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Medo Branco de Almas Negras: Escravos, Libertos e Republicanos na Cidade do Rio* RESUMO O objetivo do artigo é investigar os significados posstveis do aparente antagonismo entre a populacéo negra da cidade do Rio e os governantes ¢ burocratas das primeiras décadas da Repiblica. A hostilidade dos negros a algumas das medidas da administracéo republicana tinha um sentido cultural profundo, tavrado numa experiéncia longa e variada de luta contra 0 cativeiro ao longo do Sidney Chalhoub Universidade Estadual de Campinas ABSTRACT The objective of the article is to investigate possible explanations for the apparent antagonism between the black population of the city of Rio and the first’ Republican governments. The author argues that black hostility to some Republican policies had @ profound cultural Signifiance, the sources of which are to be found in the long and varied experience of struggle agaisnt slavery throghout the 19th century. século XIX. 1, MORTE AOS REPUBLICANOS Em artigo intitulado “Libertos e republicanos”, publicado no Didrio de Noticias em 19 de margo de 1889, Rui Barbosa denuncia com veeméncia as * Este artigo aparcccu originalmente em Bretas, Marcos (org.) - Papéis Avulsos. Rio de Janeiro, Fundagio Casa de Rui Barbosa, vol. 2, julho de 1986, mimeo. Fora escrito na verdade para o seminério “Crime e Castigo”, que teve lugar na mesma Fundagio em agosto de 1985. O autor hesitou em concordar com uma nova impressio desse artigo jé “velho", porém cedeu diante da teimosia gentil da Silvia Lara. © texto sofreu pequenos acréscimos, corregdes ¢ atualizagdes bibliogrificas para esta publicagio. Para fazer a revisio no texto, foram valiosas as criticas por escrito que recebi de Robert Slenes, Peter Eisenberg, Rebecca Scott e Silvia Lara. Como sempre, minha capacidade de incorporar as sugestdes nao fez justiga as criticas recebidas — muita coisa ficou para trabalhos posteriores. supostas tentativas da monarquia de garantira capone do trono através da mobilizagao politica dos libertos da cidade do Rio’, Rui menciona um episddio que teria ocorrido dias antes: uma numerosa malta de navalhistas, engrossada ainda por trabalhadores pagos pelo governo e armados de “estadulhos” policiais, percorrera a rua do Ouvidor aos gritos de “morte aos republicanos”. Rui arremata afirmando que essa tentativa de motivar negros libertos & participacdo politica directa demonstrava bem “o arrojo de irresponsabilidade, que governa este pais”. Cabe perguntar 0 porqué de Rui vociferar tanto contra esse possivel namioro entre os monarquistas € os libertos da Corte. A utilizag4o do recurso politico da mobilizag4o popular nao era em absolute uma novidade da cidade do Rio. Segundo Sandra Graham, a “revolta do vintém”, em 1880, havia marcado uma mudanga profunda na “cultura politica” da cidade: pela primeira vez na histéria recente do Rio, um debate politico alcangara as ruas ¢ as pragas, e alguns politicos mais astutos perceberam que havia uma fonte estridente de poder fora do parlamento, nestes citadinos descontentes com os problemas sociais causados pelo crescimento répido e desordenado do centro Politico do Império2, Os politicos aprenderam bem as lig6es da “revolta do vintém”, ¢ os abolicionistas receberam com agrado ¢ procuraram fomentar a agitago das ruas nas lutas contra a escravidao nos anos 80, Em outro artigo, © proprio Rui comenta a importancia da participago popular na campanha abolicionista: “A policia... perdera toda a ago nas ruas eletrizadas da capital, cujos movimentos tanta vez tém mudado a politica do Império”3. Na década de 1880, portanto, a agitaco nas ruas da Corte parccia um dado essencial no jogo de poder do Império. O que realmente incomodava Rui era 0 estimulo 4 agitagio politica dos libertos especificamente ©, mais ainda, o fato desta mobilizagdo estar dirigida diretamente contra os republicanos. Havia, primeiramente, o temor da mobilizagao continua de um segmento da populacio que era percebide como largamente despreparado para a vida em sociedade, pessoas que precisavam antes de educago ¢ orientago para o “bem”. Eram as “‘vitimas da escravid3o”, cujas “consciéncias de indole afetiva, onde a natureza encerrara gemas de 4gua purfssima, recobertas pela escéria do cativeiro, precisavam... da séria educagao da verdade, que escava no fundo das almas 0 fildo oculto do bem”4, Em suma, havia aqui a idéia, IBARBOSA, Rui, “Libertos © republicanos", em Queda do Império. Rio de Janeiro, Livraria Castitho, 1921, tomo I, pp. 131 = 138. 2GRAHAM, Sandra, “The Vintem Riot and Political Culture: Rio de Janeiro, 1880", em Hispanic American Historical Review, 60 (3), 1980, pp. 431 a 449. 3BARBOSA, Rui, 10 de Margo, artigo publicado no Didrio de Noticias em 10 de margo de 1889, em Queda do Império, p. 43. 4BARBOSA, Rui, “Libertor e republicanos”, p. 135. ca bastante consensual entre os politicos da época, de que as atrocidades da escravidao haviam legado & posteridade “uma naco de libertos in- conscientes”5, que precisavam agora ser integrados & sociedade como trabalhadores “livres”. Mas 0 artigo de Rui nao é simplesmente um eco dos projetos ¢ dos Ppreconceitos sobre 0 liberto que reinavam na elite politica da época. HA também uma certa frustra¢o em admitir que, pelo menos em relagdo 4 populacdo negra da Corte, a Coroa parecia bem-sucedida em canalizar para si os dividendos politicos do 13 de maio de 1888, H& indicios sugestivos, como j4 mostrou José Murilo de Carvalho, de que a monarquia gozava de popularidade junto aos negros da cidade, e que esta popularidade explicaria de certa forma tanto alguns atos de manifesta hostilidade da administragao republicana contra os setores mais pobres da populagao — perseguigdo a capoeiras € bicheiros, destruigao de cortigos, etc., logo nos primeiros anos da Repiiblica — quanto a reagZo popular contra ages aparentemente benéficas do governo republicano — como a luta contra a vacina obrigatéria em 1904, por exemplo, sem diivida 0 caso mais notério®. Nabuco registrou de forma expressiva a popularidade do imperador: seu nome era para os escravos “sinénimo de forga social e até de previdéncia, como sendo 0 protetor de sua causa”’. Hé também o caso famoso, ¢ repleto de simbolismo, do principe Obd II da Africa, um negro colossal, alferes veterano da guerra do Paraguai, que se dizia filho de reis africanos e que tinha como vassalos os negros Minas ¢ as quitandeiras do largo da Sé. Reza a tradig4o que D. Pedro II era bastante simpatico ao principe, franqueando-lhe a entrada até em recepgdes solenes no pago da cidade. Obé tinha ainda 0 habito de cumprimentar o imperador no dia 2 de dezembro, data do aniversdrio de Sua Alteza. Conta-se que no 2 de dezembro que se seguiu 4 proclamagdo da Repiblica, o principe dirigiu-se ao pago imperial, mas encontrando as portas fechadas, enfureceu-se € protestou muito, disparando impropérios. Consta também que o governo provisério da Repiblica cassou as honras de alferes ao principe negro, que teria sobrevivido poucos meses a mais este desgosto?. Todavia, a popularidade do imperador perdurou de tal forma entre a populagao pobre da Corte que o tema chegou a provocar certa obsess4o num Sthid., p. 133. SCARVALHO, José Murilo de, Os Bestializados: 0 Rio de Janeiro e a Repiblica gue do foi, Sko Paulo, Companhia das Letras, 1987, pp. 29 a 31, NABUCO, Joaquim, 0 Abolicionismo, Petrépolis, Ed. Vozes, 1977 (1* edigio: 1883), p. 96. SMORAIS FILHO, Melo, “O Principe Obé,” em Fesias ¢ Tradigées Populares do Brasil, Belo Horizonte, Ed. Natiaia, 1979, pp. 309 2 312. 