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OTTO MARIA CARPEAUX

H I S T Ó R I A DA
LITERATURA
OCIDENTAL

IV

EDIÇÕES O CRUZEIRO
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PARTE VII

O ROMANTISMO

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HERBERTO SALES

DIREITOS AUTORAIS ADQUIRIDOS PELA EMPRESA


GRÁFICA O CRUZEIRO S. A., Q U E SE RESERVA
A PROPRIEDADE LITERÁRIA DA PRESENTE EDIÇÃO.
CAPÍTULO I

ORIGENS DO ROMANTISMO

A C O N T E C I M E N T O da Revolução Francesa produ­


0 ziu na Europa inteira — e no continente americano —
uma profunda emoção, exprimindo-se em uma literatura de
tipo emocional, que se deu a si mesma o nome de "romantis­
mo". / A história desse movimento literário pode ser escrita
em termos de história das revoluções: foi produzido pela
revolução de 1789 e 1793; foi desviado pelo acontecimento
contra-revolucionário da queda de Napoleão, em 1815;
reecontrou o élan inicial pela revolução de 1830; e
acabou com a revolução de 1848. É literatura política,
mesmo e justamente quando pretende ser apolítica. A
revolução francesa satisfez a reivindicações que se ex­
primiram através do pré-romantismo: o descontentamento
sentimental e o popularismo encontraram-se na mística
democrática do "instinto sempre certo" do povo. Mas
a Revolução não satisfez da mesma maneira àqueles
pré-românticos, que não eram políticos, nem homens de
negócios, nem homens do povo, e sim literatos, os primei­
ros literatos profissionais: estes foram logo excluídos da
nova sociedade burguesa, que não admitiu outro critério
de valor, senão o utilitarista. Aplicar-se-ia a todos eles o
apelido depreciativo que Napoleão, deu aos filósofos: "Ce
w sont des idéologues". Responderam, criando uma literatura
"ideológica", que se situou conscientemente fora da reali­
dade social: ou evadindo-se dela, ou então atacando-a. Eis
1652 OTTO M A M A CARJ>EAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1653

o "Romantismo". A expressão é das mais infelizes; deu


lítica de Goethe e no idealismo moderado de Schiller. Mas
ocasião às confusões mais inveteradas e às discussões mais
Weimar não era a capital da Alemanha literária. Duas ca­
estéreis, de modo que não convém continuá-las; o termo
madas poderosas da nação, poderosas pelo número de lei­
só pode ser convenientemente discutido depois da exposi­
tores, não podiam aceitar o classicismo: eram os pequenos
ção dos fatos históricos. Até então, basta, embora provisória
intelectuais, vigários protestantes, mestres-escolas e seme­
e precariamente, uma definição como esta: "O romantismo
lhantes; depois, as mulheres. Primeiro, porque sabiam
é um movimento literário que, servindo-se de elementos his-
pouco latim e nada de grego, e o classicismo lhes parecia
toricistas, místicos, sentimentais e revolucionários do pré-
planta exótica em solo alemão; segundo, porque, conser-
romantismo, reagiu contra a Revolução e o classicismo revi-
vando-se fiéis a Rousseau e ao sentimentalismo democrá­
vifiçado por ela; defendeu-se contra o objetivismo racio­
tico, tinham chorado com o Werther e se enfurecido com
nalista da burguesia, pregando como única fonte de inspi­
os Raeuber, e consideravam a transição de Goethe e Schil­
ração o subjetivismo emocional". Emoção é o que, por de­
finição, não pode ser definido em termos racionais. Daí a ler para o classicismo como traição. Para eles, o maior dos
multiplicidade dos tipos românticos, de modo que será me­ escritores alemães não foi Goethe nem Schiller, mas Jean
lhor falar em "romantismos", no plural, do que em "roman­ Paul.
tismo". As variedades principais subordinam-se, porém, sem Poucos escritores foram, em vida, tão idolatrados como
muito artifício, às individualidades nacionais: é possível Jean Paul ( x ) ; hoje, a leitura dos seus romances é dos tra­
distinguir três pontos de partida diferentes do romantismo. balhos mais difíceis que possa haver. Obras de grande ta­
O ponto de partida alemão é principalmente pré-romântico. manho e de enredo complicadíssimo, mas tão pouco coeren­
O ponto de partida francês é principalmente pré-revolucio- tes que o leitor, depois das primeiras cinquenta páginas,
nário. O ponto de partida inglês é principalmente contra- perde o fio, enfrentando com resignação os acontecimentos
revolucionário. Mas depois as correntes se confundem. A
literatura romântica, que tantas vezes se gabava de ser mais O Jean Paul (pseudónimo de Joharm Paul Friedrich Richter), 1763-
nacional e mais nacionalista do que o classicismo, consti­ 1825.
tuiu, no entanto, o movimento literário mais internacional Die unsichtbctre Loge (1703); Leben des vergnuegten Schulmeister-
leins Maria Wuz (1795); llcuperux oder 45 Hunãsposttage (1795);
de quantos a Europa até então tinha visto. Em consequência Leben des Quíntus Fixlein (1790); Der Jubelsenior (1797); Blu-
das oportunidades inesperadas de contacto pessoal que a men—, Frucht— unã Dornenutuecke oder Ehestanã, Toâ unã Ho-
chzeit des Armenadvokat.cn Siebenkaes (1796/1797); Titan (1800/
inquietação política e bélica criou, e da atividade febril dos 1803); Flegeljahrc (1804/1805); Der Komet (1820-1822); — Vors-
tradutores, estabeleceu-se um novo "concerto europeu" da chule der Aeslhnllk (1804); Levana oder Erziehungslehre (1807).
Edição completa por R. Gottschall, 60 vols., Berlin, 1879.
literatura. O romance histórico à maneira de Scott, o poema Edição critica (Incompleta) por E. Berend, 12 vols., Weimar, 1925-
narrativo à maneira de Byron, o teatro à maneira de Hugo, 1936.
aboliram todas as fronteiras literárias. E aqueles elementos P. Ncrrlich: Jean Paul, sein Leben unã seine Werke. Berlin, 1839.
R. Rohdc: Jean PauVs Titan. Berlin, 1920.
nacionais combinaram-se, criando os tipos da literatura I. Alt.: Jean Paul. Muenchen, 1925.
romântica internacional. W. Harich: Jean Paul. Leipzig, 1925.
W. Meier: Jean Paul. Zuerich, 1926.
F. Bursehell: Jean Paul. Stuttgart, 1926.
A primeira resposta alemã à Revolução francesa fora o M. Kommerell: Jean Paul. Frankfurt, 1933.
conformismo classicista, manifestando-se na atitude apo- M. Gauke: Jean PauVs Traumãichtungen. Bonn, 1936.
H. Cysarz: "Jean Paul, der Roman und der Realismus". (In: Welt-
raetsel im Wort, Wien, 1948.)
1654 OTTO M A R I A CARPEAUX
HiSTÓniA DA LITERATURA OCIDENTAL 1655
mais romanescos e inverossímeis, entorpecido como está
Mas as suas meditações religiosas elevam-se, às vezes, à
pelos derramamentos de um sentimentalismo desenfreado,
altura quase de revelações, antecipando certas ideias do
banhado num mar de lágrimas. Tampouco nos pode divertir
existencialismo de Kicrkcgaard.
um humorismo bizarro, quase maluco, acumulando trocadi­
Jean Paul é cristão sentimental. Os seus heróis, ho­
lhos e digressões pseudo-científicas. Nem nos consolam
mens do povo, são os "quietos no país" da mística renana,
meditações moralizantes contra os poderosos e os ricos,
pela qual o romancista está influenciado de qualquer ma­
nem excursos filosófico-religiosos; e os "heróis diabóli­
neira, e de maneira mais direta do que a "Schoene Seele"
cos" de Jean Paul, como Roquairol em Titan, dão a im­
de Goethe, porque rejeitou o classicismo de Winckelmann
pressão de espantalhos para crianças. Parece subliteratura,
e todo e qualquer classicismo, essa religião dos cultos, re­
composta de resíduos do século X V I I I . Notam-se as múl­
quintados e inimigos do povo. O seu tratado Vorschule der
tiplas fontes de Jean Paul. O modelo da sua construção
Aesthetik é uma crítica surpreendentemente sagaz à esté­
novelística é o "romance gótico", o romance de terrores:
tica de Kant e Schiller; e aos requintes do classicismo opõe,
a misteriosa seita maçónica que, na Unsimchtbare Loge, age
no tratado Levana, a educação rousseauiana conforme a Na­
como força educadora do herói, e o tremendo titão Roquai­
tureza. Três dos seus romances, Die unsichtbare Loge,
rol evidenciam isso bem. Da vulgaridade desses expedientes
Titan e Flegeljahre, são "romances de educação", opostos
novelísticos foge Jean Paul pelo seu humorismo, que apren­
ao Wilhelm Meister, e o produto dessa educação é um ado­
deu em Sterne: humorismo fantástico, caprichoso, inesgo­
lescente sentimental e sonhador, assim como será o herói
tável em aperçus espirituosos, satisfazendo plenamente à
dos românticos. Roquairol, o futuro herói byroniano, é
definição do humorismo como "sorriso entre lágrimas". Lá­
vítima da educação falsa no ambiente dos "cultos". É signi­
grimas de sentimentalismo pré-romântico: os pequenos
ficativo que os grandes romances romanescos de Jean Paul
idílios de Jean Paul, como Wuz e Jubelsenior, glorificam a
se passem na corte, e os idílios sentimentais entre o povo.
vida miserável dos vigários e mestres-escolas de aldeia
Jean Paul não traiu os ideais da Revolução; até depois da
alemã, celebrando o trabalho quotidiano e a resignação
queda de Napoleão, em plena reação absolutista, teve a
cristã desses vigários de Wakefields alemãs, enquanto nos
coragem de lembrar os ideais do liberalismo. Apenas, en-
palacetes aristocráticos — ali, as vítimas das intrigas dia­
volve-os nas nuvens da sua imaginação fantástica, e justa­
bólicas são as mulheres, em torno das quais Jean Paul des­
mente a mais fantástica das suas obras, Siebenkaes, é um
dobra o seu sentimentalismo ligeiramente sensual. O con­
vigoroso romance da pobreza.
ceito do plebeu Jean Paul quanto aos costumes da corte e
Apesar dos esforços permanentes de pequenos grupos
dos grandes do mundo tem algo da lenda "maquiavelista"
de críticos e amadores, Jean Paul nunca voltará a ser lido.
do Barroco: a corte é um ninho de diabos, e Jean Paul opõe
Mas é uma pena, pois no meio de centenas de páginas indi-
a essa corrução não só o sentimentalismo de Richardson e
geríveis encontra o leitor paciente belezas e até profundi­
do Werther mas também o titanismo revolucionário d o
dades extraordinárias.
"Sturm und Drang". A atmosfera dos seus grandes roman­
É preciso aprender a ler Jean Paul. Então, as suas
ces é a de Kabale und Liebe. Mas desaprova o ateísmo ti­
obras se revelam como documentos de intenso lirismo em
tânico de Roquairol; porque Jean Paul é cristão, filósofo
prosa. E essa prosa constitui a sua arte. Nos seus admira­
do sentimento religioso, embora sem falar muito em dogmas.
dores fanáticos como Boerne, o lirismo inimitável de Jean
1656 OITO MARIA CARPEAUX HlSTÓlUA DA I.ITHIIATIIIIA < )»:il)HNTAI, 1657

