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Extraido de "O Elogio Da Serenidade, De Norberto Bobbio 3 A natureza do preconceito © que é preconceito Entende-se por “preconceito” uma opinigo ou um conjuntode opiniges, &s vezes até mesmo uma doutrina completa, que & aco- Iida acritca e passivamente pela tradigéo, pelo costume ou por uma autoridade de quem aceitamos as ordens sem discussio: “acrticamente” e “passivamente”, na medida em que a acitarmos sem verific-la, por inércia, respeito ou temor, ¢ a aceitamos com tanta forca que resiete a qualquer refutagio racional, vale dizer, a qualquer refuraszo feita com base em argumentos racionais. Por isso se diz corretamente que o preconceito pertencea esfera do ido racional, 0 conjunto das crengas que nao nascem do raciocinio € escapam de qualquer relutaggo fundada num raciocinio. O pertencimento aesfera das idéias que néo aceitam se sub- meter a0 controle da razdo serve para distinguir 0 preconceito de qualquer outra forma de opiniao errénea. © preconceito € tuma opinio errénea tomada fortemente por verdadeira, mas nem toda opinig errénea pode ser considerada um preconcei- 103 Bo Notero Bobtiow to. Para dar um exemplo banal, qualquer um de nés, ao estudar uma lingua estrangeira, comete err0s: sao erros que no deri- vam de um preconceito, mas pura e simplesmente da ignoran- cia de algumas regras daquela lingua. Qual a diferenca entre ‘um erro deste género e o erro do preconceito? A diferenca con- siste precisamente no fato de que 0 erro que cometemos 20 ‘escrever numa lingua que conhecemos mal pode ser corrigido mediante um melhor conhecimento, isto & mediante argumen- tos que apelam a nossa faculdade de raciocinar e de aprender com a experiencia, utra espécie de erro que néo deve ser confundide com © preconceito é aquele em que incorremos quando somos engana- dos por alguém que nos faz acreditar ser verdadeira uma coisa que verdadeira nfo é: podemos cair no erro de boa-é, mas tam ‘bém neste caso, uma vez desvelado oengano, estamos em condi «6es de reconhecer o erroe restabelecer averdade. Em geral, pode- ce cizer que se distinguem daquela opiniao errénea em que con- iste © preconcsito todas as formas que podem ser corrigidas mediante os recursos da razio ¢ da experiéncia, Precisamente por do ser corrigivel ou por ser menos facilmente corrigivel, pre: conceito ¢ um erro mais tenaz e soctalmente mals perigoso. Podemos agora perguntar de onde o preconceito extra tan ta forca para resistir, mais que qualquer outro erro, a refutazao racional. Creio ser possivel dar a seguinte resposta: @ forga do preconceito depende geralmente do fato de que a crencanave- racidade de urra opinido falsa corresponde aos meus desejos, mobiliza minhas paixBes, serve aos meus interesses. Por trés da forca de convic¢io com que acreditamos naquilo que o precon- ceito nos faz acreditar estd uma razdo pritica e, portanto, justa- mente em conseqiéncia desta razio pritica, uma predisposi ‘ acreditar na opinido que o preconceito ransmite. Esca predis- posigdo @ acreditar também pode ser chamada de prevencio. Preconceito e prevengdoestio habitualmente ligados entre si. O preconceito enrafza-se mais facilmente naqueles que jé esto 104 Elogio de serenidade favoravelinente predispostos a aceiti-lo. Também por iss0, 0 preconceito como cpinido e1r6neaaccita fortemente como ver- dadeira distingue-se das ourras formas de erro porque nestas, geralmente nio ha prevengao:¢ justamente porque no hi pre- vvencio, elas sio mais facilmente corrgiveis. Diversas formas de preconceito Existem virias formas de preconceito. Uma primeira distin- «40 itil 6 aquela entre preconceitos individusis e preconceitos coletives. Neste momento, no estou particularmente interes- sado nos preconceitos individuais, tal como as superstigdes, as crengas mais ou menos idiotas no azar, na maldiséo, no mau- olhado, que nos induzem a cruzar 03 dedos € a carcegar folhas de arruda, ou a fazer certos gestos de esconjuro, ou a néo re zar certas ac6es, como