85 observador atento como Jodo do Rio. Em A Alma Encantadora das Ruas, um livro de crénicas publicado originalmente em 1908, Jodo do Rio aborda © assunto em cinco passagens € contextos diferentes. H4 inicialmente a observagao das tatuagens, uma prdtica bastante comum entre os populares: ao lado de fetiches ¢ figuras religiosas complicadas, os negros traziam freqiientemente a coroa imperial desenhada na pele; & verdade que alguns traziam © corpo ornamentado pelas armas da Repiiblica, porém o cronista conclui que “Pelo mimero de coroas da Monarquia que eu vi, quase todo esse pessoal € monarquista”. Mais adiante, encontramos 0 cocheiro nostalgico, que se lembrava também do prestigio do Principe Obé com D. Pedro Il: “A Monarquia tinha as suas vantagens. Era mais bonito, era mais solene... Bom tempo aquele!”, A terceira passagem € ainda mais enfética. Passam os corddes de carnaval, ¢ alguém explica ao jornalista que “nenhum desses grupos intitula-se republicano, Republicanos da Satide, por exemplo. E sabe por qué? Porque a massa é monarquista. Em compensag4o abundam os reis, as rainhas, os vassalos...”. H4 ainda os registros da ja célebre visita de Joio do Rio 4 Casa de Detengdo. Os presos tinham suas “idéias gerais”, ¢ a “primeira, a fundamental, a definitiva, € a idéia mondrquica. Com rarissimas excegdes, que talyez nao existam, todos os presos sdo radicalmente monar- quistas”. Finalmente, as mulheres detentas: as coroas imperiais muitas vezes apareciam tatuadas ao lado dos nomes dos amantes, filhos, irmos, etc? Intrigado com tudo isto, Jodo do Rio perguntava-se: por que todas essas pessoas “preferiam Sua Majestade ao Dr. Rodrigues Alves?”!. A resposta nio 6 simples, porém o objetivo desse pequeno artigo € investigar especificamente os significados possiveis do aparente. antagonismo entre a populacgdo negra da cidade do Rio e os governantes e burocratas republicanos. interesse aqui € mostrar que havia um sentido cultural profundo na hostilidade dos negros a algumas medidas da administragio republicana. Na verdade, talvez seja possivel sugerir que um dos sentidos da proclamacao da Republica foi tentar pér um dique ¢ anular, ou pelo menos disciplinar, a influéncia cada vez mais decisiva que as agitag6es nas ruas da Corte estavam a desempenhar nos rumos que tomavam os conflitos no interior da classe dominante. Os republicanos talvez tenham tido a intengdo de transformar os pobres urbanos em trabalhadores assalariados disciplinados ¢. higienizados. Mas certamente as acdes dos escravos, libertos e pretos pobres da Corte contra a escravidéo nos anos 1880 — e mesmo muito antes - no signifi- 9JOKO DO RIO, A Alma Encantadora das Ruas, Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, 1987, pp. 30 = 32 (sobre as tatuagens), 73 (0 cocheiro nostélgico), 95 (os cordées de carnaval), 160 a 162 (os monarquistas da Detengao), 167 (mulheres detentas). 1qpid,, p. 160, 86 caram de forma alguma um apoio técito ou explicito a qualquer projeto politico das clites. Estes movimentos das ruas tinham sua dindmica prépria, profundamente enraizada num modo de vida urbano minuciosamente tecido pelos negros durante muitas décadas de luta subterranea e silenciosa contra 0 cativeiro ao longo do século XIX. Os escravos ¢ libertos do Rio haviam institufdo uma cidade prdpria, possuidora de suas préprias racionalidades e movimentos, que solapou a instituigao da escraviddo sem nunca realmente confluir para qualquer projeto ou delirio disciplinador. Foi contra esta cidade negra, arredia e alternativa que a Republica se voltou, e sao para alguns aspectos desta cidade, que permanece largamente desconhecida, que voltaremos nossos olhares daqui por diante. 2. O TEATRO DOS Vicios Em outubro de 1837, surgiu uma divida entre funciondrios ligados ao Ministério da Justiga a respeito de que destino devia ser dado a dezenas de africanos livres que estavam depositados na Casa de Correcao da Corte: Os africanos eram solicitados tanto pela Camara Municipal da cidade do Rio quanto pelo presidente da provincia do Espirito Santo. Chamado a opinar, 0 administrador da Casa de Correg3o descobre “uma raz4o de conveniéncia” em mandar os negros em questio para longe da Corte: “é que nao sendo esses. africanos dos mais morigerados, a remog4o para o Espirito Santo os arredaria do teatro de seus vicios”!1, A imagem 6 deliciosa. Enviar os africanos para longe da cidade era uma forma de castigé-los pelo seu mau comportamento, Por outro lado, esse mau comportamento aparece enraizado no meio em que se movem esses — africanos — a cidade impura, viciada, desconhecida, contrateatro de personagens perigosas. Uma cidade. imprevisivel, onde os movimentos antinémicos da populagdo negra podiam até assumir contornos de conspirages interprovinciais e internacionais. O Natal ‘de 1835, por exemplo, foi carregado de tensdes na Corte. Havia a suspeita de que os escravos das provincias do Rio de Janeiro e de Minas Gerais “queriam tentar um movimento insurrecional que se diz concertado para romper nos Dias Santos de Natal”!2, As autoridades policiais reccberam ordens no sentido de '1Mago 156-468, Arquivo Nacional (AN). Os “africanos livres” erm os negros libertados. por efeito da lei de proibigao ao tréfico de 1831, € que permaneceram sob a tutela do governo imperial; ver CONRAD, Robert, Tumbeiros, Sio Paulo, Brasiliense, 1985, pp. 171 a 186. '2¢6dice 335, Registro de Correspondéncia Reservada Expedida pela Policia (1835-1844), vol, 1, fls. 9, AN. 87 “dissolver qualquer ajuntamento de escravos ¢ prender os que nele se encontrarem”, Parece que tudo nfo passou de um susto, pois a cia expedida pela policia n&o registrou nada de anormal nos meses seguintes. De qualquer forma, 0 medo de que os escravos pudessem se “concertar” ¢ se levantar em massa contra seus algozes preocupava eventualmente os administradores da cidade. O exemplo do levante dos hegros malés ocorrido em Salvador poucos meses antes temperou sem dhivida os temores daquele Natal de 183513. Mas essa ndo foi de forma alguma uma ocorréncia isolada. Havia mesmo a constante suspeita de que a luta dos escravos tinha um cardter internacionalista. O fantasma fundamental aqui era 0 Haiti, com 0 seu exemplo assustador de uma rebelifio negra que resultara na tomada do poder. Talvez nao fosse apenas um fantasma: em 1805, um ano apés a proclamagao da independéncia do Haiti, foram encontrados no Rio alguns “cabras” ¢ crioulos forros ostentando no peito 0 retrato de Dessalines, 0 ex-escravo ¢ “Imperador dos Negros da Ilha de $30 Domingos”!4; em 1831, chegou ao conhecimento da policia que dois haitianos haviam desembarcado no Rio de Janeiro e tinham sido vistos conversando com “muitos pretos” na rua dos Latoeiros!$ ; em 1836, o juiz de paz da Candelaria mandou investigar um tal Emiliano, morador na rua da Quitanda, que era “suspeito de haitianismo"!§, E em 1841, 0 ministro da justiga recebeu uma correspondéncia reservada, proveniente de Londres, que relatava uma tentativa, feita par 63 pretos forros da Jamaica, de desembarcar em Cuba € incitar os escravos daqucla ilha a rebelifio. A iniciativa fracassou, porém ela fora promovida por um tal “Clube ou Sociedade dos Abolicionistas da Escravidio”, a prometia enviar seus emissérios “a todos os lugares onde ha escravidao”!7, A luta dos negros pela liberdade parecia ndo ter fronteiras, e nao é dificil imaginar a apreensdo causada por noticias como estas numa cidade cuja metade da populagio aproximadamente era constituida por escravos e libertos durante a primeira metade do século XIX!8, 13 sobre @ Levante, ver 0 livro imperdivel de REIS, Joo José, Rebelido Escrava no Brasil: a hisiéria do levante dos malés (1835), Sto Paulo, Brasiliense, 1986. 