brasil. 0 ataque a Bahia em 1624 e a cartografia resultante Ja foi mostrado que Salvador era alvo cobigado pela W.I.C. e que na Holanda eram muitas a5 informacées geograficas disponiveis (fig. 9) para permiti-lo. Isto é facilmente 67 ‘A presenca holandesa no Brasil: meméria e imaginario 68 demonstravel por ser ainda hoje conhecida a Ordre, qu'vn chacun devoit tenir en U'Exploict de la Baye de Todos (os Sanctos effectué le neufiesme May 1624, publicada por Henricus [Henry] Hondius na Description & breve declaration des Regles Generales de la FORTIFICATION, de (Artillerie, des Amunitions ete. ... Uma forte esquadra, composta por 26 navios, foi reunida e colocada sob o comando do almirante Jacob Willekens, embarcado na capitinia, o Zeelandia; o vice-almirante Pieter Pietersz Heyn — a quem a Companhia ficaria devendo mattiplas facanhas — velejou no Neptunus. A soldadesca veio sob o comando do coronel (logo depois general) Johan van Dorth. ‘Max Justo Guedes Partindo os navios de varios portos holandeses, seu rendez-vous foi marcado para a Ilha de Sao Vicente (Cabo Verde), onde a maioria chegou aos 28 de janeiro; a terra brasileira foi avistada em 4 de maio, na altura de Ilhéus e, no dia 9, forgaram a barra da Bata de Todos os Santos, sempre guiados por Dierick Ruiters. Seguiu-se enorme confusdo na cidade, 0 que permitiu as tropas batavas ocuparem, sem maiores problemas, a capital brasileira, onde per- maneceriam quase um ano, até serem expulsos pela famosa (e poderosa) Jornada dos Vassalos, comandada pelo valoroso D. Fadrique de Toledo Osorio, marqués de Villanueva de Valdueza."* A rendigéo flamenga ocorreu no dia 30 de abril de 1625. Embora as varias vistas panorémicas de Salvador publicadas na Holanda, resultantes da invasdo flamenga, e 0s trabathos (posteriores) de Hessel Gerritsz, cartgrafo da W.I.C., desta primeira incursao da Companhia sobre o territério brasileiro, parcos foram os resultados cartograficos diretos, exceto o j mencionado de Hondius; eles viriam, entretanto, com a notivel obra do jé referido Joannes de Laet, um dos diretores da Companhia.** A segunda edigdo dessa nova obra do notavel cartégrafo inclui varias e interessantes cartas: AMERICAE sive Indioe Occidentales Tabula Generals (fig. 10), Te landt van Brosil met de cengelegene Provincien, Guiana ofte Provincien tunchen Rio de las Amazonas ende Rio de Yoiapari oft Orinoque e Paraguay, 6 Prov. de Rio de (a Plata etc. ... (Fig. 11}, s0 alguns exemplos. Mesmo derrotados na Bahia, os flamengos da Companhia das indias Ocidentais continu- aram rondando a costa brasileira e dela colhendo informagdes, como 0 commandeur Thomas Sickes, no Golden Dolphijn, e outros comandantes que, no ano de 1626, reforcaram sua ago. de patrulhamento desde as proximidades da Bata de Todos os Santos até o Caribe, principal- mente ao largo de Pernambuco. No ano seguinte foi Pieter Heyn que, com forte esquadra, retornou ao Brasil e & Bahia; embora obtendo alguns éxitos, acabou perdendo sua capitania, 0 Amsterdam, no banco da Panela, no interior da Baia de Todos os Santos.” Em 1628, Dirck Symonsz, também em patrulha, elaborou a excelente carta nautica De kust van Pernambuco, e, nna Holanda, Willem Jansz Blaeu editou, em 1628 e 1629, a West Indische Paskaert waerin de graden der breed over weder zijden van de middelliin wassend, carta-atlantica na projecao de Mercator, que muito facititou as viagens da Europa para as costas americanas - Brasil e Caribe, principalmente - e africanas. 69 ‘Appresenca holandesa no Brasil: meméria e imaginario 70 Max Justo Guedes A vasta produgao cartografica legada pela ocupagao de Pernambuco (1630) Em 1629, apés a faganha de Pieter Heyn, apresando na Baia de Matanzas, diante de Havana, a Frota da Nova Espanha (“Frota da Prata”), que rendeu a W.J.C. mais de 11 milhdes e meio de florins, os Heeren XIX voltaram seus olhos novamente para o Brasil, desta vez sobre Pernambuco, onde o agticar produzia tanta riqueza e luxo a ponto de alarmar o frade dominicano Antonio Rosado que pregava: “sem mais diferenca que uma letra, por Olanda sera Olinda abrasada’, Nas Provincias Unidas foi organizada fortissima esquadra, cujo comando foi entregue ao general-do-mar Hendrick Cornelisz Lonck. Quando reunida em Sao Vicente (Cabo Verde), a05 21 de dezembro, contaram-se 54 navios e iates, mais 13 pinacas (patachos ligeiros), guarnecidos por mais de 3.500 homens de mar, enquanto a gente de guerra, subordinada a0 coronel Diederick van Waerdenburch, totalizou quase 3.500 soldados.’* Para defender-se de tanto poder, o general Matias de Albuquerque dispunha, apenas, de trés companhias de linha, com 130 regulares, e cinco de ordenangas, com 650 temporarios. Obviamente, a resisténcia, embora heroicamente tentada, foi inutil. No dia 16 de fevereiro de 1630, os batavos estavam senhores de Olinda e, no dia 2 de marco, renderam-se os dois fortes que defendiam o porto (So Jorge e Séo Francisco, ou “do Mar”), enquanto 2 populacio fugia da cidade levando 0 que pudesse carregar. Quando the foi possivel, Matias de Albuquerque reuniu os homens prestantes, iniciando a resisténcia no Arraial de Bom Jesus. Vastissima foi a iconografia holandesa do ataque; numerosas estampas foram impressas registrando 0 bem-sucedido feito. Dentre todas, destacam-se o panorama e mapa da conquis- ta de Olinda, de autoria de Nicolaus Joannis Piscator, de 1630, editado por Claes Jansz Visscher (Fundacao Atlas van Stolk, Rotterdam), a notavel (ig. 12) Pascaert van de ghelegentheyt van Pernambuc, de autoria de Hessel Gerritsz (1630, Fundacao Atlas van Stolk), e o Entwerssung von Eroberung der Stadt Olinda (John Carter Brown Library, Providence, Rhode Island). Do Engenheiro Tobias Commersteijn, que veio na esquadra de Lonck desconhece-se qualquer pega assinada;** no entanto, existem no Algemeen Rijksarchief, algumas plantas de outro engenhei- To (considerado fraco pelos chefes da conquista), um certo Pieter van Bueren. 7 ‘A presenga holandesa no Brasil: meméria e imaginério Fig. 12 ‘A Coroa espanhola, quando pode, enviou socorro a Pemambuco, com a armada de 0. Antonio de Oquendo; deveria ela desembarcar soldados no Cabo de Santo Agostinho e na Paraiba, 0 que conseguiu, mas incerto foi o Combate dos Abrolhos travado contra a esquadra hholandesa do general Pater, morto nessa aco. Continuaram os batavos, ap6s 0 regresso de Oquendo a Espanha, com o dominio do mar, que thes permitiu, pouco @ pouco, expandir sua conquista. Muito til para isto foram os servigos de trés engenheiros-cartégrafos, o jé mencionado Pieter van Beuren, que desmentiu ‘© conceito inicial que Andreas Drewisch e Jacob Kyns dele faziam, quer planejando fortifica~ bes, quer levantando plantas das conquistas que iam sendo planejadas. Do engenheiro Drewisch subsiste a Grondt teyckeningh van het Eylandt Antoni Vaaz, het Recif ende vastelandt aende haven van Pernambuco in Brasil etc. (“Planta da tha de Antonio Vaz, do Recife e do continente no Porto de Pernambuco, no Brasil”), elaborada em julho de 1631, primorosamente estudada por José Antonio Gonsalves de Mello, que a considerou a melhor até a chegada de Nassau;" também de sua autoria é a planta do assédio da Paraiba, de 1631, hoje no Algemeen Rijksarchief (Arquivo Geral, Haia). Ainda desse autor @ outro monumento cartografico, a Paascaert van de custe van Brasil, (“Carta nautica da costa do Brasil”), que permanece até hoje manuscrita também no Arquivo Geral da Haia. 72 Max Justo Guedes Pouco a pouco foram os flamengos modificando sua estratégia inicial,*! e optando pelos assaltos diretos aos acidentes ou capitanias que planejavam conquistar. Cafram em seu poder, sucessivamente, Itamaracé, Rio Grande do Norte, o muito cobigado cabo de Santo Agostinho, ponto de escépula dos aciicares dos luso-brasileiros e do qual logo foi feita a bela Afeteeckeninge vonde Cape S. Augustyn, por Jacob Kyns, provavelmente por volta de 1635, e a Parafbe, cartografada na Afbeelding der stadt em fortressen van Parayba, editada em 1635 por Claes Jansz Visscher.* Finalmente, foi sitiado o Arraial de Bom Jesus, tendo Matias de Albuquerque sido forga~ do a retirar-se para Serinhaem e, posteriormente, para Porto Calvo e Alagoas; trés meses apés, rendeu-se 0 Arraial. Naquela ocasiao tentou Felipe IT enviar novo socorro luso-espanhol: a armada coman- dada pelo general D. Lope de Hoces, que trouxe D. Luis de Rojas y Borja e suas forcas terres- tres. Foram estas desembarcadas em Jaragué, nas proximidades de Macei bro de 1635, e deveriam enfrentar as tropas do coronel Arcizewsky. Isto ocorreu no afamado Combate da Mata Redonda, no qual o general espanhol foi derrotado e morto, tendo sido, por em 30 de novem- isso, mantido o status quo anterior a chegada do socorro. Lope de Hoces também nao conse- 4guiu no mar o sucesso que dele esperava o futuro conde-duque de Olivares, razao pela qual os Heeren XIX perceberam que, para modificd-lo e tornar rentavel o Brasil Holandés, dilacerado pela guerra constante, seria necessria a nomeacdo de um governador-geral, a exemplo do que, no Oriente, fizera a V.0.C. Recaiu a escolha sobre o humanista e experimentado militar de brithante carreira, Johan Maurits (Jodo Mauricio), conde de Nassau-Siegen (1604-1679) aparentado com os principes da Casa de Orange e com os reis da Dinamarca. As condigdes da W.I.C., oferecidas em 2 de agosto de 1636, davam-the autoridade de governador, capitéo e almirante-general de todos os lugares conquistados. Entre atribuigbes e regalias, fol-the fixado o séqilito, a ajuda de custo de 6.000 florins, vencimentos mensais de 1.500 florins mais dois por cento das presas efetuadas em terra e no mat. Como termo de comparacdo, basta lembrar que os venci- mentos de um soldado eram 8 florins mensais. De grande importéncia para o presente estudo é o séqilito trazido por Nassau para o Brasil e alguns nomes que ele aqui encontrou e colocou a seu servico pessoal. 2B ‘A presenca holandesa no Brasil: meméria e imaginério A cartografia do Brasil no governo de Nassau £ sabido que, com um comboio de 12 navios e 2.700 homens, Nassau partiu definitiva- mente de Falmouth (Gra-Bretanha), onde tinha passado 40 dias, aguardando a melhora do tempo, em 6 de dezembro de 1636; veio embarcado na Zutphen e alcancou Pernambuco em 23 de janeiro do ano seguinte. Desde a partida da Holanda e durante a viagem, 0 pintor Frans Post, que integrava o séquito do conde, desenhou notavel seqiiéncia de vistas panoramicas das ithas das escalas ou avistadas, até a arribada a Pernambuco, onde Nassau foi recebido com muitas honras e homenagens. Algm do mencionado Frans Post, vieram no séqiiite do governador outros notéveis artistas: Albert Eckhout, especialista em retratos, cenas humanas e representagdes de fauna, frutos e flora, 0 naturalista alemao, natural da cidade de Liebstadt, Georg Marcaraf, que nos interessaré particularmente pois, entre outros saberes, era notével astronomo e excelente cartégrafo e o médico particular de Nassau, Doutor Willem Pies (Piso). Segundo Johan Maurits, trabalharam para ele durante sua permanéncia no Brasil seis artistas. € provavel que possamos incluir, entre esses, Zacharias Wagner e Caspar Schmalkalden, 0 primeiro chegou ao Brasil em 1634, e jé tinha trabalhado, por algum tempo, para William Jansz Blaeu, em Amsterda; 0 segundo era um militar que serviu no Brasil Holandés entre 1642 @ 1645. Para o presente estudo, bem mais do que os desenhos de arquitetura e plantas de cidades, bastante numerosos em razo dos projetos de Nassau para a construgéo da nova capital Mauritsstad, interessa-nos a cartografia, porque, sobre aqueles, José Antonio Gonsalves de Mello elaborou estudo insuperavel® e seria ociosa qualquer tentativa de refazé-lo. Cuida- rei, destarte, dos mapas geogréficos gerais do Brasil e, particularmente, dos do Brasil Holan- des, onde adquirem particular relevo as exploragdes levadas a cabo no interior do pats, refle- tidas nos trabalhos que podem ser seguramente atribufdos ao cartégrafo Cornelis Sebastiaansz Golijath, natural de Schiendam, e do alemo Georg Marcgraf. Golijath, quando da chegada de Nassau, jé se encontrava no Brasil, onde deve ter desembarcado antes de 1635. Preso por Matias de Albuquerque em Porto Calvo, foi despacha- do da Bahia para Lisboa, mas no deve ter demorado a voltar ao Recife, pois esteve com o 74 Max Justo Guedes governador no frustrado ataque a Salvador e, apés o regresso da expedigao 4 capital Pernambucana, continuou a prestar-the servicos, especialmente porque os Heeren XIX esta- vam continuamente solicitando 0 envio de mapas do interior, com os engenhos, canaviais, ro¢as e currais entdo produzindo. Em abril de 1639, foi remetida para a Holanda a primeira coletanea, a bordo do navio Barcqelonga. Apés os estudos de F. C. Wieder e Gonsalves de Melo, é sabido que duas séries de mapas foram elaboradas durante o governo nassoviano; a primeira delas reine uma carta geral do Brasil — Correcte zeekaert der Cust van vier Capitanien in Brazilien als Pharnambocque, I. Tamarica, Paravyba ende Rio Grande, met alle Reciffen ende droochten der selver mede alle Steden, Dorpen ende Aldeds der selver Capitanien, alles door order van syn Extie Graeff Joan Maurits von Nassaw (“Carta correta do litoral de quatro capitanias do Brasil isto 6, Pernambuco, Ilha de Itamaraca e Rio Grande, com todos os recifes e bancos de areia dele [litoral] e ainda com todas as cidades, povoacdes e aldeias das ditas capitanias, tudo feito por ordem de Sua Exceléncia, o conde Mauricio de Nassau") e cinco outras que retratam a regio nordestina ja em poder dos batavos, ou seja, desde o Rio Ceara Mirim (no Rio Grande do Norte) a0 Rio S40 Francisco. Tais mapas nao formam sequiéncia sucessiva, mas vo superpondo-se mutuamente nas respectivas extremidades sul e norte. Desta série desconhecem-se os originais, mas é ela, com toda a verossimithanca, de autoria de Cornelis Golijath, muito experiente nas coisas do Brasil segundo afirmaram as autoridades peninsulares quando ele la esteve preso. Estes seis mapas devem ser o resultado de levantamentos efetuados pessoalmente por jjath que, com toda a seguranca, utilizou fontes portuguesas; ditos levantamentos e ela- boragao ocorreram entre julho de 1638 e abril de 1639. Tendo desaparecidos, conforme mostrado, os originais da série, a perda tornou-se me- nos lamentavel porquanto foi ela copiada por Johannes Vingboons (1616?