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re ical b Entre Témis ¢ Leviata: uma relagdo difleil Marcelo Neves “Esta obra é de particular interessedevido & sua inovagio teorica, Parte de dua posites irreconeliveis em principio, levando 4 otimizagi reciproca do enfoque tedico. Ao manter-seigulmenteditante dss posigdes orginirias de Luhmana e Habermas, o autor dlesenvolve uma comprecnsio incisiva das presnts cones de pula do Extado Democritico de Direito no context estatal ¢ lobl. A obra é de extraordiniia soles, capacidae inovadoraeatualiagio” (Ingeborg Maus, Universidade de Frankfurt). “As questJes que ele pie, 08 fendmenos que ve ‘eas respostas que di diferem do discurso. académico usual. Hi um forte senso de “originalidade no pensamento de Neves” (Gunther Teubner, Universidade de Frankfurt), “Neves apresenta uma anilise comparativa altamente inovadora das teoriassociais de Lubmann ¢ Habermas, integrando-as sob os Pontos de vista da soctologiajurdica e da teoria constitucional. Q trabalho faz parte das poucas sinteses bem-sucedidas de teoria social ‘ teoria constitucional” (Hauke Brunkhorst, Universidade de Flensburg) “A contribuisio de Marcelo Neves nto & apenas informativae digna de leitura, ela & necesséria para uma descrigio das perspectives de desenvolvimento do direito da sociedade ‘mundial e de sua relagio com a politica, o que pressupie uma descrigio complenamente ‘adequada do starus gus” (Andreas Pscher-Lescano, Archie fir Rechts- und Sosialphilosphic). [Marcelo Neves é livre-dacente de Filosofia do Direito, Teoria do Fata « Direito Constiucional ‘Comparado na Universidade de Friburgo, Sug, © Aoutor em Direito pela Universidade de Bremen, ‘Alemanha, Foi profesor estedrtio substitu do Departamento de Cincy Soca ds Universidade de Franklur, profesor vistane da Universidade de Flensburg ¢ professor ular da Faculdade de Diesito {do Recife (UFPE). reece dhcp Kat Ha Tara Song eis hvae eli Pl S mcni 1505 (ey genes. Zar Ve ENTRE TEMIS E LEVIATA: UMA RELACAO DIFICIL ENTRE TEMIS E LEVIATA: UMA RELACAO DIFICIL O Estado Democritico de Direito a partir ealém de Lukmann e Habermas Marcelo Neves Martins Fontes ‘Sao Paulo 2006 TAUSEINAMDERSETZUNC MIF LUBA UND HABERMAS “cp tL Mon Fonte Eero, ‘Sh Pan pee poets eto 2006 Resse gfe Paginas iL i 9 Et De tus? Mao ever Tmt doar = 30 Palo Jane 1904 Laban iba 1927-19961 Tl. Tadic pncalagpsinemitice Tks sites desta eis pro Bras reserves 2 Ligraria Martins Fontes Editora Lida ut Conseco emai, 30 01325000 Sto Paulo SP Brasil "a, (1) 32613677 Fax (1) 310.108 emai nfosmartnsoniecom br Ipwncnrtinsfntescombr INDICE Preficio a edigao brasileira... - x Preficio a edigio original alemd. xi Introdugao. coven XVI cariruLo1 Dois modelos de evolucao social..... 1 1. A evolugio social como processo de complexifica- (fo e diferenciacio funcional e a evolucao do di- reito conforme o modelo lukmanniano. 1 1.1. Bvolucdo dos sistemas sociais. 1 12. A sociedade moderna: Iupercomplodade «die renciago funcional... u 1.3.4 evolucio do direito: direito arcaico, direito das culturas avangadas pré-modernas-e direito positive. 18 2. A evolugio social como desenvolvimento da cons- ciéncia moral e a evolugio do direito conforme 0 modelo habermasiano... B 211. Do desenvolvimento ontogenstico a filogenstico.. 25 2.2. A modemidade como estaio da consciéncia mo- ral universalista.n.orn snneanne AB 2.3. Estédios da evolugao do ditetO.s.e neon 53 capfrutom Duas diferencas paradigmaticas........ 59 1.A diferenca “sistemalambiente”: a autopoiese dos sistemas sociais 59 2.A diferenca “sistema/mundo da vida”: ‘acto comunicativa . caPiTuLo mt Duas concepcées de Estado Democré- 4, Uma breve referéncia a0 caso BrAsileiPO inne 284 tico de Direito......... 79 1. A concep¢io de Estado Democnitico de Direito na Perspectiva: do Estado Democratico de Direito a0 teoria dos sistemas. 9 direito mundial heterarquico ou a politica interna 1.1, Positividade: da deciibilidade & autopoiese do di 7 mundial?. ° sa) reito... 12, A diferenciagio entre direita e poder politico ..... 85 13, Constituigao como acoplamento estrutural 8 Bibliografid.ensnnnnnennn 285 2. Aconcepgiio de Estado Democritico de Direito na Indice onoméstico. 327 teoria do discurso . 106 Indice remissivo... 333 2.1.A autonomia do diteitofundada no procedimen to racional 106 2.2. O discurso do Estado Democrético de Diet... 118 cariTuLorv Estado Democratic de Direito: 0 mo- e10 an 123 1, Além das divergéncias e complementaridades entre 0s pressupostos tebricos de ambas as concepedes... 123 2. Por wma releitura da legitimago procedimental: intermediacao do dissenso conteudistico através do consenso procedimental 136 3. Soberania do Estado e soberania do pOv0 rnc 156 4, O principio da igualdade e a heterogeneidade...... 166 5. A cidadania como mecanismo de inclUs@0..u00n 175 6. A pluralidade e circularidade de procedimentos do Estado Democritico de Direito. 185 7.A interpreta ridin no Estado ‘Democritico de Direito, ssnnnnnnnnnnnine 196 cariruLov Estado Democratico de Direito: as con- digdes 1. O Leviati impotente: sob pressao dos fundamen talismos ou particularismos étnicos e das exigén- cias da sociedade mundial. 215 2. O problema do Estado Democritico de Direito na modernidade central: limites & heterorreferéncia .. 226 3. O problema do Estado Democritico de Direito na modernidade periférica: obstaculos & auto-refe~ PENCd.r : 236 PREFACIO A EDIGAO BRASILEIRA ‘Uma primeira versio deste trabalho em lingua portugue- sa foi claborada no outono e invemo boreais de 1996-97, em Frankfurt sobre o Meno, na Alemanha, Mais tarde (1998-99), Preparei uma versao alema revista e ampliada de maneira abrangente, que foi aprovada como tese de livre-docéncia na Universidade de Friburgo, na Suica, tendo sido publicada, com algumas alteragGes, pela editora alema Nomos, em 2000. O presente livro é uma tradugao dessa publicagao ale, com alguns comentarios complementares e referéncias a obras, que vieram a lume posteriormente. Na traduco de alguns termos e exp:essées centrais nas obras de Luhmann e Habermas, tive dificuldades e procure ajuda em livros traduzidos nas linguas mais proximas do nos. 0 vernéculo, que sio referidos na bibliografia apés as res- pectivas obras desses autores no original. Em poucos casos, {sso me ajudou, como na tradugao lapidar de “zxveckrationales Handeln” por “agir racional-com-respeito-a-fins”, proposta por Zeliko Lopari¢ e Andréa Maria de Campos Loparié, em tradugio de artigo homénimo do livro Tecknik und Wissen- schaft als “Ideologie” [Técnica e ciéncia erquanto ideologial, de Habermas (1969). Em outros casos, na maioria das vezes, faltou unidade, e as soluges, em outras ocasides, eram muito diferentes. As- sim, na traducio de “Selektionscwang” encontramos trés alter x ENTRE TEMIS E LEVIATA: UMA RELACAO DIFICIL nativas: “necessidade de selecdo” na tradugdo brasileira da Rechitssoziologie [Sociologia do diteito] de Luhmann (1987b) ou “necessita di selezione” na versao italiana de Soziale systeme (Luhmann, 19872); “coaccién de selecién” na traducao espa- hola; ¢ “being forced to select” ou “pressure to make selections” na versdo inglesa dessa tiltima obra. Preferi algo mais préximo da traducio inglesa e decidi por “pressao seletiva’, que, por um lado, embora nao seja literal, adequa-se ao nosso verné- culo, 20 contratio de “coagao de selesa0”, por outro, nao utili- za um termo problemético no contexto da expressio, a palavra “necessidade”. Pressio seletiva relaciona-se com o aumento de complexidade na teoria luhmanniana, ndo devendo ser re- lacionada a falta de alternativas, Cabe notar que Luhmann, em alguns trechos, utiliza, em lugar de “Selektionszoang”, no mesmo sentido, a expresso “Selektionsdruck”, que pode ser literalmente traduzida por “pressao seletiva’. A expresso mais dificil com que deparei na traducéo foi “Steuerungsmedium”, de Habermas. A tradugao literal de “Steuerung”, no contexto da expresso, parece-me nao ter sentido ou, no minimo, apresenta-se estranha ao nosso ver- naculo: referir-se a dinheiro ou poder como “meios de dire saolcondugio” é algo que leva a equivocos. Uma solucao muito usual é traduzit, no mesmo contexto, “Steuerung” por “regulacio”, como ocorre nas verses espanhola e brasileira do livro de Habermas (1992). Entretanto, “Steuerungsmeditan” diz respeito & dimensao sistémica, e Habermas refere-se @ “regulative Funktion” {funcao reguladora] para referir-se, no trato do mesmo tema, a0 “direito como instituigéo”, ancora: do no “mundo da vida”. Como traduzir por “regulacéo” e “reguladora” termos que pretendem ter significados anta- g6nicos no modelo habermasiano? Também a solucao contida na tradugao inglesa da obra de Habermas (19822), © emprego da expressao “steering medium’, que tanto pode ser vertida em “meio de condugao” ou “meio de coordena Gio”, ndo me pareceu satisfatéria. Segui, nesse particular, a traduao italiana do livro de Habermas (1992), da lavra de Leonardo Ceppa, que preferiu verter “Steuerung” para “con- PREFACIO A EDICAO BRASILEIRA xl trollo”, e o tradutor espanhol de Habermas (1982a), Manuel Jiménez Redondo, que verteu “Steuerungsmedium” para “me- dio de control”. Sei que “meio de controle” nao é nada espe- cial, mas considerei o longo perfodo que Leonardo Ceppae Manuel Jiménez Redondo trabalharam junto com Haber- mas, quase exclusivamente dedicados 3 tradugao de sua obra. “Meio de controle” serve melhor para apresentar a idéia habermasiana de dinheiro e poder como mecanismos que constrangem e limitam a agao, atuando como imperativos sistémicos. Outras dificuldades surgiram na tradugdo de termos em lingua alema e em outras linguas, mas, em regra, tomei mi- nas