14Documente do Arquivo Histérico Ultramarino de Lisboa, citado em MOTT, Luiz R. B., “A Revolugio dos Negros do Haiti ¢ 0 Brasil”, em Histéria: Questées ¢ Debates, Curitiba, 3(4), 1982, p. 57. 15pocumento do Arquivo Nacional, citado em MOTT, p. 62. l6cédice 335, Registro de Correspondéncia Reservada Expedida pela Policia (1835-1844), vol. 1, fls. 30 verso, AN. Documentao nifo-catalogads, mago SF-255, AN. 18seeundo o censo de 1849, 2 Corte tinha 205.906. habitantes, dos quais 78.855 eram escravos € 10.732 eram libertos. Segundo estimativas de Mary Karasch, howve perfodos na primeirs metade do século XIX, especialmente na 88 E muitos negros lutavam para permanecer nesse teatro urbano privi- Jegiado, Em margo de 1872, cerca de vinte escravos que estavam numa casa de comissGes para serem vendidos poem em execucao um plano cuidadosa- mente elaborado para assassinar 0 comerciante de escravos José Morcira Velludo!®. O comerciante seria atacado quando viesse ao dormitério dos _pretos fazer curativos no escravo Tomé, que estava adoentado. Velludo tinha @ hdbito de fazer os curativos todos os dias apés o jantar. Combinado o dia, os negros reuniram-se no quintal apés 0 almogo e acertaram os tltimos detalhes. A agress4o seria feita por muitos negros ao mesmo tempo, utili- zando-se “quase todos de achas de Jenha que tinham desde manha guardado embaixo das tarimbas”. Velludo ficou gravemente ferido, escapando da morte gracas & interferéncia dos empregados de sua casa de negdcios. Os escravos envolvidos foram unanimes na explicago que apresentaram para sua atitude: “que o plano de matar Velludo, era para no serem vendidos para uma fazenda de café para onde estavam destinados a ir por terem sido escolhidos por um Bastos negociante de escravos”. Esse plano minuciosamente calculado € executado € rapidamente desqualificado em funcdo de outros interesses ¢ racionalidades. Ironicamente, €a propria vitima quem se empenha na defesa de seus agressores, que re- presentavam, afinal, o capital acumulado de muitos contos de réis. Nesse teatro meio absurdo — onde o préprio ofendido contrata um advogado para os réus ¢ tenta convencer os médicus, inutilmente, de que seus ferimentos ha- viam sido leves —, a consciéncia ou o saber dos negros estrategicamente negado; “..milita em sew favor mais de uma circunstincia, ¢ especialmente ‘© embrutecimento de seus espfritos ¢ falta absoluta de cducacio; — males que sdo provenientes de sua forgada condigio de escravos, © que, embotando-Ihes a consciéncia do mérito ¢ do demérito, lhes década de 1830, nos quais os escravos constitufam mais de 50% da populagio da cidade, Ver Karasch, Mary C., Slave Life in Rio de Janeiro: 1808-1850, Princeton, Princeton University Press, 1987, pp. 60 a 66. Peter Linebaugh jé propés a existéncia de uma circulagio da tradig3o antinémica dos trabalhadores dos quatro cantes do Atlintico através especialmente dos navios negreiros. Esta comunicagéo entre of trabalhadores de diferentes continentes seria uma das caracteristicas do que © autor chama de “modo de produgio do navio". Nesta perspective, o receio demonstrado pelos homens do imperador quanto ao internacionalismo da luta dos negros podia ser procedente. Ver LINEBAUGH, Peter, “Todas as Montanhas Atlinticas Estremeceram”, em Revista Brasileira de Histéria, n, 6., Sko Paulo, setembro de 1983. O artigo de Linebaugh esté para este meu artigo assim como a musa inspiradora est para o poeta apaixonado. 19Processo criminal, Bonificio ¢ outros escravos, mago n? 8, ano de 1872, Arquivo do Primeiro Tribunal do Jiri da Cidade do Rio de Janeiro (APTS). 89 diminui consideravelmente a responsabilidade moral e a imputabilidade.” Mas este saber escravo — sem dtivida muito mais desprezado pelos hitoriadores do século XX do que pelos senhores de escravos do século XIX, pois estes tiltimos precisavam adaptar-sc c resistir ao saber negro por uma quest4o de sobrevivéncia — se impée, se quisermos prestar atencZo aos discursos sociais niio amarrados aos critérios burgueses de saber competente. Cyriaco, um escravo de 43 anos, acusado de ter assassinado, juntamente com seu irmao Carlos, o caixeiro de uma casa de comissées, explica os motivos pelos quais queria continuar vivendo na cidade do Rio: “Tendo seu senhor © feito aprender o offcio de pedreiro ¢ nunca tendo ele interrogado trabalhado com enxada, nio entendendo de servigos de roca, contudo seu senhor o mandou para a fazenda e ele interrogado tendo ido 14 esteve oito meses, € deu-se muito mal de satide pelo que pediu 2 seu senhor que o mandasse de novo para a Corte, ... onde foi mandado A casa de um pretendente para depois de este revistar seus servigos, compré-lo; mas sucedeu que aquele pretendente a compré-lo o achasse enfermo, © por isso deixou de compré-lo, em conseqiéncia do que seu senhor de novo ordenou que ele © scu irmio fossem devolvides 4 fazenda em Sio Matheus. Entio ele interrogado sabendo dessa resolugio declarou ao agente da Casa de Comissio que nio podia voltar para a roga, © nesse caso precisava ir % polfcia fazer a declaragio dos motivos que o impediam a seguir aquele destino...”. Cyriaco é bastante articulado na defesa de sua permanéncia na cidade. Ele alega desconhecer “‘servicos de roca” ¢ justifica seu desejo de continuar na Corte pelo fato de exercer um officio mais tipicamente urbano. Além disso, 0 relato do escravo sugere que ele tenta negociar seu destino com o senhor: acaba conseguindo um perfodo de teste com um possivel comprador na cidade, mas a transagio no é conclufda porque “aquele pretendente a compra- lo 0 achasse enfermo”. E Cyriaco também deixa entrever outros “dircitos” adquiridos pela escravaria urbana e que precisavam ser respeitados: interrogado no juri se tinha algo a opor as testemunhas do processo, reclamou apenas de dois caixciros da casa de comissdes “que se achavam prevenidos com ele interrogado porque as vezes queria sair a rua ¢ ele nao consentia” (sic.). Ao reconstituir para 0 juiz seus movimentos nos minutos anteriores ao crime, Cyriaco narra uma visita 4 venda préxima da casa de negocios, “para pagar um tostdo que devia e comprar um maco de cigarros”. 2UProcesso criminal, Cyriaco, maco $$, numero 1180, ano de 1880, AN 0 A CIDADE ESCONDERUO E comecamos assim a penetrar nas oposigées que produzem a cidade real, nas batalhas cont{nuas entre a cidade codificada e desejada pelos brancos ea cidade institufda pelos negros. A cidade negra é uma cidade esconderijo. Braulio, de 20 anos, natural da Bahia, escravo de um fazendeiro em Valenga, fugiu para a Corte porque seu senhor era muito cruel ¢ o amarrara por dois meses a0 tronco quando ele Ihe pedira para ser vendido”". Bréulio conton ainda que alguns parceiros seus jd haviam morrido devido & severidade dos castigos impostos por seu senhor aos escravos, Chegando & Corte, Braulio, que tinha 0 oficio de carpinteiro, adotou 0 nome de Braz, preto livre, e parece ter morado seis meses na rua Estreita de Sao Joaquim antes de decidir pegar um paquete ¢ retornar A Bahia, sua terra natal. A tentativa nao deu certo, € Brdulio, talvez traido pelas cicatrizes que dizia ter nos calcanhares devido aos castigos no tronco, acabou enviado a Casa de Detengao suspeito de ser escravo. Por um lado, o meio urbano escondia cada vez mais a condi¢&o social dos negros, dificultando a distin¢Ao