Paul produzirá o descuido, a linguagem folhetinística. Mas antipoético, dos burgueses r pcqiienos-burgueses aborre­
no estilo do próprio Jean Paul descobriu um poeta tão ceu os escritores do Iena. ftsse uni i-racionalismo é bem
exigente como Stefan George uma música verbal da qual pré-romântico, e convém lembrar que o ambiente de Iena,
os clássicos de Weimar não foram capazes. Não é acaso assim como de tôclan as Universidades dn Alemanha orien­
que Robert Schumann tenha sido admirador apaixonado tal e setentrional, da Qoattlrtgen a Kocnip.Hberg, estava for­
desse escritor. Jean Paul é o maior colorista da prosa temente influenciado paio panaamento de Hcrder; desse
alemã. Nisso, também, é anticlássico e já romântico. Herder que viveu em Weimar, cada voat menos lembrado,
^ ' Os "românticos", porém, não aceitaram o escritor po- como num exílio, m i l cujo uplrlto deixou vestígios em
N ^ pularíssimo justamente por ser popularíssimo. Eles, ao cada linha que os ienenaaa «cravaram ("). Nem sempre se
contrário, eram estetas como a gente de W e i m a r ; apenas revela isso, porque oa Chafat do movimento, OH irmãos Schle-
em outras condições, piores. A destruição dos pequenos gel, sobrinhos do dramaturgo gottschediano Johann Elias
Estados e bispados autónomos da Alemanha ocidental Schlegel, eram eipirltOl criticou, homens do século X V I I I ,
e meridional, pela Revolução, privou os escritores ale­ com forte dose da huminlamo classicista c com dose maior
mães dos seus mecenas generosos. Transformou-os em de libertinismo aristocrático. Mas a sua ambição era a
literatos profissionais, vivendo de conferências, aulas, mesma de Herdar: ■ •uropelznçfio da Alemanha luterana,
revistas e jornais; muitos tornaram-se boémios meio va­ a sua incorporaçlo na Kuropu movimentada pela Revolu­
gabundos. Na Alemanha oriental acabaram, por esse tem­ ção, por melo da crlaqío de uma nova literatura.
po, as atividades literárias, e a Prússia afrancesada Friedrich Schlegel (*) veio do classicismo: a sua pri­
mostrou-se tão fria aos adventícios quanto a Áustria cató­ meira ambiçio foi escrever uma história da literatura greco-
lica. Weimar estava saturada. Mas perto de Weimar havia romana, pcndnnt dn li intui in da arte greco-romana, de W i n -
a Universidade de Iena, centro de barulhenta vida estu­ ckelmann. Mas encarou de maneira diferente o seu objeto:
dantil e grandes atividades editoriais; e foi ali que se imbuído de espirito heidcriano, Friedrich Schlegel consi­
constituiu a "primeira escola romântica" ( 2 ). derava a poesia ('.'''t',''1 n 5o como expressão permanente da
Os escritores de Iena adoravam Goethe, cujo ideal de beleza clássica, e sim como expressão natural de um povo
formação egocêntrica e universal do espírito também era de ernio. O objetivo era "desclassicizar" os gregos, revelar
o seu ideal. Detestavam Schiller, que justamente então
começava a tornar-se o dramaturgo dos grandes êxitos. :n R. IJnucr: Uvrãcr, Novalis, Kleist. Frankfurt, 1922.
Como literatos profissionais e boémios gostam sempre de 1) J''i-li'ilricl> Schlegel, 1772-1829.
Die Oricclicn und die Roemer (1797); Geschichte der Poesie der
fazer, os escritores de Iena desprezaram o seu próprio pú­ Griechen und Roemer (1798) ; Lucinde (1799); Ueber die Sprache
blico, caricaturando-o como massa inerte de filisteus ordi­ und Weisheit der Inãer (1808); Geschichte der alten und neuen Li-
leralur (1815); Charakteristiken und Kritiken (com August
nários. Sobretudo o racionalismo estreito, utilitarista e Wilhelm Schlegel; 1801).
Edição completa das obras de crítica por E. Behler, 11 vols..
Obras críticas escolhidas ed. E. Behler, S t t u g a r t , 1961.
2) O. Walzel: Die ãeulsche Romanlik. 5. a ed., 2 vols. Leipzig, 1925, J. Rouge: Friedrich Schlegel et la génese du romantisme allemanã.
(Boa, introdução.) Paris, 1904.
R. H a y m : Die romantische Schule. 5. a ed. Berlin, 1928. (Obra ca­ I*'. Gundolf: Roviantiker. Berlin, 1930.
pital; ponto de vista, algo antiquado, do idealismo alemão do Sé­ A. Kchlagdenhauffen: Friedrich Schlegel et son groupe. Paris,
culo XIX.) 1!M.
H. A. Korff: Dar Geisl ãcr Goethczeit. Vol. I I . Leipzig, 1930. .). Kocnicr: Friedrich Schlegel ais Philosoph. Wien, 1935.
HISTÓRIA DA LITURATUHA OCIDENTAL 1659
I (>!">» ()'i"i'(i M A M A ('AIIIMIAIIX

uma Grécia «cm preocupações de bienséance francesa e sem "as três grandes tendências da época", e o voluntarismo
moderação razoável, latina; uma Grécia livre, individua­ violento de Fichte, considerando o mundo como criação do
lista, libertina até — semelhante à Itália de Heinse — po­ "eu" soberano, em luta contra o objeto irreal, contribuiu
deria quase dizer-se, uma Grécia dionisíaca, para indicar para dar a Friedrich Schlegel a coragem de exigir um
até que ponto Friedrich Schlegel antecipou ideias de Nietzs­ mundo novo e uma literatura novo, cm luta aberta contra a
che. O libertinismo sensual do seu romance Lucinde, que sociedade racionalista e as convenções do classicismo. Esse
provocou tanto escândalo, exigiu o amor livre como um dos JIÔVO mundo devia ser o opo«to ao mundo da prosa; um
meios de protestar contra a vida cinzenta de todos os dias, mundo de poesia. A poesia devia cessar de ser ocupação
em favor de uma vida aventurosa, surpreendente, intensa — para as tardes de domingo, devia penetrar cm todos os ne­
uma vida estética. O classicismo de escola não bastava como gócios da vida, assim como acontecera nos tempos melhores
expressão desse esteticismo. E r a preciso criar uma nova da Idade Média. Retomando sugestões de Hcrder, Friedrich
literatura, cujos princípios Friedrich Schlegel acreditava Schlegel chamou a atenção para a Renascença italiana, para
ter descoberto em Goethe. A sua crítica magistral de Wi- as literaturas espanhola e portuguesa, para Dante e Pe­
lhelm Meisters Lehrjahre interpretou, pela primeira vez, trarca. Exigiu a criaçio consciente de um novo mundo de
uma obra de arte como estrutura completa, auto-suficiente, fé, se bem que de fé apenas artística, cujos produtos o
independente da realidade e sem alusões morais. artista reconhece, com ironia superior, como mero jogo da
imaginação. Com os elementos medievalismo e ironia, pre­
Friedrich Schlegel é lembrado sobretudo como grande
tendia Friedrich Schlegel coiiHtruir uma nova arte e uma
crítico. Esconde-se, porém, no fundo das suas teorias lite­
nova religião.
rárias um sistema filosófico, sobre o qual deu aulas em
Iena » que só em nossos dias foi descoberto por Joseph Nessa exigência havia uma porção de "blague", "pour
Koerner: sistema idealista, cujos elementos essenciais, a épater le bourgeois", o burguês voltairiano de 1800, que
polaridade dialética em torno do centro criador da perso­ viu nos monumento* dn Idnde Média tão-sòmente reminis­
nalidade subjetiva, são conclusões audaciosas de ideias de cências de Inqulslçlo o "fanatismo"; havia uma porção de
Goethe. Essa descoberta limita bastante o alcance de uma "prédilection d'artUte" pelos costumes pitorescos de um
outra influência, que agiu sobre os escritores de Iena e foi carnaval medlevaliNta; havia uma saudade secreta, de ar­
antigamente exagerada: a do filósofo Fichte ( 5 ), pensador tista, dos tempos DOM quais se dava — parecia — mais
Menção a arte do que aos negócios. Havia também uma
de ascendência mística, que transformou o mundo ideal de
porçSo do entusiasmo sincero pelo mundo poético que
Kant em produto irreal de um dialética entre o eu ativo e
I! etd e r descobrira.
o objeto inerte. O próprio Friedrich Schlegel mencionou
a Wissenschaftslehre (Teoria das Ciências), de Fichte, ao O innin HÍIHCIO desses medievalistas foi Wackenro-
lado do Wilhelm Meister e da Revolução francesa, entre iln ("), que morreu com 25 anos de idade, tipo do adoles-

5) Johann Gottlieb Fichte, 1762-1814. (ii Hclmlcli WJlluílm Wackenroder, 1773-1798.


Wissenschaftslehre (1794); Reden an die deutsche Nation (1808). Herzenscrgicisungen eines kunstliebenden Klosterbruders (1797).
K. Fischer: Johann Gottlieb Fichte. 3.a ed.a Heidelberg, 1897. Kciiçdo por O. Walzel, Leipzig, 1921.
E. Bergmann: Johann Gottlieb Fichte. 2. ed. Leipzig, 1924. P. Koldewey: Wackenroder und sein Einfluss auf Tieck. Leipzig,
M. Wundt: Johann Gottlieb Fichte. Sein Leben und seine Lehre. 1904.
Stuttgart, 1927. K. Guelzow: Wackenroder. Stralsund, 1930.
1660 OTTO M A R I A CABPKAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1661