decisdes sem considerar as alternativas contidas nas respectivas tradugdes referidas na bibliografia, que servem antes para a orientagao dos leitores brasileiros que eventual- mente nao tenham acesso aos respectivos originais A presente versio portuguesa deste livro nao poderia ter sido concluida de maneira (que me parece) tao exitosa, caso nao tivesse contado com a revisac cuidadosa do ver- naculo por Regis Dudena. Na primeira versao, elaborada de- pois de um longo tempo na Alemanha, o texto tinha um es- tilo que se desviava, em certos momentos, de certas peculia- ridades de nossa lingua. Com a ajuda de Regis, houve uma melhora significativa a esse respeito. Sou muito grato a esse jovem académico, ao qual desejo muito sucesso profissio- nal e pessoal ‘Sao Pauly, novembro de 2005 MarceLo Neves PREFACIO A EDIGAO ORIGINAL ALEMA Os estudos referentes ao presente livto foram realizados, durante dois perfodos que passei na Europa como pesqui- sador visitante. ‘Na qualidade de bolsista-pesquisador da Fundagio Ale- xander von Humboldt na Universidade Johann Wolfgang Goethe, em Frankfurt sobre o Meno (1996-98), e na London School of Economics and Political Science (outubro e novem- bro de 1997), iniciei e desenvolvi em grande parte o traba- Iho. Sou grato A Fundacao Alexander von Humboldt pelo suporte institucional que me foi proporcionado. Agradego a Giinter Frankenberg 0 convite para a mencionada estada de pesquisa em Frankfurt. Devo muita gratidio a Ingeborg Maus e Gunther Teubner pelo estimulo e apoio que me de- ram em Frankfurt e em Londres. A Ingeborg Maus e seus co- laboradores gostaria também de manifestar 0 meu agradeci- mento pelo acolhimento amigavel em seu Col6quio de Teoria da Sociedade e pelas frutiferas discusses. Na Alemanha tive oportunidade entao de retomar os enriquecedores didlo. .gos com Karl-Heinz Ladeur e Niklas Luhmann (falecido em 11998). A eles, que tanto me estimularam e apoiaram, perma- nego vinculado por lagos de gratidao. Agradeco a Friedrich Milller mais uma vez. pelas proveitosas discussdes na Ale- manha e no Brasil ‘Mais tarde, em 1998-99, na qualidade de pesquisador vi sitante do Instituto de Federalismo da Universidade de Fri xiv ENTRE TEMIS LEVIATA: UMA RELACAO DIFICIL burgo, na Suica, dei continuidade as investigagées e conclui a monografia. As étimas condigdes de trabalho e a atmos- fera favordvel no instituto contribuiram consideravelmente Para a consecucao de minhas pesquisas. A diregao do Ins- tituto de Federalismo e aos seus colaboradores agradego a hos- Pitalidade e solicitude. Sou especialmente grato a Thomas Fleiner, diretor do instituto, pela abertura académica e en- volvimento pessoal em favor de minha permanéncia como pesquisador na Suica. A chefe do Centro de Pesquisas e Consultas do institut, Lidija Basta-Fleiner, gostaria de ex- pressar nesta ocasiéo, mais um vez, a minha gratido, Tam- bém gostaria de agradecer a Peter Gauch, que me abriu as Portas académicas em Friburgo e recebeu-me cordialmente; a José Hurtado-Pozo e a Walter Stoffel pelas oportunidades proporcionadas. Durante a minha estada de pesquisas na Suiga, Franz Xaver von Weber deu-me amplo apoio, tanto no aspecto pra- tico quanto no sentido tedrico. Por sua solicitude amigavel devo-lhe sincera gratidao, Por estimulos e apoios oriundos do meu pais, o Brasil, sou, como dantes, muito grato a Bernardette Pedrosa, Lou- rival Vilanova, Claudio Souto, Raymundo Faoro, Paulo de Bar- 0s Carvalho, Tércio Sampaio Ferraz Jr. e Eros Grau. Andrea Bruhin dedicou-se a revisdo gramatical e estlis- tica, muito contribuindo, com seu esmero, para a clareza do texto, Sou-Ihe imensamente grato, Este trabalho, que revisei levemente para fins da pre- sente publicacio, foi aprovado como tese de livre-docéncia [Habilitationsschrif] pela Faculdade de Ciéncias Juridicas da Universidade de Friburgo, na Sufca, no semestre do inverno de 1999-2000. Aos pareceristas no procedimento da livre~ docéncia, Thomas Fleiner e Jérg-Paul Miiller, gostaria de ma- nifestar nesta oportunidade, mais uma vez, a minha gratidao pelo interesse e comentérios criticos. No semestre de verdo deste ano, fui convidado por In- geborg Maus para uma permanéncia como bolsista-pes- quisador da Fundagao Alexander von Humboldt no Depar- PREFACIO A EDIGAO ORIGINAL ALEMA xv tamento de Ciéncias Sociais da Universidade Johann Wolf- gang Goethe, em Frankfurt sobre 0 Meno, o que me possibi- Jitou realizar as tltimas revisdes do texto e preparar a publi- cacao do trabalho. Por esse incentivo e o apoio & publicacio do livro sou muito grato a Ingeborg Mavs ¢ & Funda¢ao Ale- xander von Humboldt. Frankfurt sobre o Meno, agosto de 2000 MARCELO Neves, INTRODUGAO O presente trabalho resulta de uma pesquisa interdis- ciplinar sobre o Estado Democratico de Direito. O ponto de pattida consiste no foco de tensao entre o paradigma sistémi- co luhmanniano e a teoria habermasiana do discurso. Em. principio, trata-se de duas concepgdes inconcilidveis da so- ciedade e do Estado modemos. Nao se pretende aqui buscar 1m denominador comum ou simplesmente proceder a uma critica a0 suposto unilateralismo de ambos os modelos. Inte ressa-me, enfrentando as divergéncias e complementaridades das duas perspectivas, esbocar os elementos de uma teoria dos fundamentos normativos e das condigGes empiricas do Estado Democtatico de Direito na sociedade supercomplexa da modernidade. Isso nao significa, no presente caso, uma postura eclética, Pretendo, antes, proceder a uma reconstructio que, sem desconhecer a riqueza dos aparatos conceituais cde ambos os paradigmas e as divergéncias radicais de pressu- postos teéricos entre eles, possibilite uma melhor compreen- so do Estado Democratico de Direito na atualidade. ‘Tendo em vista que se trata de dois modelos teéricos conceitualmente muito complexos e abrangentes, dedico. me & exposigéo de alguns dos seus aspectos mais relevan- tes nos trés primeiros capitulos, para que se evitem equivo- cos a respeito das teflexdes expressas na segunda parte do trabalho (Caps. IV e V). Evidentemente, nao é objeto deste livro uma andlise exaustiva dos dois paradigmas. Pretendo XVI ENTRE TEMIS E LEVIATA: UMA RELACAO DIFICIL apenas apontar, nos Capitulos 1, Ile III, certos tragos bési- cos que possam facilitar a compreensao da abordagem pos- terior sobre o Estado Democratico de Direito. Além disso, 0 presente trabalho, nesses trés capftulos em que sao apresen- tados os enfoques de Luhmann e Habermas, é parcimonioso nas criticas, Nao se objetiva um modelo tradicional de critica a teorias consolidadas em forte arsenal conceitual. Permito- me questionar o significado e os limites dos elementos te6- ricos de ambas as concepgies na segunda parte, na qual pro- ponho um modelo de fundamentacao (Cap. IV) e discuto as condigdes do Estado Democratico de Direito (Cap. V). As observagées finais do presente trabalho consistem em uma anilise critica das perspectivas decorrentes dos novos pro- blemas do Estado Democratico de Direito em face dos desen- volvimentos que se delineiam no sentico da emergéncia de ordens juridicas globais ou de uma politica mundial. A metéfora utilizada no titulo, “a relacdo entre Témis e Leviata’, serve como guia da discussao em vérios niveis, O problema do Estado Democritico de Direito & exatamente © de como coneiliar poder eficiente com direito legitimador. Na tradigdo ocidental, Leviata apresenta-se como simbolo do poder expansivo do Estado!. Témis, antes de tudo, repre- senta a justiga abstrata’. O Estado Democratico de Direito 1..Nio se trata aqui de uma concept do Leviat fiada estrtamente na hermenutica da obra de Hobbes (a respeit, ver Voigt (org, 2000), mas sme da nogéo do Leviat disseminad amplamente tanto na poitica e no ditto {quanto nas ciéncias humanas ena flosofia {uma metafora referente ao poder «sala, no necessastamente a0 "Estado do Poder” ["Machtsstaa| ~em sen. tido diferente, Voigt 2000: 16 5), nogdo que se desvincula, em ceta medida, de Hobbes e xe desenvolve relaivamente independente de sa obra. 2. Claro que Témis, em sua forma ferinina ao contrio da forma mas- culina de Leviati), no €otnico feone da jstga na tradigGo ocdental. Nesse sentido, salentam Curtis ¢ Resnik (1987: 1729: "Evidentemente a jusiga N20 ‘Sam icone sltrio na tradgaoocidental. Antes, uma de uma série de imagens, ‘maior parte na forma feminina, associada a conceitos poderosos de vitudes © vicios,Justga, como muitas desses imagens, raga sua linhagem a parr de deu- ‘sas. Seus precursres parecem ter sido Ma’at na elturaegipca, Themis e Dike za Grécia antiga e, eno, fsa sob o dominio romano” A respeitode Temis ‘oantigo pensamento grego, ver Hirzel, 1907: 1-37. INTRODUGAO xIX caracteriza-se precisamente por ser uma tentativa de cons- truir uma relagao sdlida e fecunda entre Témis e Leviati ~ portanto, de superar a contradigao tradicional entre justia divina e poder terreno (um paradoxol); uma tentativa no sentido de que a justica deveria perder sua dimensao trans- cendente e 0 poder nao mais ser considerado mera factici- ‘dade: 0 Estado Democratico de.Direito como invengao da modernidade. Nesse tipo de Estado, Témis deixa de ser um simbolo abstrato de justiga para se tornar_uma referéncia teal_e concreta de orientagio da atividade de Leviata. Este, por sua vez, é rearticulado para superar a sua tendéncia ex- ansiva, incompativel com a complexidade sistémica e a plu- ralidade de interesses, valores e discursos da sociedade mo- dema. Nao se trata apenas de uma f6rmula para “domesti- car” ou “domar” o Leviati. Antes, o problema consiste em _estabelecer, apesar das tenses e conflitos, uma relagdo cons- ‘rutiva entre Témis e Leviati, de tal