-1670), que inclu- sive legou-nos ainda outras copias de mapas do Recife (1639), Ilha de Antonio Vaz e Itamaraca. Antes de cuidarmos das c6pias de Vingboons, convém lembrar que Golfjath permaneceu no Brasil até 1641 e regressou & Europa pela via de Portugal. Antes de [4 chegar, 0 navio em que viajava foi apresado por corsérios argelinos, conforme seu relato a Nassau, inclusive mencionando a vida miseravel que estava levando como prisioneiro; ignora-se como foi resga~ 75 A presenca holandesa no Brasil: membria e imaginario tado, mas j4 em 1644 estava de volta 4 Holanda. Em julho de 1645, vamos reencontra-to no Recife, comandando 0 Orangeboom, da Camara de Maas, que s6 partiu de retorno as Provincias Unidas em marco de 1646.” Voltemos, portanto, a primeira série que, conforme mostrado, esté hoje atribuida a Cornelis Golijath. Ao Instituto Arqueolégico, Histérico e Geogréfico Pernambucano pertence precioso atlas manuscrito, cujas cartas cobrem todo 0 litoral brasileiro, desde o delta amaz6- nico ao Rio da Prata. Conforme mostrou o doutor F. C. Wieder, na firma de livreiros antiquérios Frederik Muller & Co., de Amsterd8, esteve a venda, entre muitas outras preciosidades, certo atlas manuscrito, de autoria de Johannes Vingboons, originério, por seu turno, de H. G. Bom, também antiquario e detentor dos remanescentes da editora de mapas de Gerard van Keulen, sucessora de Johannes van Keulen desde 1680. Em 1885 H. G. Bom realizou leiléo do qual um dos itens era “um excepcional Atlas colorido das Américas do Norte e Sul, do inicio do século XVIII", em dois volumes. Adquirido por F. Muller, o atlas foi desmembrado, sendo os mapas relatives ao Brasil vendidos a José Higino Duarte Pereira, entdo realizendo pesquisas na Europa para a Provincia de Pernambuco, Os restantes mapas tiveram destinos que nao vem ao caso aqui esmiugar.™ Copiados também por Vingboons ha vérios outros atlas, hoje nos acervos do Algeemen Rijksarchief (Haia), Biblioteca Medicea Laurenziana (Florenca), Biblioteca Vaticana, em trés volumes, e Biblioteca Nacional de Viena; exceto 0 de Viena, os demais foram por mim exami- nados, tendo havido inclusive gestdes para publicar-se 0 de Florenga, © que néo foi feito por se encontrar em mau estado de conservacio. Tendo em vista que o mais completo dos atlas de Vingboons é 0 da Biblioteca Vaticana = tr@s volumes, sendo 0 segundo intitulado Caerten van Zuyder AMERICA. Waer in Vertoont worden de Landen van BRASIL, PERU en CHELI etc. Niewelyckz Betrocken, Door Johannes Vingboons, contendo os mapas da América do Sul “recentemente desenhados por Johannes Vingboons” Arqueolégico, Histérico e Geografico Pernambucano. Contém esse dltimo um total de 29 cartas, principiando pela Generaele Caerte van Brasil streckende van caep Nassouw oft Rio de la Plata, ou seja, a carta geral da costa brasileira. De convém comparar alguns destes mapas com os correspondentes do Instituto 76 Max Justo Guedes especial interesse s4o 0s cinco mapas das capitanias jé ocupadas pelos holandeses em 1638, que, no atlas do TAHGP tém os ndmeros 51, 49, 43, 40 e 39, correspondentes, no da Vaticana, ncia 35, 36, 37, 38 e 39 : Capitania de Rio Grande, Capitanis de Parayba, Capitania de Itamarica, Capitania de Pharnambocque (norte) e Capitania de Pharnambocque (fig. 13). Verifica-se, como ja mostrara Wieder, que os mapas da Vaticana sdo mais recentes que os de Pernambuco, mas a comparacao entre eles cabalmente demonstra que, quando os Lltimos foram elaborados j4 os batavos possufam magnifico conhecimento do desenho do ‘nosso litoral e haviam penetrado nos principais rios que nele desembocam. Além destes cinco mapas, merece especial referéncia o Pas Caerte der Cvuste von Brazyl (n® 44) que desenha a costa entre 0 Rio Grande e Pernambuco, sendo autor do original. copiado por Vingboons o commandeur Jan Comelisz Lichthardt, excepcional chefe, que longamente permaneceu a testa das forcas navais holandesas no Brasil, com elas conseguindo importantes éxitos, atestados pelas crénicas coevas. Na Holanda, Joan (Johannes) Blaeu editou a Brasflia Generis Nobilitate armorum et letterarum scientia prastantmo. Her6i Cristoph ab Artischav Arciszewiski, incluida no atlas Toonneel des Ardryex, oft Nieuwe Atlas, uytahegheven door Wilhelm en Iohan Blaeu (Amsterdam, 1642) (fig. 14), que homenageia outro ilustre militar, o polonés a servico da W.L.C. desde 1629, coronel Crestofle dArtischaw Arciszewski, que teve importante atuagdo na guerra brasflica, ‘mas que terminou indispondo-se com Nassau com o Conselho Supremo e mandado de regres- ‘so 4 Holanda. Cuidarei, na seqiiéncia, da segunda série de mapas do Brasil Holandés. Consta ela de quatro mapas que cobrem o litoral nordestino, a partir do Rio Potengi, no Rio Grande do Norte, @ alcancam o Rio Vaza-Barris, em Sergipe. A exemplo do que ocorreu com os mapas da primeira série, isto 6, os de Golijath, também desses desconhecem-se 0s originais; no entanto, foram eles incluidos na famosissima obra Rerum per octennium in Brasilice et élibi nuper gestarum, sub praefectura Comits J. Mauritit Nassau ... Historia, que o conde encomendou a Caspar Barleus para relatar 0 seu periodo brasileiro.” As cartas obedecem a sequinte seqiiéncia: Sergipe, Pernambuco-sutt (fig. 15), Pernambuco-norte e TItamaraca e, no quarto mapa, Paraiba e Rio Grande do Norte. Deles 7 A presenga holandesa no Brasil: meméria e imaginario Fig. 13 J rage fer cat $ 78 Max Justo Guedes escreveu Barleus que “os quatro mapas reunidos, produto da magnanimidade de Nassau, retratam o Brasil Holandés; nem a América nem a Europa viram até hoje outros mais completos”. Além deles Joan Blaeu publicou, também em Amsterdam e no mesmo ano em que foi editada a obra de Barleus, 0 mapa mural (wandkaaert) em nove folhas, Brasilia que parte paret Belgis (figs. 16 e 17), cuja autoria esta taxativamente atribuida no proprio mapa a Georg Marcgraf, que o relizou em 1643 : Brasiliae Geographica & Hydrographica Tabula Nova ... Quam propriis observationibus ac dimensionibus, diuturna peregrinatione a se habitis, fundamentaliter superstruebat et delineabat Georgius Marggraphius Germanus, Anno Christi 1643.%° Nesse ex- traordinario mapa as longitudes sao re- feridas ao meridiano da Ilha de Tenerife (arg. das Canarias), a escala é de 19 mi- thas horarias ao grau e o cartégrafo pro- curou redigir os nomes proprios segundo a grafia luso-brasileira. Nao poderiam, deste modo, serem melhores os resultados cartograficos do governo de Maurits van Nassau no Bra- sil, resultados felizmente preservados na monumental obra de Caspar Barleus. 79 A presenga holandesa no Brasil: meméria e imagirtario 80 Tudo 0 que foi resumido neste estudo sobre a cartografia produzida pela V.0.C. que, obviamente, prosseguiu na sua expansio no Oriente com novos descobrimentos, que seus cart6grafos foram registrando com muita proficiéncia, e pela W.I.C., notadamente gragas 3 clarividencia de Nassau, permitiram a Joan Blaeu (1598-1673) reeditar o mapa mural elabo: rado por seu pai Willem Jansz (Blaeu), em 1619, nele efetuando revises em 1645 ou 1646 NOVA ET ACCVRATA TOTIVS TERRARVM ORBIS TABVLA/ ex optimis quibusq3 in hoc genere auctorerib’ desumpta et cluob’ planisphaerijs delineata. auct : Gul Iansonio. 1619 (fig. 18) Max Justo Guedes 81 A presenca holandesa no Brasil: meméria e imaginario Fig. 16 e 17 82 Max Justo Guedes 83 A presenca holandesa no Brasil: meméria e imagindrio 84 No Oriente foram tancados, principaimente, os resultados da segunda viagem de Tasman Australia (1644); na América do Norte, Blaeu utilizou o mapa de Samuel Brigg, da colecdo de viagens de Samuel Purchas (Londres, 1625) e na América do Sui, baseou-se nas viagens de Le Maire e Brower (ao Chile). Assumiram, assim, os Paises Baixos, gracas a pléiade de grandes navegadores, geégrafos, cartégrafos e gravadores que possuiam, a lideranca mundial da cartografia, suplantando a até entao imbativel congénere portuguesa. Notas 1. Lunae (1780), apud BOKER, Charles. The dutch seabom empire: 1600-1800. [Londres]: Hutchinsons, 1977. p.5. 2. Cf, GUEDES, Max usta. As queras holandesas no mar. In: BRASIL, Ministério da Marinha. Historia naval rosie, Rio de Janeiro: Service de Oocumentagio Geral da Marinha, 1990. v. I, tL. p. 11-12. 5. Conhecido como o pai a patra, passou 8 Histéria com o cogrome de Tacituro, pela errbnes traducso 0 vocabulo Schluwe (astuto) para o latina Tocturmus. Sua lideranga fol formalmente accita em 1572, quando a Provincia da Holanda e Zeeland reconheceram-no como stadthoudet 4. GUEDES, Max usto. Op ct. p. 13-17. 5. Aquela altura, Gerard Mercator jf havia desenhado seu pequeno maparmindi (1538), conclutdo o famoso lobo (1541), a grande carta da Europa (1854), dedicada ao Bispo de Aras, Antoine Peenot senhor de Granvele, que presdia entio o Conselho Prvado dos Pases Baixos e a carta do Ducado de Lorene (1864), que nunca foi impressa, 6. WAUWERMANS. Histoire de (Ecole cortogrophique belge et onversoise du XVI siécle. Amsterdam: ridin Publishing Co.,2. ed, 1964 . 2, p, 90-88; 185-209. Canvém no esquecer os estudos a respeito da Fina loxodrdmiceapresentados pelo Cosmégrafo-mor Pedro Nunes (portugués) na sua obra Petri None Salacienss Opera, editada em Basia, 1566, que alguns autores julgam ter sido conhecida por Mercator. 7. Foi gravado peles iemios van Deutecum e publicada por Christoffel Plantijn Veja-se:Lucas Jansz Waghenaer van Enckhuysen, exposigio realizada no Zuiderzeemuseum, Enkhuizem, 1989, Max Justo Guedes Fig. 18 85 A presenga holandesa no Brasil: meméria ¢ imaginério 86 ‘8 Linschoten € uma pequena cidade entre Gouda e Utrecht; foi em Goa que Jan Huigen acrescentou 20 seu nome o “van Linschoten”, possivelmente para ganhar mais prestigio entre os portugueses. Hé tradugio para o portugues desta obra: LINSCHOTEN, Jan Huigen ven. Itinerario, Viagem ou Navegosdo de Jon Huygen ‘van Linschaten para as fndias Orentais ou Portuguesas. Lisboa: Comiss4o Nacional para as Comemoragties dos Descobrimentos Portugueses, 1997. Edi¢éo e notas por Arie Pose Rui Manuel Loureiro, 9. As cartas devem ter sido desenhadas no entio importante centro cartografico de Edam, onde trabaths. vam excelentes cartografos como Cornelius Doedsz, Jan Dircksz, Evert Gijsbertsz e os irmics Martem e Harmen Janse. (Cf. catdlogo da exposigdo realizada no Zuiderzeemuseum, op. cit. p. 47-72. (artigo de G. Schilder De Noordhllandse Cartografenschool). As cartas néuticas que o navio te Lesde levava, em sua viagam de 1600, foram descabertas por Charles Boxer na Biblioteca do Museu Imperial de Téquio, 10. VERHAEL vande. Reyse by de Hollandtsche Schepen gedaen naer Oost Indien ete. Midelburgo: Barent angenes (e4.), 1597 11. GUEDES, Max Justo. Um roteiro apécrifo do Estreito de Magalhies - tentativa de identificacéo de ‘autoria, Lisboa: Junta de Investigacbes do Ultramar: Coimbra: Agrupamento de Estudos de Cartografia Antiga, 1970. Separata XLII. 12, BESCHRYVINGHE vande voyagie om dem geheelen Werelt Cloot, ghedaen door Otivier ven Noort van Vtreckt ete. Amsterdam: Cornet Claesz (1601? 13, TIELE,P. A. Mémoire bibliographique sur les jourmaux des navigeteurs néerlandais ete. Amsterdam: N. Israel, 1969. p. 167-70. (1*ed., 1867.) 114, SCHILOER, Ginter. Orgazization and evolution of the Dutch East Indian Company's Hydrographic Office in the Seventeenth Century. Imago Mundi (n° 28, 1976). Inglaterra, 1976. 