viajar as sextas-feiras ou sentar-se & mesa fem treze pessoas, a buscar apoio em amuletos para afastar azar ouem talisms para trazer sorte, Nao me interesso por isso porque so crencas mais ou menos inécuas, que no tém a periculosidade social dos preconceitos coletivos. Chemo de preconceitos coletivos aqueles que séo comparti Thados por um grupo social intsiro ¢ estio dirigidos a outro gru- po social. A peticulosidade dos preconceitos coletivos depende do fato de que muitos conflitos entre grupos, que podem até ‘mesmo degenerar na violencia, derivam do modo distorcido com que um grupo social julga o outro, gerando incompreensdo, ri validade, inimizade, desprez0 ou escérnio, Geralmente, este uizo distorcido € reciproco, e em ambas as partes é tio mais forte ‘quanto mais intensa é a identificagao entre os membros inivi- duais eo préprio grupo. A identificagdo com 0 proprio grupo faz que se pereeba o cutro como diverso, ou mesmo como hostil. Para esta identificeeo-contraposicio contribui precisamente © preconceito, ou scja, 0 juizo negative que os membros de um ‘grupo fazem das caracterfsticas do grupo rival. 105 Norberto Bobbio (Os preconceitos de grupo so inumeriveis, mas os lois his- toricamente mais relevantes ¢ influentes sfo 0 preconceite ns~ ‘ional e preconesito de classe. Néo é por outro motivo que os grandes conilitos que marcaram a hist6ria da humanidade sto 05 derivados das guerras entre nagOes ou povos (ou também races) e da luta de classes. Nao hi nagio que nao traga nas cos- tas uma idéia persistence, tenaz e dificilmente modificivel da propria identidade, que se apoiaria em sua pretensa e presumi- da diversidade em relacdo a todas as outras nagées. Hé uma ‘grande diferenca, &s vezes uma oposigao, entre o modo como um povo vé a si mesmo eo modo como é visto pelos outros povos; mas, geralmente, ambos 0s modos so constituidos per id€ias fixas, por generalizagSes superfcizis (todos os alemaes slo prepotentes, todos os italianos so espertalhoes ete), que precisamente por isso so chamadas de “esterestipos”. Para dar ‘um exemplo que nos é bem familiar, pensemos na idéia que os piemonteses fazem de si mesmos (que é uma idéia positiva) e na idéia que deles fazem normalmente as outras regiSes italia- nas (que é uma ideia negativa, 0 contrétio perfeito da idéia po- sitiva que fazem de si mesmos): tanto uma quanto a outra $30 esterestipos. Tanto é um esteceétipo dizer que o piemontés & ‘um bom trabalhador, correto ede poucas palavres, quanto dizer ‘© contrério, que ¢ um esforgado de inteligencia curta, fraco da cabega e frio nas relagoes interpessoais, Sobrea existéncia do preconceitode classe, nfo preciso acres- centar nada, pois se trata de um dado da experiéncia comum, Nao preciso esclarecer que o conflito de classe nasce também do preconceito, Nao digo que nasca apenas do preconceito. Nesce da contraposi¢ao real entre aqueles que tém e aqueles que ao ‘tim, entre proprietdrios exclusives dos meios de produséo ¢ ‘aqueles que nfo possuem outro bem sendo a forga de trabalho. ‘Mas ndo hd davida de que oconflito ¢ reforgado pelo preconcei- to, mediante o qual a duas classes contrapostas se atribuem reciprocamente apenas caracteristicas negativas. 106 Flosio da soreidede Preconceito ¢ discriminagio Ccupo-me do preconceito por suas conseqiiéncias nosivas. A conseqiiéncia principal do preconceito de grupo é a discrimi- nage. Dos exomplos que apzesentei - do precenceito nacional (01 regional) ¢ do preconceito de classe, a que se deve acrescen~ {ar 0 preconceito racial -, deriva que a conseqiiéncia principal do preconceito coletivo € adistingéo, ou melhor a contraposi¢zo, entre grupos que se discriminam reciprocamente Que significa discriminayao? A palavraé relativamente re- centee foi introduzida e difundida sobretudo em relacdo acam- panha racial, primeiro nazista e depois também fascista, con- tra os judeus, considerados um grupo “: peitoao grupe dominante. “Discriminacio" significa qualquer coisa a mais do que diferensa ou