maneira que 0 direito no se mantenha como uma mera abstracao e o poder po-| Litico nao se tome impotente por sua hipettrofia ou falta de referéncia legitimadora. Apesar do desprezo erttico-ideolégicoe também do des- caso pés-modernista, o Estado Democratico de Direito é um _dos principais focos possibilitadores da reproducao cons- ‘trutiva da sociedade mundial moderna, tanto no que se re- e.a sua complexidade sist@mica quanto no que concerne 4 sua heterogeneidade de interesses, valores e discursost. As~ 3, Essa formula 6 sugerida, respecvament, os tulos de Detling (org) (1980) e Denningee (1990) 4. Aqui ndo se desconhece que oconceita de Fst de Din ao {gm eurocontinental, € mais resto semanticamente do que o conseito de ‘ul of inde rigem anglo-emeriana, uj pretense de valldade ulrapassa 5 gts estatasabrangendo formasjuridicas ex. fracstatals J. Morin, 1992 Berman, 1982; Feiner 1996: cep pp. 153355 Rosenfeld, 2000 495 em outa perspectiva também Teper, 188 26 40 1: Mile, 2000 3836, que sereferea uma outa tad eucocontinetal, aque remonta Kant. de sco coma ql a comprasresa do Estado de Dit to estaia mais proxima da nogio de rule of im). Mas no presente teabalbo ‘concento-me no Fstado de Dito como ipo de Estado em que ra of at x ENTRE TEMIS E LEVIATA: UMA RELACAO DIFICIL sim € que se justifica uma nova abordagem que possa ofe- recer elementos para a compreensio do Estado Democratico de Direito como espaco da relagao dificil entre Témis e Le- viata. Nao se trata aqui da utopia do fim do Estado de Di- reito com a morte de Leviata, tampouco da “antiutopia” da >» sua abolicdo com a morte de Témis/As duas solucdes séo in- compativeis com a pluralidade de interesses, valores e discur- _S0s e a complexidade sistémica da sociedade atual. O que se discute s4o os fundamentos e as condigdes de uma rela- do horizontal e construtiva, sem subjugagdes ou submissdes, entre Témis e Leviatd, que Ihes possibilite enfrentar os graves problemas da sociedade mundial do presente. sess na Cortina es na jurispdnca ea prs administra; = mia methor tadin de Eade de Deo” em lene. pret ne, Cinstonal Sete sim, ex, Lkasevs, 192) ls porque someatena gl ‘ode efleavidde consttuconal larga se penamente © Eoad de Orato sm do mas. na expos que se segue, oconceto de Estado do Dito € iad 20 cesta de Gea a Dois modelos de evolugao social 1. A evolucao social como processo de complexificagao e diferenciagao funcional e a evolucio do direito conforme o modelo luhmanniano L1, Evolugito dos sistemas sociais A concepgéo sistémica da positividade do direito mo- demo é indissocidvel do modelo de evoiugao social como _ampliago da complexidade, que conduz, na sociedade mo- dema, a diferenciacio funcional. Antes, porém, de qualquer consideracio sobre a propria emergéncia historia do fend- meno de complexificacdo da sociedade, que leva & moder- nidade, faz-se mister delimitar o sentido que assume o ter- mo “evolucdo” no Ambito da teoria sistémica, afastando-se de eventuais equivocos. De acordo com o modelo sistémico luhmanniano, a evo- lugdo manifesta-se com a transformago do improvavel em _provvel. Ela implica “o paradoxo da probabilidade do impro vavel”, Em outra formulagao, sustenta-se que a evulugdo. ‘normaliza improbabilidades, compreendidas como grau de desvio em relacao a uma situagio inicial”?. Ocorre evolugio, portanto, quando aquilo que é desviante passa a integrar a estrutura do respectivo sistema. 1. Lohmann, 1997413 Luhmann e De Giorgi 1992: 169 2 Luhmann, 1993a: 288 2 ENTRE TEMIS E LEVIATA: UMA RELACAO DiFICUL ‘Nessa perspectiva, o fendmeno evolutivo s6 se completa quando se preenchem trés condigdes vinculadas reciproca mente: variagio, selecio e restabilizacao ou retencio. ‘Tra- ta-se dos chamados mecanismos.evolutivos ou funcées da volugio®. “A variagdo consiste em uma reprodugio desvian- “te dos elementos através dos elementos do sistema.”* Im- porta a emergéncia de elementos que se afastam do modelo de reprodugao até entdo existente’. A variacio nao significa ja evolugio sistémica. No plano das estruturas, o sistema pode reagir negativamente ao desvio. Mas pode ocorrer @ selegio de estruturas para possibilitar a continuidade da re- producio do elemento inovador. Ainda assim, 0 processo evo- lutivo singular nao se completa necessariamente. Impée-se a restabilizagio como mecanismo que, no plano da forma- ‘go do sistema como unidade de reprodugio, vem assegurar A cstrutura inovadora “duracdo e capacidade de resistencia”. No modelo sistémico, a propria diferenciagao entre essas fun- ges esta vinculada ao grau de evolugao ou complexidade’ Em formas menos complexas, nao se distinguem claramente “ variagio e selegao. Em um grau intermedistio de complexi- dade, essa diferenca passa a ser nitica, mas a selegao nao se separa da restabilizacio. Por fim, em situagdes de alta com- plexidade, a restabilizagao diferencia-se da selegao, mas se toma dificil distingui-la da variagao’. A restabilizacao evoluti va (dindmica) transforma-se em motor da propria variacao”. Embora os mecanismos evolutivos ~ variagio, selegao e restabilizagao — estejam presentes também na evolugao dos Sees vivos, nao sé trata, no caso especifico da concepgao “Tahmanniana dos sistemas sociais, de analogia aplicadora ‘3 Luhmann 1997: 452 ss; 19993: 241553 1961b; 14 ss; Luann e De GGiorg, 1992: 189s; Teubner, 1989: 66 35. 4 Luhmann, 1997: 454; Luhmann e De Giorgi, 1992: 189s 5. Luhmann, 19939: 282. 6 Luhmann e De Giorgi, 1992: 190; c.Luhmann, 1997: 454s 7. Cf Lumann, 1997: 495 498 ss; 1993a: 257; Luhmann ¢ De Giorgi, 1992, 216¢ 2185, 8. Lalhmann, 1997: 498; Lohmann e De Giorgi, 1992: 218. 9, Lukmann 1997: 494; Lukmann ¢ De Giorgi, 1992: 216, OIS MODELOS DE EVOLUCAO SOCIAL 3 de-conceitos préprios do evolucionismo biol6gico. “Evolu- $0” apresenta-se como um conceito- género que se subme- tea especificagdes analiticas, respectivamente, conforme se refira aos sistemas biol6gicos, psiquicos ou sociais!". Além do mais, sem negar a importancia do modelo darwiniano para ‘a compreensao dos mecanismos evolutives, afasta-se o dog“ “ma da “selecdo natural”, Este aponta para 0 predominio dos fatores ambientais na emergéncia do processo evoluti vo, enquanto a teoria sistémica enfatiza que a evolugdo re- sulta de transformagdes internas na respectiva unidade de Teproduglo: as “perturbacées” advindas do ambiente s6 se toram determinantes da evolucao sistémica quando assimi ladas internamente como inovagdes. Em conexdo com essa atitude tedrica, 0 paradigma sistémico afasta a nogdo, ine- gavelmente carregada pela ideologia liberal predominante No periodo de surgimento do evolucionismo biol6gico, de que a evolucio reside na “sobrevivéncia do mais apto” ouna | “luta pela vida”. A respeito da evolucao sociocultural, isso implicaria reduzir.o processo evolutivo a aces instramen- talmente direcionadas, desconhecendo-se a complexidade dos mecanismos sociais”. - No ambito de discussdo da teoria sistémica, rejeita-se radicalmente qualquer redugao sociobiolégica da evolugio social no sentido do. "gene egofsta”". Os fatores genéticos pertencem a infra-estrutura bioquimica, ao ambiente orga- nico da sociedade. Esta diferencia-se do seu ambiente na me- dida em que € constituida por comunicagées como unidades elementares"*, Os fatores genéticos, portanto, podem apenas condicionar as comunicagoes e, assim, a evolugdo social. Nao. 10.CE. Luhmann, 1993a: 240, 11.CE. Lavan, 1997: 240s 12. Teubner, 1989: 67; Maturana Varela, 1980: 117s 13. Teubner (1989 67) salienta que sso constitia “um caso-imite ex tremo , antes, improvavel” ao qual se contrapde "a stage norm de selegao evolutiva’ que “consiste na coexstencia de diverss enémens socal “M. Teubner, 1989: 67 15. Luhmann, 19872: esp. pp. 192 sf. também 197: 815s. 4 ENTRE TEMIS E LEVIATA: LMA RELAGAO DIFICIL a determinam. Caso contrério, a sociedade nao poderia ser definida como conexdo auto-referencialmente fechada de comunicagdes. Pela mesma razdo que nega a postura reducionista da so- ciobiologia, o modelo sistémico-teorético nao reconduz a evo- lugao social a individuos ou grupos humanos'*, Essa concep- sao parte de que a sociedade ¢ formada por um conjunto de individuos humanos, emergindo exatamente da reuniao deles (“emergéncia de baixo”). Considerando-se, entretanto, que homem faz parte do ambiente dos sistemas sociais, seu orga- nismo ou sua consciéncia apenas podem condicionar-Ihes, ‘mas no determinar-lhes a evolugdo. Isso porque a sociedade 86 emerge quando conexdes de comunicagao distanciam-se e diferenciam-se de sua infra-estrutura organica e psiquica, da vida e da consciéncia humanas (“emergéncia de cima’)”. As suas unidades evolutivas so, portanto, comunicagdes (ele- ‘mentos) e expectativas (estruturas). ‘Também é relevante considerar que, de acordo com 0 paradigma sistémico-teorético, a evolugao social nao se con figura como um proceso de passagem para uma vida me- Ihor, um maior grau de felicidade"®, Nesse sentido, cons- truiu-se a idéia de progresso no século passado, apontando 16. Teubner, 1989: 66. 