15, DURAO, Ant6nio. Cercos de Mogambique defendidos por Don Estevan de Atayde etc. Madri: Viuva de ‘Alonso Martin, 1633. (Reed. “conforme a edigao original”, Lourenco Marques: Minerva Central Ed., 1952). 16. Id. Verroeff& chamado "Pedro Bleus” e o vice-almirante Frans Witter, de “Vistamaral”, 17. GUEDES, Max Justo. As guerras holandesas no mat... Op cit. p. 30-31. 18, LAET, Joannes de, Historie ofteIaetliick Verhael Van de Verrichtinghen der Geactroyeerd West-Indische Compagnie. Leiden: Bonaventuer Abrahan Elsevier, 1644. Essa obra fol traduzida por José Hygino Duarte Pereira e Pedro Souto Mator e publicada em diferentes rimeros dos Anais do Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro), 2 partir do volume 30 (1908). Lact (1582- 1649), calvinista antuerpiano emigrado para a Holanda, foi geégrafo ilustre e diretor de West-Indische Compagnie (WI.C.); podendo examinar a documentacao da mesma, sua obra tem grande fidedignidade. 19. Td, p. 2-6 20, GUEDES, Max Justo. As querras holandesas no mar... Op. cit. p. 26-7. Max Justo Guedes 24. Td. p36. 22. Obviamente, Ortelius pode apoiar-se em colegdes de catas formadas anteriormente, como as.de Sebastian Caboto (1544), Kaspar Vopel(Vopelivs, 1545), Michael Tramezini (1554), Giovanni Andreas di Vavassore (1558) e Giacomo Gastaldi (1562). Se o primeiro deles velejou boa parte da costa brasileira, os demas, obtiveram informagées de cartigrafos portugueses. 23. A parte brasileira foi traduzida pelo embaixador Joaquim Sousa Lede e publicada na Revista. do Instituto Histérico © Googréfico Brasileiro, v. 269, p. 3-84, out./de2. 1965. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1966, Existe separata. 24, Hata, ex-officina Henr : Hondii, cum-privill: 1625. (€ tradugéo do flamengo, por A.G.S) 25 GUEDES, Max Justo, As gueras holandeses no mas. Op. cit. ps 51-80. ‘A vibra hispanico-brasiteia foi muito celebrada no mundo hispinico, sendo mesmo objeto da comédia El Brasit resttvido, de Lope de Vega, a mais brithante pena espanhola da época, o fen dos engenhos. 26. LAET, Joannes de. Niewe Werelatofte Beschrijvinghe van West-Indien. Leiden, Elzeviers, 1625 (2* e ampliada, 1630). 27. Cf. as Fontes citadas em GUEDES, Max Justo. AS querias holandesas no mara. Op. cit: p. 81-88, notadamente 0 relato do assalto feito por Hessel Gerrtsz, publicado em Amsterdé e traduzido por Joaquim de Sousa Ledo. CF. LEAO, Joaquim de Sousa, Salvador da Bahia de Todos os Santos, iconografia setscentsta.desconhecida, Rio de Janeiro: Livraria Kosmos, 1947. 28, GUEDES, Max Justo. As guertas holandesas no mar. Op. ct. p. 101-11 29, MELLO, Jose Antonio Gonsalves de. A cortagrafia holandesa do Recife: Estudo dos principas mapas da Cidade, do periodo 1631-1648, Recife: PHNG/2, 1976. p. 10. 30. Id. p. 9-36, 31, MELLO, Evaldo Cabral de Olinda restourada: Guera e agiear no Nordeste, 1630-1654. Rio de Janeiro e ‘So Paulo: Ed, Forense/Universidade de S80 Paulo, 1975. p. 35. 22. Dela existem copias na Biblioteca da Universidade de Leiden e na Fundacéo Atlas van Stolk: duas Aécadas depois, publicou-a COMMELYN, Isaac Histoire de la vie & actes memorables de Frederic Honry do Nossau Prince d’Orange, Amsterds: Viva e Herdeitos de Jodocus Hondius, 1656. 33, Cf. MELLO, José Antonio Gonsalves de. A cartografia holandesa do Recife... Op. ct. p. 28-31. Esta ‘obra apresenta excelentes dados sobre a biografia sobre Goliath e sua obra cartogrfica, 36, WIEDER, F.C. (ed.). Nonumenta cartographica: Reproductions of unique and rare maps, plans and views in the actual size of the originals; accompanied by cartographical monographs, Hala: Martinus Nifoff, 1925. v. 1, p. 8: ¥. 6. Também José Antonio Gonsalves de Mello, op. cit. na nata 28), p. 20.€ ‘otas,euida do assunto, apoiando-se parcialmente em Wider 87 A presenca holandesa no Brasil: meméria e imaginario 88 435. Editado em Amsterda, 1647, por Joan Blaeu, folio (45,0 x 38,5 cm). Trata-se do mais belo livro do sécuto XVII sobre o Brasil, neleestando inclufdos 24 mapas em pagina dupla sobre o nosso pals, mais um mapa do Chile © 31 pranchas de autoria de Frans Post representando batathas naveis, topogratia do Brasil, Recife e So Paulo de Loands. Foi primelramente traduzido para o portugués e anotado por Cléudio Brando, BRANDAO, Claudio, (trad. e anot.) Histéra dos feitos recentemente praticados durante ito anos no Brasil e noutras porte sob 0 governo do iustrssimo Jodo Meurtcio Conde de Nessou etc. Rio de Janeiro: Servigo Grifico do Ministério da Educacio, 1940. Infelizmente, esta tradugio néo incluiu os mapas € as gravuras da edigdo original. 36. 0 mapa mural de Maregraf foi reeditado também em Amsterd (1659), por Hugo Allard e, novamente, por Clemendt de Jonghe, em 1664. Poucos slo os exemplares hoje conhecidos do mesmo, sendo 0 ‘oferecido por Nassau ao Principe Frederich Wilhelm de Brandenburgo talvez 0 mais importante. Para uma noticia biogrsfica de Marcgraf cf. BOXER, Charles R. The Dutch in Brazil 1624-1656. Oxford: Clarendon Press, 1957. p. 260-61. “Brasiliano”, “tupinamba”, “tupi”- "tapuya”, “tarairiu a questao dos titulos dos retratos de Albert Eckhout e de Zacharias Wagener (1641/1643) Ingrid Schwamborn Nascida em Berlim, Alemanha, & Doutora em letras com tese sobre os romances indianistas de José de Alencar. Lecionou inglés, francés e alemao em colégios regulares e também na Universidade Federal do Ceara, na PUC-Rio e na Universidade de Colonia. Ensafsta, € autora de indimeros livros sobre historia e cultura brsileiras. 89 AA presenga hotandesa no Brasil: meméria e imaginério 90 resumo / abstract No Thier Buch de Zacharias Wagener (1641, Dresden, Alemanha) encontram-se desenhos das mesmas & figuras humanas de Recife que foram pintadas por Albert Eckhout, com fundo e alguns adornes adiciona (Eamond/Mason), Eckhout pode ter pintado os grandes quadros brasileiros entre 1645 e 1653 em Amersfoort, depots de voltar do Brasit, com Nassau, Por isso, restam poucas dividas de que Eckhout copiou € embelezou (com alguns erros) 05 & ‘modelos de Zacharias Wagener. Os quatros (20 todo 24) de Eckhout foram redescobertos em 1938, em Copenhague (Thomsen) e apresentados em exposicées desde 1953 (Haia, Copenhague, Breil, . Conforme as éltimas pesquisas ‘Alemanha). A cada um de seus desenhos coloridos de pessoas Wagener acrescentou uma explicago em alemdo ¢ um titulo em portugues: «Omem Brasilianon, «Mother Br «Mother Tapuyan, etc. (cf. Dante Teixeira, 1997). 0s quadros de Eckhout foram expostos no Brasil, 2002/2003, e em Haia, 2004, com os titulos aHiomem Tupi», eMulher Tupi», etc. seguindo os outros termos dados por Wagener. 0 artigo analisa 6s titulos dos respectivos quadros de Albert Eckhout efietindo sobre o uso das palavras durante 0s quatro séculos que eles sobrevireram. A mudanca do conceito «brasitano» para «tupi» esté que termina com uma proposta de aqui substituir 0 termo {nadequado “twpi” por “potiguara’ nay, «Omem Tapuyar, ssendo reconstruida neste ensai In the Thier Buch by Zacharias Wagener (1641, Dresden, Germany) one finds drawings of the some 8 ‘human figures from Recife that were painted by Albert Eckhout, a background and some additional decorations. According to recent studies (Egmond/ Mason), Eckhout could have painted the large Brozition paintings between 1665 and 1653 in Amersfoort, after returning from Brazil with Nassau. Becouse of this there remains little doubt that Eckhout copied ond beautified (with mistakes) the 8 models: of Zacharias Wagener. The paintings (all 24) by Eckhout were rediscovered in 1938, in Copenhague (Thomsen) ond presented in exhibition since 1953 (Haia, Copenhague, Brozil, Germany). For each of this colorful drawings of people Wogenar added an explanation in German ond a title in Portuguese: «Omem Brasitiano», «Mother Brasiliana», «Omem Tapuya», «Mother Topuyan etc. (cf. Dante Teixeira, 1997). Eckhout's paintings were shown in Brazit in 2002/2003, in Haia in 2004 under the titles « Homem Tupi », « Muther Tupi », etc. following the other terms _given by Wagener. The orticle anatizes the titles of the respective paintings by Albert Eckhout, reflecting about the use of the words during the four centuries of their existance. The changes in the concept « brasitiano » to « tupi » is reconstructed in this ‘essay, which finishes with a proposal to substitute the inodequet term “tupi” with “potiguara’. Ingrid Schwamborn ‘Muitos ainda pensom que todos os indios do Brasil folam a Lingua Tupi. £ um dos esterestipos, arroigados e completo- mente infundados. (FUNAL, A verdade sobre 0 indio Brasi- leiro, Rio de Janeiro: Guavira Editores, 1981: 22) 1. 0 Manifesto Antropéfago Em seu Manifesto Antropéfago de 1928, Oswald de Andrade (1890-1954) levanta esta jupi or not tupi?” (Andrade, 1928/1972: vol. 6, 13). Nao se lembrou de que os assim chamados “tupis” jé nao eram mais considerados “antropofagos", E possivel que Andrade esteja fazendo alusdo ao romance de Lima Barreto, 0 triste fim de Policarpo Quaresma, onde o herdi, entre outras coisas, busca desesperadamente a “lingua divertida pergunta: nacional do Brasil”, que na sua opiniao nao pode ser outra senao o “tupi” ou “tupi-guarani” (Barreto: 1915/1997: 59-60) Isto foi em 1915. Parece que por essa época a idéia de uma lingua “tupi", e por conseguinte também de uma na¢ao “tupi”, havia ganho terreno entre os intelectuais brasileiros do Rio de Janeiro e de Sao Paulo, e contra isto Lima Barreto (1881- 1922) e Andrade tém manifestamente suas objecdes. Porém a partir de 1933, desde que na recém-fundada Universidade de Sao Paulo foi criada uma cadeira de “tupi’, o conceito “tupi” parece ter passado definitivamente a fazer parte do “conhecimento geral” dos brasileiros. Plinio Ayrosa, o detentor da cadeira,? cuidou com suas publicagdes que isto viesse a acontecer = por exempto quando, na publicagao de antigos manuscrito ele, como Varnhagen o fez com “quarani”, substitui a palavra “tingua brasilica” por “tupi”: Vocabulério na Lingua Brasilice. Manuscrito Portugués-Tupi do século XVIZ. Coordenado e prefa- ciado por Plinio Ayrosa. Vol. XX, Cole¢ao Departamento de Cultura, Sao Paulo, 1938. 2. A chegada de Nassau a Recife, 1637 Quando em janeiro de 1637 Jo3o Mauricio de Nassau-Siegen (1604-1679, lema: QUA PATET ORBIS [Até onde alcancar o mundo]) aportou em Recife, trazendo em sua companhia 91 [A presenca holandesa no Brasil: meméria e imaginario soldados, pintores e arquitetos, e também o irmdo mais novo Emst e seu primeiro médico particular Willem Milaenen (que iriam morrer pouco tempo mais tarde), ninguém ali conhecia a palavra “tupi”. Eles foram recebidos por portugueses, espanhois, holandeses e soldados de otras nagdes européias, ¢ ainda por escravos negros ¢ indios, Em seus relatos os indios eram chamados de “brasilianen” ou, em tatim, "brasilienses”, e de “tapuyer”, em latim e portugués “tapuias”. “Brazitianen” (cf. Carta de Martin Beck, em Krommen, 1997: 158) eram os fndios ja “domesticados” e que haviam aceito a forma de vida da Europa, com vestimenta, sem caniba- lismo, e a religido catélica, ao passo que os indios selvagens, que viviam nus e comeram carne humana, eram chamados pelos “belgas” de “tapuyers”. A primeira destas denominacdes provi- nha com certeza dos portugueses e moradores, a segunda provavelmente dos indios domesti- cados, que chamavam seus inimigos de “tapuya”, mas que, como seus vizinhos “tapuias”, os consideravam também como “torairius” (Laet, 1644/1925: 461). Seu chefe, na fonética ho- landesa “Jan de Wy”, e na dos portugueses “Jandovi", “Jandavi” ou “Nhandui", era amigo de Joao Mauricio de Nassau e dos holandeses, e lutou ao lado deles contra os portugueses “odiados” por eles, como diz Gaspar Barleus na sua Histéria (Barleus, 260), os quais, por sua ver, eram apoiados pelos “brazitianen” ou “brasilianen”. Por “portugueses” entendia-se em 1637 em Recife apenas aqueles que haviam vindo de Portugal, enquanto que os descendentes dos primeiros colonizadores e dos que haviam chegado mais tarde e seus filhos nascidos no Brasil, até a independéncia do Brasil em 1822, eram chamados de “moradores’. 0 portugués Francisco de Brito Freyre (1625-1692), almirante da frota da “Companhia de Comércio do Brasil” em 1653, que participou também em terra das lutas finais contra os holandeses e foi © governador de Recife depois da safda dos holandeses (1661-1664), 6 2 mais importante testemunha politica portuguesa desta época. Ele escreveu um "Contra-Barleus” (“QUA NON PATET ORBIS") contando a histéria do ponto de vista dos portugueses, ele faz clara distingdo entre “portugueses” e “moradores” (Freire 1675/2001: 125, 126). Hoje, quando se descreve o perfodo holandés no Brasil (1630-1654), geralmente fala-se de “Luso-brasileiros” (cf. Silva, 2002, Brunn, 2004: 30), mas “brasileiros”, até a independén- cia do Brasil, eram somente os indios domesticados, cuja lingua os portugueses, e sobretudo 92 Ingrid Schwamborn 0s padres da Companhia de Jesus, haviam comecado a aprender e a registrar por escrito em vocabularios e “gramaticas”, como os dos Padres José Anchieta e Luiz Figueira (cf. Bibliogra- fia). 