distingio, pois ¢ sempre usa- riminadlo” com res- da com uma conotacao pejorativa. Podemos, portanto, dizer ‘que por “discrimina¢o” se entende uma diferenciaao injusta ouilegitim, Por que injusta ou ilegitima? Porque vai contra 0 principio fundamental da justiga (aquela que os filésofos cha- ‘mam de “regre de justica”), segundo a qual devem ser tratados de modo igual aqueles que so iguais. Pode-se dizer que se tem ‘uma discriminacéo quando aqueles que deveriam ser tratados de modo igual, com base em critérios comumente: aceitos nos paises civilizados (para deixar mais claro, refiro-me aos eritérios, fixados no Art.3 da Constituigéoitaiana),’ sio trataclos de modo desigual TT TRRIIAO entre os “princpiosfundamentas” da Consttuigo italiana, pro ‘mulgada em dezemtco ce 1947, 0 AN. 3 estaelere 0 segue: “Tof0s 03 ads em ideniadignidade socal esto gta perantea et, em dstin- 0 de 2e10, raga lingua, relgdo,opinisespaitas,condigies peseous © Soins. F deer da Repbliea remover oe ebsticlat Je erdam condmica «socal que, miando defo aliberdaée ea iualdade dos eidadios, ive. «2m o plo deseavovimento da pessoa ea efcivapanicipagio de talosos ‘rabalhadores na organizaco peta, econtmicae socal do pals’. (N. 7) 107 Norbera Bobbio Procuremos compreender melhor em que consiste a discri- minacZo distinguindo as fases por meio das quais ela se desen- volve. Num primeiro momento, a discriminagéo se funda num mero juizo de fato, isto é, na constatagio da diversidade entre ‘homeme homem, entre grupo e grupo, Num julzo de fatodeste género, nao ha nada de reprovavel: 0s homens sio de fato dife- rentes entre si. Da constatagio de que os homens sao desiguis, inde néo decorre um juizo discriminante. (0 juizo discriminante necessita de um juizo ulterior, desta vez, do mais de fato, mas de valor: ov seja. necessita que, dos dois ‘grupos diversos, um seja cansiderado hom eo outro mau, ou que ‘um seja considerado civilizado e 0 outro birbaro, um superior (em dotes intelectuais, em virtudes morais ete; € 0 outro inferior. Com- preende-se muito ber que uma coisa ¢ dizer que dois individuos ‘ou grupos sio diferentes, tratando-se de uma mera constatacao de fato que pode ser sustentade por dados objetivos, outra coisa & dizer que o primeiro 6 superior ao segundo. Um jufzo desse tipo introduz um citério de distingao néo mais factual mas valorativo, ‘que, como todos 0s juizos de valor, relativo, historicamiente ou ‘mesmo subjetivamente condicionado. Na discriminacao racial, que uma dis discriminagBes mais odiosas, este intercimbio entre julz0 dle fato¢ juizo de valor ecorre habitualmente. Que os negres sejam diversos dos brancos, é um mero julzo de fato: trata-se, dentre ‘outras coisas, de uma diferenga visvel, 80 visivel que nao tem ‘como ser negada. A discriminago comega quando as pessoas no selimita mais @ constatar que sao diferentes, ¢ acrescentam que ‘os brancos sao superiores aos negras, que os negros sio uma raga inferior. Inferior com re!agio a qué? Para dizer que um ser 6 supe- rior a outro deve haver algum critério de valor. Mas de onde deriva este critério de valor? Trata-se de um critério de valor que quase sempre ¢ inserido acritcamente no ambito de certo grupo e que, como tal, se apoia na forga de tradigao ou numa autoridade reco- nnhecida (por exempio, num texto considerado infalivel pelos se- guidores, como o Mein Kanpf de Hitler. 108. be Elogio do streidade © proceso de diseriminacéo nao termina aqui, mas se com- pleta numa terceira fase, que é a verdadeiramente decisiva. Para que a discriminagao libere todas as suas conseqiéncias negati- vas, néo basta que umn grupo, com base num juizo de valor, afir- ‘me set superior 20 outro. Pode-se muito bem pensar num indi- viduo que se considere superior aoutromas ndo extraia de modo algum deste juizoa conseqiéncia de que é seu dever escravizé- Jo, exploré-l0 ou até mesmo eliminé-lo, Pensem na relacéo habi- tual entre pais e filhos. Nada a objetar quanto A consideracio da superioridade dos pais sobre os ilhos, até mesmo