17 Segundo Luhmann (19872: 43 ), 08 sistemas sci, unidades au topoigticas de comunicagdes, emergem ‘de cima", ou sea, consttuemse 20 introduzirem e operacionaizarem, em um outto plana, uma nove diferenga entre sistema e ambiente. Nao resultam, pois, do acdmulo de elementos in fracestruturas, tis como conseincia, seres humans ete, Ao contriio, na dlistngdo de Maturana e Varela (1980: 107-11, 1987: 196 ss.) entre autopoiese de primeira. segunda etercera orem, os sees viv aprecantme0 con com pponentes dos sistemas sociais(Yemergéncia de baiso"). CE. também Teubner, 1989: 40s. Vale advertr que o conceit de sociedade (género) de Maturana & VVacela, primariamente biolbgico, & mais abrangente do que o de sociedad humana (espécie) ct. 1980; xv-co; 1987: 196 5. Sobee © canceito de auto- poiese ver nf Cap. H. 18. Ck. Luhmann, 1997; 423, nota 18 (ou Luhmann ¢ De Giorgi 1992 173, nota 6), referindo-secrticamente a Spencer, 190: 447: "[.] A evolugio 36 pode acabar no estabelecimento da maxima perfecio e da mais completa felicidade.” DOIS MODELOS DE EVOLUGAO SOCIAL 5 para o aperfeigoamento continuo, unilinesr, regular e neces sério da sociedade™. A evolucdo nao se dirige a um fim deter-<— minado ou a realizagéo de um ideal ou valor. Nao ha uma 4. Jeologia da evolucao, embora se possa falar de determina~ 962s teleol6gicas que a condicionam positiva ou negativa- ‘mente. Em outras palavras, a evolucao também nao é plane- jada, embora formas concretas de planificacio apresentem-se como fatores da evolugio®. Da mesma maneira que nega qualquer concepeo pro- gressista ou teleotégica da evoluedo, a teoria sistémica re~ jeita a nogao ontoldgica do processo histérico como uma unidade na qual se desenvoive o “espinto” até alcancar a sua forma final “absoluta” (Hegel), ou como uma unidade em que se sucedem estdios de desenvolvimento social no sentido da superagio de formas materialmente determina- das de dominagao e do advento de uma sociedade de plena liberdade (Marx). Exatamente porque considera a evolugo comoa transformacao do improvavel em provavel, dando én- fase ao “acaso”#, 0 modelo sistémica nao fornece “nenhus ma interpretagdo do futuro”. Essas observagées gerais de esclarecimento do modelo sistémico de evolugdo social, porém, nada dizem ainda so- bre a forma especifica em que emergem os mecanismos evo- lutivos na sociedade. A questo é a seguinte: como se reali- zam variacao, selesao e restabilizago como fungées da evo- lugdo no plano da sociedade?* - 19, Cl. Lubmann, 1997: 422-4; Luhmann e De Giorgi, 1992: 172-4; Teubner, 1989: 62 20, Luhmann, 1997: 429 5; Luhmann e De Giorgi 1992: 175 21. CE Luhmann, 1997: 422s; Lahmann e De Glace, 1992: 172. 22. CE Luhmann, 1997: 44858; Lohmann e De Gorge, 1982: 186, "Com- preendemos 0 aca como uma forma de conexso ent sistema e ambiente que $e subtra a sincronzagio (e, pols ao controle, ‘sstematizagdo) através do Si tema" (Luhmann, 1997-449; Luhmann e De Giorgi. 1992: 186, 23.Luhmann, 1997: 429; Luhmann e De Giorgi, 182: 175. Teubner (1989: 61) raicaliza, sustentando que a evolu € cega. Para uma formulagio no sentido diametialmente oposto, ef. Hegel, 1986 (1821504 24. Em trabalho mais antigo, Luhmann (1981b: 16) dena esse questio em aberto, sustentando que “para 0s stemas soi faltam nogées corres, 6 ENTRE TEMIS E LEVIATA: UMA RELACAO DIFICIL ‘Tendo em vista que a.comunicagao 6 a unidade elemen- tar da sociedade, resulta que a variacdo ocorre quando a.co- municacao desvia-se do modelo estrutural de reprodugio social. Mais precisamente, a variagao “consiste em uma co- ‘municasio inesperada, surpreendente”®., As expectativas: ciais correspondentes no contam com aquela espécie inova- dora de comunicagdo, que se apresenta como negacao das estruturas estabilizadas. Ela contrapde um “nao” a conexao de expectativas reguladora da reprodugio sistémica* Evverdade que isso pode levat, no plano das estruturas, ou seja, das expectativas que otientam a comunicagao, a uma forma de selegio negativa, que “rejeita explicitamente” ou “abandona ao esquecimento” o desvio®. De maneira eviden- te, a situacdo imagindria em que todo comportamento so- ial desviante fosse assimilado constituiria um caso-limite de complexidade desestruturada®, incompativel com a vida so- cial. Entretanto, a selegio pode conduzir a que referéncias de sentido envolvidas na comunicagao desviante sejam es- colhidas tendo em vista a construgio de estruturas “idGneas Dara um uso repetido”, isto é, para a condensacdo de expec: tativas que sejam aptas a atuar como diretivas das comuni- cages ulteriores®. Conforme jé foi afirmado acima, embora essa assimila- ‘do estrutural da inovacdo seja imprescindivel & ocorréncia Pondentes ~ provavelmente porque aqui aquelas tres fungées podem ser sa- ¥sfeitas por mecanismos mute diversos, para os quais, até agora, no sein troduziram designades que os compreendam em conjunto (como, p. + smutasa0)" 25, Lahmann e De Giorgi. 1992: 199 Tashmann, 1907 454, 26, Dai por que a variagio ests esteitamenterelacionada com a produ- 0 de confits ( Luhimann, 1997-466; Lukumann e De Giorgi, 1992-193) 27, Luhmann, 1997: 454; Luhmann e De Giorgi, 199210, 28. Sobre adistingio entre complesidadeestruturada endo estruturada, ver Luhmann 1987a: 383; 19876: 6s Paalelamente, ele dstingue complex! dade indeterminadalindeterminavel de determinada/determinive! (cf, pe, 1971: 300-2; 1975a: 209.,Bertalanity (19579) falava analogamente decom: plicagio desorganizada e organizada ‘29. Luhmann, 1997: 454; Luhmann e De Glog, 1992: 260 DOIS MODELOS DE EVOLLICAO SOCIAL 7 do acontecimento evolutivo, ela lhe é insuficiente.Impie-se a restabilizacdo como “a insergao das novas estruturas no complexo de estruturas ja existentes”®. O problema reside aqui na relacdo das novas estruturas com o sistema como unidade de reproducio, isto 6, “consiste na insergao das trans- formagées da estrutura em um sistema que opera de modo determinado pela estrutura e na conseqiiéncia de tal inser- cdo”, Pode-se afirmar que a restabilizacao (dinamica) diz respeito & compatibilizagio das novas expectativas com.o Sistema™, 0 que significa que ela envolve uma questdo de consisténcia sist8mica. As estruturas inovadoras s6 terao capacidade de resisténcia se forem incorporadas como par: te de uma unidade de reprodugao auto-referencial de co- municagdes, seja esta a sociedade como um todo ou os seus sistemas parciais. Daf nao decorre, porém, que elas tenham que se “adaptar passivamente” ao modelo estrutural jé exis- tente. Ao contratio, a restabilizagao como mecanismo evo- lutivo implica, em grau maior ou menor, que as estruturas preexistentes rearticulem-se para adequar-se as novas ex- pectativas, possibilitando, assim, a continuidade dindmica da sociedade. Tal como em relagao ao conceito de evolucéo em geral, a teoria sistémica vincula a evolugéo socal & diferenciacdo dos trés mecanismos evolutivos®. Nas formas menos com- plexas das sociedades diferenciadas segmentariamente™, va- Tiagao e selecdo confundem-se. Isso porque, nelas, entre ele- mentos e estruturas ainda nao ha uma nitida distingao. As comunicagdes e as expectativas sobrepdem-se. A “caréncia 30, Luhmann, 1997: 890; Lahmann e De Giorgy, 192: 214. 31. Luhmann e De Giorgi, 1992: 212: of. Lahmann, 1997: 488. 32.Cf.Luhmann, 1997-488; Luhmann e De Gierg, 1992: 212. 533, Luhmana, 1997; 495 e 498-505; Lukmann e De Giorgi, 1992: 216 € 218-21; Luhmann, 19932: 257 34. Adiferenclagio segmentiva caracteriza-se pela “igualdade dos sit mas parials, que se distinguem com base na descendéncia ou na comunidade de habitagdo, ou mediante a combinagio de ambos cs citéros” (Luhmann, 1997: 613, Luhmann e De Giorgi, 1992: 255). respeto, ef Lukmann, 197, 684 55; Luhmann e De Giorgi, 1992: 260s. 8 [ENTRE TEMIS E LEVIATA: UMA RELAGAO DIFICH. de alternativas”®, ou seja, o baixo grau de variacdo, significa que as comunicagées inesperadas so excecdes qué poem em xeque a prépria estrutura social. O desvio é tido como. ‘algo estranho a comunidade. © presente esta determinado _pelo pas Nesse contexto, a interacao ritualistica tem um papel relevante. Nos rituais, condensam-se expectativas atra- ‘vés da repeticio, entre os presentes, de praticas que refletem € modelam comportamentos cotidianos, esperados como evidentes/O fato de o sistema de interagao, baseado na co- municago entre os presentes, ser predominante (isto 6, es- trutura da interago e estrutura da sociedade nao se distin- guem claramente) faz com que o desvio tenha infima pos- lidade de impor-se como inovagio..O baixo grau de varia ‘cdo importa insuficiente “pressao seletiva” e, portanto, pouca scomplexidade*, Nas sociedades estratificadas ou diferenciadas hierar- quicamente”, variagao e selecao jé se distinguem, na medi- da em que se pode discernir entre elementos e estruturas, Embora se condicionem reciprocamente, comunicagées e ex- pectativas nao mais se sobrepdem. O modelo estrutural de ‘expectativas condensadas se confronta regularmente com 0 problema do desvio comportamental. A conduta desviante € avaliada cuz algo interno a socledade, a ser tratado por procedimentos de aplicagao juridica fundados em repre- sentagdes morais (e, ao mesmo tempo, religiosas) vidas para todas as esferas da sociedade, como veremos mais adiante (subitem 1.3 deste capitulo). A selecao por procedimentos 5. Luhmann, 1981b: 28; 1987b: 148 36. *Complenidade significa {1 praticamente pressio seletiva [Selo sionszeangl” (Cuhmann, 1987: 32) 37. diferenciagéo estratifcade caroctriza-se pela “desiqualdade de nivel, dos sistemas paciis”, sendo fundamental a distin entre “nobreza e povo comum (Lahmann, 1997: 613: Laman e De Gor, 1992:256) CE. Luann, 1987: 166 ss; 1981: 159, 1997: 678 93; Luhemann ¢ De Giorgi, 1992: 281 98, Entre a diferenciagdo segmentria ea eswatficada, Luhmann introd adie renciagG0 “centro/perferia” como forma intermedia de diferenciegdo (ct ‘Luhmann, 1997; 613 e663 ss; Luhmann e De Giorgi 1992: 225 5. 