entre escravos, libertos ¢ pretos livres ¢ diluindo paulatinamente uma politica de dominio onde as redes de relagdes pessoais entre senhores € escravos, ou amos e€ criados, ou patrécs ¢ dependentes, podiam identificar prontamente as pessoas ¢ seus movimentos. Por outro lado, a cidade que escondia ensejava aos poucos a construcgao da cidade que desconfiava, e que para desconfiar transformava todos os negros em suspeitos??. Porém, antes de adotarem decididamente a estratégia da suspeig¢ao gencralizada, os administradores da cidade tentaram evitar de todas as formas que cla se transformasse num esconderijo. Temos entao os cédigos da cidade idealizada. O e6digo de posturas de 1830 proibia que os donos de casas de negécio consentissem na presenga “em suas portas (de) pessoas cativas sentadas, ou a jogarem, ou paradas por mais tempo do que o necessdrio para fazerem as compras”23, O eédigo de posturas de 1838, mais rigoroso ¢ detalhado em relag3o aos movimentos permitidos aos escravos e “pessoas de suspeita” — ¢ encontramos aqui, novamente, o temor provocado pelo levante dos africanos na Bahia em 1835 —, recomenda aos donos das tavernas que nado ‘permitam o “ajuntamento de mais de quatro escravos”, ¢ estabelece que “todo 2processo criminal, Bréulio, mago 3, ano de 1875, APTS, 22Com outras palavras, isto € também o que sugere ALGRANTI, Leila M., 0 Feitor Ausente: estudo sobre a escravidéo urbana no Rio de Janeiro: 1808-1821. Dissertagdo de Mestrado, USP, 1983, p. 45. 23posturas da Camara Municipal do Rio de Janziro, ano de 1830, titulo sexto, parigrafo oitavo, Arquive Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRI). 91 co escravo, que for encontrado das sete horas da tarde em diante, sem escrito de seu senhor, datado do mesmo dia, no qual declare o fim a que vai, sofreré ito dias de pris&o, dando-se parte ao senhor”24. Cidade senhorial codificada, sem surpresas; cidade negra transgressora, reconstituida: em outubro de 1881, 0 escravo Raimundo, alugado num armazém de café 4 rua da Satide, € acusado pelo caixciro € outros trabalhadores do dito armazém de ter arrombado a escrivaninha de seus patrées ¢ tirado de 14 cerca de duzentos mil réis em prata e dinheiro, além de letras de diferentes bancos?5. O escravo Augusto, amigo de Raimundo, conta na policia 0 encontro que teve com o acusado pela manha: “encontrou-se ele depoente com seu parceiro de nome Raimundo na ma Estreita de Sao Joaquim ¢ af viu este um papel de valor © viv que tinha escrito o algarismo de cem mil-réis e nessa ocasiao Raimundo disse # cle depoente que tinha tirado uma sone na loweria e que @ dite papel ihe havia sido dade por um cambisi Outros depoentes dizem que Raimundo explicara que fora um dono de quiosque quem lhe pagara o prémio da loteria, sem jamais mencionar onde era 0 quiosque nem quem era seu dono. O preto nega sempre que tivesse furtado 0 dinheiro, ¢ conta ao subdelegado “que o dinheiro que recebeu do cambista gastou durante a noite em pandega com outros individuos”, acrescentando ainda que quando chegou a casa de seu senhor, no outro dia pela manha, j4 ndo tinha mais dinheiro algum. Ha diversos exemplos de negros escravos circulando livremente pelas ruas A noite ou permanecendo longo tempo préximos a quiosques ou em botequins, Adao, africano de nagao Mina, de quarenta anos mais ou menos, escravo ganhador, entrou em apuros ao paquerar uma preta livre numa noite de junho de 187225, Interrogado na delegacia, ele contou que 24Cédigo de Posturas da Mlustrissima Camara Municipal do Rio de Janeiro e Editaes de Mesma Camara, Rio de Janeiro, 1870, parte referente 20 cédigo de posturas de 1838, titulo Vi, pardgrafo 12 ¢ titulo VII, pardgrafo 6, AGCRI. Sobre a importincia da revolta baiana de 1835 para o encaminhamento politico da questio da excravidio no Império, ver FLORY, Thomas, “Race and social control in Independent Brazil", Journal of Latie American Studies, 9(2), pp. 199-224. 25p;ocesxo criminal, Raimundo, mago 23, ano de 1881, APTI. 26Processo criminal, Adio Afticano, mego 1, ano de 1872, APTI. 92 “j8 tinha dado oito horas da noite indo ele para casa de seu senhor na rua dos Arcos, passou junto & preta Maria Virgolina da Conceigio ¢ sem entender com ele deu-lhe ma cabega com mesmo pau...” Adao foi logo preso por um guarda urbano que passava, e alegou em inter- rogatérios posteriores que havia “bebido um pouco”. Jé a preta Virgolina, de 31 anos, solteira, analfubeta, lavadeira e engomadeira, ¢ que certamente jamais assimilou bem ligdes de submissio feminina, relatou que “vindo... para sua casa, as nove horas da noite mais ou menos, ¢ a0 chegar a rua do Lavradio em frente da magonsria, passou por ela o preto Adio, que bulindo com ela ¢ ela respondendo-lhe, deu-Ihe uma cacetada na cabega e corren, correndo ela atris e outras pessoas do povo, até que ele foi preso. O acaso de algumas ocorréncias policiais nos formecem outros flagran- tes de escravos bebendo em vendas e perambulando pelas ruas. O escravo Caetano, por exemplo, remador, de 30 anos, foi agredido por um preto e um pardo, ambos livres, dentro de uma venda’, Caetano afirmou que os dois homens o haviam provocado ao observarem que acabara de receber um dinheiro. Os acusados Albino e Ant6nio, no entanto, contaram que passa- vam pelo Largo da Prainha, num s4bado 4 tarde, quando foram convidados pelo preto Caetano para beberem numa venda. Ao terminarem de beber, Caetano teria convidado Ant6nio a praticar “atos imorais”, 0 que provocou 0 conflito entre os trés. A cidade negra escondia ao misturar sistematicamente as pessoas. O eseravo Caetano foi & venda beber com homens livres pobres de cor. O preto José, também escravo, foi 4 venda da vizinhanga junto com outros compa- nheiros, todos livres, numa noite de agosto de 188278. No caminho de volta, José caminhava um pouco mais atr4s quando Pedro Thomas, preto livre, de 21 anos, escutou 0 escravo gritar; “Aqui d'El Rei que os cearenses me matam”. O que acontecia é que os cearenses Francisco ¢ Jodo, alegando esiarem cansados dos deboches do preto José, resolveram dar-Ihe uma surra. Eles explicaram ao subdelegado que “no dia mencionade foram em sua casa provocados pelo dito preto que desde longa data costumava zombar deles por serem retirantes ¢ nunca passava pela sua porta sem lhes dar alguma graga”. E freqiiente nos processos que testemunhas declarem desconhecer a condigao de cativo de um preto ou pardo envolvide numa confusdo qualquer. 