cente entusiasmado, à maneira dos heróis juvenis de Jean barulho a sua indignação contra o assunto "inverossímil",
P a u l ; um protestante de 1800, que imaginava a vida de um conversando, da plateia, com o poeta e os atores no palco,
monge medieval como permanente meditação estética peran­ obrigando, enfim, estes últimos a representar um drama
te quadros de Duerer ou Raffaello; em todo o caso, W a c - sentimental-burguês. Depois dessa farsa pirandellesca,
kenroder descobriu o encanto estético do culto católico, das Tieck sucumbiu à influência do amigo Wackenroder.
naves escuras das catedrais, da arquitetura pitoresca de Franz Sternbalds Wanderungen é um Wilhelm Meister
Nuernberg. Os seus fragmentos e esboços foram editados em que a educação do herói se realiza pela arte medieval;
pelo seu amigo Tieck ( 7 ), que lhe sobreviveu por mais de 50 Genoveva e Oktavianus são dramatizações altamente poé­
anos, tornando-se o virtuose do medievalismo, depois o ticas de lendas medievais, introduzindo-se os efeitos do
habilíssimo imitador de todos os estilos de todos os tem­ teatro espanhol. Tieck traduziu o Dom Quixote, sugeriu
pos e o ditador literário da Alemanha romântica. O seu à sua filha Dorothea a tradução daquelas peças de Shakes­
primeiro romance, William Lovell, fora um romance "gó­ peare que August Wilhelm Schlegel não traduzira, fêz
tico", cheio de horrores, titanismo do "Sturm und Drang", muito pela interpretação e divulgação de Shakespeare na
sensualidade desenfreada; no mesmo estilo, o conto de Alemanha, criou o conto romântico — escreveu dois contos
fadas "Der blonde Ekbert" tornou-se peça magistral de an­ muito belos sobre os destinos de Shakespeare e Camões —;
gústia supersticiosa. Havia virtuosismo nisso e vontade e escreveu, no fim da vida, dois vigorosos romances histó­
de "blaguer"; a doutrina da ironia inspirou-lhe a brilhante ricos, Der Aufruhr in den Cevennen (A Revolta nas Ceve-
comédia literária Der gestiefelte Kater, na qual um pú­ nas) e Vittoria Accorombona. Edições notáveis das obras
blico de burgueses racionalistas assiste a uma represen­ inéditas de Lenz e Kleist completam a relação de uma vida
tação de um conto de fadas dramatizado, exprimindo com riquíssima a serviço da arte — mas o próprio Tieck não
deixou nenhuma obra definitiva, por falta de responsabili­
dade artística; um talento muito grande esgotara-se em
virtuosismo, ironia e jogos de imaginação.
7) Ludwig Tieck, 1773-1853.
William Lovell (1795-1796); Der blonde Ekbert (1796); Die schoene Essa falta de responsabilidade é comum a muitos me-
Magelone (1796); Der gestiefelte Kater (1797); Franz Sternbalds
Wanderungen (1798); Prinz Zerbino (1799); Genoveva (1799); dievalistas românticos; defeito literário que lhes salvou
Melusina (1800); Kaiser Oktavianus (1804); Phantasus (1812- a personalidade moral. Tieck não tomou nunca a sério,
1816); Fortunat (1815-1816); Die Gemaelãe (1822); Dramaturgis-
che Blaetter (1825-1826); Dichterleben (1826); Der Aufruhr in ãen pelo menos não inteiramente, as crenças, lendas e supers­
Cevennen (1826); Der Toã ães Dichters (1834); Der junge Tisch- tições que tratou, conseguindo conservar a lucidez do seu
lermeister (1836); Vittoria Accorombona (1840); Kritische Schrif-
ten (1848). espírito século X V I I I e chegar, no fim da vida, ao realismo
Edição completa por R. Koepke, 22 vols., Berlin, 1828-1855. dos seus últimos contos. Só personalidades patológicas
Edição de obras escolhidas por E. Berend, 6 vols., Berlin, 1908.
K. Koepke: Ludwig Tieck. Leipzig, 1855. sucumbiram completamente, como Zacharias W e r n e r ( s ) :
H. von Friesen: Tieck. 2 vols. Wien, 1871.
F. Gundolf: Romantiker. Neue Folge. Berlin, 1932.
E. H. Zeydel: Ludwig Tieck, the German Komanticist. Princeton
1935. 8) Zacharias Werner, 1768-1823.
R. Minder: Un poete romantique allemand: Ludwig Tieck. Paris, Die Soehne des Tales (1803); Das Kreuz an der Ostsee (1806);
1936. Martin Luther oâer die Weihe der Kra/t (1807); Attila (1808);
M. Thalmann: Ludwig Tieck. Der romantische Weltmann aus Wanda (1810); Der 24. Februar (1810; publ. 1815); Cunegunde
Berlin. Bern, 1956. (1815); Die Mutter der Makkabaeer (1820).
IM>2 O r i o MAniA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1663

filho <1o Prússia oriental como Hamann e Herder, envol­ de falência: a conversão ao catolicismo romano, conversão
vido desde cedo na atividade de seitas ocultistas que então de bancarroteiro que renuncia à sua própria vontade livre.
Mas virou, neste caso, um catolicismo vivo, o dos padres
ite tinham apoderado de um papel importante na maçonaria,
redentoristas de Viena c o do seu grande santo Clemens
Werner sonhava com utopias de uma nova religião uni­
Maria Hoffbauer; Werner, ordenado padre, tornou-se
versal, humanitária, ao mesmo tempo que a sua disposição
grande pregador popular, e as suas últimas tragédias de
patológica o levou a uma vida desregrada de devassidão.
mártires cristãos ou bíblicos são melhores do que a fama
A forma natural de expressão do seu poderoso talento
que deixaram. Werner está hoje injustamente esquecido.
teatral teria sido o drama do "Sturm und Drang"; a von­
A Hiin influência sobre o teatro alemão foi muito grande:
tade de influenciar ideologicamente o público determinou,
manifesta-se nas tragédias de Kleist, e na maneira como
porém, a adoção da forma schilleriana, então de grande
Brentano, na Gruendung von Prag, Grillparzer em Libussa,
sucesso. Werner é o sucessor mais hábil de Schiller; vir-
e Hebbel em Moloch, pretenderam interpretar dramatica­
tuose dos efeitos cénicos e, às vezes, como em Martin Lu-
mente os começos de uma civilização, sobretudo da eslava.
ther, aproximando-se da verdadeira tragédia, embora caindo
Der 24. Februar foi um sucesso retumbante; desde então,
sempre em retórica vazia. E m Wanda, o prussiano drama­
o "Schicksalsdrama" ( 9 ), a tragédia de complicações mis­
tizou ideias de Herder, profetizando o grande futuro dos teriosas e horrorosas sob a influência de um fado hostil,
eslavos; mas a eloquência schilleriana estraga a peça. A tornou-se popularíssima, competindo com o "romance gó­
uma expressão pessoal chegou Werner, quando os sonhos tico" e substituindo o drama burguês, choroso, nas prefe­
utópicos o abandonaram e êle se encontrou em face da sua rências do público. Die Schuld (1816), do habilíssimo
verdadeira situação humana, perante uma vida devastada; Adolf Muellner, tornou-se a peça mais representada do
o seu espírito irresponsável, profundamente imoral, só teatro alemão, batendo os recordes de Kotzebue; e entre
podia responsabilizar o Fado. Der 24. Februar (O Dia 24 as imitações sobressai a Ahnfrau, de Grillparzer, ainda hoje
de Fevereiro) é uma tragédia de horrores e assassínios representada.
inspirados pelo Destino. A magistral construção dramática
da peça concentrada como o Oedipus Rex, e a atmosfera No Norte da Alemanha, em país protestante sem mís­
sombria, carregada de mistério, que lembra Maeterlinck, não tica e conservador sem exaltação, o medievalismo vestiu-se
deixam respirar o espectador, de modo que não se repara no de maneira mais sóbria e menos séria. Os grandes sucessos
absurdo das complicações fatais que esmagam a liberdade de dos romances e dramas "nórdicos" de Fouqué ( 1 0 ), apre­
agir dos personagens. O fim de Werner foi uma declaração sa ) Edição (com introduções) das principais peças:
J. Minor: Die Schicksalstragoedie in ihren Hauptvertretern,
Frankfurt, 1883.
Edição por P. Schuelz, 15 vols., Glimma, 1840-1841. M. Enzinger: Das deutsche Schicksalsdrama. Innsbruck, 1922.
Edição de peças escolhidas em: J. Minor: Die Schicksalstragoedie iOi Friedrich Heinrich de la Motte Fouqué, 1777-1843.
in ihre.n Hauplvertrclc.rn. Frankfurt, 1883. Der Held ães Nordens (1808); Sigurã der Schlangentoeter
E. Vierling: Zacharías Werner, la conversion d'un romantique. (1808); Unãine (1811); Der Zauberring (1813) etc, etc.
Nancy, 1908. Edição de obras escolhidas por M. Ziesemer, 3 vols., Berlin, 1908.
G. Gabetti: II drama di Zacharías Werner. Torino, 1916. W. Pfeiffer: Fouqué's Unãine. Heidelberg, 1903.
F. Stuckert: Das Drama Zacharías Werner. Frankfurt, 1926. M. Kaemmerer: Fouqués Held ães Nordens und seine Stellung in
G. Carow: Zacharías Werner und das Theater seiner Zeit. Leipzig, der deutschen Literatur. Frankfurt, 1910.
1933. A. Schmidt: Fouqué und einige seiner Zeitgenossen. Karlsruhe,
1959,
1664 OITO MAMA CARPEAUX H I S T Ó M A DA LITERATURA OCIDENTAL 1665

sentações inteiramente falsas da Idade Média escandinava Para criá-la, seu irmão, August Wilhelm Schlegel ( " ) ,
— Der Held des Nordens foi a primeira tentativa de dra­ escolheu o caminho já indicado por H e r d e r : o das tradu-
matizar a "saga" dos Nibelungen — basearam-se na con­ Caroline Schlegel, natureza de génio viril. Como crítico,
e o seu talento imitativo, dir-se-ia feminino, de poeta menor
fusão entre o heróico passado germânico e o passado ale­
tornou-o capaz de traduzir como nenhum outro; as suas
mão, confusão que agrada ao orgulho nacional dos alemães
obras-primas, a análise de Romeo and Juliet e a tradução
e reaparecerá em W a g n e r ; a glória póstuma de Fouqué só de Shakespeare, foram, aliás, inspiradas por sua mulher
se apoia no bonito conto de fadas Undine. O nacionalismo Caroline Schlegel, natureza de génio viril. Como crítico,
alemão, excitado pelas humilhações que Napoleão impunha, nas conferências "sobre literatura e arte dramática", Ueber
procurava conforto no passado, nas maravilhas da literatura dramatische Literatur und Kunst, Schlegel deu o golpe de
medieval alemã, para a qual Wackenroder já tinha chamado graça nas unidades aristotélicas e nas outras convenções da
a atenção; August Wilhelm Schlegel, nas suas conferên­ tragédia clássica francesa, que tratou com a mesma injustiça
cias "sobre literatura e arte", Ueber schoene Liteiatur und de Lessing; na Alemanha, o caso já estava liquidado; mas
na França e na Itália, August Wilhelm Schlegel exerceu
Kunst, soube despertar verdadeiro entusiasmo pelos monu­
influência poderosa sobre Madame de Staél, Stendhal e
mentos literários do passado nacional. Em 1803, Tieck pu­
Hugo, Berchet e Manzoni, de modo que, com êle, a época
blicou uma antologia dos "Minnesaenger", Walther von der dos cornelianos e racinianos acabou definitivamente. Como
Vogelweide e outros, e em 1810 deu Friedrich Heinrich crítico, pertence mais à literatura europeia do que à alemã.
von der Hagen a sua edição do Nibelungenlied. O público Esta lhe deve a tradução de 19, infelizmente só 19, peças
preferiu, porém, as falsidades de Fouqué; e os próprios de Shakespeare, reunindo de maneira extraordinária a maior
literatos não podiam dissimular a si mesmos a relativa po­ fidelidade à letra e ao espírito do teatro elisabetano e todo
breza da antiga literatura alemã. Assim não era possível o vigor da língua poética de Goethe: essa tradução é uma
vencer o humanismo inveterado, a imitação mecânica dos das maiores obras de arte verbal da literatura universal.
Mais tarde, Schlegel não foi tão feliz, embora ainda admi­
gregos e romanos. E r a preciso opor-lhes mais outras for­
rável, em traduções de Calderón e de poesias líricas de
ças, toda a literatura "moderna", quer dizer, de inspiração
Petrarca, Lope de Vega, Camões. Mas o seu exemplo levou,
cristã; mas na formação desse conceito de "literatura mo­
derna", caíram nas maiores confusões, misturando o cato­ 11) August Wilhelm Schlegel, 1767-1845.
licismo de Dante e o de Calderón, epopeias populares, como Charakteristiken und Kritiken (com Friedrich Schlegel, 1801);
Ueber schoene Literatur und Kunst (1801-1804); Ueber dramatis­
Nibelungenlied e Cid, e epopeias renascentistas, como as che Literatur und Kunst (1809-1811); tradução de 19 peças de
Shakespeare (1797-1810); tradução de 6 peças de Calderón
de Ariosto, Camões e Tasso; no conceito "moderno" in- (1803-1809); Blumenstraeusse italienischer, spanischer und por-
cluíram-se, por outros motivos que não o conteúdo cristão, tugiesischer Poesie (1804); Bhagavadgita (1823); Ramayana
(1829).
as obras de Shakespeare e Cervantes, e tudo isso se cha­ Edição da tradução de Shakespeare por W. Keller, 15 vols.,
mava "literatura romântica", em mera oposição à antiga, Berlin, 1916.
R. Genée: August Wilhelm Schlegel und Shakespeare. Berlin,
à greco-romana. O primeiro culpado dessas confusões é 1903.
O. Brandt: August Wilhelm Schlegel. Der Romantikes und der
Friedrich Schlegel, entusiasta de uma "poesia universal". Politiker. Stuttgart, 1919.