2758) DOIS MODELOS DE EVOLUCAO SOCIAL 9 vai implicar a discussao sobre a existéncia ou nao de desvio em face do padrao estrutural vigente, isto é, 0 cotejo entre comunicagdes concretas e expectativas consolidadas. Tal si- tuacdo envolve um grau mais elevado de produgao de con- flitas e tolerancia™, mas é sobretudo com o surgimento da ‘o{_escritd que se vai incrementar uma maior possibilidade de co- municagio inovadora”. A partir da escrita como aquisicao evolutiva referente aos préprios meios de difusao da comu- nicago, tem inicio o processo de superacao do “controle es- trito” dos participantes da comunicagio (leitor e escreven- te) pelos sistemas de interagao (entre os presentes), predo- minantes nas sociedades arcaicas, o que torna provaveis as. interpretagdes antes improvaveis, a negacao dos sentidos sedimentados anteriormente® + No entanto, nas sociedades estratificadas, apesar do in- cremento da variacio pela escrita, a uma “selecdo plausivel ou evidente” vincula-se uma “estabilidade normativa ou dog raticamente indubitével” na forma de evolugao das idéias". Assim sendo, nao se distingue entre selecao ¢ restabilizacio. Isso, parece-me, pode ser relacionado com a confusdo en- tre unidade e estrutura sistémicas; em outras palavras, com 0 fato de que a unidade do sistema social apresenta-se como tunidade estrutural, Os préprios instrumentos procedimen- tais de solugio de conflitos destinam-se basicamente a ave- _tiguar a adequacao das condutas ao modelo estrutural.de “expectativas evidentes ¢ inquestionaveis, Isso significa a pre- senga de um plexo de valores, imediatamente valido como padrdo de comportamento em todas as esferas da vida social, ue legitima a dominagao da camada superior. A moral con 38. Cf, Luhmann, 1997: 466; Luhmann e De Glog, 1992: 199s 39. CE, Lahmann, 1997: 540 88; Luhmann e De Giorgi, 1992: 229 ss: Lahmann, 19933: 24555, 440. Luhmann, 1997: esp. pp. 585 Luhmann e De Giorgi, 1992: esp. pp. 233; Lukmann, 1980: 47;1987a: 1275, 513 e581 s; 1993a: 255s. Dafpor (Que a esrta est relacionada com a maior capacidade de suportar conilitos © toleré-los (Lahmann, 1997: 464; Luhmann a De Giorgi 1992: 197) 41, CE Luhmann 1997: 853; Luhmann e De Giorgi, 1992: 238 10 ENTRE TEMIS E LEVIATA: UMA RELACAO DIFICIL teudistica, religiosamente fundamentada, ao mesmo tempo excludente na dimensao pessoal ou social e totalizante na dimensao material e temporal, atua como freio aos desvios inovadores, na medida em que estabelece que o proveniente “de baixo” deve adequar-se ao fixado “em cima”. 86 na sociedade moderna, diferenciada funcionalmen- tet, distinguem-se claramente selecdo e restabilizagio como mecanismos evolutivos. A unidade sistémica nao se apre- senta mais, primariamente, no plano estrutural (expectativas). A unidade é sobretudo operativa, manifesta-se primeira- ‘mente no plano dos elementos (comunicagées). Nao s6 a difusdo da escrita através da imprensa e, posteriormente, a ‘emergéncia dos meios de comunicagao de massa, mas so- bretudo o surgimento de sistemas parciais auténomos levam a uma fragmentacdo estrutural. Entretanto, essa situagao, embora importe o distanciamento entre selecao e restabili zacao, envolve também uma aproximagao desta & variagao", "Na perspectiva da teoria da evolugao, destaca-se que os sis- temas funcionais sao estabilizados no sentido da variacio, de tal sorte que o mecanismo da estabilizacao atua simultanca- ‘mente como motor da variagao evolutiva.”* Disso decorre que a sociedade torna-se excessivamente dinmica e com- plexa. A pressio seletiva intensifica-se®. A questo compli- 42, Caractristicas da diferenciagSo funcional si “tanto a desigualdade ‘quanto igual dos sistemas parcais. Os sistemas funciona so igus na ‘ua desigualdade’, Dai por que as direties para as relagbes entre eles nore sidem em mecanismos abrangentes de todaasociedade (Luhmana, 1997 613, Luhmann e De Giorgi, 1992: 256 ef arespeito, Laman, 199770755 ¢ 743, ‘83 Luhmann e De Giorgi, 1992: 290 ss. € 920 ss). Hi horivontaidade asco lagSes intersistimicas e autonomia perante a sociedade como un todo, 43. CE Luhmann, 1997; esp pp. 494s. 498; Lahmana e De Giorgh, 1992: exp. pp.216 6218s, 44. Luhmann, 1997: 494; Luhmann e De Giorgi, 1992: 216. 48, Isso se torna particularmentecelevante desde que se poss, a titulo e simpltfcagio, “efinir a evolugdo também como seecio da estutura econ. siderando-se que as estruturas guiam a selesdo de operagées, pode-ae defnir | evolugto como selegio de selegio® (Lahmann, 1987: 435 5; Luhmann ¢ De Gig, 1982: 191), DOIS MODELOS DE EVOLLIGAO SOCIAL u ca-se porque cada sistema social parcial constitui-se como unidade de reprodugdo auto-referencialmente fechada, fa- zendo parte do ambiente clos demais sistemas parciais, A uni- dade da sociedade repousa na diferenciacao sistémico-fun- ional. Isso resulta em que, no interior da propria sociedade, relativamente a cada sistema parcial, impde-se decisivamen- te a distingao entre evolucao interna e evolucao externa, ou melhor, a confrontacao permanente entre diversas for~ mas de evolugao sistémica. A sociedade moderna: hipercomplexidade e diferenciagito funcional Antes de abordar a sociedade moderna como super- complexa e funcionalmente diferenciada, faremos algumas observacdes preliminares sobre modelos de caracterizagio da dicotomia “tradicéo/modernidade”, que na sociologia eu- ropéia podem ser apresentados como precursores do para~ dligma sistémico luhmanniano”. Emi relagio aos classicos da sociologia, a diferenca entre comunidade e sociedade, tal como formulada por Ténnies, colocava problemas relevantes da discussdo posterior so- bre a modernidade. Partindo dos conceitos de “vontade es- sencial” e “vontade arbitréria”®, Tonnies distingue a comu- nidade (“antiga”, “formacdo organica”) da sociedade ("nova”, “formagao mecénica”)” através das seguintes caracteristicas: 1) comunhio essencial versus separacao essencial dos ho- mens®; 2) orientagio das ages conforme os sentimentos ver sus agBes orientadas com respeito a.fins”; 3) fechamento 445, Lahmann, 1981b: 14; citicamente Teubner, 1989: 70. 47. CL. Neves, 19921155, de onde retitlos elements biskos da ex: posigdo que se segue, 4$8.C£. Tonnies, 1979: 73 ss. 89. CE Tonnies, 1979:3-6 50. Ténnies, 1979: 34 51 Tonnies, 1979 74 e 106s, 2 [ENTRE TEMIS £ LEVIATA: UMA RELAGAO DIFICIL versus abertura’; 4) referéncia ao passado versus referéncia ao futuro®. Abstraindo-se o psicologismo, o pessimismo e 0 fatalismo como tracos inerentes & obra de Tonnies", é de ob- servar-se que, na sua contribuigéo, encontram-se formas em. brionarias dos conceitos de diferenciacio social, racionali- dade-com-respeito-a-fins e abertura para o futuro, desenvol- vidos mais tarde no ambito das ciéncias sociais. Sobretudo as rnogées de “comunhao” e “separacio” jé fornecem elementos para a discussio atual sobre a auséncia de orientagdo uni- téria da conduta na contemporaneidade. Em Durkheim, a dicotomia “tradicao/modemidade” ex- pressa-se mediante a distingao entre solidariedade mecénica, protegida pelo “direito repressivo”, e solidariedade organi- ca, amparada no “direito restitutivo”®, Enquanto a primeira estaria fundada nas semelhangas e implicaria o tipo segmen: trio de estrutura social, a segunda, a0 contrério, pressupo- ria dessemelhancas”, dependeria da divisio de trabalho" e corresponderia ao tipo “organizado” de estrutura social®™. De 52, “Toda convivéncia intima, familiar, exclusiva (assim entendemos) & compreendida como vida em comunidade. Sociedade & a vida publica, é 0 mundo” (Ténnies, 1979: 3) 53. CE. Tonnies, 1978: 73, 54. CE. Bl, 1967: 77's. € 111-4 A respito da corresponedéncia entre Tonnies eH, Hofiding sobre a questo do pessimismo soca, ver Jacoby, 1971: ‘725s, Ver também a primeira carta de Hofiding para Tonnies (Se 2/7/1888) ea resposta de Tonnies a Hotiding (de ourubro de 1888), i: Bhim, 1967; 145-57. 55. Dutkheim, 1986: 35-102 (Livro Caps. 23) 56. CE. Durkheim, 1986: 149-57 (Livro, Cap 6, item D. 57. “Todavia, nem toda dessemelhanca €sufciente para produrr ese efit. [J Portanto, apenas as ciferengas de ur certo género tendem uma para a outa; sio aquelas que, em vez de se oporem e se excluirem,comple- fam-se mutuamente” (Durkheim, 1986: 18) CE. em sentidecontrira, Sonn, 198458, BB. "Mas a divsdo do trabalho nio & peculiar ao mundo econémico: pode-se observar sua influéncia crescente nas mals diferentes regides da so ‘iedade” (Durkheim, 1986:2) “Por um lado, Durkheim equipara, ainda como no século XD diferenciagio social com dvisio do trabalho, mas, por out lao, rompe este conceito através, por exemplo, da incorporacio da tiferenga fun, ‘ional dos papéis [dos géneros]senuais”(Luhmann, 1984: 111, nota 30) 59. Ck. Durkheim, 1986: 157-67 (Livo I, Cap. 6, tem Ml), Cabe observar que, com os conceitos de “mecénico” e “organico”, Durkheim refere-seres- DOIS MODELOS DE EVOLUCAO SOCIAL 13 acordo com sua perspectiva evolucionéria, Durkheim fala de ‘uma preponderancia progressiva da solidariedade organica™. Esse processo evolutivo teria, em primeiro lugar, um signi ficado moral: "... 0s servigos econdmicos que ela [a divisio do trabalho] pode prestar séo pequenos, comparados com o efei- to moral que produz, a sua verdadeira funcao é de criar en- tre duas ou mais pessoas um sentimento de solidariedade.”