3, Frans Post 0 “militar” Joao Mauricio de Nassau, aos 32 anos de idade, estava decidido nao apenas a fazer de sua atividade de governador geral do “Brasil Holandés”, inicialmente restrita a cinco anos, um éxito militar e econdmico, mas também a transforma-la em uma expedigao de pesquisa, mais tarde acrescentando ainda um insuperdvel, mas parcialmente esquecido, ar- quivo de arte. Frans Post (1612-1680) foi contratado como pintor de paisagens, com a tarefa de representar em quadros as terras e as cidades conquistadas, com 0 fim de fazé-las acessiveis a0 imaginario dos holandeses, alemaes e outros europeus. Desincumbiu-se ele desta tarefa como 0 conseguiria fazer um pintor do “periodo 4ureo” holandés, meados do século 17 (cf. 0 catilogo Das goldene Zeitalter [A era urea], 2000, que contém um retrato de Frans Post, n°. 89): ao estilo da época, mas nao obstante de uma maneira pessoal e inconfundivel, pela escolha dos motivos, por exemplo a vista para a “Ilha de Itamaraca” (Mauritshuis), 0 “Forte Frederik Hendrik,” € um engenho de acicar com a Casa Grande e a capela (Recife), ou as ‘incompardveis gravuras para ilustrar o livro de Gaspar Barleus, que apresentava a historia dos ito anos de Nassau no Brasil, 0 grande “Barleus” (46 x 29 cm), 1647, um dos matores e mais belos tivros do século 17. Deste livro apareceu em 1659 em Cleve uma “edigao de bolso” em alemio; e em 1660, também em Cleve, uma edicSo em latim, ligeiramente abreviada, mas aumentada por “four more treatises by Piso”, e igualmente em formato pequeno, o “little Barleu” (15 x 9 cm, Moraes, I, 79), ndo sem razio em Cleve, a cidade préxima a fronteira com as Provincias Unidas, a “Holanda”, porque desde 1647 Nassau era 0 governador (al. Statthalter) dos conda- dos de Kleve, Mark, Ravensberg e Minden, nomeado pelo Principe Eleitor de Brandemburgo, Frederico Guitherme J., 0 “dono” prussiano destas terras naquela época. De cada um destes 93 ‘A presenca hotandesa no Brasil: meméria e imagindrio livros existe um exemplar no Instituto Ricardo Brennand, em Recife, que dispde também de 15 quadros de Frans Post. Mas a maioria de seus quadros a 6leo conhecidos hoje s6 foram pintados por Post depois que ele voltou para a Holanda com Jogo Mauricio de Nassau, em 1644. (Seu irmao mais vetho, 0 pintor e arquiteto Pieter Post, voltou j4 em 1639 para a Holanda, para, junto com 0 Vizinho e amigo muito culto de Nassau, Constantijn Huygens, cuidar da construgao do palace- te em estilo neo-classico italiano do Conde Mauricio de Nassau no centro de Haia, perto do centro do poder, a famosa Mauritshuis, chamada pelas més Iinguas daquele tempo de “maison du sucre”, (casa [pago pelo] agicar.). Bia e Pedro Corréa do Lago identificam quatro fases na criagdo artistica de Frans Post, como explicam no prefacio ao catélogo da exposicgo no Instituto Ricardo Brennand em Reci- fe, Frans Post e o Brasil Holandés (2003-2004) (Frans Post, 2003: 14-21). Ai pode-se ver que até o fim da vida, e mesmo sucumbindo ainde 20 vicio do alcool, Frans Post - com excecdo de uma ou outra vista de Paris, p. ex. Le Pont Neuf, e da Inglaterra, do Castelo de Windsor (cf. Larsen, 1962: 51, 52) - no pintou mais outra coisa a nao ser paisagens brasileiras. Ao que tudo indica, ele o fez como pintor independente, depois de voltar do Brasil, s6 ocasionalmen- te trabalhando a servigo de Mauricio de Nassau. Era casado, ndo ficou rico com sua pintura, mas também no so conhecidas transagdes negativas ou dividas de sua parte. Larsen tam- bém nada menciona de um “problema alcodlico” de Frans Post (Larsen, 1962: 60). 4, Georg Markgraf e Albert Eckhout Em uma lista dos “comensais” do conde, de 1643, fica-se sabendo onde sentavam-se os hospedes: quanto mais alto o posto, tanto mais perto do conde. Assim, 0 médico Dr. Willem Piso tinha assento mats perto dele, no lugar de némero 7, enquanto os dois pintores Albert Eckhout (~1610-1666) e Frans Post, juntamente com seus “Jongen”, provavelmente pagens, ocupavam os lugares 15 e 16, antes ainda de Georg Markgraf, que ocupava o lugar de niimero 17. (Esta lista encontra-se no Arquivo da Casa Real em Haia, cf. Mason, 2004: 117-118; Thomsen, 1938: 46). 94 Ingrid Schwamborn Georg Markgraf (1610-1643), filho de um mestre-escola de Liebstaed, na Sax6nia, Ale- manha, um estudante inquieto e que experimentara diversas disciplinas em Rostock e Leiden, veio inicialmente como assistente do segundo médico holandés, Willem Piso (1611-1678, cujo pai era o alemao Hermann Pies, de Cleve, misico da igraja, cf. Oberacker, 1968: 104), Mais tarde, porém Markgraf tornou-se independente do médico, constando na telagdo como “cartégrafo". Sao dele as primeiras e belissimas cartas geogréficas exatas de Pernambuco, ilustradas por Frans Post com animais tipicos, por exemplo, uma capivara ou sucuarana, e com ccenas de um engenho de agiicar junto com um carro de boi. Estas ilustragdes podem ser encontradas no grande “Barleus” (antes de ao longo dos séculos chegarem ao mercado de arte como gravuras independentes). Marcgraf desapareceu em 1643 na conquista da possessio portuguesa de Angola pelo exército de Jodo Mauricio de Nassau. Mas seus apontamentos de cigncias da natureza, que por medo de roubo (por parte de Piso?) ele havia deixado cifrados, foram em 1648 editados por Laet no segundo livro que Nassau mandou publicar ap6s sua permanéncia no Brasil, Historia Noturalis Brasitiae. Na primeira parte do livro Piso trata das doengas tropicais e dos respectivos métodos de cura, e na segunda parte Markgraf descreve a flora e a fauna, sendo comum nesta dltima estarem inclufdos também os indios. Quem seja 0 autor dos inigualaveis desenhos de plantas e animais na Historia Naturalis Brasitie, no & possivel se estabalecer hoje com seguranca. Por muito tempo admitiu-se que eles seriam Provenientes de Markgraf, mas hoje tende-se mais a atribuir a maioria deles a Albert Eckhout. Na descrigao dos “brasilienses” e dos “tapuyas” séo apresentadas figuras que se parecem com miniaturas dos grandes quadros de indios de Eckhout (Historia, 1648: 270, 280). Também Eckhout, enquanto se tem conhecimento, no voltou a pintar em sua vida relativamente breve sendo motivos brasileiros, se bem que na corte de Dresden, capital da Saxénia, Alemanha, de 1653 até 1663, j4 no mais com tanta arte como em Amersfoort, sob 0 othar exigente de Mauricio de Nasseu e a criatividade do amigo deste, o pintor e arquiteto Jacob van Campen (1595-1657), & o que se pode ver nas reproducdes dos quadros atribuidos a Eckhout em Dresden, Alemanha (Thomsen, 1938: 121, 122). 95 A presenca holandesa no Brasil: meméria e im: 96 5. Zacharias Wagener e seu Thier Buch de 1641 Mas existe um livro em que estas figuras de indios podem ser vistas mais ou menos nas mesmas dimensdes que na Historia Naturalis Brasiliae, e que - se observadas com mais aten- Thier Buch de ‘do - devem ter certamente constituido 0 modelo para aquelas ilustrago« Zacharias Wagener? Quem era este Zacharias Wagener? Era alguém téo jovem quanto os integrantes da ‘equipe reunida por Nassau. Wagener nasceu em 1614 em Dresden, na Saxénia, filho de um pastor protestante e juiz, quer dizer, de uma familia burguesa e intelectual. Sentira o chama- do de conhecer o mundo, indo primeiramente trabalhar por um ano em Amsterdam, na livraria do famoso Joan Blaeu, onde também tomou parte na confecgio de mapas (tendo mais tarde dado boas dicas a Markgraf2). Em sequida, aos vinte anos de idade, engajou-se em 1634 na WIC (West Indian Company - Companhia das indias Ocidentais), como simples soldado raso. ‘Ao chegar a Recife, Jodo Mauricio de Nassau com certeza logo veio a conhecer o jovem alemao, seu compatricta, que ja havia adquirido familiaridade com a regio e 0 povo: j falava portugués e tinha contato com os indios mansos. 0 Conde empregou-o como “escritu- rario de cozinha" (al. Kichenschreiber/ despenseiro, Teixeira, 1997: 11), um posto de signifi- ado hoje ndo muito definido. Talvez fosse encarregado de prover a cozinha com mercadorias cuidar da respectiva contabilidade, o que constituia um cargo de bastante responsabilidade, nao sendo certamente um posto sempre facil? Era um rapaz bastante talentoso, ao que tudo indica: sabia escrever, pintar e explicar muito bem. De inicio talvez apenas soubesse escrever bem e corretamente. Tinha uma bela caligrafia, em alemao e em portugués, que eram duas escritas diferentes, s6 passando a ‘ocupar-se também como “documentarista” e desenhista inspirado pelo intenso ambiente ar- tistico da “corte” (Sybille Pfaff afirma que o pai de Wagner tinha como primeira profissio a pintura, 2001: 17). 0 jovem Zacharias Wagener organizou um livro de desenhos coloridos a -aquarela, por ele denominado de “Thier Buch” (Livro de animais). Classificou af os animais de acordo com certos critérios, como havia aprendido “na escola” ou na “igreja’, ou como veio 2 aprender mais tarde, provavelmente discutindo e eventualmente trocando idéias com Markaraf € Piso, os “cientistas” da “corte”: Ingrid Schwamborn Thier Buch/ darinnen/ viel unterschieden Arten der Fisch, Vogel, vierfUssigen Thiere Gewilrm, Erd und Baumfriichte f...] : LIVRO DOS ANIMAIS No qual ha varios diferentes tipos de peixes, aves, quadripedes, vermes, frutos da terra e de arvores, como se pode ver e encontrar pelos dominios da Companhia das Indias Ocidentais no Brasil e que sao todos exéticos e desconhecidos nas terras da ‘Alemanha. Foram figurados de forma exata em suas cores naturais, junto com seus réprios nomes e seguidos de uma foma exata em suas cores naturals, junto com seus prOprios nomes e seguidos de uma breve descricao. Todos foram obviamente desenhados por mim mesmo para agradar e obsequiar as rmentes inquisitivas no BRASI Sob o honorsvel governo do muito honrado Mestre e Senhor Jodo Mauricio, Conde de Nassau ‘etc, Capito Governador e Almirante Gerat por Zacharias Wagener de Dresden (Wagener, em Teixeira, 24). Depois de representar as plantas, frutas e os animais, Wagener apresentou os habi- tantes nio-europeus do Brasil, ou melhor, de Pernambuco, da maneira que de acordo com suas observagées era caracteristica. Depois ele mostra a residéncia do Conde, e cenas da vida da cidade e do campo. Criou assim a primeira e por muito tempo dnica representaao de um mercado de escravos, e ainda de uma danga dos negros e ~ particularmente impor- tante - de uma danga dos tapuias, que Wagener deve haver observado pessoalmente, por ser tao “realista”. s desenhos coloridos deixam uma impressao de um retratista ingénuo, porém espon- taneo e auténtico, como a cena de uma senhora branca sendo carregada em uma rede, que serve de liteira, por dois rapazes negros bem nutridos, provavelmente a primeira represen- tacdo desta forma de transporte nos tropicos. (Este motivo vai reaparecer em dois dos 8 gobelins). Como Wagener desde o inicio conseguiu organizar este livrinho segundo um sistema préestabelecido, & um dos muitos mistérios deixados pelos artistas em torno de Mauricio de Nassau. 97 A presenca holandesa no Brasil: meméria e imaginario Uma particularidade pouco usual nestes desenhos coloridos a aquarela: Todos eles s30 acompanhados por comentérios em alemdo, ora sucintos ora mais extensos. E comentarios originais, pois freqientes vezes os comentarios s4o muito pessoais. E na maioria dos dese- nnhos de plantas, frutas, animais e homens e mulheres Wagener colocou um “titulo” em portu- gués, e para os animais e plantas também o nome “indigenc”. Nas descrigdes em aleméo ele emprega palavras que surpreendem por sua durabilidade ou vida longa, como a estranha palavra “Meerschweinlein” (hoje “Meerschweinchen” (porquinho-da-india), n°. 79. Outras tra- zem consigo o charme da distancia historica, como "Schweinfisch” [peixe-porco) ou “Katzenfisch” [peixe-gato], e ainda "Meerktitzgen” [“gatinho-do-mar", quer dizer “Lula”, hoje em alemao Tintenfisch=peixe de tinta,] n°. 21, (porém, no Libri Principis, II, 19, com este nome, escrito em letras do proprio Mauricio de Nassau, se encontra "Das ist ein Mehrkatz”, ainda conhecido no alemao de hoje, como “macaquinho”, 0 sagii), ou “Mehmpferd”, hoje “Seepferdchen” (cavalo marinho), n°, 22 (e Teixeira, 209, 210). Uma vez Wagener confunde as denominacdes em portugués, p. ex., ele troca “garca” (“Rayer”, hoje Reiher) por uma ave vermelha e preta (n. 40 ¢ 41). Isto demonstra que o livro foi organizado por ele mesmo e s6. As vezes ele até fica em davida, ou indeciso, sem saber se esta tudo certo: Certa vez, trouxeram-me para desenhar um belo casco deste sapo [al. Schildkrote], mas nunca pude saber como eram a cabeca e os pés. (Wagener, em Teixeira, 130, n°. 