27 Proceso criminal, Albino José da Silva e outro, muco 17, ano de 1877, APTI. 28processo criminal, Francisco Pereira de Souza ¢ outro, mao 6, ano de 1882, APTI. 93 O escravo Raimundo, que labutava ao lado de trabalhadores livres assalariados num armazém de café, parece no ter encontrado problemas para trocar as letras que furtara da escrivaninha de seus patrdcs, obtendo assim dinheiro para suas pandegas, Joaquim Cunha, o caixeiro portugués que ajudou Raimundo a descontar as letras, justificou-se na delegacia dizendo que n4o suspeitara da condi¢io de cativo do negro, Nesse caso, 0 caixeiro Joaquim talvez estivesse mentindo para n3o se complicar também com a policia. De qualquer maneira, j4 vimos que o escravo Braulio transformou-se no pardo livre Brés € conseguiu viver pelo menos seis meses numa rua bem central da Corte sem que sua verdadcira identidade fosse descoberta. E temos ainda a experiéncia de Adolfo Mulatinho, um negro que ocultava sua condigéo de cativo e que se empregava como trabalhador assalariado, exer- cendo suas habilidades de cigarreiro para diferentes patrées””. A senhora de Adolfo nao ligava importancia a essa atitude do pardinho, exigindo apenas que ele Ihe pagasse semanalmente a quantia combinada. E a pocira negra levantada pela cidade esconderijo mistura até destruir os perfis dos pretos e pardos escravos ou livres, trabathadores cativos ou assalariados. O pardo Bernardino, escravo de Leopoldina Maria de Souza, solteiro, de 32 anos, era empregado na cocheira do portugués Alfredo de Souza, na rua da Lampadoza, onde também residia*?. Bernardino tinha diversos portugueses como companheiros de trabalho, e acabou envolvendo- se numa briga com Manoel Félix. O portugués Manoel deu sua verso para oe rolo: “achava-se hoje pelo meio-dia na mesma cocheira quando entrando nela © cocheiro de nome Bemardino de cor parda, que supde ser escravo (grifo meu) ... principiou # provocar ¢ insultar, tanto a cle respondente como a mais dois empregados da casa; ¢ saindo ele respondente para 2 rua a fim de evitar algum conflito, 0 dito Bemardino © seguiv continuando 1 insulté-lo, e chegando & casa de pasto da mesma rus... onde cle respondente entrou, Bemardino entrando também agarrou em um cope ¢ atirou-o sobre cle respondente... feito o que Bernardino evadiu-se... Que o dito Remardino j6 andava a meses (sic.) com rixa com ele © sempre & provocé-lo*. Enquanto Manoel apenas suspeitava que seu oponente era escravo, os outros depoentes, inclusive alguns emprcgados da prépria cocheira, nada confir- maram a respeito, referindo-se ao réu como 0 “cocheiro Bernardino”, ou 0 “pardo Bernardino”, Foi Alfredo, o proprietdrio da cocheira, quem informou & 29Processo criminal, Adolfo Ferreira Nogucira, mago 9, ano de 1885, APTI. 30Pre «sso criminal, Bemardino, mago 4, ano de 1872, APTI. 94 policia que o réu era realmente escravo. Nao parece haver, portanto, nenhuma possibilidade de identificar prontamente a condic4o social do escravo-empregado Bernardino, que permaneceu foragido por oito meses apds a ocorréncia. Em dezembro de 1872, 0 negro apresentou-se a Dona Leopol- dina, sua senhora, sendo entSo conduzido a policia. No dia do julgamento no jari, Bernardino contou ao juiz que seu patrao Alfredo acreditava na sua inocéncia, tanto que j4 o chamara para trabalhar de novo na cocheira. O pardo foi absolvido e “entregue a sua senhora” em janeiro de 1873, De qualquer forma, Bernardino vivenciara uma autra face da cidade esconderijo. Ao passar por homem livre, 0 pardo viu-se atirado numa situagdo aberta de competi¢ao no trabalho com um imigrante portugués, que contava com as vantagens, nada despreziveis nessa sociedade, de ser branco, europeu, € ter um patricio seu como patrio. Outra experiéncia amarga teve 0 africano livre Ant6nio Ciro, de quarenta anos mais ou menos, ¢ que exercia 9 oficio de sapateiro*!. Segundo o relato do africano na delegacia, 0 caixeiro da casa lhe tinha implicancia, chamando-the inclusive de ladrao, 0 que acabou ocasionando uma briga entre eles. No juri, Antonio mudou um pouco sua versio sobre a causa do conflito: “encontrou-se com Bemardino Adolfo da Silva, que € caixeiro da casa de Peixoto e que passou a descompor a ele interrogado porque tinha cle interrogado faltado ao serio que o dito caixeiro tinha ordenado, ¢ nfo aceitando este as escusas... principion a dar-Ihe tapas...”. Vidas negras como as de Raimundo, Bréulio, Adolfo Mulatinho ¢ Bernardino, com seus movimentos irreverentes ¢ dificeis de enquadrar, destruiram vagarosamente a cidade branca que se imaginava ordenada pela escraviddo. Ao mesmo tempo, o medo branco dessas almas negras jd tentava engendrar a cidade-armadilha da suspeigao generalizada.., ACIDADE SOLIDARIA E a cidade negra era também solidaria. Ela era capaz de- buscar ¢ tecer solidariedades de formas diferentes ¢ com objetivos dos mais variados. O c6digo de posturas de 1830 estabelecia penas de multa ¢ pristo para “toda e qualquer pessoa com casa de hegécio que comprar objetos, que se julguem furtados, pelo diminuto prego de seu valor ¢ por pessoas que se julguem no 31processo criminal, Anténio Ciro, maco 27, ano de 1883, APTI. 95 possuirem tais objetos”3?. O cédigo de posturas de 1838 tentava apertar mais esse controle sobre a circulagao de objetos presumivelmente furtados por negros escravos ou “suspeitos”. Além de reafirmar a postura acima, ficava determinado que “Ninguém poderd ter casa ou loja de comprare vender tastes ¢ roupas usadas, vulgarmente chamadas ~ casas de belchior — sem que assine termo nesta Camara de. nflo comprar coisa alguma a escravos ou a pessoas suspeitas”33. E reveladora a férmula utilizada por esses cédigos - elaborados por administradores-proprictarios em defesa de seus bens — contra os despossuidos dessa sociedade: ou se enquadram na categoria de trabalha- dores compulsérios, 0s escravos, ou caem numa categoria que se vinha ampliando constantemente ao longo do século XIX — ou quem sabe desde muito antes -, as “pessoas, que se julguem nado possuirem... objetos”, ou as “pessoas suspeitas”. E os negros tinham a sua maneira prdpria de ver esta parandia branca de defesa da propriedade. Trés estrofes do conhecido lundu de Pai Joao tratam do tema de forma irénica: “Baranco dize — preto fruta, Preto fruta co razao: Sinhd baranco também fruta Quando panha casiéo. Nosso preto fruta garinha Fruita prata e patacio Nosso preto quando fruta Vai pard na coregio Sinhd baranco quando. fruta Logo sai sinhd barto™34, Este poema de agudo senso critico é um texto para a cidade negra. A preocupaciio dos cédigos de posturas em prever punicgdes para os maus proprietérios que se dispunham a comprar mercadoria de procedéncia duvidosa parece fundamentar-se em eventuais casos concretos. J4 vimos 0 episédio do escravo Raimundo, que envolveu um caixeiro portugues ¢ um dono de 32Posturas da Camara Municipal do Rio de Janeiro, ano de 1830, titulo sexto, farigrafo 11, AGCRI. 3Cédigo de posturss de 1838, titulo VI, pardgrafos 14 e 15 (indicagdo completa na nots 24), 34Lundu de Pai Jo%0, citado em MENDONCA, Renato, A Influéncia Africana no Portugués do Brasil, Rio de Janeiro, Ed, Civilizacio Brasileira, 1973, pp. 90 © 91. 96 quiosque nos seus esforgos para descontar as letras de banco que tirara da escrivaninha da casa de negécios de café; E h4 a histéria do escravo Arcelino, 0 ladrao de goiabadas>5, O negociante Francisco Siqueira, com fabrica de goiabadas & rua da Harmonia, havia alugada o preto Arcelino, de 17 anos, numa casa de comissOes de escravos. Em um dia de abril de 1877, encarregou 0 negro de levar cingiienta latas de goiabada a uma barraca na “praia de marinhas”. O negociante deu queixa na subdelegacia de que “em vez do dito Arcelino ter cumprido com seu dever, entregando 0 género que lhe foi encarregado, furtou fazendo despachar trinta ¢ seis latas da dita goiabada para Cascadura, lugar onde pretendia ir ¢ quatorze latas vendeu-as”. Arcelino fai Preso antes que pudesse buscar as latas que enviou para Cascadura; todavia, segundo as conclusdes do inquérito policial, as quatorze latas restantes foram vendidas para “o dono da confeitaria da rua do Conde, esquina da rua do Lavradio” e para um tabemeiro da rua do Regente”. Outros processos narram furtos menores cometidos por negros cativos ow livres. A fomentar a preocupagdo das posturas em regulamentar as atividades das lojas de roupas usadas, temos, por exemplo, 0 caso do pardo Manoel Sacramento, acusado de ter tomado para si o bau de folha que um doutor recém-chegado de viagem o contratara para carregar*®. O pardo Manoel foi acusado ainda de tentar vender o bai, que continha pecas de roupa ¢ livros, ao espanhol Bento Garcia, dono de venda. O réu porém afirmou sempre que apenas se perdera do viajante e que conduzira o baii a venda para guardé-lo até o aparecimento do dono. J4 0 crioulo Adolpho foi denunciado. por diversos portugueses por tentar furtar um bai de folha com os pertences de um dos caixeiros de uma casa de negécios*’. Adolpho alegou que entrara nos fundos da casa de negécios para ir & latrina “fazer uma precisio”. Com efeito, Adolpho parece ter sido surpreendido por um dos caixeiros portugue- ses na latrina com as cal¢as arriadas, sé que 0 bati de roupas do caixeiro estava inexplicavelmente a seus pés. Seria possivel multiplicar exémplos destes pequenos furtos, que confirmariam aparentemente a sugesto contida no lundu de Pai Jodo de que os negros, quando furtavam, estavam movidos pela légida da necessidade, da sobrevivéncia: “Preto fruta co razdo: ... fruta garinha, fruta saco de feijao”. E temos ainda as histérias do africano livre Joaquim, que teria furtado galinhas da casa de uma senhora para quem ja havia trabalhado*®, ¢ do escravo David, que foi detido por guardas-civis por levar consigo pela rua, de madrugada, trés galinhas. O escravo reagiu 35processo criminal, Arceline, mago , ano de 1877, APTI. 'SProcesso criminal, Manocl José do Sacramento, mao 4, ano de 1873, APTI. Processo criminal, Adolpho da Silva, mago 1, ano de 1872, APTI. 38Processo criminal, Joaquim, mago 25, ano de 1882, APTI. 97 atracando-se com os meganhas. O advogado contratado pelas senhoras de David argumentou que as galinhas pertenciam a0 escrava, ¢ que os policiais apenas quiseram tomar uma canja°?, Além do estabelecimento de vinculos que permitiam a circulagao de objetos supostamente furtados, a cidade negra arrancou também outras malhas de cumplicidade e protego de setores da cidade dita “livre”. O cédigo de posturas de 1838 instruia os fiscais para que vigiassem “o mau tratamento e crueldades que se costumam praticar com escravos, indicando os meios de preveni-los, e dando de tudo parte 4 Camara”. Mais importante ainda, 0 cédigo determinava que em casos de violagées dentro das casas dos cidadaos, © fiscal podia agir desde que houvesse “uma dentincia escrita de algum vizinho™, E dificil saber se este dispositivo das posturas de 1838 visava instituir uma prdtica de vigilancia sobre os senhores que se excediam nos castigos, ou se era apenas 0 caso de reconhecer ¢ regulamentar uma pratica social j4 relativamente generalizada no meio urbano. De qualquer forma, talvez haja aqui a constatag4o de que um dos motivos mais recorrentes alegados por escravos que agrediam seus senhores ou feitores era 0 de que estes aplicavam castigos. injustos ou excessivos. Era de longa data a preocupagio com a “economia” ou a “moderagao” dos castigos fisicos*!, ¢ ¢ possivel que nos aglomerados urbanos houvesse. uma sensibilidade maior para o fato de que senhores cruéis, ao incitar a reagdo de seus escravos que se consideravam injustigados, poderiam pdr em risco o- bem-estar geral dos proprietérios de escravos. Era noyamente. o fantasma baiano do levante em massa dos negros da cidade que se queria exorcizar. 39Processo criminal, David, mago 6, ano de 1881, APTJ. Em livro recente sobre Campinas e Taubaté, a autora mostra que havia nestes municfpios uma micro- economia escrava, alimentade por pequenos desvios da produgéo agricol MACHADO, Maria Helens P-T., Crime ¢ Escravidgo: trabatho, ima e resisténcia nas Javouras paulistas, 1830-1888, Sio Paulo, Brasiliense, 1987, pp. 103 = 111. J4 uma pesquisa sobre Capivary, municfpio rural pobre do interior fluminense no século XIX, nfo registrou a existéncia de casos de furtos de excravor not duzentos © tantos processos criminais snalisedos, sendo que apenas dois carot de fortos de ex-escravos foram, computados; ver GUIMARAES, Celeste Zenha, As Préticas da Justiga no Cotidiano da Pobreza. Um Estudo sobre 0 amor, o trabalho ea riqueza através dos processo penais, Disscrtagio de Mestrado, UFF, 1984, p. 94. 40C6digo de posturas de 1838, titulo XIT, parigrafos 7 © 8. 1 Uma andlise bela ¢ rigorosa dos discursos ¢ das priticas sociais associadas a0 castigo fisico dos escravos no periodo colonial esté em LARA, Silvia, Campos da Violéncia: Estudo Sobre a Relaséo Senhor-Escravo na Capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808. Tese de Doutoramento, USP, 1986, especialmente pp. 27 a 15. 98 A vigilancia dos vizinhos nem sempre devia ser uma garantia de bom tratamento para os cativos, especialmente as escravas domésticas, que pareciam sofrer mais freqiientemente com as violéncias dos senhores na cidade. A escrava Margarida, crioula, com cerca de quatorze anos, viera da Guaratiba para 0 Rio, e fora encaminhada a um negociante de escravos para ser alugada*?, A crioulinha estava havia oito meses alugada na casa de Gregério Cardoso ¢ sua esposa, quando seu senhor, vindo de visita 4 Corte, resolveu visit4-la, Chegando a casa de Gregério, onde foi junto com o caixciro da casa de comiss6es, o senhor de Margarida foi informado de que a crioulinha havia safdo para as compras e¢ estava se demorando muito. Gregério comunicou ao dono da casa de comissdes, no dia seguinte, que a escrava estava fugida. Mas o negociante ndo acreditou na histdria, pois “essa crioula... era de bons costumes e incapaz de ter fugido”. O caixeiro do negociante de escravos ficou de investigar o caso, e “foi informado pela vizinhanga... que a dita crioula fora morta em casa de Gregério cujo enterro. tivera saido ao romper do dia”, j4 havendo aproximadamente duas semanas desde que isto tudo ocorrera. O acusado, ao saber que andavam investigando 0s fatos, foi 4 casa dos vizinhos préximos dar explicagdes ¢ pedir que no 0 comprometessem nas declaracdes a policia. Os vizinhos, porém, foram unanimes em incriminar 0 casal, e a testemunha Luzia, por exemplo, acrescentou “Que a neguinha Margarida era muito maltratada com pancadas, © que ela presenciou dos fundos de seu quintal”, Percebendo que estavam perdidos, Gregério e a mulher colocaram as roupas € as galinhas num tilburi e fugiram. E possivel que o medo branco da reagZio dos escravos a castigos injus- tos e excessivos tenha aumentado consideravelmente a partir da década de 1870, quando setores da classe dominante também mostravam-se pouco dispostos a tolerar senhores que supliciavam seus negros, Casos como o da escrava doméstica Francelina, acusada, em 1872, do homicidio de sua senhora por envenamento, podem ter sido golpes decisivos a instituigao da escravidao*. Em momentos como este, a ameaga e 0 avango da cidade negra eram manifestados tanto pela simpatia que a préta era capaz de arrancar de membros da sociedade “livre” como pela desconfianga perturbadora de que os. prdéprios negros podiam se solidarizar e eliminar uma senhora considerada excessivamente cruel. Francelina, preta, natural da Corte, de 16 anos, foi minuciosamente interrogada pelo juiz no dia do julgamento, no juri. Ela contou: 42Processo criminal, Gregério Femandet Cardoso ¢ sua mulher, mago 8, ano de 1874, APTJ. 3Processo criminal, Francelina, mago 4, ano de 1872, APTI. “que sua senhora maltratava-Ihe muito, dando-lhe pancadas. todos os dias com pave uma vez chegou a ferir-lhe os olhos; era muito severa € injusta porque castigava sem motivo...”