* Daf surgem as eriticas luhmannianas a respeito da fundamen- tacdo moral do conceito de divisdo do trabalho em Dur- kheim®, Segundo Luhmann, “o que mais surpreende, sur- preende sobretudo em uma teoria desenvolvida apés Karl Marx, € que as conseqiiéncias do mecanismo monetirio no sentido de neutralizar a moral na interagao permanegam fora de consideragio”*. Tal posicionamento estaria relacio: nado com o fato de que a solidariedade organica ainda cons- tituiria um mecanismo tradicional. Para Luhmann, essa so- lidariedade ainda pressupde normas sociais que, embora altamente generalizadas, sao comumente validas para todos (8 subsistemas da sociedade"*. Contudo, no que diz respeito a0 conceito de modernidade, a concepgao classica durkhei- miana de divisio do trabalho contribuiu para a colocagio do problema, nio para a sua solugo®, Nessa perspective, pode- se compreender melhor a relevancia de Durkheim para a posterior construgio sociolégica do conceito de diferencia- sao funcional como caracteristica da modernidade. Aconcepgao weberiana da modernidade acentua 0 pro- cesso de racionalizagéo da sociedade. De acordo com os di- pectivamente ao antigo © ao nove, 20 contétio de Tonnies. O fato de Dur- [Eheim moctrar so otimista ¢ Ténnies pessmista eu wlayau & ere moderna pode ser esclarecido pela recepsio, em ambos, do entao inluente orgenicis mo moral, combinada com a interpretagio das estruturas socials modernas, respectivamente, como organicas ou mecinicis 160. Cf. Durkheim, 1986: 119-76 (Lio, Caps. 56) 61. Durkheim, 1986: 19, 62. Cf. Luhmann, 1977: esp. pp. 25s. 63. Lukmann, 1977: 31s 64.CE Teubner, 1982: 46 65. Ct Luhmanny 1977: 19. 4 ENTRE TEMIS E LEVIATA: UMA RELACAO DIFICR. ferentes fundamentos de determinacao, a ago social vai ser analisada como tradicional, afetiva, racional-com-respeito-a- valores e racional-com-respeito-a-fins*. Aos dois primeiros tipos (iracionais) corresponde a rela¢ao social “comunitaria” ’Vergemeinschaftung"; aos dois tiltimos (racionais), a rela~ sao social “associativa” [” Vergesellschaftung”|”. No que con- cere & ago racional, porém, hé uma escala, na medida em ue 0 agir racional-com-respeito-a-valores 6 caracterizado como irracional em face do agir racional-com-respeito-a- fins. Em conexao com essa tipificagaio, Weber classifica os trés tipos puros de dominagio legitima: legal-racional (vé~ lida por forca de ordens estatuidas), tradicional e carismatica (extracotidiano-afetiva)®, A modernizacao implica, portanto, a racionalizagdo-com-respeito-a-fins das condutas, institu. cionalizada através da racionalizacao legal da dominacao. Embora se possa falar de “condigdes de partida” racionais. com-respeito-a-valores (ética protestante), verifica-se que no enfoque weberiano o desenvolvimento da “relago as- sociativa” racional-com-respeito-a-fins exigit o desatrela- mento da economia e do direito de seus fundamentos éticos (racionais-com-respeito-a-valores)”. Assim sendo, o direito formal, moralmente neutralizado, atua como ordem norma~ tivo-institucional do mercado livre, que funciona de ma- neira racional-finalistica, e da luta estratégica pelo poder”. 66, CE Weber, 1985: 12s; Schluchter, 1979: esp, pp. 191-5; Habermas, 1982 | 379.34, (67. Weber, 1985: 21-3, 68. CE. Weber, 1985: 13.“Os quatro tipos webetianas de ago” — firma Schhichter (1979: 192) ~*[.} parecem ordenais ao longo de uma escala de racionalidade”. Nessa escala, a agio “paramente tradicional” encontra se ne frontelra entre a acto com sentido e um “compottamento mecamente reat wo" (Weber, 19852}. 69. CE Weber, 1968b; 1985: 124s, 70. Ci Habermas, 1982a I: 314 e 390, lea também vale para o dieito natural madero (ct Weber, 1985; 502), 71, CE, p.ex, Weber, 1985: 198. A respeito, ver a interpretasio eica de Habermas, 1982a 331 ss. Sobre as qualidadesracional-formais do divlto mo. derno.eas tendénciascontitias, ver Weber, 1985: 503-13; cf também as rele Ges eicas de Teubner, 1982: esp. pp. 14-6 ¢ 24 s; Teubner e Wilke, 1984, 9p. pp. 205. Ede, 1986: esp. pp, 6-9. * Conforme a perspectiva weberiana, moderr DOIS MODELOS DE EVOLUCAO SOCIAL 15 de significa, em primeira linha, racionalismo-com-respeito-a-fins, em detrimento dos fundamentos tradicionais, afetivos e racio- nais-com-respeito-a-valores (irracionais) de determinacao do agir social, mas isso envolve reciprocamente diferencia cao funcional. Com pretensdo de um modelo explicativo mais abran- gente a respeito da emergéncia da sociedade moderna, Luh- ‘mann utiliza, em primeiro lugar, o critério da complexidade, entendida como presenga permanente de mais possibilida. des (alternativas) do que as que sao suscetiveis de ser realiza- das’. Nao desconhece que, no processo da evolucao, cons- trugdes altamente complexas sejam destruidas ou mesmo substituidas por “simplificagdes superiores’; antes salienta que “a tese de um incremento continuo da complexidade no curso da evolugao € insustentavel”; mas afirma que a evolu- so implica “testes da complexidade” e a formacao de “sis- temas mais complexos ao lado de outros menos comple- xos”®, definindo “a crescente complexidade da sociedade” como “motor da evoluga0”"*. De acordo com esse modelo, ar @ sociedade moderna distingue-se pela sua alta complexi. dade. “Considerando o niimero, a diversidade ¢ a interde- pendéncia de ages possiveis”, assim enfatiza Luhmann, “a Sociedade modema é supercomplexa - muito mais complexa do que qualquer. uma das formages sociais mais antigas, limitadas regionalmente’™, 72, Lahmana, 1987b: 31. Cy, também 1988: 4 s, E, Morin (1990: 48 s) {aponta para oaspecto qualitativo da complexidade: ‘Masa complexidade nao compreende apenas as quantidades de tnidades e interagoes que desafiam ‘nossaspossibilidades de clulo ela compeene também as incetezas as Aeterminagies, os fendmenos aleatios. A complenidade em um senile tent® sempre aver camo acaso.” Isso se rlacoria ~ como veternos seguir coun o {ato de que complexidade implica contingéncia. Sobre o conceit de comple. idade, ver tambem as reflexces uterores de Luhmann (1997, 134s) 73.Luhmann e De Giorgi, 1992185. CE Luhmann, 1997-447, 19934: 287 74, Luhmenn, 1987b: 106." evolug ainda &concebida como aurnen. fo da complexidade” (Luhmann, 1981b: 13). Parsons (1966: 21 50) flava de ‘aumento da capacidade de adaptagio, 7. Luhmann, 19814: 80, 16 -ENTRE TEMIS E LEVIATA: UMA RELAGAO DIFICIL Por um lado, a supercomplexidade envoive supercon tingéncia” e abertura para o futuro”; por outro, provoca pres: sio seletiva e diferenciacao sistémico-funcional. Na medida em que esto presentes complexidade (que implica pressao seletiva), pressio seletiva (que importa contingéncia) e con: tingéncia (que significa risco)", desenvolve-se uma sobre- carga seletiva que exige especificagdo de fungées em siste- mas parciais diferenciados e operacionalmente auténomos. A propria racionalidade, nessas circunstancias, resulta da di- ferenciacio funcional. O problema da racionalidade pressu- poe a questio de saber “como é possivel, através da reducéo de complexidade, aumentar a complexidade apreensivel””. isse problema é referido a cada sistema funcional, operacio- nalmente fechado: como reduzir a supercomplexidade ad- vvinda do seu respectivo ambiente, ampliando a sua propria complexidade e, portanto, a sua capacidade seletiva? Nes- 76.0 principio do desenvolvimento éacrescente complexidade econ- tingéncia da Sociedade" (Lukmann,1987b: 136). Nese sentido, a contingéncia 6 caracterizada como “qualidade peculiar da sociedace moderna” (Luhmann, 1992: 98 ss). "Por contnginca entendemos o fto de que as possibilidades spontadas para as demals experiéncias poderam ser diferentes das esperadas", signifcand “perigo de desapontamento e necessidade de assumir-s riscos™ (Luhmann, 1987: 31. Sobre a dstingio entre peigo e1sco,eselarece Luh= mann (19916: 30): “Ou o eventual dano€ visto como consequéncia da deci- io, portanto,imputado a deciséo. Eno, falamos de isco, isto, do rsco da decisdo, Ou o eventual dano € visto como provocadlo externamentee, porta to, imputado ao ambiente. Entio, flamos de pergo.” 77. “Sociedades que utrapassam o imiar da caltura evangada pré-mo- ema [Hochiultur dstanciam-se de seu passado abrem-se para o seu futuro ‘em uma proporgio muito mais intensa, porque s20 capazes de suporar,abeor ver ou protelar mais incertezas em seu presente” (Luhimann, 1987 34), 78, Lahmann, 19070. 47, 79. Lahmann, 1987s: 236. Com rlagioteoraluhmanniana, ara Ha~ bbermas (1982c: 261): “Raconalidadesstimica€ a racionalidade-comn-respeito- ‘a-fins transportada para os sistemas auto-regulados (,.” Essa interpretagio ro me parece correta visto que, de acordo com Lukmann, no processo de "eugdo de complexidate os modelos orientados para fins 35 “sio mabilizados ‘quando os problemas ja ganharam estrturas mais especies, quando, pois, «8 complexidade ji esta cansideravelmente absorvida” (Luhmana, 19732: 156, of. também 1983a: 223; 1971: 298) ; DOIS MODELOS DE EVOLUGAO SOCIAL v7 se contexto, a diferenciacdo sistémico-funcional é concebida como caracteristica distintiva da sociedade moderna”. O modelo luhmanniano é passivel, porém, de uma re leitura em cujo ambito 0 conceito de modernidade seja am- pliado. Nao se questiona aqui que uma sociedade é moder- nha na medida em que alcanca um alto grau de complexidade, contingéncia e abertura para o futuro. E verdade que isso exige diferenciagao sistémico-funcional. Entretanto, muito freqiientemente, a realizacao desta é insuficiente, sem que a sociedade torne-se menos complexa e contingente, tam- pouco se reduza a sua abertura para 0 futuro. Ad contrario, € possivel que isso leve a um maior grau de complexidade, contingencia e abertura para o futuro, Nao se desconhece aqui ‘que sempre ha um “desnivel de complexidade entre sistema e ambiente”, que constitui “impulso e regulador da evolucéo”*, ‘mas na hipétese especial a que pretendo referir-me trata-se de vinculos nao suficientemente complexos entre sistema e ambiente, que levam a degeneracao da “correspondente se- guranca das expectativas”* e fazem surgir um excesso de no- ‘vos problemas (mais possibilidades). Nesse caso, nao existe nenhuma relagao seletiva adequada entre sistemas e os seus respectivos ambientes, entre aumento da complexidade sis- témica e correspondente reducao da complexidade ambien- tal, Hé uma caréncia muito elevada de capacidade funcional dos diferentes sistemas parciais, pois