C
1666 OITO MA IH A (.ARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1667

com efeito, t\ IIÍIK > .IO de uma "Weltliteratur", isto é, "lite­ da poesia. Assim, no romance Kater Murr, de E. T. A.
ratura uiilvriwil" cm língua alemã: Tieck, que já em 1799 Hoffmann, alterna sempre uma página, escrita pelo músico
tinlm produzido uma tradução magistral do Dom Quixote, romântico Kreisler, genial e louco, com outra, escrita por
MiiporviHou a tradução das peças restantes de Shakespeare seu gato Murr, animal de bom-senso razoável, comentando
(1825/1833), por Dorothea Tieck e Wolf Baudissin; J o - os excessos do génio. O mesmo conceito inspira o gosto
haiin Diederich Gries traduziu as epopeias de Tasso (1800/ pelo drama no drama. No romantismo, o drama dentro do
1803), Ariosto (1804/1808) e Bojardo (1835/1839), Karl drama não tem objetivo dramático, como em Hamlet, mas
Streckfuss a Divina Commedia (1824), Otto von der Mals- com a finalidade de desiludir os espectadores; tal como
burg o teatro de Calderón (1819/1825), e Christian Donner no Gestieíelter Kater, em que as intervenções do público
os Lusíadas (1833). perturbam a ilusão teatral. Inventa-se um processo especial
O que é que tinham em comum todas essas obras diver­ da "Rahmenerzaehlung", isto é, a história é narrada por um
síssimas para encantar tanto o novo público? A época das personagem da própria história, desmentido, depois, por
guerras napoleónicas sugeriu desejos intensos de evasão outro personagem, que conta, por sua vez e de maneira dife­
para outros mundos, remotos e longínquos; e seguiram-se rente, a história daquele narrador. Os românticos interes-
os anos cinzentos da Restauração absolutista, nas pequenas sam-se pela teoria pitagórica da metempsicose, porque as
cidades alemãs. A leitura das grandes obras de poesia me­ encarnações sucessivas dissolvem o último ponto fixo nesse
dieval, renascentista e barroca tinha o valor de um narcó­ mundo de espelhos e contra-espelhos: a personalidade. A
tico, produzindo sonhos pitorescos. Mais tarde, um Cole- ideia do "Sósias", objeto de humorismo no mundo antigo e
ridge, um De Quinsey, um Nerval abusarão mesmo de renascentista, foi então envolvida nas angústias com as quais
narcóticos. Os escritores de lena e Berlim de 1800, esses a fantasia popular pensou sempre na possibilidade do "Dop-
não, são homens do século X V I I I , lúcidos e irónicos; estão, pelgaenger", da dupla personalidade, do homem que se en­
porém, em condições para fornecer o narcótico, porque o contra a si mesmo. As desilusões sucessivas da realidade
seu esteticismo requintado encontrou prazeres sublimes no e da personalidade pelo romantismo alemão são símbolos
contraste entre a sua própria época racionalista e o passado da dissolução da realidade social pela Revolução. Da cons­
misterioso, no fundo do qual vislumbraram o milagre. E i s ciência clara dessa situação nasceu a obra mais definitiva da
outro conceito fundamental do romantismo. O milagre, época inteira: o conto Peter Schlemihl, de Chamisso ( 1 2 ).
entre os ienenses e berlinenses de 1800, já não precisa de O jovem aristocrata francês, emigrado da pátria revolucio­
justificações, como na época em que o cristão miltoniano nária e germanizado na Prússia a tal ponto que sabia es­
Bodmer o defendeu contra o racionalista Gottsched; tam­ crever os "lieds" mais ingénuos e mais populares da língua
pouco exige fé. J á em 1793, o jovem Tieck juntara a uma alemã, sentiu-se, no entanto, sempre como estrangeiro, sim­
tradução do Tempest um tratado "sobre o milagroso em bolizando o seu destino na história de Peter Schlemihl,
Shakespeare", Abhandlung ueber Shakespeares Behandlung
des Wunderbaren, no qual o milagre é definido como su­ 12) Adelbert von Chamisso, 1781-1838.
Peter Schlemihls wundersame Geschichte (1814); Frauenliebe
premo produto da imaginação que o cria e destrói à von­ unã-leben (1830); Lebenslieder und Bilder (1831), etc.
tade. Na alternância entre milagre e crítica, ilusão e desi­ Edição por M. Sydow, 3 vols., Berlin, 1909.
K. Fulda: Chamisso und seine Zeit. Leipzig, 1881.
lusão, sonho e ironia, reconheceu-se o verdadeiro ambiente C. Alfero: Adelbert von Chamisso. Torino, 1924.
1668 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1669

pobre-diabo que vendeu, para ser feliz, ao Diabo a própria No centro de um dos seus romances fragmentários,
sombra; mas sem esta parte misteriosa da sua personali­ Novalis colocou a lenda egipcíaca da imagem velada da
dade, que nos liga à terra, Schlemihl não encontra a feli­ Isis, em Sais; velada, porque ninguém aguentaria o aspecto
cidade em parte alguma, senão — Chamisso era botânico e da deusa. A poesia de Novalis parece-se com esse símbolo:
admirador de Goethe — no estudo desinteressado da Na­ durante mais de um século esteve velada, porque nem o
tureza. Um motivo de titanismo fáustico, tratado com fino romantismo convencional nem o realismo positivista aguen­
humorismo popular e com todos os frissons românticos, ter­ taria fitar o mistério. Durante esse século, Novalis foi con­
minando em sabedoria goethiana; o símbolo do desterro siderado como um adolescente jean-pauliano: chorando
do exilado, transformado em símbolo da condição humana incansavelmente a noiva que morreu tuberculosa, e dese-
de todos nós, desterrados na Terra, esse vale de lágrimas — / jando com tanto ardor a própria morte, que morreu real-
eis um livro permanente. / < mente com 28 anos de idade. As suas obras foram despre­
Peter Schlemihl distinguiu-se de quase todos os pro­ zadas como fragmentos incoerentes de um místico nebuloso;
dutos contemporâneos pela clareza dos símbolos e do estilo: apreciavam-se apenas as suas poesias religiosas, de simpli­
Chamisso era berlinense por naturalização e francês do cidade popular e emoção profunda — "lieds" como " W e n n
século X V I I I por nascimento. Tieck envolveu assuntos ich ihn nur h a b e . . . " , " W e n n alie untreu w e r d e n . . . " , "Ich
parecidos em névoas místicas; mas era berlinense nato — sehe dich in tausend B i l d e r n . . . " ; a Alemanha não tinha
o que equivale a racionalista nato — e não dissimulou o ouvido nada de igual desde a Reforma. É a poesia religiosa
jogo da ironia. A mística é, porém, séria em Novalis ( 1 3 ), mais íntima e mais sincera dos tempos modernos, ao ponto
sáxônio de origens pietistas, filho de região e ambiente d e os "lieds" de Novalis entrarem na liturgia da Igreja
herderianos. Também se sente desterrado na própria terra, luterana, o povo os canta com o acompanhamento de órgão
mas sabe que: "Onde andarmos, iremos sempre para casa". — e contudo não é possível desconhecer nessas canções a
Isto é: para a morte. Novalis será o maior poeta da morte.
i predileção pelo catolicismo medieval. Mas o que sobretudo
desconcertou os críticos protestantes foi o pequeno tratado
13) Friedrich von Hardenberg, dito Novalis, 1772-1801. Die Christenheit oder Europa (A Cristandade ou Europa),
Die Christenheit oder Europa (1799); Werke (.Hymnen an die em que Novalis chegara a preconizar a volta da Europa
Nacht; Geistliche Lieder; Die Lehrlinge von Sais; Heinrich von inteira ao catolicismo medieval e uma federação dos Esta­
Ofterdingen; Fragmente) (1802).
Edições por E. Heilborn, 3 vols., Berlin, 1901; por E. Kamnitzer, dos europeus sob os auspícios da Igreja romana. Explica­
4 vols., Muenchen, 1923-1924; e por P. Kluckhohn, 4 vols., Leipzig, ram essas fantasias utópicas pela influência de Friedrich
1928.
E. Heilborn: Novalis, der Romantiker. Berlin, 1901. Schlegel — mas, em Novalis, não se trata, evidentemente,
H. Simon: Der magische Idealismus. Studien zur Philosophie des <le jogo estético. Novalis foi para o século XIX, um em-
Novalis. Heidelberg, 1906.
H. Lichtenberger: Novalis. Paris, 1911. haraço.
W. Dilthey: "Novalis". (In: Erlebnis und Dichtung. 7.a ed. Berlin,
1920.) É que Novalis tomou tudo a sério, o medievalismo, a
J. K. Obenauer: Hoelãerlin und Novalis. Jena, 1925. poesia, a filosofia e a morte. O seu medievalismo vem de
A. Roland de Renéville: "Le Sens de la Nuit. (In: Nouvelle Revue
Française, novembro de 1936.) Morder, e o intuito daquele tratado é o dos pré-românticos:
F. Hiebel: Novalis, der Dichter der blauen Blume. Bern, 1951. .i reincorporação da Alemanha luterana à Europa. Com
E. Biser: Abstieg und Auferstehung. Die geistige Welt in Novalis'
Hymnen an die Nacht. Heidelberg, 1954. .i diferença de que não é já a uma Europa ilustrada ou

t
1670 Oiro MAMA CABPEAUX HISTÓBIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1671

revolucionaria, mas a uma Europa poética — e Novalis seus sonhos de medievalista, respondeu: "O mundo não é
tomou a sério a poesia. O seu romance Heinrich von Ofter- um sonho; mas deve ser sonho, e um dia — quem sabe? —
dingen, romance de uma educação espiritual por metempsi­ o será". No sonho, em que a realidade está transfigurada,
coses sucessivas, é um protesto intencional contra o "pro- é-nos dado o que o dia nos recusa: o mundo mágico da
saísmo" de Wilhelm Meister, e a sua poesia é um protesto onipotência das palavras e dos desejos. Por isso, Novalis
inconsciente contra a poesia lúcida do classicismo. É poesia desceu, como nas suas minas, aos abismos noturnos da alma,
noturna. Só os simbolistas reconheceram a beleza mágica e lá, no subconsciente, encontrou a sua poesia. Novalis,
da prosa ritmada dos Hymnen an die Nacht (Hinos à Noi­ o poeta mais profundo entre todos os românticos, é hoje o
te), e as poesias insertas entre essa prosa, hinos como — ídolo dos surrealistas: o Lautréamont cristão, o Baudelaire
alemão, o precursor de Supervielle e Reverdy. Para falar
"Hinueber wall' ich em termos alemães: Novalis é o Hoelderlin noturno.
und jede Pein Como poeta, Novalis está sozinho na sua época; como
wir einst ein Stachel pensador, não. Socialmente, a sua filosofia mágica é uma
der Wollust sein. tentativa de recompor e recuperar a realidade, perdida pela
Noch wenig Zeiten, Revolução; daí a relação, em Novalis, entre a magia e o
so bín ich los medievalismo. A sua filosofia está exatamente entre o vo­
und liege trunken luntarismo de Fichte e o misticismo de Schelling ( 1 4 ), o
der Lieb' im Schoss." místico da Natureza, o discípulo de Giordano Bruno e
Spinoza, o criador — meio filósofo, meio poeta — de um
— superam pela música verbal as poesias de Poe e pela sistema cósmico de milagres biológicos e mineralógicos.
profundidade da angústia os "frissons" de Baudelaire. Só No seu mundo de analogias místicas tudo é símbolo de
nos tempos do simbolismo, Novalis entrou no pequeno nú­ t u d o ; Schelling acabou desenterrando a profunda sabe­
mero dos poetas alemães de importância universal. A chave doria que acreditava encerrada nos mistérios gregos e nas
daquela beleza mágica encontra-se na filosofia de Novalis: mitologias orientais. Ideias parecidas encontraram-se, in­
desde o estudo de Wilhelm Dilthey sabe-se que Novalis quietando toda a gente, na fantástica mitologia comparada
era uma cabeça filosófica e que os seus Fragmente encer­ de Friedrich Creuzer (Symbolik und Mythologie der alten
ram um sistema de filosofia da Natureza. Novalis era mi- Voelker, 1810/1812). O apóstolo e divulgador da filosofia
neralogista de profissão, e o pensamento de Fichte ilumi- schellingiana, o norueguês Henrik Steffens, convertou até
nou-lhe os corredores escuros das minas. O processo quí­ os estudiosos da matéria morta: o físico Johann Wilhelm
mico da poesia transforma um mineral cinzento em prata
e ouro; o que parecia pedra inútil ao sol do dia, irradia 14) Friedrich Wilhelm Joseph Schelling, 1775-1854.
a luz das pedras preciosas quando na noite das montanhas. Ideen zu einer Philosophie der Natur (1797); Von der Weltseele
(1798); System ães transzendentalen Idealismus (1800); Bruno
Novalis acreditava na magia dos processos químicos e das (1802); Vorlesungen (1841).
combinações verbais; acreditava em mineralogia, em filo­ Edição por M. Schroester, 6 vols., Muenchen, 1927-1928. a
K. Fischer: Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling. 4. ed. Hei-
sofia e em poesia. "Todas as palavras são palavras de in­ delberg, 1923.
vocação", reza um dos Fragmente, e aos que descreram dos H. Knittermeyer: Schelling und die Romantische Schule. Muen­
chen, 1929.