. Francelina insistira com seus senhores para ser vendida, com o que concordava o senhor, Francisco Calheiros, mas ao que sempre se opunha a senhora, Dona Maria Calheiros. A negra afirmou repetidas vezes que, apesar de maltratada, ndo fora a autora do envenamento, ¢ continuou seu relato diante de um jtiri que ficou comovido o suficiente para absolvé-la por sete votos contra cinco: “... (sua senhora) por de uma vez dissera que a interrogeda no seria vendida ¢ havia de morrer no cativeiro; que chegou mesmo a recorrer 4 policia a ver se era satisfeita em seu intento, € sendo reconduzida & casa de seu senhor foi por esse fato de novo castigada ¢ privada de sair A rua...; que ainda na véspera € no dia do envcnamento sux senhora Ihe batcu asperamente com um pay, sem nem ao menos the dizer porque...” Diversas testemunhas do sumério ram vizinhas do casal Calheiros, ¢ acreditavam unanimemente que fora Francelina quem havia ministrado vene- no no medicamento que sua senhora tomava habitualmente. Todos reconhe- ciam que a preta tinha motivos de sobra para buscar uma vingan¢a. Teles- phoro Lago, tipégrafo, de 42 anos, sintetizou bem a atitude dos vizinhos ao dizer que “a referida crioula. .. era freqiientemente maltratada com pancadas ¢ castigos que indignavam a vizinhanga”. O tipdgrafo contou também que chegara a falar com Francisco Calheiros a respeito dos castigos intensos que aescrava sofria, recebendo como resposta do senhor que ele ja tentara vender anegrinha, porém sua senhora a isso se opusera terminantemente. Dona Maria Calheiros parece um exemplo de crueldade senhorial requintada. Mas a julgar pelos desdobramentos da histéria, ela talvez nao fosse um caso assim (40 excepcional. A vinganga da escrava provocou aparentemente uma reag4o de medo branco em cadeia, revelando sem dtivida a vulnerabilidade de uma instituicdo cuja justificagdio ideoldgica talvez j4 nao convencesse uma boa parte dos prdéprios propriet4rios de escravos. Neste sentido, a vinganga a primeira vista simplesmente pessoal ¢ privada de Francelina assume um conteddo politico mais geral ¢ saborosamente sub- versivo. Ao prestar a dentincia, 0 promotor publico oscila entre o linguajar normalmente utilizado contra negros suspeitos de terem cometido crimes — Francelina seria “dotada de indole perversa e génio vingativo” - e a conde- nagio de uma senhora que impunha a sua escrava “freqiientes ¢ rigorosas sevicias a ponto de excitarem reparos da vizinhanga”. O promotor acaba concluindo que “semelhante fato... traz profundo abalo na nossa sociedade”. 100 Ea cidade negra, a cidade esconderijo, ficava ameacadora mesmo era quando ela se mostrava possivelmente solidéria. Durante o inquérito policial sobre 0 envenenamento de D, Maria, o chefe de policia recebeu uma carta andnima contendo “informagdes acerca da negrinha Francelina”. A carta informava que Francclina “freqiientava a venda da Travessa do Maia onde se diz que falava com o seu amigo. Um pardo”, O pardo livre talvez fosse um tal Galdino, que havia cozinhado algumas vezes na casa dos Calheiros e que podia procurar a negra. Além disso, a carta levantava suspeitas a respeito de um fiscal da freguesia do Sacramento ou de $20 José, chamado Pinheiro, que seria “amigo da negrinha e seu protetor™. Este iltimo € quem teria comprado 9 veneno a um boticério, Enfim, a carta anénima parece sugerir um plano, envolyendo a escrava e homens livres — sendo um deles pelo menos de cor parda —, com 0 objetivo de eliminar a senhora cruel. Até a ex-senhora de Francelina talvez no ficasse livre de suspeitas, pois o autor da carta informa que a negrinha ainda freqiientava a casa da familia onde havia sido criada, As pistas do investigador anénimo s&o muitas, portanto, ¢ nao é possivel perceber bem como estas pontas todas articulam-se num plano. De qualquer maneira, 0 contetido da carta sugere que mesmo a escrava doméstica de uma senhora cruel movia-se pela cidade, constituia solidariedades diversas ¢ era capaz de montar um cendrio alternativo ao teatro doméstico dos seus suplicios. Por tudo isso, a vingan¢a de Francelina 6 muito mais do que um ato isolado de uma consciéncia individual. As multiplas articulagdes significados da cidade negra do um contetido politico geral a crimes como 0 de Francelina™, Seria necessario ir muito mais longe nesta recuperagfo das miltiplas facetas da cidade solidadria. Ao lado destas solidariedades arrancadas, verticais, que viabilizavam a circulagao dos objetos obtidos com o furto necess4rio, ou que garantiam o minimo de protegao da vizinhanga contra as violéncias dos senhores, havia toda uma rede mais apertada, horizontal, das solidariedades tecidas entre os préprios negros escravos ou livres. H4 os exemplos dos amantes livres que arrumam dinheiro para a compra da alforria de scus #40utro caso localizada que parece ter tido alguma repercussio foi 0 do pardo livre Anténio Roméo, que matou a pancadas uma senhora ¢ seu filho, ja adulto, que viera em defesa da mic. Desta ver, € 0 proprio marido ds vitima que levanta suspeitas em relagdo & preta Maria, que havia tabslhado oa casa desta familia, mas que nio se sabia bem se cra escrava ou liberia, Anténio e Maria estariam combinados para cometer um roubo. O inquérito policial nada revela neste sentido, © Anténio acaba sendo considerado louco ¢ enviado para o hospicio; processo criminal, AntOnio Roméo, maco 9, ano de 1881, APTJ. O jomal O Globo inicia assim o seu noticiério sobre o caso: “Deu-se hoje na rua Large de Sio Joaquim, uma dessas tragédias que fazem época nos anais criminais de um pais” {exemplar do dia 14 de outubro de 1881) 101 companheiros ainda cativos*’, e do pardo que tenta reconciliar um casal de pretos que dividia um quarto numa estalagem*, ¢ dos tés africanos que se unem para denunciar um gatuno que invadira a estalagem na qual residiam*”, © assim por diante, até chegarmos aos grupos de batuque e danca e as manifestag6es religiosas. Esta rede horizontal ¢ densa, minuciosamente costurada, conferindo sentido a estas vidas negras ¢ instituindo lugares sociais onde a cidade branca n3o podia penetrar. A reconstituigo de alguns aspectos desta teia mitida de solidariedades horizontais ser4 tema de estudos posteriores. Penso, contudo, que estas p4ginas reconstitufram alguns cendrios sociais onde os escravos € libertos da cidade do Rio transformavam o cotidiano da explorago senhorial ¢ capitalista em momentos de sua propria luta. Nada neste cendrio negro de luta conflufa com projetos delirantes de construgo da sociedade do trabalho, higienizada, moral € civilizada. E tampouco estamos diante da problemética equivocada da intograg’o dos negros na sociedade de classes, isto 6, na sociedade capitalista emergente. E também no se trata da penetrago capilar ¢ anestésica dos fantasmas disciplinares. Estamos, na verdade, diante da guerra entre sujeitos histéricos que concebem a vida de forma radicalmente diferente, E esta 6 uma guerra peculiar, onde os sujeitos hist6ricos que possuem as armas mais ticas € poderosas juram que esto disparando flores, progressos ¢ disciplinas, E hora de iniciar 0 caminho de volta aos republicanos, ¢ tirar algumas conclusdes apenas indicativas na passagem. 