72). (No original: Es ist mir einmal ein schéner Schild von einer Krite zu zeichnen gebracht worden, habe aber niemals vernehmen konnen, wie der Kopf und die FiiRe ausgesehen haben (cf. Pfaff, 2001, IT, 34). Na introdugdo ele se desculpa por nao ser nenhum entendido, néo ser cientista nem pintor profissional, mas haver pintado todas estas curiosidades unicamente a partir do que foi observado por ele proprio, p. ex. depois de comecar de retratar um carangeijo Wagener escreve: ‘0 caranguejo que eu tina comecado a desenhar exalava tanto mau cheiro, que preci- sei jogé-lo fora, deixando a figura incompleta. (Wagener, em Teixeira, 60, e figura n® 27. (no original: Der Krebs, nach welchen ich solches habe angefangen zu zeichnen, hat so gestunken, da ich ihn hab mlissen wegschmeifien, und diesen (...? un?) fertigen laBen (cf. Pfaff, 2001, II, 34). 98 Ingrid Schwamborn Wagener diz, que as vezes os nativos traziam-lhe as coisas e os bichos e ele os dese- nhava de acordo com sua aparéncia, (cf. n°. 72, a casca de uma tartaruga, al. Schildkréte) que portanto eles nada tinham de “seres fabulosos”. Na Holanda, ele préprio tinha lido muitas descricées, mas sem haver encontrado indicacées claras e corretas das figuras ("Beschveibungen viel gelesen, niemals aber rechte und klare Anzeigungen der Figuren dabei befunden’) Por isso, ele teria acrescentado aos desenhos uma [..] descricéo curta, embora fidedigna, a fim de mostrar algo novo e digno de admi- ragdo aos meus patricies (Wagener, em Teixeira, 26). No original: “eine kurze doch slaubwirdige Beschreibung (...], dammit ich mefnen Landsleuten [...} auch etwas Verwunderliches aufzuweisen hatte, Pfaff, 2001, I, : 29). Esta era a razao para Wagener compor um livro com animais, plantas, frutas e homens. E para os criticos ele avisa Se alguém, voltando para este modesto trabalho seu espirito critica e talento de artista, achar que isso ou aquilo esta muito grande ou pequeno, comprido ou largo demais, ou que de modo geral néo foi feito segundo a arte da pintura, saiba esse alguém que para ele esté aberto o caminho que percorti, muitas vezes com perigo de vida, ¢ que, como eu jé 0 desbravei, cabe-the agora percorté-lo de novo a fim de, com sua maior capacidade, realizar trabalho mais perfeito. (Wagener, em Teixeira, 26). Com base em algumas observagies fica-se sabendo que alguns comentarios 6 foram acrescentados durante a longa viagem de volta, que comecou em 1° de abril de 1641 a bordo do navio “Grande Tigre”, como lembra o editor brasileiro, 0 professor de zoologia, Dante Martins Teixeira (Prefacio, 15). Pois Wagener foi o primeiro dos pintores, e 0 dnico “independente”, a retornar & Europa, em abril de 1641. Como ele escreve em sua “Autobiografia”, cujo original desapare- eu, e da qual apenas existe um resumo, ele fora encarregado de entregar alguns objetos e cartas na Holanda, era de certa forma 0 mensageiro do Conde de Nassau. Chegou a 17 de junho de 1641 na itha de Texel e permaneceu na Holanda até 14 de agosto, desincumbindo-se 99 A presenga holandesa no Brasit: meméria ¢ imaging de suas tarefas. Com esta finalidade, viajou primeiramente para Amsterdam, depois, passando por Haartem (a cidade natal de Frans Post), para Haia, Delft, Rotterdam e Leiden Para entregar aquilo que me fora confiado pelo Senhor Conde: cartas, desenhos & papagaios” (Wagener, em Teixeira, 222), no original: “umb in gesagten Staten dasjenige zu Uberantworten, was mir vom Hermn Graffen war mitgegeben worden, welches in Schreiben, Mahlereien und Papegoyen bestunde (citacio segundo Pfaff, 32). Em 14 de agosto de 1641, passando por Hamburgo e Leipzig, ele seguiu viagem para Dresden, onde chegou somente no dia 12 de outubro. Nao permaneceu mais do que quatro meses com os pais e as irmas, Em 10 de fevereiro de 1642 embarcou novamente no Rio Elba com destino a Amsterda, onde mais uma vez se engajou, agora na Companhia das Indias Orientais, Ai ele fez carreira, chegando por algum tempo a ser governador da Cidade do Cabo e vice-almirante da frota com a qual regressou a Amsterdam em julho de 1668, vindo a falecer ai mesmo em 1° de outubro de 1668, vitimado por uma doenga. Foi sepultado na Oude Kerk em ‘Amsterdam em 6 de outubro de 1668, ao lado dos dignatérios da Companhia das indias Orientais. Portanto nunca mais voltou a ver a sua cidade natal de Dresden nem a famflia. Mas sua “Autobiografia”, e a fama, sobreviveram em Dresden, gracas ao empenho de seu cunhado Christian Bothe. Wagener levara uma vida fora do comum (pela qual logo mais os ingleses vieram a interessar-se, cf. Churchill Collection, 1734), mas como correto subalterno teria permanecido sempre em segundo plano, diz Sybille Pfaff, que, no primeiro volume do seu estudo pioneiro ocupou-se mais com a carreira asidtica de Wagener (Pfafi, 2001), e descobriu que ~ como Eckhout - ele, no estrangeito, nao escrevia sempre da mesma forma o préprio nome @ por isso as vezes era dificil identificd-to.% 0 segundo volume do estudo de Sybille Pfaff, agora de nome Sybille Henfling-Pfaff, em CD-Rom, com muitas fotos, inteiramente dedicado ao “Thier Buch” e a relagao com os seguidores de Wagener, com as pinturas de Eckhout e dos Libri Picturati. Titulo: Zacharias Wagener, Band I, Das “Thier Buch’. (2001, edicao de Sybille Henfling-Pfaff). ‘Nao esté bem claro o que aconteceu com o extraordinario “Thier Buch” enquanto Zacharias Wagener esteve distante de Dresden. Em seu testamento de 1668, publicado pela primeira vez 100 Ingrid Schwamborn Por Sybille Pfaff, Wagener o deixa em legado ao seu cunhado Christian Bothe (Pfaff, 201). ‘Anos mais tarde, 0 livro foi copiado por Jacob Wilhelm Griebe em seu Naturalienbuch, 1680- 1708, que se encontra na Biblioteca Estadual da Saxénia (Teixeira, 19, 20, Henfling-Pfaff, vol. II, 12). 0 Thier Buch s6 volta a entrar novamente em cena em 1738, na primeira lista do inventério do “Kupferstichkabinett” (“Gabinete de gravuras em cobre”) do Principe Eleitor da Saxénia. Segundo Dante Martins Tei , 0 livro estava muito gasto, foi reorganizado e apa- rado, as paginas com as figuras humanas de Recife, que haviam sido mais intensamente manipuladas, foram reforcadas com papelio (Teixeira, 14-15). 6. Onde foram feitos os retratos, no Recife ou em Amersfoort? E 0 que foi pintado por Albert Eckhout em Recife, e depois? De Frans Post nés dispo- mos de quadros assinados e de um retrato pintado por Frans Hals, de Wagener temos a autobiografia e o incontestavel Thier Buch. Mas de Eckhout sabe-se muito pouco, e 0 que se julgava saber com certeza, isto &, a datagao dos grandes retratos e a autoria da “Danca dos Tapuias”, passou a ser muito duvidoso depois do artigo de Florike Egmond e Peter Mason para 0 catalogo da exposicdo, Albert E(e)ckhout, court painter, Haia 2004. Egmont e Mason mostram que 2 assinatura nos quadros ndo concorda com as assinaturas encontradas nos arquivos holandeses. Eles acham que a datacao é posterior, e que nao provém de Eckhout, mas talvez do pintor hamburgués Lazarus Baratta, que em 1656 recebeu um pagamento de 146 taleres pela “restauragio” destas pinturas, antes de as mesmas serem levadas para 2 “Kunstkammer”, a Camera de Arte do Rei da Dinamarca. Egmont/Mason consideram a “assi- natura” como uma mera “sinalizago” dos quadros, com o fim de poderem ser organizados administrativamente (Egmond/Mason, 2004: 124, nota 75, p. 152). Entdo surge uma per- gunta: Por que a “Danca dos Topuyos”, artisticamente perfeita, mas um tanto surrealista, ¢ as 12 naturezas-mortas, muito “vivas” no seu realismo de formas e cores, ndo foram assina- das? Talvez por ndo ter sido preciso “restauré-Las”? Se for este 0 caso, deve-se dizer que também a datacao dos 7 retratos é “arbitraria’, Ak ckhout fecit 1641 Brasil (6 vezes), ou AEckhout fecit 1663 Brasil ("Homem Tupi"), com 0 acréscimo de um “in” antes de “Brasil” (escrito sobre uma raiz de mandioca aberta, alias 101 ‘A presenca holandesa no Brasil: meméria e imaginério absolutamente idéntica a desenhada por Wagener, n°. 60). Causam estranheza estas assina- turas. Desde muito tempo eu ficava admirada como um pintor conseguiria concluir em apenas um ano uma série de quadros tdo grandes e artisticamente perfeitos, além de estilisticamente inovadores. Asta pergunta se acrescenta outra: estes quadros foram realmente pintados no Brasil, ‘ou foram pintados mais tarde, na Holanda? Egmond/Mason tendem a achar que os quadros teriam sido feitos em Amersfoort, no imenso atelié de Jacob van Campen, na manséo que ele adquirira por heranca em Randenbroek préximo a Amersfoort, no periodo Surea da produgao artistica ali (Egmond/Mason, 2004: 121-122). Certo é que Eckhout, que nasceu em Groningen eld mesmo morreu, fundou em Amersfoort uma familia e possufa uma casa, e que era relati- vamente abastado por causa de uma heranga. Sabe-se também que durante esse perfodo ele trabalhou a servigo do Conde Mauricio de Nassau, foi seu “pintor da corte” até 1653, quando pelo Conde foi encaminhado ao Principe Eleitor da Saxénia, Johann Georg I. Isto & compro- vado por cartas de Nassau ao Prinicipe Eleitor da Saxénia (Egmond/Mason, 2004:125, Thomson, 1938: 57-58). Em Dresden, auxiliado provavelmente por assistentes ou alunos (Pfaff), Eckhout ‘ornamentou com pinturas de péssaros do Brasil os 80 caixilhos [al. Kassetten] do forro de madeira do teto da sala do pequeno Castelo de Hofléssnitz, perto de Dresden. (Sybille Pfaff mostra no CD do segundo volumem da sua tése, pela primeira vez, todos os 80 passaros do Castelo de Hofléssnitz, fotos 40 a-d). Cada passaro af representado leva um “nome” desenha- do com as mesmas letras maiusculas “impressas” ou padronizadas, um nome indigena, como Por exemplo o “guara”, uma linda garca vermetha com as asas abertas, hoje bastante conhe- cida (cf. a capa da revista Humboldt, Bonn, ano 42, 2000/n*. 80), e 0 titulo de um novo livro de 2003, de dois biélogos, Olmos e Silva: guard.* 0 que foi que Eckhout pintou em Amersfoort entre 1646 e 1653? Nao se pode mais do que tentar adivinhar, mas existem algumas pistas. Podemos estar convencidos, com Mason, de que ele pintou ento os retratos dos habi- tantes ndo-europeus de Pernambuco em tamanho acima do natural, e o absolutamente dnico “Banca des Tapuyas". 102 Ingrid Schwamborn Eckhout pintou - sem divida, porque confirmado em documentacdo escrita (Egmond/ Mason, 2004) — em Amersfoort ainda outros quadros, também incomuns, e que de infcio tiveram mais importancia: Ele criou ali - talvez com a ajuda de auxiliares e sob a orientagéo do “decorador” dos palécios reais da Holanda, Jacob van Campen ~ os modelos para a série das ito tapecarias grandes (de 18 até 20 m*) com temas das Indias Ocidentais, uma série que mais tarde, em Paris, no final do século 17, foi chamada de “Tenture des Indes”. Mas neste ensajo, nao se iré falar sendo dos retratos pintados por Eckhout, pois iremos nos ocupar com 08 gobetins em outra ocasiao. E posstvel que os retratos dos habitantes de Pernambuco tenham sido pintados em dimensdes t30 grades (p. ex. 272 x 165 cm, "Mulher Tapuya”) para também servirem de modelos (ou “cartons”) para tapecarias, um género muito em moda para a decoracdo das paredes dos castelos e das mansdes representativas, como a nova e entio “revoluciondria” Mauritshuis (Casa de Mauricio) em seu estilo italiano. 7. Quem pintou primeiro os “retratos brasileiros”, Wagener ou Eckhout? Ja Paul Ehrenreich (1855-1914), 0 etnélogo berlinense que fez exursdes cientificas no Brasil, chegou 2 uma concluso que em nada agradou a Thomas Thomsen, o primeiro bi6grafo de Eckhout: Os oito retratos brasileiros teriam sido copiados por Eckhout do Thier Buch de Wagener (Thomson, 10). De fato Paul Ehrenreich chega a esta conclusao (Ehrenreich, 1894: 82). Quando se observam com atencao estes retratos, é psicologicamente inimaginavel que, mesmo se reduzindo o trabalho de Eckhout ao essencial, se possa chegar a atitudes ou postu- ras absolutamente idénticas, a acess6rios idénticos, como as armas dos homens ou os colares das mulheres. Além disso as pessoas s8o apresentadas com mais naturalidade, elas so mais reais, em suma menos belas e menos “européias”, sobretudo os rostos do “casal tupi” sio apresentados em Wagener de uma maneira mais realista. € mais: quase todos os animais aos pés das pessoas retratadas possuem uma forca simbélica, como a cobra e a aranha negra junto 20 feroz homem tapuia, o sapo junto a0 africano, e o mimoso porquinho-da-fndia junto a bela mameluca. Todos estes podem ser encontrados de forma idéntica no Thier Buch de Wagener. S6 103 A presenga holandesa no Brasil: meméria e imaginério 104 © porquinho-da-India tem um padrao da pele diferente, mas so dois animais, como em Wagener, e além disso, 0 porquinho-da-india ao pé da “Mameluca” é idéntico ao porquinho- da-India num dos dois livros que pertenceram a Nassau, os “Manuais do Principe”, (al. Handbiicher), nos Libri Principis (da Biblioteca do Estado da Prissia de Berlim, agora Bibliote- a Jagiellonska de Cracévia), onde provavelmente chegou pelas maos de Eckhout, pasando por Wagener. 