eles nao se apresentam em condigées de estruturar ou determinar suficientemente a complexidade®. Essa situagao caracteriza muito freqiientemente os “pai- ses periféricos”, na medida em que eles estao integrados a0 ‘mercado mundial e tomam parte das relagdes internacionais. Nesse sentido, parece possivel falar, mesma na sociedade 80.CE, p.ex, Luhmann, 1981c; 159; 1981k: 7. Para Parsons (1966-26), ‘desenvolvimento central na passagem das sociedades “intermesirias” para 1 sociedade modema encontra-se na institucionalizagio do sistema jurdico ‘SL. Lahimann, 19876: 136 82 Lahmann, 1981-96, 83. Ver supra nota 28, 18 ENTRE TEMIS E LEVIATA: IMA RELAGAO DIFICiL mundial do presente, de uma modernidade periférica em contraposigao a uma modemidade central. Assim como se reconhece como “normativa” a concep¢ao de que, por falta de mecanismos de regulagao e coordenagao, as sociedades dos paises desenvolvidos (centrais) ndo sio modernas, mas sim 95 seus sistemas parciais enquanto so funcionalmente efi- cientes*, seria também uma postura “normativa” afirmar que, em virtude de uma deficiente diferenciagao sistémico- funcional, nao se configura como moderna a sociedade mun- dial em sua reprodugao altamente complexa e contingente nos “paises periféricos”. Pelo menos nao se pode mais ad- mitir que estes sejam tratados como sociedades tradicio- nais. Ainda que neles nao esteja presente a exigéncia fun- cional (a ordenagio da complexidade) nem a suposta “idéia regulativa” (a realizagao da “consciéncia moral emancipa- toria”) da modernidade, impde-se reconhecer, parafrasean do Lyotard’, a sua “condigao moderna”. 1.3, A evolugito do direito: direito arcaico, dreito das culturas avancadas pré-modernas e direito positivo A evolugio da sociedade como sistema social mais abran- gente vincula-se diretamente a evolugao dos seus subsiste- mas funcionais. Nesse contexto, discute-se a emergéncia dos mecanismos evolutivos especificamente em relacdo ao di- reito™”. Na esfera juridica, a variagdo evolutiva, que diz res- peito aos elementos, apresenta-se como “comunicacao de expectativas normativas inesperadas”®. Isso significa que o Bi Nesse sentido, cf Cie, 1986: cep. pp. 106 8 10. 85. Lyotard, 1979 86, Voltaremos a essa questo no Cap. V 57-CE.Luhmann, 1981b; 19934: 239-96, 88. Luhrmann, 19933 257; cf. também 242. A rigor, se variagio diz res peito 20s elementos, nBo se pec defini simplificadamente como expectativa ‘ormatva desviante, ov sea, plana das estataras, mas sim como munca Gio (elemento) de expectatvas normativas inesperadas ou, mais preisamente, Como eomumicaaao inesperada de expectativas normativas (ver, diversamen- te, Luhmana, 1981b; 16 8; Teubner, 1989: 7), DOIS MODELOS DE EVOLUCAO SOCIAL 19 respectivo comportamento nao é previsto nas estruturas nor- mativas preexistentes, desaponta expectativas contrafaicticas dominantes. O desvio pode ser seletivamente rejeitado ou tratado com indiferenca. E possivel, porém, que a repeticlo ‘ou difusdo do desvio conduza a produgao de novas estruturas normativas que venham a condicionar a continuidade da ino- vvagao. A selecao significa, portanto, que conduta inicialmente desviante passa a ser prevista no plano das expectativas nor- ‘mativas, Nao importa necessariamente a restabilizacao. Esta 896 ocorre quando a nova expectativa é inserida como norma juridica vigente no modelo estrutural de reproducao do direi- to, Refere-se & unidade do sistema juridico® e, portanto, ao problema da inserg4o consistente da nova norma no ordena- ‘mento juridico, Embora elemento, estrutura e unidade sis- témica estejam sempre em conexio, a diferenciacao dos trés mecanismos evolutivos constitui produto e fator da propria evolucao do diteito®, como serd observado adiante. Particularmente com referéncia ao direito, Luhmann vai discutir o problema da evolugao endégena e exégena no in: terior da sociedade". Teubner critica essa abordagem do “pri- meiro” Luhmann, argumentando que ela parte de uma con cepcao muito simples da relacio entre sistema e ambiente, nos termos do modelo dos sistemas abertos, de acordo com © qual a evolucdo do ambiente social influenciaria imedia- tamente o sistema juridico”. Esse modelo s6 seria plausivel, portanto, para as condigdes pré-autopoiéticas do direito” Parece-me, contudo, que a distingao entre evolugdo endége- ra e exdgena aponta, ao contrario, para a nogao de co-evolu- G40, que antes se refere a conexéo problematica dos mecanis- mos evolutivos do direito, da sociedade e dos demais siste- ‘mas sociais, enquanto se reproduzem autopoieticamente™. £89, Luhmana, 19990: 242 90, Cf Luhmann, 19932: 242 e257, 91. CE Luhmann, 1981b 1 ss. 92, Teubner, 1989 70. 98, Teubner 1989: 73 94, A respeit, cE Teubner, 1989: 66 e 78-80, bora com implicacBes cliversas do paradigma luhmanniano, 20 _ENTRE TEMIS E LEVIATA: UMA RELAGAO DIFICIL / Isso porque as influéncias reciprocas entre sistemas, nas di- versas formas de interpenetracao, acoplamento estrutural e interferéncia, tornam a evolugao do direito, mesmo no con- texto de sua reproducio autopoiética, ndo apenas condicio- nada causalmente, mas também funcional-estruturalmente sensivel a0 ambiente social, embora no determinada dire- tamente por ele:* A partir dessa compreenso do relacionamento entre evolucao endégena e exdgena, pode-se vincular a evolugao do direito aos diversos tipos evolucionérios de sociedade: & diferenciacao segmentaria comesponde o direito arcaico; a hie- rarquica, 0 direito das culturas avangadas pré-modernas; & diferenciacio funcional, 0 direito positivo (modemo)®. Luh- ‘mann satisfaz-se inicialmente com uma “divisao grosseira” [*Grobeinteilung’, restringindo-se a verificar se hd ou nao a diferenciagio de procedimentos decisérios e se estes con- cernem apenas a aplicagio ou também & estatuigo do di- reito™. Esse modelo ganha em complexidade mais recente- mente, apontando para a diversidade no interior de cada um desses tipos evolutivos de direito e os seus envolvimen- tos reciprocos”. Cabe observar também que anteriormente j se enfatizava nao se tratar de uma “classificacao cronol gica objetiva”, mas de “estado relativo de desenvolvimen- to”, de tal maneira que tragos juridicos das culturas avanca- das pré-modernas e mesmo arcaicas podem ser encontrados no presente™. Nas sociedades arcaicas o direito afirma-se, em caso de desapontamento das expectativas, mediante a autodefesa da vitima ou de seu cla. Nessas condigdes de reacéo imediata as ofensas, 6 inconcebivel a prosenca de um procedimento de aplicagio ou execugao normativo-juridica. O direito nao 6, tigor, aplicado ou executado (instrumentalmente), mas 95. Ver Luhmann, 1981b; 1987b: 132-206, 96. Luhmann, 1987b: 147. 97, Ch, Luhrmann, 19932: 239-95, 98 Luhmann, 1987: 147 DOIS MODELOS DE EVOLUGAO SOCIAL 21 sim assegurado ¢ afirmado expressivamente pelo respecti- vo individuo ou grupo ofendido”. Ele é verificado e confir- mado concretamente no presente™, ndo existindo ainda uma diferenga clara entre regra e ado". A generalizacao con- gruente de expectativas normativas nas dimensdes tempo- ral, pessoal e material manifesta-se através da represdlia da reciprocidade", ndo mediante procedimentos, Nesse con- texto, nao se distingue entre um simples desapontamento de expectativas e uma ofensa a direitos". Em outras palavras, nao hé uma diferenciacao entre moral, direito, costumes convencionalismo social. Pode-se também afirmar que se confundem expectativas normativas .cognitivas. A ofensa concreta apresenta-se com a evidéncia de um fato natural imediato. Actescente-se que nao hé uma diferenca entre in- teragdo e sociedade, nem se distinguem estrutura e elemento, © que impossibilita a assimilagao e o tratamento procedi- mentalmente “distanciado” dos conflitos. Tudo isso implica insuficiente variagdo, de tal maneira que esse mecanismo evolutivo € a selecao ainda nao se distinguem. A variagao restrita nao possibilita 0 incremento da pressao seletiva no umo da construgio dos procedimentos de solugao de con: flitos. Nesse sentido, sustenta-se que o impasse da evolugao do direito arcaico reside no mecanismo da variagao™, na in~ suportabilidade estrutural do desvio inovador. O direito das culturas avancadas pré-modemas envolve a institucionalizagao de procedimentos de aplicacéo juridi- 99. Cf Luhmann, 1987: 150, 100. Cf Luhmann, 1987b: 154, 101. CE Luhrmann, 10995257, ahcorennde, por, que ea inditingzo rio & impeditiva de variagio. Ck. também Schiuchter, 1979: 146. Em Hart (2961: 91 ss), tata-se antes de um complexo de regras primaias de obriga- Ho, que se caracteriza por tr “defeitos principals” incerteza crater estat 0 inefciéncia. Os “remédios” para esses “efeitos” seriam,respectivamen- te, as ropras secundcas de reconhecimento,alteragioe adjudicaio, 102. CE Luhmann, 19876: 154-7. 