porque esta supe- rioridede pode estar parcialmente assentada em bates objet- vas, ao menos enquanto os filhos forem pequenos. Porém, des- ses dois jufzos ndo decorre de modo algum a conseqiiéacia de que 0 superior deva esmagar o inferior. Antes disso, passa-se nas relagbes familiares precisamente 0 oposto: como superior, 0 pai deve ajudar o filho. O mesmo ocorre, para dar um exemplo ‘tual, nas relagées entre o Norte eo Sul em nivel mundial. Nin- sguém pSe em ckivida a superioridade do Norte com respeito ao Sul, no minimo sob oaspecto tecnolégico. Mas, desta superiori- dade, ninguém considera poder derivar a conseqiigncia de que é bom que 0 Norte viva nz abundancia e 0 Sul sofca fome. A rele- «flo de diversidade, e mesmo a de superiotidede, no implica as consegtiéacias da discriminagao racial. Que nao se restringe & consideracdo de superioridade de uma raga sobre outra, mas di ‘um outro passo decisivo (aquele que chamei de terceira fase no processo de discriminagio): com base precisamente no juizo de que uma raga é superior e a outre 6 inferior, sustenta que a pri- meira deve comandar, a segunda obedecer. a primeira dominar, a outra ser subjugada.a primeira viver a outra morrer. Da rela- ‘lo superiorinferior podem derivar tanto a concep de que 0 superior tem o dever de ajudar o inferior a alcangar um nivel ziais alto de bem-estar e clvillzago, quanto a concepgio de que ‘superior tem 0 direito de suprimir o inferior. Somente quando a diversidade leva a este segundo modo de conceber a relagio 109 Novbarte Boo entre superior e inferior & que se pode falar corretamente de ‘uma verdadeira discriminacéo, com todas as aberracées dela decorrentes. Entre estas abertacées, a historicamente mais destrutiva foi a “solucio final” concebida pelos nazistas para resolver o problema judaico no mundo: ¢ exterminio sisteméti- co de todos os judeus existentes em todos 08 paises em que © nazismo estendera seu dominic. Para chegar a esta conclusso, 0s doutrinadores do nazismo tiveram de passar por estas tr8s diversas fases: a) os judeus so diferentes dos arianos; b) os arianos so uma raca superior; c) as ragas superiores devern dominar as inferiores, ¢ até mesmo elimind-las quando isto for necessdrio para a propria conservacdo. Os varios tipos de discriminagéo... Examinei até agora o nosso maior exemplo de discrimina- (fo: aracial. Ela, porém, nfo é a nice. HA muitas outras. Considere-se 0 Art. 3 da Constituigioitalia- ‘na, no qual se Ié: “Todos os cidadaos tém idéntica dignidade so- cial eso iguais perante a lei. A afirmagao de que todos 0s cida- dos so iguais j&é, por si mesma, uma tomada de posicdo com respeito a toda forma de discriminao. Como ji observe, a dis- criminagio repousa antes de tudo na idéia de que os hornens sio desiguais. © Art. 3 continua: “sem distingéo de sexo, raga lingua, religido, opiniGes politics, condig6es pessoais e sociais” Detenho-me de modo particular na discriminagéo referida as opiniges politicas e na que diz respeito as condigGes pessoais, € sociais. A primeira se toma sempre mais irrelevante, ao me- ‘nos num Estado democratico, que é pluralista por sua propria nnaturezae vive deste pluralismo. Ainda que néo seja totalmente verdade que seguir uma opiniao politica em ver de outra néo tena conseqtiéncias praticas, admite.se em termos de princi pio, € portanto de modo categérice, nio mais sujcito a discus- so, que numa sociedade democrética cada um € live para se- no Eogia doo guir a opinio politica que considere melhor. Para darum exem- plo de discriminagio com respeito & opinio politica num Esta- do democratico, pode-se tomar o Berufsverbot que vigorava na Repiiblica Federal Alemi: quer dizer, a determinacao com base 1a qual os membros de certos movimentos ou partidos conside- rados subversivos no podiam ingressar em alguns érgios pi- blicos. Um dos objetivos primirios do Estatuto dos Trabalhado- res, que vigora na itdlia desde 1970, foio de garantir aliberdade

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