34 Curt Nimuendajd (i.e, Kurt Unckel, 1883-1945), o alemao de Jena que durante déca~ das conviveu com os indios do Brasil), havia percebido, durante uma visita ao Museu de Copenhague, que em Wagener 0 homem tapuia segurava as flechas com as pontas para baixo, como fazem os indias, conforme ele havia observado, mas que em Eckhout ele segura as flechas com a ponta para cima, como o faria um cagador europeu. Como Ehrenreich, Nimuendajé inclina-se, entre outras coisas, a dar “prioridade” a Wagener (Thomsen, 68). Charlotte Emmerich, a conhecida antropologa do Rio de Janeiro, chamou atencSo para © fato de que as fiechas tém formas diferentes. Para cada tipo de caca os indios desenvolve- ram a ponta de flecha adequada. Eckhout, ao que parece, ndo prestou atencdo a este detalhe: das duas diferentes pontas de flecha representadas em detalhe, uma lisa e outra denteada, mas ambas com uma espécie de suporte, Eckhout fez quatro flechas, com pontas lisas ‘inexpressivas e sem suporte (a se admitir esta seqiiéncia). As flechas, a “tébua de langamen- to” (al. “Wurfbrett” ou “Wurfholz", ct. Ehrenreich, 1894: 82) com que elas so atiradas, e a borduna do tapuia encontram-se nto Museu de Copenhague (cf. Due, 2004). Em Eckhout, além disso, os dois tapuias usam estranhas “sandalias de fio", enquanto que em Wagener os cani- bais, com mais reatismo, esto descalcos. Em Wagener a mulher tapuia é um pouco mais entroncada, ao passo que Eckhout a representa mais esbelta e com uma fisionomia mais bonita, menos brutal, com um sorriso, parecido com o da Mona Lisa. Mas os outros detalhes, o pé cortado no cesto, como também as dobras do vestido branco da charmosa mameluca, as “poses", so absolutamente idénticos. Em Wagener as figuras, assim como as animais, sé apresentadas sem uma perspectiva de fundo, enquanto nos quadros de Eckhout, elas esto colocadas de uma maneira pléstica e artfstica no ambiente adequado a cada uma, com um efeito de profundidade ~ claramente um Ingrid Schwambora aperfeigoamento do modelo (um pouco a moda italiana do século 16. les parecem até estatuas “italo-gregas”). Cada um desses quadros é uma obra-prima, ainda hoje pouco conhecida na Europa. 0 proprio Eckhout s6 passou a ser mais conhecido depois das exposi¢des em Copenhague, no Brasil, em Siegen em Haia (cf. Reclams Kunstfihrer, 2002: 201’). A meu ver, estes quadros foram pintados por influéncia de Jacob van Campen, 0 pintor ¢ arquiteto da Corte da Holanda, de tendéncia e formacao italiana, o “decorador” das casas reais da Holanda em Haia (Buvelot, 2004: 38-43); e também por desejo do “encomendador” dos quadros, 0 — desde 1652 — “Principe” (al. First) Joao Mauricio de Nassau-Siegen. Thomsen informa que também teria existido um quadro em que se podia ver Mauricio de Nassau rodeado por “seus” Indios, bem como um retrato do Principe pintado por Eckhout, mencionados no entario de 1766-1778, mas que foram levados para o Castelo Christiansborg, o que foi “fatal para eles", como diz Thomsen, pois devem ter sido destruidos no incéndio do castelo em 1794 (Thomsen, 1938: 15). Uma hipotes Thier Buch a Jacob van Campen e a amigos holandeses, mas levou-o consigo para mostrar a Wagener, ao chegar 8 Holanda em junho-jutho de 1641, mostrou seu seus pais e amigos em Dresden, depois de sete anos no Brasil. Mais tarde, talvez em agosto de 1645, Mauricio de Nassau pediu 20 pai de Wagener que lhe pusesse a disposi¢ao 0 Thier Buch, ‘© que este deve ter considerado como uma grande honra. Primeiramente as figuras serviram de modelo para a ilustracao do texto de Georg Markgraf sobre os “brasilienses” e os “tapuyas”, pata a Historia Naturalis Brasilige, em 1648. Em seguida surgiram delas em Amersfoort as figuras em tamanho gigante, que teriam tido methor destino se decorassem um grande salo nna Mauritshuis, com as 12 naturezas-mortas como complementos colocados sobre as molduras das portas.® Mas neste caso eles teriam perecidos num incendio do Mouritshuis no final do século 17. Por sorte ficaram “escondidos” e conservados em Copenhague. Sybille Pfaff ainda chama atengdo para o fato de que Wagener pintou alguns dos seus bichos e animais “ao vivo", quer dizer “mortos”, in loco, em Recife, como se vé na preguica estirada no chéo, no. 78, que reaparece assim nos Libri Picturati, V, 37, mas nos quadros de Eckhout todos os bichos estéo “vivos’, ele conseguiu dar vida a tudo quanto pintou. Isso pode 105 AA presenga holandesa no Brasil: meméria e imaginario servir de prova para a prioridade de Wagener (Pfaff, II, 35). Um outro exemplo é a aranha, certamente répida e perigosa, que Wagener desenhou com as pernas um tanto moles e baixas, n° 89. A mesma aranha se encontra de pernas altas, e assim cheia de vida e de perigo, junto 20 pé do “Tapuya” de Eckhout, e também nos Libri Principis, I, 151. Eckhout talvez tenha restitutdo o Thier Buch pessoalmente 8 familia Wagener em Dresden quando em 1653 ele assumiu ati o trabalho de pintor da corte do Principe Eleitor da Saxénia ~ um feliz acaso na historia da arte, (Em Dresden ninguém imaginava que forca inspiradora havia sido desencadeada pelo Thier Buch, pois as “figuras etnoldgicas” e as naturezas-mortas do Brasil de Eckhout permaneceram trancadas durante trés séculos na “Kunstkammer” dos reis de Dinamarca e no Museu Etnografico de Copenhagen, o primeira do mundo, do governo dinamarqués.* Varios animais e plantas do Thier Buch podem ser reencontrados também nas 12 natu- tezas-mortas e nos gobelins, p. ex. a mandioca, os cécos, as bananas, uma cabaca, além dos animais ja mencionados: 0 porquinho-da-india, 0 sapo, a aranha, a cobra. Igualmente, os cerca de 800 desenhos do Brasil, e 0 proprio Thier Buch, s6 consequiram sobreviver aos séculos por terem sido guardados como tesouros artisticos dos reis (prussianos, dinamarque- ‘es, saxdes). A isto se actescenta ainda a historia dos gobelins: S6 na periferia da Europa, no palacio do Grio-Mestre da Ordem de Sao Jogo, em Malta, foi que sobreviveu até hoje uma série completa de gobelins da série das “Tenture des Indes", as “Anciennes Indes” de 1710. Destas valiostssimas colecdes de arte da alta nobreza surgiram os atuais museus dos estados democraticos da Europa.'° 0 fato comprovado é o seguinte: Em 1668, em seu testamento de 27 de dezembro de 1667, Wagener legou o Thier Buch, juntamente com outros papéis, a seu cunhado Christian Bothe, o segundo marido de sua itma mais jovem Anna Maria. O casal vivia em Dresden (Pfaff, 2001: 20, 313). Antes disto, o Thier Buch pode perfeitamente ter estado por algum tempo em maos dos artistas em volta de Jo8o Mauricio de Nassau, principalmente no grande atelié em Amersfoort, de 1645/1646 até 1653. 106 Ingrid Schwamborn 8. Os titulos dados por Wagener ‘Agora um pormenor, que do ponto de vista atual é surpreendente para os brasileiros: Os titulos dos retratos pequenos dos indios no Thier Buch de Wagener so em portugues (!): “Omem Brasiliano”, “Molher Brasiliona”, “Homem Tapuija” e “Mother Tapuyja" (n°. 93, 94, 95, 96). Os demais séo: “Omem Negro,” “Mother Negra,” “Mulato,” “Mameluca” (n®. 97, 98, 99, 100). Eis 0s titulos dos retratos correspondentes de Eckhout, com uma ordem inversa, hoje: “Taouye Indian with spears, throwing board and club, 1641", "Tapuya woman holding a severed hand and canying a basket containing a servered foot, 1641)", e “Tupi woman holding a child with a basket on her head, 1641" e “Tupi Indian with bow and arrow, 1643" (Catalogo, Haia, 2004: n°. 50, 51, 52, 53). Na primeira exposigao dos retratos de Eckhout no Brasil eles foram apresentados com designacées quase idénticas as de Wagener: “Homem Tapuia”, “Mulher Tapuia”, “Mulher Tupi”, “Homem Tupi" (Catalogo, Copenhague, 2002: 38-41)."* $6 a palavra “brasiliano” foi substitufda por “tupi". Quando, e por qué? 9. A histéria dos “nomes” dos quadros Procuremos acompanhar desde 0 comego os “nomes” dos quadros. Em 1654 Mauricio de Nassau os deu “de presente” ao Rei da Dinamarca Frederico IIT (1609-1670), seu parente pelo lado materno, juntamente com 12 naturezas-mortas e 3 retra- tos africanos, de um embaixador negro do Congo (provavelmente “Dom Miguel de Castro”, Catalogo Haia, 2004: no. 71) e de dois de seus servigais, que Thomsen, como diretor do Museu, e depois de uma busca um tanto detetivesca, descobriu pessoalmente e os reincorporou a colegao dos quadros de Eckhout, como ele escreve (Thomsen, 18). 0 “Danga dos Tapuya” (Tanz der Tapuyjer, Wagener, n°. 103), 0 retrato do “Mulato”, as 12 naturezas-mortas e os 3 retratos de negros no trazem assinaturas, mas sao atribuidos a Eckhout. A partir de 1654 0s quadros foram mantidos como curiosidades, por assim dizer “tranca- dos”, na recém-organizada “Kunstkammer Reat” do Rei da Dinamarca, em oito salas do seu castelo em Copenhague. (Sobre o destino posterior da “CAmara de Arte” e 0 destino dos quadros de Eckhout nesta colecdo, ver Thomsen, 1, 4 Gundestrup, 2002). A "Kunstkammer” 107 AA presenca holandesa no Brasil: meméria e imagindrio foi dissolvida em 1820, e os quadros, a partir de 1827, conservados por algum tempo no Castelo Frederiksborg, antes de serem levados, em 1848 para 0 novo Museu Etnografico de Copenhague. Na Galeria de Arte do Castelo Frederiksborg eles foram vistos por Alexander von Humboldt (1769-1859) depois de sua viagem a América, em 1828 (2), como ele menciona em 1847 em sua obra Kosmos, II, p. 85 (Thomsen, 4). Em 1876 foi o Imperador do Brasil, Dom Pedro II, que visitou em Copenhague o Rei da Dinamarca e os quadros do Brasil, tendo mandado fazer pias de 6 deles: “Indio Tapuia (ou Tarairiu),” “India Tarairiu (ou Tapuia),” “Indio Tupinamba (ou Tupi)", “India Tupinambs com crianga,” “Mameluca”, “Danga Tapuia”, pelo pintor dina- marqués Niels Aagard Litzen e enviar para o Rio de Janeiro, onde se encontram desde entlo, no Instituto Historico e Geografico Brasileiro, e puderam ser vistas no Museu Histérico Naci- ‘onal em outubro de 2004 no Rio de Janeiro, por ocastéo do Seminério Presenga Holandesa no Brasit: Meméria e Imagindrio (de 4 até 7 de outubro de 2004). Tem que admitir que estas “miniaturas” so bem realizadas cépias dos retratos especialmente grandes. Chama atenc3o que faltam o “Mulato” com suas armas, 0 “Homem negro” e a “Mulher negra”. Em 1894, Paul Ehrenreich escreve pela primeira vez e de maneira excelente um ensaio sobre estas estranhas ou exéticas imagens de pessoas do Brasil, e aponta Wagener como fonte para estes quadros, como para os “Tapuyas", mas 4 denominagio “brasiliano” ele cada vez acrescenta entre parénteses “(tpi)” como se fosse uma correcao, e fala dos “tupis”, ou mesmo “tupis do litoral” ("Kistentupis”) como conceito genérico para as tribos dos “Tupinarnba, Tobajara und Petiquara’, de que falaram Piso e Markgraf, em oposigéo aos. “Nichttupis oder Tapuya” (os nao-tupi ou tapuya), como os do Rio Sao Francisco, os “Aradera, Cajau, Maquaru e Poyme” (Ehrenreich, 83). Os “tapuias”, que Laet, Markgraf e Roloff Baron (ou Roulox Baro) descrevem como “tapuyas” ou “tararyu”, segundo suas préprias observa- ‘gbes, Ehrenreich, como etnélogo (al. Voikerkundler) que esteve no Xingu em 1887, os clas- sifica como sendo a grande familia dos “Ge” , 4 qual pertencem os botocudos, kayapé, akua etc. (Ehrenreich, 88, 90). 0 que o convenceu a falar de “tupis" foi, 20 que tudo indica, 0 livro Glassaria de von Martius, © qual, porém, ele considera como “pobre” a respeito de vocabulario de tribos g@ (EHRENREICH, 89).1? 108 Ingrid Schwamborn No final dos anos 20 do século passado, os quadros foram vistos pelo etnélogo sufgo Alfred Métraux (1902-1963), entdo muito jovem, que propée a nova denominacéo “Tupi-Frau” (Muther Tupi), “Tupi-Mann” (Homem Tupi), (informagao ainda nao-confirmada da ex-curadora da Colegao destes quadros, Berete Due, Copenhague, 2004), a pesar de nas suas publicagSes ele usar a expressio “tupi-guarani” (1928) e depots mais frequentemente “tupinamba” ou ““quarani. (cf. Bibliografia). Em 1938 Thomas Thomsen publica o primeiro livro sobre Eckhout @ seus quadros pouco conhecidos, j4 falando em “Tupiweib” (“Mulher Tupi") e “Tupimann” (Homem Tupi), (THOMSEN, 1938: 8, 9). Como € que foi possfvel chegar-se a isto? Os outros retratos tém no livro de Thomsen, e hoje em Copenhague, quase os mesmos titulos que no Thier Buch de Wagener, com acréscimos: “Tapuyaindianer”, “Tapuyaweib” (Mu- ther Tapuya), “Tanzende Tapuya”, “Mulatte aus Brasilien”, “Mameluca, Mischling von Europier und Indianerin” (“Mameluca, mestiga de europeu e india) .(Thomson, 2, 3, 5, 8, 9, 16, 17). Sem as descrigdes de Wagener e os titulos dos seus desenhos nao se saberia 20 certo que a mulher vestida de branco era uma “mameluca", conceito hoje desusado no Brasil. 