e
1672 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1673

Ritter (Die Physik ais Kunst, 1806) interpretou a atração se exerceram sobre Heinrich von Kleist ( 1 7 ) ; será ainda
e repulsão dos pólos elétricos como fenómenos de amor e preciso lembrar o momento pessoal do choque entre uma
ódio instintivo, sugerindo a Goethe a ideia das Wahlver- natureza gríijiemente patológica e uma realidade duríssima,
wandtschaften, das "afinidades seletivas"; Lorenz Oken e — lastvnot least — o génio, para saber-se porque esse
(Abriss der Naturphilosophie, 1805) construiu um sistema poeta malogrado, que acabou suicidando-se com 34 anos de
de biologia panteísta; o médico Ringseis, nomeado Diretor- idade, é o maior dramaturgo alemão e o único na literatura
Geral da Saúde da Baviera, submeteu o país espantado às universal que merece o epíteto de "shakespeariano". Filho
normas de uma medicina "cristã" ( 1 4 A ) . O mesmerismo ou de uma grande família prussiana que fornecera ao Estado
magnetismo animal foi praticado pelos médicos mais sérios numerosos generais e ministros, parente do terno idilista
e por leigos levianos. Uma nuvem de ciência fantástica en­ pré-romântico Ewald von Kleist, tornou-se Heinrich um
volveu a Alemanha ( 1 5 ). O médico Giovanni Malfatti, os dos poetas mais desgraçados de todos os tempos, em vida e
mesmeristas Joseph Ennemoser e Dietrich-Georg Kieser depois da morte. Incapaz de subordinar-se, teve de abando­
chegaram até o ocultismo, estudando, este último, os fenó­ nar a carreira militar que a tradição da família lhe impusera,
menos da sonâmbula Friederike Hauffe, a famosa "visio­ e nunca conseguiu exercer qualquer profissão normal. Tam­
nária de Prevorst", que perturbou a mente ao médico e bém não teve sucesso na literatura. A obra de estreia, Die
poeta popular Justinus Kerner. O mais profundo entre Familie Schroífenstein, é um "Schicksalsdrama" "avant la
esses fantasistas foi o médico Gotthilf Heinrich Schu- lettre", horrível e horroroso. Das Kaethchen von Heilbronn,
bert ( 16í ), o explorador do "lado noturno da Natureza", o peça medieval, da turba das imitações de Goetz von Berli-
Novalis da ciência. Estudando o hipnotismo, o sonho, os chingen, repugnou aos contemporâneos pelo sadismo indis-
fenómenos do subconsciente, Schubert antecipou descober­ farçado, expressão dos sentimentos patológicos do poeta —
tas de F r e u d ; Kleist e E. T. A. Hoffmann aproveitaram-se
das suas descrições do sonambulismo e hipnotismo. 17) Heinrich von Kleist, 1777-1811.
O ocultismo científico de Schubert e a revolta rous- Die Familie Schroffenstein (1803); Amphitryon (1807); Robert
Guiskarã (1807); Penthesilea (1808); Das Kaethchen von Heil­
seauiana que sobrevivera ao pré-romantismo, o conservan- bronn (1810); Erzaehlungen (Michael Kohlhaas; Marquise von
O ****: Erdbeben in Chili 1810); Der Zerbrochene Krug (1811);
tismo nacional vindo de Herder, e mais os elementos de Erzaehlungen (Verlobung in St. Domingo, etc; 1811); Hinter-
uma dramaturgia meio shakespeariana, meio schilleriana, lassene Schriften (Hermannsschlacht; Prinz Friedrich von Hom-
burg; 1821).
como Zacharias Werner a elaborara — eis as influências que Edições por E. Schmidt, E. Mindet-Pouet e R. Steig, 5 vols., Leip­
zig, 1905-1906, e por A. Eloesser, 5a vols., Leipzig, 1909-1910.
O. Brahm: Heinrich von Kleist. 4. ed. Berlin, 1911.
H. Meyer-Benfey: Das Drama Kleists. 2 vols. Goettingen, 1911-
14 A) W. Leibbrand: Die spekulaiivc Medizin der Romantik. Ham- 1913.
burg, 1956. Ph. Witkop: Heinrich von Kleist. Leipzig, 1922.
15) Ric. Huch: Die Bluetezeit der Romantik. 13.a ed. Leipzig, 1924. F. Gundolf: Kleist. Berlin, 1922.
W. Leibbrand: Die spekulative Medizin der Romantik. Ham- W. Muschg: Kleist. Zuerich, 1923.
burg, 1956. F. Braig: Heinrich von Kleist. Muenchen, 1925.
R. Ayrault: Heinrich de Kleist. Paris, 1934.
16) Gotthilf Heinrich Schubert, 1780-1860. E. L. Stahl: The Drames of Heinrich von Kleist. Oxford, 1949.
Ansichten von der Nachtseite der Naturwissenschaft (1808). H. M. Wolff: Heinrich von Kleist. Die Geschichte seines Schaf-
W. Lechner: Gotthilf Heinrich Schuberts Einjluss auf Kleist, Jus­ fens. Bem, 1954.
tinus Kerner unã E. T. A. Hoffmann. Muenchen, 1911. M. Robert: Kleist. Paris, 1955.

C
1674 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1675

o mesmo sadismo que torna grandiosa e repugnante ao teorias do sonambulismo e da hipnose encontrou a expli­
mesmo tempo a Penthesilea, a tragédia do amor-ódio da cação dos seus próprios estados patológicos, e tomou-os
amazona contra o seu vencedor. Uma comédia, Der zerbro- como ponto de partida: como sonâmbulo, Homburg concebe
chcne Krug (O Cântaro Quebrado), com a ideia genial de a ideia de atacar, contra as ordens, o inimigo; a Marquise
um juiz que tem de julgar um inocente, no caso de um von O..., na novela desse título, é violada em desmaio, sem
crime que êle mesmo, o juiz, cometera, pareceu a Goethe reconhecer depois o pai do seu filho; Alkmene, na versão
"dialética demais", enquanto o público a achou alegre de do Amphitryon de Molière, toma, perturbada pelos fantas­
menos. A humilhação da sua pátria por Napoleão arrancou- mas da noite, o deus pelo marido; em estado maníaco,
lhe a "tragédia romana" Die Hermannsschlacht, de um Penthesilea mata a quem ama. O poeta pretende escla­
nacionalismo tão furioso que não foi possível pensar em recer as situações, iluminar as consciências. O processo do
publicá-la. Enfim, a obra-prima, Prinz Friedrich von Hom- esclarecimento é dialético — nisso, Goethe teve razão — e
burg: a tragédia do general que ataca na batalha o inimigo, Der zerbrochene Krug é uma obra-prima da dialética dra-
contra as ordens expressas do supremo comandante; que matúrgica: a maneira analítica de descobrir a verdade,
se torna vencedor e é, contudo, condenado à morte como passo a passo, contra a vontade de todos os personagens,
insubordinado — é a maior glorificação da majestade da situa essa comédia entre o Oedipus Rex, de Sófocles, e os
lei prussiana, acima de arbítrios geniais e veleidades sub- Espectros, de Ibsen. O crítico Friedrich Braig pretendeu
jetivas. Mas não podia agradar aos prussianos o pavor que, reconhecer no Zerbrochener Krug uma comédia cristã: a
na peça, o condenado sente em face da iminente execução. revelação da verdade é mais forte que a resistência das
Parecia-lhes covardia o que era profundamente humano. criaturas. Essa interpretação aplica-se melhor à outra
O próprio Kleist nao era covarde; suicidou-se quase com comédia de Kleist, ao Amphitryon, em que o poeta deu
alegria. Mas a desgraça não parou com a morte. Assim conscientemente uma versão cristã da alegre lenda grega:
tomo Hoelderlin nunca terá um lugar justo na literatura o adultério involuntário de Alkmene com o deus é justi­
alemã ao lado de Goethe, assim também não é possível con­ ficado pelo nascimento do salvador Hércules, que será o
ceber Kleist ao lado de Schiller: ou Schiller ou Kleist, eis filho da noite de perturbações, e esse nascimento é anun­
a alternativa. Durante o século X I X , os radicais teriam
ciado com palavras tomadas do Evangelho. Deste modo, o
gostado de preferir o realista shakespeariano Kleist ao
homem é um joguete nas mãos da Providência que o usa,
idealista moderado Schiller, se Kleist não fosse um "Jun-
assim como Homburg é um joguete nas mãos da História
ker" prussiano; e os reacionários teriam preferido ao hu-
para os fins superiores do poder prussiano. Por isso, Kleist
manitarista rousseauiano Schiller o patriota prussiano
dá papel tão preponderante ao Fado — no fundo, todas as
Kleist, se Kleist não fosse um insubordinado e suicida.
suas peças são "Schicksalsdramen", "tragédias do fatalis­
Hoje, Kleist é profundamente apreciado; mas o público o
mo", terminando em uma revelação que esclarece as per­
teme. Ainda pesa sobre a sua memória a frase desdenhosa
turbações deste mundo.
de Goethe: "O poeta Kleist pretende perturbar os senti­
mentos". Assim, o trágico Kleist seria um fatalista cristão, mais
parecido com Calderón que com Shakespeare. Mas contra
Mas o contrário é que é o certo. A aspiração do poeta isso fala alto a sua convicção filosófica mais profunda, que
Kleist é o esclarecimento de sentimentos perturbados. Nas aparece três vezes, diretamente, em forma quase de axioma,
1676 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1677