3.0S VAGABUNDOS DO GOVERNO Celso Furtado, em paginas dedicadas ao problema da “eliminagao do trabalho escravo”, resume em certo momento aquilo que ele entende como os “tragos mais amplos da escravidao”: “O homem formado dentro desse sistema social esté totalmente desaparelhado para responder sos estimulos econdmicos. Quase no possuindo hébitos de vida familiar, a idéia de acumulagéo de riqueza é praticamente estranha. Demais, seu rodimentar desen- volvimento. mental limita extremamentc suas “necessidades”. Sendo o trabalho para o escravo uma maldiggo e 0 écio o bem inalcangével, a clevagio de seu salério acima de sues necessidades 45 Proceso criminal, Vit6rie, preto liberto, mago 27, ano de 1883, APTI; proceso criminal, Joaquim Africano, mago 8, ano de 1874, APTI. A6Processo criminal, Domingos José Ramatho, mago 2, ano de 1873, APTJ. 4T proceso criminal, Anténio Nunes Collares, mago 17, ano de 1876, APTI. 102 = que estio definidas pelo nivel de subsisténcia de um escravo — determina de imediato uma fone preferénci pelo écio*®”. O que ressalta aqui em primeiro lugar € que a visdo que o autor veicula dos libertos - os homens formados na escraviddo — € absolutamente idéntica Aquela postulada de forma aparentemente consensual pela classe proprietéria na segunda metade do século XIX: o liberto no tinha hdbitos de vida familiar, nao se preocupava em acumular bens, cra um retardado mental, ¢ apresentava tendéncia para.o écio. A elaboracao deste catélogo de disparates sobre os negros tem explica- g6es diferentes nos dois casos. Para Celso Furtado, trata-se do habito de pensar a histéria como evolugao ou desenvolvimento de uma totalidade social, desenvolvimento cujo sentido est4 dado de antemio pela op¢io “cientifica” de cada autor. ou reduzir a vida a uma sucesso monétona de modos de produgdo, ou fazer a apologia da sociedade liberal livre de impurezas, queimando etapas. sucessivas no sentido da “modernizagio”. Em qualquer dos dois casos, os negros aparecem como obstéculos ao desenvol- vimento, como responsveis pelo nosso desenvolvimento interrompido. Os x-escravos nao sc integraram, ficaram desajustados, em estado de patologia social. Este enfoque nao se confunde com as posturas racistas sobre os negros que este tipo de discurso, na verdade, surgiu para combater, Mas ha aqui uma incompreensio profunda para com © potencial politico do diferente, No caso dos politicos imperiais, incluindo aqueles que oportunamente viraram republicanos, a “fala” pouco edificante sobre os libertos deita rafzes profundas sobre o medo, esta terra fértil, dimensdo oculta da histéria’?. “Dimensao oculta” porque as pessoas raramente tém a coragem de admitir simplesmente que tm medo, recorrendo a argumentos légicos sofisticados para desqualificar e combater aquilo que € visceralmente temido. O medo, este. mével amargo ¢ inconfessdvel dos sujeitos histéricos, pode ser 140 elucidativo de alguns momentos, ou até de longos perfodos histéricos, quanto o estudo da acumulacao de capital, ov a andlise das mudangas nos Processos de produg40, ou os mondtonos debates dentro do Ambito do conceito de modo de produgdo. 4SFURTADO, Celso, Formacdo Econdmica do Brasil, Sto Paulo, Companhia Editora Nacional, 1979, 1@ edigfo, p. 140. 49Para um livro pionciro na tentativa de fazer uma hist6ria do medo no século XIX, ver AZEVEDO, Célia Maria Marinho de, Onda Negra, Medo Branco: 0 negro no imaginério das elites — século XIX, Rio de Jancito, Paz ¢ Terra, 1987. Também sugestivo quanto 20 “medo branco” no perfodo 6 © trabalho de SCHWARCZ, Lilia, Retrato em Branco e Negro: Jornait, Eseravos ¢ Cidadéos em Séo Paulo no Final do Século XIX, Sto Paulo, Companhia das Letras, 1987. 103 E os republicanos tiveram medo da cidade negra, da cidade diferente. Um medo profundo, enraizado na percepgao da racionalidade ¢ da recorréncia dos movimentos antindmicos dos negros escravos ¢ livres. Nao hd, € verda- de, nenhuma noticia de uma insurreigdo de negros de grandes proporcées na cidade no século XIX. Isto pouco ov nada importa. O medo de que isto ‘ocorresse cra sélido como uma rocha, € era realimentado de vez em quando por noticias de haitianos passeando pelas ruas da Corte, por revoltas urbanas em outros lugares, ou pelos rumores de uma conspiragao internacional para subverter as sociedades escravistas. E havia ainda o medo cotidiano e corrosivo daqueles negros que podiam ministrar veneno em remédios ou dar facadas, sendo perfeitamente conscientes e capazes de explicar o que estavam fazendo. © que mais espanta, no entanto, é que o medo branco da cidade negra parece ter aumentado com o fim da escravidao e da monarquia, O imperador talvez tenha sido bem sucedido em seus esforgos de vender a imagem de defensor da causa da liberdade dos negros. Perdigao Malhciro achava que D. Pedro Il estava “2 testa da cruzada”™; como vimos, Rui Barbosa irritava-se com libertos hostis aos republicanos, e Nabuco achava que © imperador era para os escravos “sindnimo de forga social ¢ até de Previdncia”..O assunto é complexo ¢ um estudo sobre a figura do imperador talvez esclarega muita coisa — caso nao seja empreendido por um nobre nostdlgico ou por um “rigoroso” historiador marxista desdenhoso das grandes personagens. O fato é que os primeiros governos republicanos s6 souberam exibir truculéncia e intolerancia em relacdo a cidade negra, deixando entre muitos populares aquela convicgiio profunda — captada por Joao do Rio — de que os “novos” tempos niio eram necessariamente tempos melhores. Os republica~ nos construfram todo um belo discurso como justificago de suas ages contra a cidade negra. Agiram em nome da higiene, da moral ¢ dos bons costumes, do progresso ¢ da civilizacdo. Jamais admitiram que eram movi- dos também pelo medo. Medo da quitandeira Maria de Sao Pedro, preta livre, que teve certo dia uma desavenga com ontra quitandeira®!, Maria desafiava a preta inimiga dizendo: “quero ver essa branca que quer me dar com 0 pau de yassoura”. Nesta briga de pretas, ser “branco” é sinénimo de ser frouxo. Nao € por acaso que Luiz Edmundo imita a prontincia de negros ao registrar um canto popular de desafio aos guardas-civis: SOPERDIGAO MALHEIRO, A Escraviddo no Brasil: Ensaio Hist6rico, Juridico € Social, Petrépolis, Vozes/INL, 1976, vol. 2, p. 93. 51Processo criminal, Maria de So Pedro, mago 2, ano de 1874, APTI. 104 “Bu vou bebé, Eu vou me embriagé, Eu vou faxé baraio Pra paliga me pega. A pulliga no qué Que ev dance aqui, Bu dango aqui, Dango. acolé*?, ¥ esta visio aut6noma e irreverente das coisas que aparece novamente na hist6ria do pedreiro Augusto, um pardo de 35 anos que se envolveu numa briga com um guarda-civil em 190953, Aborrecido com a intervengao do meganha, que viera supostamente estabelecer a “ordem” num botequim, Augusto 0 provoca dizendo que “o governo ndo tinha dinheiro e, no entanto, pagava tantos vagabundos para estarem em pé, nas esquinas”. Uma ‘percepeaia to clara das coisas no podia ser tolerada, ¢ Augusto acabou sendo assassinado com um tiro certeiro do meganha, que era, afinal, aquele que carregava uma arma na ocasido. As diferengas precisam ser eliminadas. Perseguir capoeiras, demolir corticos, reprimir a vadiagem - 0 que geralmente equivalia a amputar opgdes indesejAveis de sobrevivéncia --, cra desferir golpes deliberados contra a cidade negra, Os administradores republi- canos procuravam assim anular os movimentos daqueles que solaparam a instituigao da escravidao sem apoiar contudo nenhum projeto politico autoritério ¢ totalizante, Depois da escravidao... sei 14, talvez simplesmente acontinuagao da vida, mas no a reencarnagio da morte na “nova” sociedade do trabalho. A luta entre estes modos diferentes de ver a vida deu-se nas Tuas, ea revolta da vacina em 1904 pode ter sido 0 iltimo grito de protesto da cidade negra cldssica — o grito estridente de consciéncias diferentes, que clamavam apenas por um pouco de tolerancia. S2EpMUNDO, Luiz, O Rio de Janeiro do Meu Tempo, Rio de Janeiro, Ed. Conquista, 1957, vel. IV, p. 807. S3processo criminal, Roberto Osério, n® 5058, mago 886, ano de 1909, AN. 105

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