103. CE Luhmann, 1993: 256, associando essa situacio & auséncla de uma cultura jurdicaescta, 108. Luhmann, 1981b: 37; 1987b: 297; Teubner, 198%: 70; 2982: 36 22 ENTRE TEMIS E LEVIATA: UMA RELACAO DIFICIL ca", [sso pressupde uma diferenciacdo hierdrquica das so- ciedades, conforme a qual a dominagao politica encontra-se no topo, pertencendo exclusivamente & camada superior. Em _Principio, o diteito j4 nao se expressa mediante a afirmagio creta das partes, mas, antes, é aplicado e executado por decisao de um terceiro com base em normas e valores abstra- tos. A gencralizagao congruente das expectativas normati- vvas, como funcao do direito, vai ser assegurada por proce- cdimentos de aplicagao juridica, caracterizados pela incerteza do resultado™. Entretanto, as normas e os principios abstra- tos, de acordo com os quais a atividade aplicadora dos juizes deve orientar-se — inclusive quando introduzidos por legis- lagdo -, so compreendidos como imutaveis™. Isso esta re- lacionado com o fato de que o direito é concebido como algo verdadeiro, subordinando-se, “apesar de sua normatividade, a0 modo de tratamento das expectativas cognitivas”™. Além do mais, cabe observar que mesmo a diferenciagio do proce- cdimento de aplicago juridica no é suficiente nas primeiras culturas avangadas, nas quais as questées juridicas apresen- tam-se intimamente vinculadas aos rituais divinat6rios"™. Tal diferenciacao 56 vai estar presente no direito civil roma- no, renovando-se na sistematizacao medieval do direito™. ‘Nesse contexto, a variacao intensifica-se, sendo relevante 0 papel da escrita, principalmente no que conceme a possibi lidade de interpretagSes inovadoras, descarregadas das pres- ses coneretas da interagdo conflituosa’". A selegao de estru- turas mediante procedimentos jd se distingue da variagio ad- vinda dos conflitos entre as partes. Contudo, na medida em 105, A respeit, ver Luhmann, 19876: esp. pp. 171 s. De ace om Hart (1961: 94), rata-se aqui da intreducso das regras secundaiias de adjudica. $80. Luhmann (1987: 79) fala de “institucionalizago da insitucionalizagio de expectativas de comportamento” 106. Luhmann, 1987p: 172 e182; 19834: 116 107. Luhmann, 1987: 185, 108. Luhmanny, 19876: 185, 109. CE Luhmann, 19933: 248 ¢ 252. 110, Lubmann, 19808: 253, TIL CE. Luhmann, 19539: 282.5, Tae es DOI MODELOS DE EVOLUCAO SOCIAL 23 que o procedimento de aplicagao juridica fundamenta-se em uma ordem supostamente estavel, os mecanismos seletivos “ainda nao se distinguem dos problemas da restabilizacao do sistema”, Nesse sentido, sustenta-se que o impasse da evolucao do direito das culturas avangadas pré-modemas reside na deficiéncia de seletividade em relacao a crescente variagio de expectativas normativas comunicadas, ou seja, no problema de que os procedimentos decisérios mostram- se incapazes de exercer sua funcao seletiva™. Na transigio das culturas avangadas pré-modernas para a sociedade moderna, a concepsao jusnaturalista desempe- nha um importante papel evolutivo no sentido da positiva- sao do direito. A dicotomia “ordem jurfdica natural/ordem juridico-positiva” implica a delimitacao da esfera do direito invariavel pela nocao de direito varidvel, alter4vel"™. Forém, conforme a concepgao jusnaturalista, o mutavel permanece ainda subordinado ao imutavel: 0 direito positivo s6 € valido enquanto se conforma ao direito natural inalteravel. A pre- tensio de validade da decisio legiferante expressa-se atra- vés da invocagao dos principios jusnaturais. Nesse contexto, ainda no prevalece a nogao de um direito inteira e cons- tantemente alteravel. Ela s6 vai surgir com a positivacao do_ direito como conquista da socieciade moderna*™. . Com a introdugao do procedimento legiferante como critétio de validagéo das normas juridicas, surge na era con- temporanea o direito positivo no sentido estrito da teoria sis- témica'"® O fato de que as normas sejam proclamadas por 112. Lahmann, 1993 269, 113. CE Luhiann, 1987: 297, 1981: 27 29; Teubner, 1982: 36 1989, 70. 114. CE Lalunary 19870: 186; 1981 19's, Sobre a formulagdes desea ‘otomia na tradigdo odental, ver Bobbio: 1979 5-15, No jusnaturasmo cristo, ‘ese dualismo amplia-seno sentido de “uma ticotomia is postu us natu Jehumaru eis dimen reuntrn,o mandamnent jure imatvel da reve laglo” (Wieacker, 1957: 2). Em Si0 Tomas de Aquino, acrescenta-s0 0" dito ‘temno" (Thomas von Aquin, 1977 16 x, questo 91; ck Neves, 199217). 115. Ch. Lahmann, 1981f, 19876: 190 36; 1983a: 141-50; Neves, 192: 2a, 16, Sobre 2 ambigiidade da expressio “disito postivo", cf, Neves, 1992: 17-21, apontando para diversas outras acepybes. 24 ENTRE TEMIS E LEVIATA: UMA RELACAO DIFICIL meio de processo legislativo nao é suficiente para que se ca- racterize uma order juridica como positiva. A legislagio jé se encontrava nas culturas antigas!”, No entanto, a vigéncia do direito baseava-se em representacdes sagradas ou tradicées, vinculando-se as estruturas sedimentadas como verdadeiras no passado', S6 quando o direito passa a ser regularmente posto e alteravel por decisio é que se pode falar de positivi- dade", Nesse novo contexto, a legiferagao nao se destina mais simplesmente ao registro e & compilagao de direito jé vigen- te, mas sim serve de fundamento de validade juridica™. A escrita deixa de ser apenas um meio de difusao e sistemati zagao de normas e principios juridicos preestabelecidos, a faciltar-Ihes a aplicacdo, e torna-se condicao da prépria vi- géncia do direito!™. A positividade significa que a selegao, agora envolvendo o processo legislativo, intensifica-se e di- ferencia-se da restabilizacao, que se concentra na reflexao dogmatic. Tendo em vista a deficiéncia da dogmatica ju ridica em oferecer conceitos socialmente adequados (proble ma de output), Luhmann considerou residir na restabilizagao impasse da evolugio do direito positivo (modemo)"™. Annogiio de positividade como decidibilidade e alterabi- lidade do direito, tal como formulada por Luhmann inicial- mente, deve ser rearticulada com a concepcao de positividade como “autodeterminidade”, fechamento operacional, auto- referéncia ou autopoiese do sistema juridico, por ele desen- volvida e radicalizada posteriormente™. Alguns conceitos 117. CE Luhmann, 1987b: 192 ss; 1981 124, 118. CE_Luhmann, 1987b; 195; Weber, 1985: 131, 119. CE, p. ex, Luhmann, 19876: 203; 19833: M1; 19816 125; em sent: do analogo, Weber, 19684: 215 6; 1985: 125, Schlueter, 1979. 1a6, 120. CE Luhmann, 1987: 196 321. CE Luhmann, 19938: 250, 122. Ck. Luhmann 19932: 274 123, CE. Luhmann, 1961b: 27 «30s, 1987 297 =; Teubner, 1989-70; 1982: 36 Especficamente sobre os problemas de oulpu!e concetos juridicos socialmente adequados, ver Lukimann, 1974: esp. pp. 29 ss. 124, CE Luhmansy 19981: esp. pp 38-128, 1988, 1985, 1983b; 19614; Ne~ ves, 1992: 3455. DOIS MODELOS DE EVOLLICAO SOCIAL 25 antes formulados perdem significado. © préprio conceito de positividade é considerado como insuficiente, na medi- da em que pode ser censurado como “decisionista” ou su- por uma contraposicao ao direito natural e, portanto, nao se referir rigorosamente ao fechamento operativo do siste- ma juridico! 2. A evolucao social como desenvolvimento da consciéncia moral e a evolucao do direito conforme o modelo habermasiano 2.1. Do desenvolvimento ontogenético ao filogenético No modelo habermasiano da evolucdo social, desen- volvido nos quadros da teoria da ago comunicativa e da ética do discurso (posteriormente denominada, mais preci- samente, teoria do discurso), nao se desconhece o signifi- cado do aumento da complexidade sistémica como aspecto relevante do processo evolutivo da sociedade™. Entretanto, » a énfase é atribuida A “Iogica do desenvolvimento”, consi: derando-se, decisivamente, os estédios da consciéncia mo- ral”, Habermas inverte o vetor na determinacio do pro: cesso evolutivo, argumentando que a complexificacdo.¢ a correspondente diferenciacio social dependem, para a sua continuidade, do desenvolvimento de “mecanismos de apren “dizado”. Nesse sentido, sustenta que os processos de dife- renciagio tanto podem ser indicios de evolucio quanto cau- sas de estagnacao evolutiva'®, Da mesma maneira, inverte © vetor em relagio a0 marxismo, salientando que o foco de- terminante da evolugéo nao se encontra na “dinémica do desenvolvimento” (forgas produtivas), mas sim na “I6gica do 125. CE Luhmann, 19934 38 56. Re 126. CE Habermas, 1982a Il 240-57, 127. CL Habermas, 1982a Il: esp. pp. 257 ss; 19824: 19826, 19826 1983 128. Habermas, 1982 133, e,1982h: 230, 1982a I 258 5 10 essa questio no Cap. ILL 26 ENTRE TEMIS E LEVIATA: UMA RELACAO DIFICIL Ivimento” (relagdes intersubjetivas, normativamen- tk itadas)"*, Pode-se afirmar que o desenvolvimento das. técnicas de producdo e o aumento da complexidade sisté- ‘mica, na concep¢ao habermasiana, apresentam-se como con- ddig@es da evolucao social, ao passo que o desenvolvimento das estruturas normativas constitui-Ihe o fuidamento.« Habermas reconstréi, no 4mbito da teoria da ago co- municativa e da ética do discurso, o modelo de desenvolyi- mento ontogenético (do individuo), tal como formulado por Piaget e desenvolvido por Kohlberg, transportando-o para 9 Ambito da evolugdo filogenética (da sociedade)}". Na es- teira da psicologia cognitiva, distingue trés niveis de desen- volvimento da consciéncia moral no s6 no plano indivi- ual, mas igualmente em relacao aos tipos de sociedade: 0 pré-convencional, 0 convencional e o pés-convencional. De Piaget, retiram-se e reconstroem-se elementos basi- cos da teoria dos estadios do desenvolvimento cognitivo e, especialmente, do julgamento moral na crianga"™, Na pri- meira fase da vida, a crianga nao se distingue como sujeito do seu ambiente. Ha uma simbiose entre a crianca, as pes- soas de teferéncia e os objetos que a cercam. O proprio cor- po nao é percebido como uma tealidade envolvente e deli- mitadora da pessoa, Nesse estddio, nao se pode falar ainda de subjetividade™ 129. Habermas, 19824: sp, pp 35; 19824 ct. 19625 1995. Segundo Ha- berms (1982 I: 2765), a tera funclonaita dos sistemas, de eto med, € herder do marsimo, na medida ein qu redo problema daewlasio so pesto “empiico-sstémic”. 130. Habermas, 1983; 19826; 19828 IF esp. pp. 25955; 19824: 19 sa; 19826 133 5; 1982h: 22, 1991b;19e. Teubner L989: 7) met ie tingfo entre ontogenicoeflogendtico como reteentesrespectvamente, a0 hhomem e sociedad, com base na concep sistiica de que a sete ‘io 6 constitu de homens, mas sin de comunicagoesatbundo 0 ape

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