10. Brasileiros Em seu relato histérico encomendado, orientado e pago por Nassau, Rerum Per Octennium in Brasilia Et alibe nuper gestarum {...], Barleus fala - em latim - de “brasilienses” ou, na versio alema de 1659, de “Brasilianer’. Com isto ele esta se referindo sempre aos indios “domesticados”, em alemao hoje “Indianer"(!), que em geral combateram ao lado dos portu- gueses © a0s poucos aceitaram a fé catélica. Seus adversérios do lado dos holandeses eram chamados de “tapuyas”. Alguns destes, apés o regresso de Nassau, ou mesmo com ele, foram 4 Holanda e abracaram a fé reformada, que depois procuraram transmitir a seus irmaos no Brasil. E que, como se diz, teriam continuado a cultivar esta fé mesmo depois de os holande- ses terem sido expulsos do Brasil, e de também os diltimos judeus terem sido expulsos para a América do Norte,” fé catélica voltando a ser a Gnica religido na colénia portuguesa do Brasil (cf. Krommen, 1997: sobretudo pelos jesuttas, sendo na medida do possivel imposta a todos os indios que puderam 12-113). A f€ catélica foi difundida por varias ordens, mas 109 AA presenca holandesa no Brasil: meméria e imagindrio ser atingidos. 0 jesutta mais conhecido no século 16, junto com o Padre Manuel de Nobrega (1517-1570), @ José de Anchieta (1534-1597), no século 17 6 o Padre Anténio Vieira (1608- 1697). Wagener, alias, refere — com certa ironia — que os portugueses procuravam converter 05 escravos negros para a fé catélica, mas “os holandeses para a fé calvinista” (WAGENER, em TEIXEIRA, 172, texto alemdo em fac-simile). ‘As designacGes para os indios aculturados séo as mesmas em Barleus, Laet (que editou a Historia Naturalis Brasitiae) e em Wagener: Brasiliense, brasiliano, Brasilianer. (Também Nieuhof fala — na tradugao — de “Dom Antonio Filipe Camardo, capitdo dos brasileiros” (Nieuhof, 1682/1981: 177). Uma descricdo relativamente extensa dos “brasilienses” (brasileiros) 6 dada por Barleus: 0s brasileiro, pove antigo, indigenas e senhores do pafs, no se mesclam aos portu- ‘queses, mas vivem déles segregados em suas aldeias, habitando casas cobertas de {olhas, de forma oblonga, sem decéncia nem beleza. 0 mesmo teto abriga quarenta ou cincoenta déles. Noite e dia conservam-se deitados em leitos suspensos a meneira de rédes (chamam-thes hamacas) [...]. (BARLEUS, 1647/1974 : 132). Na Historia Naturalis Brasitiae a lingua dos indios apresentada (por Markgraf, ou Lact) nos capitulos VIII e IX, com base na “Gramatica” de Anchieta: “De Lingua Brasitiensium, @ Grommatica P. Josephi de Anchieta, S.J.”. 0 capitulo IX tem como titulo: “Dictionoriolum norinum & verborum linguae Brasitiensibus maxime communis". Trata-se de uma lista de pala~ vwras organizada por substantivos, adjetivos e verbos, possivelmente o perdido “vocabutario” do Padre Anchieta, como pensa também Moraes (Moraes, I, 676). Em lugar nenhum é encon- trado um “tupi", mas s6 “brasileiros” e a “lingua dos brasileiros”. 0s retratos dos indios de Eckhout sdo em 1674 registrados como “Brasilianske Stocher” [quadros brasileiros] no inventario da “Kunstkammer” do Rei da Dinamarca (Carta de Berete Due, de 17-6-1985, confirmado em 2004, ¢ Gundestrup, 2002).!* 11. De tupinamba a tupi Quando em Kosmos, em 1847, Alexander von Humboldt menciona estes “quadros brasi- leiros’, ele nao dé nenhuma denominago mais precisa, provavelmente por ndo haver encon- 110 Ingrid Schwamborn trado nenhuma. Nas c6pias que Dom Pedro II mandou fazer dos casais de indios, e que foram exibidas na Exposigao no MHN em outubro de 2004, pode-se ler: "Mameluca", “India Tarairiu (0u Tapuia)”, “indo Tapuia (ou Tarairiu)" e “Indio Tupinambé (ou Tupi)’. Os letreiros das duas representagdes masculinas foram trocados, tudo indica que hé muito tempo. Parece que nin- guém percebeu esta troca, que na exposicdo facilmente podia ser corrigida: Aparentemente, apés a visita do antropélogo sufgo Alfred Métraux ao Museu de Copen- hague, lé foi introduzida a denominacio “tupi”, ndo sendo de estranhar que isto tenha sido aceito por Thomsen, porque a encontrou igualmente no ensaio de Paul Ehrenreich de 1894, onde este comega a substituir “Brasilianer” por “Tupi", em oposi¢go 2 “Tapuya’. A partir de entao a denominacdo “tupi” se tornou usual. aparecendo em todos os catalogos que acompa- nham os quadros de Eckhout desde a primeira exposicdo em Haia, em 1953. $6 no catélogo preparado por Gerhard Brunn para a exposicio ocorrida em Siegen, Johann Moritz, der Brasilianer, ela foi substituida por “Tupinambé-frau mit Kind” (Mulher Tupinambé com crianca) & “Tupinamba-Mann” (Homem Tupinamba) (Brunn, 2004: 90). Com isto se retomava a ligagéo com 0 “perfodo pré-tupi”. Trata-se de um auspicioso resultado de varias discussdes que tive- mos no perfodo que antecedeu a exposicéo que dava inicio & série de eventos comemorativos dos 400 anos do nascimento de Nassau, no ano de 2004. Mas agora, ao que parece, em Copenhague, os dois quadros esto solidamente associa- dos a “etiqueta” “tupi”, j& que até agora nao se tinha nenhuma outra. Como se chegou a isto? 12. A invencao do “tupi” e sua marcha vitoriosa 0 responsavel pela introdugdo e a imposigao do conceito do “tupi” no Brasil é unica- mente Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878). Em sua primeira Memoria sobre a necessi- dade do estudo e ensino das tingua indigenas do Brasil, 1841, este douto engenheiro, que esteve envolvido a vida toda com a histéria do Brasil, e que como diplomata do Imperador Dom Pedro II passou a maior parte do tempo no estrangeiro, ndo conhecia ainda a palavra “tupi” (Varnhagen, 1841). Dez anos mais tarde, em 1851, ele utilizou o conceito “tupi” nas notas & edicdo de um importante manuscrito de 1587 por ele descoberto em Madri, e que seria 11 A presenca holandesa no Brasil: meméria e imaginario proveniente de um homem identificado por ele como “Gabriel Soares de Souza": Tratado Descritivo do Brasil em 1587 (Varnhagen, 1851/1971: nota 39, 359, nota 58, 361, nota 221, 382). No primeiro volume de sua Historia do Brasil, de inicio ainda publicado anonimamente'* em 1854, em Madri, Varnhagen defende com vigor 0 uso da palavra “tupi” que significaria “os da primeira geragao” (Varnhagen, 1854/1927: 18). 0 povo que em tudo quanto se publicara até entéo fora erroneamente denominado de “quarani”, teria de ento em diante que ser denominado “tupi”, tanto 0 povo quanto a lingua. Estes seriam os verdadeiros indios do Brasil (Varnhagen, 1854/: I, 17-19). defendia ainda 0 predominio dos “tupis” mesmo em outros patses: ‘Alguns Tupis se denominaram Guaranis ou Guerreiros; e outros Caribs ou Cary’s, nome ‘este com que invadiam as Antilhas, e se encontrava no de Caryyés. (VARNHAGEN, Histéria, 1, 19). Sobretudo no Paraquai e na Argentina se estaria usando um nome errado para a lingua dos indios: Geestudo da Lingua tupi, que é a mesma que, com 0 impréprie nome de quarani, ainda hoje se fala no Paraguai e em Corrientes [...}. (VARNHAGEN, Hist6ria, I, 25. Grifo da autora). De onde Varnhagen tirou esta informacio? Da primeira Histéria do Brasil escrita pelo inglés Robert Southey (1774-1843), ainda antes de se tornar conhecido como “Poeta Laureatus” da corte inglesa (1813), e ainda antes de o Brasil ser um pafs autdnomo e independente. Em 1810 apareceu em Londres o primeiro volume de sua History of Brazil, onde pode ser lida esta frase: “Falava-se tupi por toda a costa do Brasit’ (Southey, 1977: 1, 231. Cf. Schwamborn, 11998: 368-383). E de onde Southey obteve esta informagao, ele que nunca esteve na América do Sul. mas que por muito tempo viveu com seu tio em Portugal? Do livro publicado pouco ‘tempo antes por um padre jesuita, que também nunca havia posto os pés fora da Europa: Lorenzo Hervés y Pandura. Sua obra em 6 volumes, Catalogo de las lenauas, trata, no primeiro volume, das “lenguas americanas”, e af, na pagina 147, ele revela uma grande novidade: La lengua general del Brasil llamada tupi, nombre de los primeros indios que se 112 Ingrid Schwamborn convertiéron a la santa fe, es dialecto excelente de la guaranf, de la que no se diferen- cia tanto, quanto el espanhol del portugues [...]. Na margem Hervas resume: Tupf, dialecto guarant, y lengua del Brasil.” Na pagina 149 sdo enumeradas diversas tribos do Brasil, como “los tobayares”, “los potiguares (ilamados tambien tiguaras y paraibas, porque estaban cerca del rio Paraiba), “los tupinambos” etc, "y otras naciones”, que ele resume com as palavras: “6 mejor decir tribus de ta nacion tupi” (Hervas, 1800: 147-149, cf. Schwamborn, 1998: anexo, fig. 14 e 15). Varnhagem repetiu esta expresso, quando em 1876 reeditou em Viena as obras do padre jesufta Montoya, com o titulo “Vocabulario y Tesouro de (a Lengua Guorani/é mas bien Tupi" ‘no sabia que no mesmo ano Julius Platzmann publicou o mesmo livro de Montoya, em .]. Com o que ele da a entender que Montoya se teria corrigido a si préprio. Varnhagen Leipzig, Alemanha, mas sem mudancas, deixando documentado de forma inalterada 0 nome da lingua guarani (cf. Bibliografia sobre Montoya). Enquanto Varnhagen comecava a difundir no Brasil a idéia do “tupi” através de Dom Pedro I e de sua Corte, jovem advogado e jomatista José de Alencar (1829-1877), como que por teimosia (depois de uma longa polémica no Didrio do Rio de Janeiro),™* escrevia seu primeiro romance, até hoje um grande sucesso, intitulado 0 Guarani, 1857. Subtftulo: Roman- ce brasileiro. A primeira nota era uma provocacao, que refletia a convicgao do autor GUARANT. 0 titulo que damos a este romance significa o indigena brasileiro (ALENCAR, II, 276). Em 1850, Dom Pedro I havia prometido uma medalha para o melhor estudo das “lin- ‘guas indigenas’. (cf. Bibliografia “Sesséo”) poeta Anténio Goncalves Dias, que organizou listas de palavras da regiéo amazinica e as ). 0 primeiro a envolver-se com esta tarefa foi o publicou na Revista do Instituto (Dias, 1854). Isto, manifestamente nao foi suficiente para conquistar a medatha, por isso, como ele proprio diz despreocupadamente no prefacio, reuniu diversas fontes, de onde organizou seu importante Diciondrio da tingua Tupi chamada Lingua- Geral dos Indigenas do Brasil. 0 dicionério foi publicado pela famosa editora alema Brockhaus, em Leipzig, pelos bons oficios ¢ 0 apoio do Imperador. 113 Appresenca holandesa no Brasit: meméria e imagindrio 114 Neste curioso dicionério sao encontradas também as palavras “Peri” e “Ceci”, em que de imediato reconhecemos as names dos protagonistas do romance de Alencar 0 Guarani. Nas notas, as duas palavras so explicadas por Alencar como provenientes da “lingua quarani” (Alencar, Il, 38, 110, 277), sendo que a palavra “Ceci” (a “Sofredora”) foi criagdo do proprio Alencar. De que fonte ele tirou o nome “Peri”, que significaria “junco”, até hoje no se conseguiu explicar com clareza. Na edicao de Paulo Restivo do Vocabulario de ta Lengua Guarani, de Montoya, 1722, encontramos “piri, junco” (Restivo, 1722/1893: 351). (cf. Schwamborn, 1987: 621/198: 405). Vamhagen cita para isto o “Dic.Bras.”. Mas ja o titulo do dicionério de Gongalves “pegou’. Pois em seu segundo romance indianista, a epopéia em prosa Jracema, Alencar ja em- prega com freqiéncia nas notas - se bem que ndo no texto da ficcdo ~ a palavra “tupi", mas ainda continua a usar também “guaran”. Assim ele explica que a palavra “Ceara” significaria, de acordo com as regras da “tingua tupi,” “canto de jandaia”, e © nome “Iracema” seria formado de acordo com as regras da “lingua guarani”, significando “labios de met” (Alencar, 11, 1.116). 0 subtftulo deste mito de fundagio - a uni a moca india, para dar origem a uma nova raga, a dos “brasileiros", e também a interpretagdo de nomes geograficos incompreensiveis - é Lenda do Cearé. Isto foi em 1865. Em seu diltimo romance indianista, Ubirajara, a palavra “tupi” também nao ocorre no texto da ficcdo, mas aparece continuamente nas notas, que sao bastante numerosas. Subtitu- lo: Lenda tupi. Isto se deu em 1874, De 1857 a 1874, Alencar, como se pode ver claramente, no consequiu resistir a0 mito de um “poo tupi” e de uma “lingua tupi”, que qualquer outro ele contribuiu através de seus romances para difundir este conceito. Mais do guerreiro branco portugués com ",@ com isto mais do tarde Iracema e Ubirajara chegaram a ser reunidos sob o titulo de Lendas tupi. Enquanto é do meu conhecimento, 0 general Couto de Magalhaes, que combateu no Paraguai e falava quarani, e que mais tarde veio a ser presidente da Provincia do Para, encon- trou 0 compromisso do trace de unio entre os quaranis que vivem no Paraguai, e que chama- vam sua lingua de “ava nhehen” (“tingua da gente”), e os pretensos tupis do Amazonas, com a “nhehengatu” ou “nheengatii” (\ingua boa), Em sua obra 0 Selvagem, ele os denominou de maneira seguinte Ingrid Schwamborn [...] a nagio tupi-guarani, falando dois dialetos de uma mesma lingua, o tupi e 0 quarani, tio semelhantes entre si como o portugués 0 & do espanhol” (COUTO DE MAGALHAES, 1876/1975: 28, 142). Isto aconteceu também em 1876, mas ele ndo se manteve coerente, pois acrescentou a esta obra um apéndice com lendas atribufdas aos “tupis”, auténticas “lendas tupis”, mas que nao conseguiram sobrepujar as fantasiosas obras de Alencar, Suas lendas cafram no esquecimento. Pela virada do século 19 para o século 20, o conceito “tupi” voltou a se difundir ainda mais no Brasil. Se os brasileiros viviam falando cada vez mais de tupis, os estrangeiros nao podiam senao fazer o meso. Uma notével mudanga se tornou manifesta j4 em von Martius. Em sua viagem ~ feito com Spix - pelo Amazonas, descrito no 3.0 volume da “Viagem”, publicado em 1832, ele nao encontra “tupis", apenas sua lingua, que uma vez ele chama a “tingua dos tupis" (ele deve ter lido a History of Brazil de Southey), mas depois de “lingua guoroni”, Esta teria sobrevivido das mais diferentes maneiras em outras tribos, o que em si é “extremamente notavel” (von Martius, 1832, III, 1096). Em 1863 ele exclui o “guarani” e organiza algumas listas de palavras sob o conceito geral de “tupi”, que havia evitado no titulo de seu glossario, “Wértersammlung brasilianischer Sprachen”, Glossaria linguarum Brasiliensium [...]: “Tupi - Portugiesisch - Deutsch” ("Tupi - Portugués - Alemao”). Deve ter-se correspondido com Varnhagen a este respeito. (Esta correspondéncia ainda esta por ser investigada.) Se 0 célebre pesquisador alemio de Munique acolheu a palavra “tupi” em suas listas, isto também ‘impressionou os brasileiros ainda indecisos, por exemplo José de Alencar. 