na sua obra: a "fragilidade da organização deste mundo". Chamar "conservador" a Herder não parece estar bem
Por cauna da "fragilidade do mundo" perdoa a marquesa de de harmonia com as ideias progressistas do grande pré-ro-
O *** a quem violou; por causa da "fragilidade do mundo" mântico; mas agora já se trata menos das suas próprias
recebo Jlomburg o perdão. E encontraremos a frase mais ideias do que das conclusões que se tiraram da sua doutrina
uma vez. Foi uma convicção profunda. A vida de Kleist da evolução histórica. Nesta encontraram os conservado­
foi o choque violento de uma natureza patológica, insubor- res da sua terra prussiana o antídoto contra a Revolução
diiiável, com a realidade dura, e Kleist só pôde viver en­ francesa que invadiu a Alemanha, não somente pelas armas
quanto essa realidade lhe parecia frágil, prestes a cair a de Napoleão, mas também pelas ideias da legislação napo-
todo momento, apesar das aparências contrárias; a queda leônica, igualitária. Ao "perigo francês" juntaram-se, amea­
do poderoso Estado prussiano por um só golpe de Napoleão çando igualmente o patriarcalismo feudal e agrário dos
confirmara-lhe essa opinião. Com isso, porém, Kleist criou "Junkers", as ideias da burguesia inglesa com respeito à
lugar para a vontade livre dos seus personagens contra o liberdade do comércio. Contra as reformas políticas e eco­
Fado — o que é condição da tragédia — e tornou-se um nómicas do ministro Hardenberg — o mesmo que não foi
grande trágico. Apesar dos seus instintos selvagens, não capaz de encontrar um emprego qualquer para aproveitar
cedeu à tentação de destruição anarquisticamente à "orga­ os serviços do súdito Kleist — revoltaram-se os "Junkers",
nização frágil deste mundo". Ao Fado dos perigosos es­ e quem lhes pôs à disposição as ideias evolucionistas de
tados místicos da alma opôs a lei, a ordem superior. Mas Herder, admitindo só as modificações pelo próprio Tempo
para ele mesmo, que encontrara só injustiças na vida, a lei histórico, foi Adam Mueller ( 1 8 ), o criador da sociologia
to"rnou-se problema trágico. Der zerbrochene Krug é a romântica, em cujas empresas jornalísticas Kleist colaborou.
comédia da insuficiência da lei; a justiça age com injustiça. O patriarcalismo de Adam Mueller era uma tentativa de
Influenciado pelo seu amigo Adam Mueller, Kleist, até realização política do medievalismo de Novalis. Não era
então individualista rousseauiano, descobriu o lado político possível isso na Prússia protestante, e Adam Mueller tirou
do problema: a lei, injusta contra os indivíduos, é no en­ a conclusão coerente: mudou-se para a Áustria e conver-
tanto o fundamento da sociedade. Eis o tema da sua novela teu-se ao catolicismo. Acompanhou-o nesse passo Friedrich
Michael Kohlhaas, talvez a maior das suas obras: um ho­ Schlegel, levado pelos seus estudos de filosofia indiana
mem que foi ofendido pelos poderosos e que não é capaz até à beira do niilismo, fim natural do seu esteticismo;
de encontrar justiça, vinga-se pela revolução anárquica, então, o libertino imaginário da Lucinde encontrou o porto
violando, por sua vez, todas as leis e toda a justiça, e acaba seguro em que já tinha desembarcado o libertino de ver­
no patíbulo como vítima da justiça, que restabelece assim dade, Zacharias Werner. Muitos, mas nem todos os român­
a lei, endireitando a "fragilidade deste mundo". O mesnao ticos se converteram. Tieck isolou-se nos estudos shakes-
caminho trágico é o de Homburg que tem de reconhecer a pearianos. Novalis já morrera havia muito tempo. August
majestade da lei acima da sua vontade subjetiva, por mais Wilhelm Schlegel estava na Suíça, em companhia de ma-
justificada que esta seja. Revolta reousseauiana e conser-
vantismo herderiano estão reconciliados, porque Homburg 18) Adam Mueller, 1779-1829.
c afinal indultado, numa Prússia idealizada. Mas a Prússia Elemente der Staatskunst (1810); Versuch einer neuen Theorie
ães Geldes (1816), etc.
real não era assim; e Kleist suicidou-se. J. Baxa: Adam Mueller. Jena, 1930.
1678 OTTO M A R I A CARPEÁUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1679

dame de Staél. "Como estamos dispersados por toda a


em conflito aberto com a sociedade que representam: esse
parte!", escreveu, numa carta, Caroline Schlegel, agora
conflito é o fado sinistro na vida de Chateaubriand e de
casada com Schelling; mas acrescentou, com orgulho jus­
Madame de Staêl. No caso do primeiro, o conflito é agra­
tificado, as palavras bíblicas: " . . . e estamos pregando a
vado pelas dificuldades da sua evolução de classicista aris­
lodos os pagãos".
tocrático a pré-romântico liberal, que nunca, contudo, dei­
Os pagãos que mais precisavam da catequização eram xou de ser o visconde liberal de 1770, o homem daquela
evidentemente os franceses. O classicismo, na França, era evolução que a Revolução interrompera.
tão obstinado que até os jacobinos, os partidários do pré-
E n t r e essas tendências contraditórias encontrou Cha­
romântico Rousseau, vestiram a toga romana; e burgueses,
teaubriand ( 19 ) apenas um ponto fixo: o seu eu orgulhoso.
como Delavigne e Courier conservar-se-ão clasicistas em
Tornou-se um egoísta tão poderoso como Goethe. E o seu
pleno século X I X . O motivo dessa obrigação reside no
papel na literatura francesa pode ser comparado ao de Goe­
fato de que o classicismo francês não era imitação escolás­
the na literatura alemã. A comparação não se refere, evi­
tica dos antigos, e sim expressão adequada do espírito fran­
dentemente, ao valor da Obra; do muito que Chateaubriand
cês: um estilo nacional. Também por isso não podia ser
escreveu, bem pouco continua vivo. A comparação refere-se
imitado pelos estrangeiros, nem podiam estes intervir muito
ao ponto de partida e ao resultado "existencial". Assim
na literatura francesa, que sabia defender-se das influên­
como Goethe, Chateaubriand pretendeu "formar-se", dar
cias espanholas, na primeira metade do século X V I I , e das
à sua personalidade uma formação perfeita, colocando-a no
influências inglesas, na segunda metade do século X V I I I .
centro do seu m u n d o ; e, assim como Goethe, chegou a fazer
Eritre 1650 e 1800, a França é, com respeito à literatura,
uma China fechada, um "Império do Centro". Quem rom­
peu esse isolamento foi Napoleão: as suas campanhas abri­ 19) François-René, vicomte de Chateaubriand, 1768-1848.
ram as fronteiras francesas, identificando a França com a Essai sur les révolutions (1797); Atala (1801) ; Le Génie du Chrís-
tianisme (1802); René (1805); Les Marlyrs (1809) ; Itinéraire de
Europa; e aos seus exércitos precederam os emigrantes an- Paris à Jerusalém (1811); De Buonaparlc (1814); Souvenirs d'Ita-
tinapoleônicos, "royalistas" e liberais, já não em condições lie (1815); La Monarchic. sclon la Charle (1816); Aventures du
dernier Abencéragc (1826); Les Natchez (1827); Le Congrès de
para fazer a propaganda da civilização aristocrática que Vérone (1838); La vie de Rance (1844); Mémoires ã'Outre-tombe
acabara, mas sim noviços curiosos das coisas da Itália, da (1849-1850).
Edição Garníer, 12 vols., Paris, 1859-1861.
Espanha, da Inglaterra, da Alemanha. O papel de Napoleão, Edição de Atala e René por G. Chinard, Paris, 1930.
nessa evolução, é ambíguo: de um lado, êle representa a Edição das Mémoires por E. Riré, 6 vols., Paris, 1898-1901.
C. A. Sainte-Beuve: Chateaubriand et son groupe littéraire sous
reação democrática, jacobina, contra os burgueses do Di- VEmpire. 2 vols. Paris, 1861. (Várias reedições.)
retório; do outro lado, estabelece, pela sua legislação, o V. Giraud: Chateaubriand. Êtudes littéraires. Paris, 1904.
V. Giraud: Nouvelles étuães sur Chateaubriand. Paris, 1912.
regime burguês. O papel dos emigrantes não é menos am­ I. Lemaitre: Chateaubriand. Paris, 1912.
bíguo: são representantes da civilização aristocrática do V. Giraud: Le christianisme de Chateaubriand. 2 vols. Paris,
1925-1928.
«éculo X V I I I ; mas, tornando-se adeptos do pré-romantismo, A. Maurois: Chateaubriand. Paris, 1938.
da expressão burguesa da corrente revolucionária, servem M. Duchemin: Chateaubriand. Essais de critique et ã'histoire
littéraire. Paris, 1938.
a luta da burguesia contra a demagogia jacobino-napoleô- G. Faure: Essais sur Chateaubriand. Grenoble, 1946.
nica, vestida à romana. São individualistas aristocráticos, Th. C. Walker: Chateaubriand's Natural Scenery. A Stuãy of his
Descriptive Art. Oxford, 1947.
B. d'Andlau: Chateaubriand et les "Martyrs". Paris, 1952.
1680 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1681

da sua vida a maior das suas obras. O aluno de colégios do retor na vida moderna é: jornalista. De fato, Chateau­
eclesiásticos, o tenente sem jeito, o emigrante para a Amé­ briand foi extraordinário jornalista, sempre atual, sempre
rica, onde descobre umas maravilhas e inventa outras, será eficiente, sempre corajoso. E como jornalista autêntico,
royalista, bonapartista; representante literário da recon­ isto é, homem em oposição, esse partidário fidelíssimo dos
ciliação entre Napoleão e a Igreja, publicando o Génie du reis cristianíssimos da França não podia deixar de ser sem­
Christianisme; retirando-se depois do fuzilamento do duque pre um liberal impenitente. Com isso atraiu a hostilidade
de Enghien, o leão de todos os salões e amante de todas de todos os reacionários do século XIX, até às ironias de
as mulheres começa a encabeçar a oposição liberal contra Lemaitre e o ódio de Mauras. Duvida-se de sua sinceridade.
o imperador, refugia-se para o Oriente, volta para a França Atribui-se seu royalismo ao seu orgulho aristocrático, seu
com o rei, faz grande política como embaixador em Berlim, catolicismo a uma "prédilection d'artiste". Com efeito, na
Londres, Roma, volta à oposição depois da revolução bur­ vida de Chateaubriand existe só uma verdade, e esta é muito
guesa de 1830, recuperando assim a sua verdadeira situação subjetiva: a do seu "eu". Por isso, mesmo, a sua contri­
de aristocrata "frondeur" e alma solitária. A última das buição mais eficiente para a literatura francesa é um senti­
suas muitas "poses", a espera estóica da morte, refletiu-se mento subjetivo, o "mal du siècle", a forma francesa do
na biografia que escreveu de Rance, o fundador da ordem wertherismo: a sua obra historicamente mais importante
é René. No resto, o escritor fragmentou-se em descrições
dos trapistas que preparam, para si mesmos, a cova. Com
de viagens, orientais, italianas, espanholas, americanas.
80 anos de idade, Chateaubriand sobrevivera à sua época
Para obras de vulto faltava a tranquilidade de vida seden­
e a si mesmo; deu, com plena razão, à sua autobiografia o
tária a esse viajante e emigrante nato. Não se esperam
título Mémoires d'Outre-tombe. É a maior e a mais perma­
dele obras ideológicas, solidamente elaboradas. Por mais
nente das suas obras, ao passo que a autobiografia Dichtung
importante que tenha sido o papel do Génie du Christianis­
und Wahrheit ocupa, dentro da Obra de Goethe, um lugar
me, chamando a atenção para as catedrais medievais e para
muito mais modesto.
as belezas da liturgia católica —, quanto mais Chateaubriand
Cada obra de Goethe representa a cristalização poética, escreve, tanto mais se revela a fraqueza dos argumentos,
mais ou menos perfeita, de um momento da sua vida. As meramente estéticos, da sua apologia cristã. A grande "epo­
obras de Chateaubriand são como que ensaios de um grande peia" cristã, Les Maityis, longe de ser de um Milton fran­
ator; a própria peça foi representada depois, na realidade. cês, só revela o classicismo irremediável de poses teatrais e
Deste modo, Chateaubriand não é um grande poeta; nem frases feitas retumbantes da sua retórica; nessa, a mais
sequer sabia fazer versos. A sua prosa poética, embora rica ambiciosa das suas obras, Chateaubriand só é um precursor
em valores musicais, é, no fundo, um modelo de eloquência de Sienkiewicz e de falsidades semelhantes.
ornada. Chateaubriand não é um grande romancista; os
seus romances, cheios de sentimentalismo obsoleto e pom­ E m que reside, então, o papel "goethiano" de Chateau­
posas descrições fastidiosas, são hoje pouco legíveis. Mas briand na literatura francesa? O autor de René é pré-ro-
tudo em que tocou transformou-se em literatura. Era um mântico como Rousseau, mas de uma sensibilidade artística
grandíssimo homem de letras, talvez o maior de todos, es­ muito mais fina; a sua prosa, pitoresca e musical, é das
tilizando a sua vida segundo as suas ideias literárias. Quem mais insinuantes que se escreveram em língua francesa —
Babe "se mettre-en-scène" assim é um retórico. E o nome a famosa descrição da paisagem melancólica da Campagna
1682 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1683

