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A falta de classe

Santana Castilho *
Perdoem hoje o estilo. A prosa sairá desarticulada, quais dardos soltos. Este
artigo é, conscientemente, feito de frases curtas. Cada leitor, se quiser,
desenvolverá as que escolher. Meu objectivo? Manter a sanidade mental. Escorar a
coluna vertebral. Resistir. Este artigo é também uma reconfirmação de alistamento
na ala dos que não trocam os princípios de uma luta pelo pragmatismo de um lance.
Porque amo a verdade e a dignidade profissional como os recém-chegados ao mundo
amam o bater do coração das mães. Porque não esqueço os que nenhum lance poderá já
compensar. Porque com a partida prematura deles perderam-se pedaços da Escola que
defendo. Porque pensar em todos é a melhor forma de pensar em cada um.
A avaliação do desempenho é algo distinto da classificação do desempenho. A
avaliação do desempenho visa melhorar o desempenho. A classificação do desempenho
visa seriar os profissionais. Burocratas que morreram aos 30 mas só serão
enterrados aos 70 tornaram maior uma coisa menor. Quiseram reduzir realidades
díspares à unicidade de fichas imbecis. Tiveram a veleidade Kafkiana de
particularizar em 150.000 interpretações individuais os objectivos de uma
organização comum a todos. Convenceram a populaça de que se mede o intangível da
mesma forma que se pesam caras de bacalhau. Chefiou-os uma ministra carrancuda,
que teve o mérito de unir a classe. Chefia-os agora uma ministra sorridente, que
já se pode orgulhar de dividir a classe. Porque, afinal, custa, mas não há classe.
Há jogos! De cintura. De bastidores. De vários interesses. Parlamentares,
sindicalistas, carreiristas e pragmatistas ajudaram á Babel. Da sua verve jorra a
água morna de Laudicéia, a que dá vómitos.
Alçada derreteu o implacável Mário Nogueira que, em socorro da inexperiência da
ministra, veio, magnânime, desculpar-lhe as gafes. E, cristãmente, entendeu agora,
de jeito caridoso, que não seja suspenso o primeiro ciclo avaliativo. Esqueceu
duas coisas: o que reclamou antes e que ciclos avaliativos são falácias de
anterior ministra. Ciclos avaliativos, Simplex I, Simplex II e o último expediente
(no caso, um comunicado à imprensa, pasme-se) para dizer às escolas que não
prossigam com o que a lei estabelece são curiosos comandos administrativos. Uma
lei má, iníqua, de resultados pedagogicamente criminosos, devia ter morrido às
mãos do parlamento. Por imperativo da decência, por precaução dos lesados, por
imposição das promessas de todos. Quanto à remoção das mágoas, meu caro Mário
Nogueira, absolutamente de acordo. Depois de responsabilizar os que magoaram.
Depois de perguntar aos magoados se perdoam. Por mim, cuja lei foi sempre estar
contra leis injustas, a simples caridade cristã não remove mágoas. Não sei perdoar
assim, certamente por falta de céu.
Agora, porque sou amigo de Platão mas mais amigo da verdade, duas linhas para
Aguiar Branco. Gostei de o ouvir dizer, a meu lado e a seu convite, que a
avaliação do desempenho era para suspender. Mas não justifique a capitulação com a
semântica. Poupe-me à semântica, porque a semântica não o salva. Enterra-o.
Suspender é interromper algo, temporária ou definitivamente. É proibir algo
durante algum tempo ou indefinidamente. Substituir é colocar algo em lugar de. Não
só não tinha como não terá seja o que for, em 30 dias, para colocar em lugar de.
Sabe disso. Bem diferente, semanticamente. Mas ainda mais importante nos
resultados. O Bloco Central reanimou-se nas catacumbas e o PS agradeceu ao PSD o
salvar da face. Mas os professores voltaram a afastar-se do PSD, apesar do
arrependimento patético de Pedro Duarte. E, assim, o PSD falha a vida!
Um olhar aos despojos. Reverbera-se a falta de capacidade de muitos avaliadores
para avaliar, mas homologam-se os “Muito Bom” e “Excelente”, que significam mais 1
ou 2 pontos em concurso. Os direitos mal adquiridos de alguns valeram mais que os
direitos bem adquiridos de muitos (como resolverão, a propósito, os direitos
adquiridos dos “titulares” que, dizem, vão extinguir?). Porque toca a todos,
muitos “titulares” que não tinham vagas de “titulares” em escolas que preferiam,
foram ultrapassados em concurso por outros de menor graduação profissional, que
agora lá estão, em almejados lugares de quadro. Ao mérito, há muito cilindrado,
junta-se uma palhaçada final, em nome do pragmatismo. Muitos dos que foram
calcados recordam agora que negociar é ceder. Mas esquecem que os princípios e a
dignidade são inegociáveis, sendo isso que está em jogo. Um modelo de avaliação
iníquo, tecnicamente execrável e humanamente desprezível, que não lhes foi
aplicado ao longo de um processo, é agora aceite, em nome do pragmatismo, para não
humilhar, uma vez, quem os humilhou anos seguidos.
Sócrates, que se disse animal feroz, vai despindo a pele. Mas não nos esqueçamos
da resposta de um dos sete sábios da Grécia, quando interrogado sobre o mais
perigoso dos animais ferozes. Respondeu assim: dos bravos, o tirano. Dos mansos, o
adulador.
Vão seguir-se meses de negociações sobre o estatuto. O défice, que levou à divisão
da carreira e às quotas, agravou-se. Se a desilusão for do tamanho da ilusão,
tranquilizem-se porque a FENPROF ficará de fora, como convém, e a FNE poderá
assinar um acordo com o Ministério da Educação, como não seria a primeira vez.
Voltaremos então ao princípio. O que é importante continuará à espera. Mas
guardaremos boas recordações de duas marchas nunca vistas.
* Professor do ensino superior. s.castilho@netcabo.pt

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