0 primeiro a duvidar literariamente do “tupi” veio a ser Lima Barreto, em seu romance 0 Triste fim de Policarpo Quaresma, 1915. 0 herdi do romance, o pequeno funcionério piblico Policarpo Quaresma, luta obstinadamente por libertar-se da “tingua emprestada”, o portugu- @s, e luta em favor de uma “lingua nacional” brasileira, "tupi-guarani’.® Quando Policarpo comeca a escrever memorandos em uma “Lingua tupi", que o autor ndo apresenta, ele é levado 4 instituigdo psiquiétrica do Dr. Pinel. (Alguns leitores podem nao ter percebido esta razdo para sua “doidice”). 115 A presenca holandesa no Brasit: meméria e imaginério Mas 0 Congresso brasileiro nao fez do “tupi” a lingua nacional. No pafs continua-se a falar portugués (que entrementes, também com a ajuda dos romances de Alencar, se transfor- mou no “portugués do Brasil”), e o Brasil continua ainda a ndo ser “tao grande quanto a Inglaterra”, 0 que constituia o maior desejo de Poticarpo Quaresma: Mas a marcha triunfal da idéia do “tupi” seguiu adiante, a ponto de Oswald de Andrade se perguntar jocosamente: Tupi or not tupi that is the question (Andrade, 1928/1972: vol. 6, 13), Isto foi em 1922, com anos aps a independéncia do Brasil, e na “Semana de Arte Moderna” de Sdo Paulo, exigia-se também a independéncia do ponto de vista cultural. Em 1933 Graciliano Ramos (ou seu protagonista Jogo Valério), em Caetés, utava com 10s fantasmas dos romances indianistas de José de Alencar. “Caetés” era como se chamavam os indios que devoraram o primeiro bispo portugués Sardinha na costa do estado de Alagoas, de ‘onde Ramos era proveniente. 0 passado hist6rico nao combinava bem com o passado ficcional = @ entdo 0 narrador decidiu tomar distancia dos indios, fossem eles quais fossem, para dedicar-se literariamente 20s problemas reais do seu mundo, e assim surgiu em 1938 a obra- prima Vidas Secas. (cf. Schwamborn, 1998: 464-465). Entrementes foi organizada em 1933 em Sao Paulo a primeira cadeira de “tupi”, dirigida por Plinio Ayrosa, Depois apareceu em 1954 uma obra que implantou indelevetmente o conceito de “tupi” na consciéncia dos brasileiros que freqlientam escolas e universidades: € 0 Curso de tupi antigo, do (bem intencionado) padre jesuita Antonio Lemos Barbosa, professor da PUC do Rio de Janeiro (1910-1970). Uma obra de arte peculiar: De diversas fontes de varios séculos, de descrigdes lingiifsticas e listas de palavras, Lemos Barbosa reconstruiu uma lingua que ele chamou de “tupi antigo", e criou exercicios, onde ele indica de maneira sucinta suas fontes. Com isto ele de certo modo levou a obra ¢ a intengdo de Varnhagen ao seu objetivo final. Logicamente, nao tem sucessores na confectéo de compéndios, até agora. 13. A lingua mais usada na costa do Brasil - e no Paraguai Deve-se lembrar que a primeira descrigdo da lingua dos indios “domesticados” procede do Padre José de Anchieta. Foi publicada em 1595 em Coimbra, e tem como titulo: Arte da 116 Ingrid Schwamborn lingua mais usada na costa do Brasil. (A auséncia da palavra tupi neste titulo foi o que alertou a autora para o fendmeno do “tupi ausente” nas fontes brasileiras dos seculos 16 até meados do seculo 19.) Mas muitas vezes, mesmo em Lima Barbosa, esta obra é citada sob o titulo de “Gramética da lingua tupi”, como aliés jé foi feito por Hervas, em 1800. Pelos estudiosos paraguaios, no entanto, esta obra é considerada como a primeira descri¢ao do “guarant”, p. ex. por Wenceslau Nestor Dominguez (1971) Entre Las obras que se publicaron contamos una que data del ano 1595; es la primera gramatica guarant y fue escrita por el gramatico José Anchieta que la titulé “Arte de Grammatica” [...]. (DOMINGUEZ, 1971, 25, SCHWAMBORN, 1987: 655/1998: 442). Grifo da autora). Aliés, em 1992 o Parlamento Paraguaio efetivamente fez do guarani, a lingua realmente falada neste pafs, ao lado do espanhol, a segunda lingua oficial do Paraguai ~ exatamente como 0 desejara para um ficticio “tupi” o heréi de Lima Barreto (Cf. Schwamborn, 1987: 671/ 1998: 481). 14, Os tupis e os “novos brasileiros” Pode-se concluir que a idéia do “tupi” ganhou aceitagdo sobretudo apés a vitéria do Brasil na guerra contra o Paraguai (1865-1870) - os quaranis no Paraguay, os tupis no Brasil (na realidade falando a mesma grande lingua “indigena” com pequenas variantes) -, com 0 que passou a ser também um conceito de diviséo politica (territorio espanhol/quarani versus territorio portugués/tupi). Depois de se haver encontrado este conceito, podia-se partir para rebatizar de “tupi” tudo quanto nos séculos anteriotes se referia aos indios, e que sempre era chamado de “brasilico” (Figueira), “brasiliano” (Frei Veloso, Diccionario, Wagener), “brésilien” (Lery), “brasilianisch” {Staden), “brasiliense”, “brasilianen”, “brasiliaense” (os holandeses). Um exemplo muito es- pecial desta mudanca sao os titulos dos retratos de Albert Eckhout. Entrementes, passara-se a denominar de “brasileiros” os descendentes dos portugueses ¢€ todos os filhos de imigrantes nascidos no Brasil. Por isso, para um habitante “instruido” do Brasil (a assim chamada “classe média”, fortemente voltada para os EUA e a Europa), nao 47 A presenca holandesa no Brasil: meméria ¢ imaginério seria agradavel nos séculos 20 e 21 ver uma simples “muther india” retratada com uma crianga ser chamada de “brasileira”, ou um homem humilde seminu ser identificado como tipico “homem brasileiro’, (36 em 1888, na sua Histéria da literatura brasileira, Silvio Romero disse: “0 indio ndo € brasileiro. (Romero, III, 922, cf. Schwamborn, 1998: 504). Em todos 0s outros retratos empregam-se os titulos que figuram também nas ilustra- bes de Zacharias Wagener. “Mulato” seria um mestico de homem branco e mulher negra, “mameluca” era entendido entdo - como ainda hoje se entende em Recife ~ como uma mesti- sa de homem branco e muther india. 15. Quem eram os tapuias? Com referéncia aos indios selvagens no existia desacordo. Por Wagener e Markgraf eles eram chamados de “tapuyas”, por Laet e Markgraf também de “tarairiu’. Quem mais teve contato com os “tapuias” no atual estado do Rio Grande do Norte foi o alemao Jakob Rabe ou Rabbi, que morou entre eles por quatro anos, foi casado com uma “mulher brasileira” de descendéncia alemé (!) e aprendeu sua lingua. Na pagina 280 da Historia Naturalis Brosiliae é inclufda no texto a ilustracao de um casal tapuia. De sua lingua, no entanto, nada ficamos sabendo, talvez porque Rabe, pago pela WIC para viver entre os tapuias de “Jan de Wy", para aprender a lingua deles e influenci-los no sentido holandés, no dia 5 de abril de 1646 foi assassinado por ordem do Tenente-Coronel Garstmann, como conta Johan Nieuhof que esteve no Brasil de 1640 até 1649 (Nieuhof, 1682/1981: 276-277). Rabe, ao que parece, nada deixou relatado a respeito da lingua dos tapuias, ele preferiu descrever seus usos e costumes: De Topuiyarum moribus, & consuetudinibus, é Relatione Iacobi Rabbi, qui aliquot annos inter illos vixerat (Historia, p. 279). Jodo Mauricio de Nassau explica em uma carta que os indios pacificos chamavam os {ndios selvagens e ferozes de “tapuyas”, Parece ter sido este o estado de conhecimento em Recife naquela época. 0 jesufta Simao de Vasconcelos 0 confirma, em 1663 Tapuia nao é nome propriamente de nagao, é 6 de divisao, e vale tanto como dizer, contrétio [...]. Tem muito mais cépia de gente, que algumas das outras nacdes (... Ordinariamente quase todas estas suas nagdes andam com guerra entre si ; porque 118 Ingrid Schwamborn ‘como o seu mais estimado pasto seja carne humana, por esta via pretendem havé-lo. (VASCONCELOS, 1663/1977, I, 112). Também Vamhagen, em sua Histéria Geral do Brasil (1854/1857), e jé antes no Tratado descritivo (1851), adota amplamente esta interpretagio, explicando explicitamente que os indigenas aplicavam a palavra “tapuia” até aos franceses, como “contrérios dos nossos, cha- mando-thes tapuy-tinga, isto 6, tapuia branco (veja o Dic. Bras., Lisb., 1795, p. 42)” (nota 221, p. 382). Com isto Varnhagen criou na consciéncia comum dos brasileiros instruidos a ‘oposicéo tupi/tapuia, até hoje em vigor. Mas quando se procura investigar as fontes anteriores a Varnhagen, verifica-se que em Gabriel Soares de Sousa, 1587, e em Aires do Casal, Corografia Brasilice, 1817, a palavra tapuya 6 mais usada como nome de uma tribo, ou de todo um povo. Também o General Couto de Magalhaes 2 emprega neste sentido, isto é, como um conceito geral para “indio": a grande riqueza do Estado do Pari, do qual ele foi Presidente por dois anos, 6 teria sido possibilitada por “o brazo topuio”, o trabalho dos indios, os quais entendem todos “o tupi" (Couto, 1876/ 1975: 16, e ainda p. 68) - 0 que logo 6 relativizado por ele, quando diz que « palavra “tupi” ‘do & entendida por indio nenhum, eles prOprios dizem ‘nhehengatu”, o que significa “lingua boa” (Couto de Magathaes, 29). Com este significado geral de “tapuya” para “indio” a palavra é encontrada também no relatorio de Martim Soares Moreno, “Jornada do Ceari”, com o que a jovem india de Alencar, Tracema, seria também uma “tapuya” (e nao uma nobre tabajara) [..] no dito anno (1611] fiz pazes com 3 castas de tapoyen all vizinhos e por meio delles tive novas do Maranhoo e foroo delle Indios delle a fllar comigo donde me derco noticias dos 600s terras que hovei naquelles pertes[...] (MORENO, em Peixoto, 51). Em sua primeira polémica, em 1856, também Alencar considera os tamoios como “tapuyas” (Polémica, ed. Castello, 12, 95). Este parece ter sido no Cearé um conceito popular para “indio”. € uma questdo que ainda precisa ser melhor pesquisada. ‘A descrigao mais ampla dos usos e costumes dos “tapuyas” se encontra em Barleus, que se refere a relatos de Roeloff Baro e sobretudo de Jakob Rabe, que, como é mencionado também na Histéria Naturalis Brasiliae, viveu quatro anos entre estes tapuias. Como um etndlogo 119 AA presenca holandesa no Brasil: meméria e imaginério neutro, na época uma profisséo desconhecida, Barleus (seguindo Rabe) descreve com muito respeito a aparéncia a forma de vida, assim como 0 comportamento cultural ou inculto, e também religioso, destes homens, que até entao eram considerados antes como bichos E celebre no Brasiholandés o nome dos tapuias, por causa do seu édio aos portugueses, das querras com os seus vizinhos e dos austios mais de ura vez prestados a nés. Habitam o sertdo brasileiro, bastante Longe do litoral, onde dominam os lusitanos ou os batavos, Distinguem-se por suas designacdes,linguas, costumes e teritéros, Sdo-nos mais conhe- cidos os que moram nas vizinhangas do Rio Grande e do Cearé e no Maranho, onde impera Jandui ou Jodo Wy {..J- Vagueiam & maneira de némades e ndo se deteem sempre em aldeiamentos ou territérios fixos, mas, mudam de morada, conforme a quadra do ano e a facilidade da alimentacéo, Tem compleicio assaz robusta em tio grande niémero déles quasi a mesma pare todos. ‘So todos antropofagos e atertorizam aos outros barbaros e aos portugueses pela sua fama de crueldade [...} Felejam com arcos e fechas, dardos de peda e clavas de pau. Por admirsvel contradigéo da ratureza, gostam da inércia sempre que néo empreendem guerras, mas odeiam o écio, ‘quando ha lugar para a vinganga e para a gléra [...}. (0 cuidado da familia deixam-no para as mulheres e para os velho: de tudo o mais em que hha honra e utilidade cuidam os homens e os mais vigorosos. Sob o morubivaba Jandut vive-se do seguinte modo e observam-se éstes costumes: de ‘manh@ e de tarde, o chefe anuncia prescreve publicamente o que se tem de fazer durante codia e durante anoite, aonde se ha de ir, onde se deve estanciar, quando convém levantar

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