di Roma marcou época — e dá um volume muito belo de companheiro. -É verdade que Saint-Beuve pretendeu apre­
"trechos selctos". E esta prosa foi o instrumento da in­ sentá-lo como chefe de um "groupe littéraire sous l'Em-
fluência de Chateaubriand sobre a literatura francesa, in­ pire". Mas quais são os outros componentes do "grupo"?
fluência tão grande como a de nenhum outro escritor, exce- Algumas senhoras, o frio poeta classicista Fontanes, o fino
tuando Rousseau, do qual êle foi o herdeiro. O "neo-cato- crítico e homem fino Joubert ( 2(l ), tipo do literato conde­
licismo", de Lamennais até Claudel, inspirar-se-á no Génie nado à esterilidade pela vontade da perfeição ("S'il est
du Christianisme, bíblia da "religion des lettrés et des un homme tourmenté par la maudite ambition de mettre
artistes"; e isso é tanto mais verdadeiro quanto é certo que
tout un livre dans une page, toute une page dans une phrase,
os adeptos se empenham em negá-lo. A admiração de Cha­
et cette phrase dans un mot, c'est moi"). Mas na vida de
teaubriand pelas catedrais da França repercutirá no liberal
Chateaubriand, o "Empire" é apenas um episódio. Justi-
Thierry e no republicano Michelet. Chateaubriand desco­
fica-se mais a tentativa de Brandes ( 21 ) de apresentá-lo ao
briu o Oriente: que será o Oriente das Orientales, de Victor
Hugo, e ainda o Oriente arqueológico da Salammbo, de lado de Madame de Staêl, como um dos grandes "emi­
Flaubert, e o Oriente pitoresco de Pierre Loti, e, um pouco, grantes" que abriram a França às correntes literárias eu­
o Oriente bíblico-céptico de Renan; a Espanha pitoresca ropeias, e, num panorama mais amplo, ao lado dos emigran­
de Chateaubriand será a de Mérimée, a Itália romântica tes Foscolo, August Wilhelm Schlegel, Byron e Shelley.
de Chateaubriand será a de Stendhal. O "mal du siècle" de Mas tampouco convém exagerar a importância dessas rela­
René será o de Adolphe e, um pouco, o de Julien Sorel; ções. Chateaubriand viu, no estrangeiro, paisagens, ruínas
encontrará a sua expressão completa nas Confessions d'un e mulheres; a poesia mais "moderna" que o encantou ao
enfant du siècle, de Musset, e a sua solução desesperada na ponto de inspirar-lhe uma tradução foi a Elegy, de Gray.
Êducation sentimentale, de Flaubert. Antes de tudo, Cha­ O seu medievalismo é anterior ao de Walter Scott e o seu
teaubriand é o protótipo dos escritores franceses que se "mal du siècle" é anterior ao de Byron.
batem pelas suas ideias, que entram na arena política, que
Chateaubriand é um isolado, meio atrasado, meio pre­
se defendem perante os tribunais e conquistam a opinião
cursor. Toda a sua época, na França, parece assim. Um
pública: o protótipo de Hugo, Zola e Barres. Chateau­
atrasado é Destutt de Tracy ( 2 2 ), discípulo do sensualista
briand, um homem só, esboçou o programa de uma literatura
Condillac e chefe dos "idéologues", tão desprezados por
inteira para um século inteiro; e a sua repercussão ainda
não acabou. Napoleão; mas também antecipa ideias da moderna "socio-

Acharam sempre simbólico o último desejo de Chateau­


briand: ser sepultado na solidão do Grand-Bé, em face do 20) Joseph Joubert, 1754-1821.
mar imenso e deserto. Seria a expressão suprema da sua Pensées (1842).
Edição dos Carnets por A. e A. Beaunier, 2 vols., Paris, 1937.
alma orgulhosa e solitária. Também exprime a sua situação
21) G. Brandes: Emigrant Literaturen. (Hovedstroeminger i ãet 19
nas letras francesas da sua época. Representa uma litera­ de Aarhunãredes Literatur. Vol. I, 6.a ed., Kjoebenhavn: 1924;
tura inteira; mas é realmente o único representante dessa tradução alemã: Leipzig, 1891; tradução inglesa: London, 1924).
literatura no seu tempo. Sem Chateaubriand, haveria um 22) Antoine-Louis-Claude Destutt de Tracy, 1754-1836.
Êléments d'idéologie (1801-1815).
i;rande vazio entre Chénier e Lamartine. Não tem nenhum
E. Picavet: Les idéologues. Paris, 1891.
1684 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1685

logia do saber". Atrasado parece Maíne de Biran ( 2 3 ), ao mais calmo, menos espetacular, mais capaz de estudar os
qual se podia chamar o "Fichte francês"; rousseauiano e minúsculos movimentos psicológicos que acompanham a
estóico solitário, como Chateaubriand, com a diferença que, sua inação. Adolphe é a obra-prima do romance psicológico
em Maine de Biran, a mistura não deu um católico este­ entre a Princesse de Clèves e Le Rouge et le Noir; um
ticista e sim um cristão à maneira de Pascal; é um pre­ grande documento humano entre Vauvenargues e Amiel.
cursor do existencialismo cristão. Atrasado parece Sénan- Mas a importância literária de Constant não se resume só
cour (2:t"A), autor de um fastidioso romance pré-romântico: nisso. Pela segunda vez, depois de Rousseau, um suíço
Obermann; mas essa obra antecipa a análise psicológica protestante entra na literatura francesa, aproximando-a da
de Constant e Stendhal. literatura europeia. A religiosidade livre de Constant pa-
O clima espiritual desses filósofos e escritores é o de recer-se-ia bastante com o "protestantismo culto" de Sch-
Constant ( 2 4 ) ; e há mais outros pontos de contato: a ati­ leiermacher, se não fosse o pré-romantismo meio inglês do
tude ambígua a respeito de Napoleão e das instituições suíço, que o aproxima de Chateaubriand. Constant, que
monárquicas, o liberalismo moderado, as angústias reli­ traduziu o Wallenstein, de Schiller, é como que uma ponte
giosas sobre o fundo de uma irreligiosidade irremediável; entre Chateaubriand e os seus contemporâneos alemães; e
e o wertherismo do autor de Adolphe. Constant é, no en­ com efeito, colaborou na obra de fazer essa ponte, obra
tanto, tão diferente de Chateaubriand como Adolphe difere empreendida por sua amiga, Madame de Staêl.
de René. Em René, a exposição exibicionista do "mal du Madame de Staêl ( 25 ) era filha de Necker, um dos úl­
siècle"; em Adolphe, a análise fria da própria abulia. Cha­ timos ministros de Luís X V I ; mas Necker era um banqueiro
teaubriand confessa-se. Constant condena-se. Constant é protestante de Genebra. Como grande dama, centro de
protestante. Talvez por isso — porque o calvinista infiel salões literários, Staêl pertence, como Chateaubriand, à
não podia contar com o perdão divino — Adolphe fosse França pré-revoluciohária, liberal; a sua inquietação é he­
rança do protestantismo, como a do seu amigo Constant.
Os romances Delphine e Corinne continuam o sentimenta­
23) François-Pierre Gauthier de Maine de Biran, 1766-1824.
Considérations sur les rapports du physique et du morale de lismo revoltado da Nouvelle Heloíse, embora as descrições
1'homme (1834).
V. Delbos: Maine de Biran. Paris, 1931.
A. Huxley: "Variations on a Philosopher". (In: Them.es and Va- 25) Germaine Necker, madame de Staêl, 1766-1817.
riations. London, 1950.) De la littérature consiãérée dans ses rapports avec les institutions
23 A) Cf. "Romantismos de evasão", nota 75. (1800); Delphine (1802); Corinne (1807); De VAllemagne (1813).
Edição Didot, 3 vols., Paris, 1836; numerosas edições modernas de
24) Benjamin Constant de Rebecque, 1767-1830. obras avulsas.
Adolphe (1815); Cours ãe politique constitutionnelle (1318-1820); C. A. Sainte-Beuve: Portraits de femmes. 1844. (Várias edições.)
De la religion (1824-1832). Ch. Blennerhasset: Madame de Staêl und ihre Zeit. 3 vols. Ber-
Edição crítica de Adolphe por G. Rudler, Manchester, 1919; Edi­ lin, 1887-1889.
ção dos Journaux intimes por A. Roulin e Ch. Roth. Paris, 1952. A. Sorel: Madame de Staêl. Paris, 1890.
E. Faguet: "Constant". (In: Politiques et moralistes du XIXe siè­ D. Glass Larg: Madame de Staêl. 2 vols. Paris, 1926-1928.
cle. Vol. I. Paris, 1891.) M.-L. Pailleron: Madame de Staêl. Paris, 1931.
P.-L. Léon: Benjamin Constant. Paris, 1930. C. Pellegrini: Madame ãe Staêl. Paris, 1938
Ch. du Bos: Granãeur et misère ãe Benjamin Contant. Paris, M. Goldsmith: Madame ãe Staêl. Portrait of a Liberal in the Re-
1940. volutionary Age. New York, 1938.
H. Nicolson: Benjamin Constant. London, 1949. V. de Pange: Guillaume Auguste Schlegel et Maãame ãe Staêl.
A. de Kerchove: Benjamin Constant. Paris, 1950. Paris, 1938.

t
HISTÓRIA DA LITERATURA O C H > E N T A L 1687
1686 OTTO M A R I A CAUPHAUX

lio do gosto classicista; e é digno de nota um movimento


de paisagens e arquiteturas italianas, em Corinne, lembrem
paralelo, o novo interesse dos franceses pelas mesmas lite­
mais Chateaubriand. Sentimento há muito, psicologia pou­
raturas que pareceram as mais "românticas" aos escritores
ca. Parece que nenhum crítico se esqueceu de traçar a
de Iena, as do Sul latino da Europa.
linha entre a Staêl e Georges Sand; não seria menos inte­
E n t r e 1800 e 1812 apareceram na França nada menos
ressante comparar Corinne com a Chartreuse de Parme.
do que 5 traduções da Gerusalemme liberata, e em 1802 uma
Madame de Staêl é utopista do feminismo, mas não só do
do Orlando furioso, por Laborié. Creuzé de Lesser seguiu,
feminismo; na verdade, o utopismo é atitude típica de todos
em 1814, o exemplo de Herder, traduzindo o Poema dei
os emigrantes, que sempre esperam voltar. O utopismo
Cid. Um traço característico dessa fase do movimento ro­
de migrante criou em Madame de Staêl a imagem de uma
mântico é, em toda a parte, a grande curiosidade pela
Alemanha idealizada. É mais um "cliché" da crítica com­
literatura portuguesa: Sane traduziu, em 1808, poesias de
parar o livro De YAllemagne com a Germânia, de Tácito, Filinto Elísio, ao qual Lamartine dedicará uma ode, e Fer-
lembrando que essa Alemanha ideal, que será ainda a de dinand Denis fêz, em 1835, uma versão da Castro, de An­
Taine, iludiu os franceses, causando-lhes, depois, a decepção tónio Ferreira. A síntese dos interesses e estudos neolatinos
de 1870. Mas a culpa não seria de August Wilhelm Schle- foi uma obra compacta, tão importante como De 1'AUe­
gel, amigo e companheiro de Staêl, mero informador, cujas magne: De la littérature du midi de VEtirope, de Sismon-
lições a escritora nem sempre teria ouvido ou compreendido. di ( 2 e ) : mais uma vez aparece um suíço de Genebra ini­
Na verdade Madame de Staêl estava mais bem informada ciando os franceses nas literaturas provençal, italiana, espa­
a^respeito da literatura alemã do que a fama do livro, hoje nhola e portuguesa.
já não lido, deixa perceber. Com efeito, o livro não podia
Nesta altura é possível estabelecer, sem artifício, um
deixar de impressionar os franceses, dando-lhes a conhecer
paralelo perfeito entre a França e a Inglaterra. Lá não
a literatura de Lessing, Wieland, Goethe, Schiller e W e r -
havia um Friedrich Schlegel nem um Sismondi, mas o
ner. Madame de Staêl tornara-se, na Alemanha, discípula
interesse pelas literaturas neolatinas, diminuto no século
de H e r d e r ; assim como Herder pretendera "europeizar a
X V I I I — embora se lembre a tradução dos Lusíadas, em
Alemanha", assim a escritora suíça, fiel à "tradition mé-
1776, por Mickle — torna-se, de repente, muito grande.
diatrice de la Suisse", pretendeu "europeizar a França",
Henry Francis Cary iniciou, em 1805, a publicação da sua
abrindo o país do classicismo aos ventos românticos de Iena.
tradução admirável de Dante, completada até 1814; Rose
A tarefa era difícil. O tratado, escrito em francês, de August
deu, em 1823, o Orlando innamorato, de Bojardo; o próprio
Wilhelm Schlegel contra as convenções do teatro clássico
Byron descobrirá o Morgante, de Pulei, do qual traduziu,
(Comparaison de la Phèdre de Racine et de celle d'Euripi-
em 1822, o primeiro canto. É de 1818 Uma tradução da
de, 1807), apenas causou indignação, repercutindo só muito
Gerusalemme liberata, por John Higgs Hunt, sugerindo a
mais tarde em Stendhal; a tradução de Wallenstein (1809),
Leigh H u n t nova tradução do Aminta (1820), que estava
por Constant — outro suíço — não impressionou muito.
Até nas traduções de obras inglesas se mantinha o gosto pe­
las expressões mais moderadas do pré-romantismo: entre 26) Jean Charles Léonard Simonde de Sismondi, 1773-1842.
De la littérature du midi de VEurope (1813-1819)
1797 e 1803, saíram 5 traduções do Viçar of Wakefield. Ape­ J. R. de Salis: La vie et Voeuvre d'un cosniopolite philosophe:
sar de tudo, Madame de Staêl conseguiu romper o monopó- Sismondi. 2 vols. Paris, 1932.
161111 OTTO MAIUA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1689

cmquecido desde o Barroco. Um diletante rico, Henry Ri- nezer Elliott, autor dos Corn-Law Rhymes, revolucionários.
chnrd Fox, barão Holland, publicou, em 1806, uma biografia Mas Southey foi, com efeito, um poeta medíocre, embora
do Lope de Vega, a primeira que foi escrita fora da Espa­ de ambição e orgulho desmesurados. O exotismo oriental
nha, e traduziu, em 1807, duas comédias de Calderón. Não ou espanhol dos seus poemas épicos, hoje já ilegíveis, é
encontrou muita repercussão, talvez porque fosse mais atual imitação infeliz do exotismo casual de Coleridge, e a sua
o interesse pelas letras portuguesas, promovido por via­ formação literária, meio classicista, não lhe permitiu com­
jantes, como Beckford, e diplomatas, como Percy Smythe, petir com o estilo coloquial da poesia de Wordsworth.
visconde Strangford. Os ingleses já puderam ler os Lusía- Essa mesma formação classicista criou, porém, o prosador
das na tradução do pré-romântico Mickle, e Strangford jun­ admirável que Southey é: The Life of Nelson é um clássico
tou, em 1803, uma escolha das poesias líricas de Camões, da língua. A Wordsworth e Coleridge ligaram-no, além
provocando o interesse de Coleridge e a indignação de das opiniões políticas, relações pessoais e a residência de
Byron, de gosto classicista impenitente. Obra realmente todos eles na região dos lagos ingleses; Southey teria sido,
fundamental foram os Memoirs of the Life and Writings segundo a classificação convencional, o "terceiro" dos
of Luis de Camoens (1820), de John Adamson; mas o nome "Lake Poets". Mas Southey foi um espírito insular. Os
mais famoso entre os lusófilos ingleses é o de Robert dois outros, Wordsworth e Coleridge, estiveram na Ale­
Southey ( 2 7 ), também hispanista, tradutor do Poema dei manha; lá tinham recebido as sugestões filosóficas e literá­
Cid e de romances de cavalaria. A grande obra de Southey rias que lhes justificaram o abandono dos ideais revolucio­
viria a ser uma monumental História de Portugal, para a nários. Representam eles a reação romântica inglesa ( 2 8 ).
qual.êle se andava documentando com tanta meticulosidade "O maior acontecimento na história inglesa do fim do
que só conseguiu escrever uma parte acessória, a History século XVIII deu-se na França", disse Chesterton. A Re­
of Brazil, obra de pioneiro pela qual o seu nome sempre volução fêz tremer os fundamentos aristocráticos do reino.
será lembrado no Brasil. A um admirador brasileiro do Foi saudada pelos intelectuais afrancesados, como Fox,
historiador Southey causará estranheza tanto maior o des­ pelos loucos, como Blake, e pelos utopistas, como Godwin.
prezo que os ingleses dedicam ao poeta Southey. Um mo­ Contra os afrancesados reagiram outros afrancesados, aris­
tivo secundário desse desprezo é o reacionarismo de Sou­ tocratas do "ancien-régime", com a mordacidade da sátira
they, coroado como "poet laureate", bajulando os poderosos classicista. Eis o papel do jornal satírico Anti-Jacobin, que
e ridicularizado por Byron; na verdade, havia no anti- George Canning (2I)) e os seus amigos editaram. Sobre o
liberalismo de Southey motivos sociais, e o poeta oficial caráter literário dessas sátiras não há dúvida: o título
não deixou de ajudar e elogiar o poeta pouco oficial Ebe-
28) A. Symons: The Romantic Movement in English Poetry. London,
27) Robert Southey, 1774-1843. 1909.
Thalaba the Destroyer (1801); The Curse of Kehama (1810); Ro- O. Elton: Survey of English Literature, 1780-1830. 2.a ed. London,
dericlc the Last of the Goths (1814); The Life of Nelson (1813); 1920.
History of Brasil (1810-1819). 29) George Canning, 1770-1827.
Traduções: Amaãis of Gaul (1807); Palmerin of Englanã (1807); Anti-Jacobin (1797-1798; edit. por William Gifford, com a cola­
Chronicle of the Cid (1808). boração de Canning, George Ellis e John Hookham Frere).
Edição das poesias por aM. H. Fitzgerald, Oxford, 1909. Edição das poesias do Anti-Jacobin por L. Rice-Oxley, Oxford,
E. Dowden: Southey. 2. ed. London, 1902. 1924.
J. Simmons: Southey. New Haven, 1948. J. Bagot: George Canning and His Friends. 2 vols. London, 1909.
1690 OTTO M A M A (..ARPEAUX
HISTÓRIA DA LITKRATURA OCIDENTAL 1691

do poema satírico The Rolliad, de Ellis, lembra Pope e


nal, atacou, enfim, a própria Razão e toda a tentativa de
Charles Churchill, c Frere foi grecista, tradutor de Aristó­
assentar as bases do Estado em doutrinas teóricas, sem
fanes. A eficiência do Anti-Jacobin foi efémera; no mesmo
consideração pelas tradições históricas. Quanto à Revolução
estilo classicista, Byron zombará dos reacionários; e o pró­
francesa, Burke estava, sem dúvida, errado; havia um equí­
prio Canning acabará como chefe dos liberais.
voco fatal entre os termos franceses e os termos ingleses.
O conservantismo moderno inglês foi criado por Ed-
Os "privilégios", que significavam na França abusos aris­
mund Burke ( 3 0 ), o maior dos oradores ingleses. Ninguém
tocráticos, constituíram na Inglaterra as garantias da liber­
o igualou jamais na precisão dos argumentos e elevação
dade constitucional; o rei, que os franceses mataram, era,
dos períodos clássicos; só o temperamento lhe faltava para
na Inglaterra, parte do Parlamento, e a abolição da Monar­
ser o Demóstenes dos tempos modernos. Mesmo apenas
quia teria significado a abolição do Estado. Mas, do ponto
lida, e um século e meio depois dos acontecimentos, a efi­
de vista inglês, Burke era coerente: a sua doutrina da
ciência da sua defesa da causa das colónias americanas
evolução lenta e orgânica, em vez das violências revolu­
revoltadas, e do seu imenso "plaidoyer" em favor da reforma
cionárias, é o resultado das experiências políticas da nação
do Parlamento e dos serviços públicos é irresistível. Burke
inglesa, desde Cromwell e 1688; tornou-se programa do
pusera sempre a sua eloquência a serviço da liberdade e de
novo partido conservador; mas é, na verdade, a ideologia
reformas razoáveis; de repente, lançou a mesma eloquência
secreta de todos os partidos ingleses, da Direita e da Es­
contra a causa da liberdade francesa; e o grande liberal
querda. E a importância de Burke não se limita à Ingla­
lamentou que "the age of chivalry is gone. That of sophis-
terra. O sucesso enorme das Reflections on the Revolution
ters, economits, and calculator has sueceeded; and the
in France, traduzidas para todas as línguas e publicadas
glory of Europe is extinguished for ever". Burke fora
em inúmeras edições, não se deveu apenas ao instinto de
um intelectual do século X V I I I , "protege" dos aristocratas
autodefesa dos reis e aristocratas e dos intelectuais que
liberais, aos quais serviu no Parlamento. A revolta contra
dependiam deles. Burke acabou com o racionalismo teórico
a aristocracia pôs em risco, ao seu ver, o próprio libera­
do século X V I I I , substituindo-o pela doutrina das forças
lismo; e Burke, ameaçado na sua existência material e
criadoras da História e do Tempo, dois instintos raciais,
espiritual, atacou a doutrina burguesa do utilitarismo racio-
das tradições nacionais, do solo materno. É o Viço, o Mon- -
tesquieu, o Herder da Inglaterra, o ideólogo do conservan­
30) Edmund Burke, 1729-1797. tismo historicista europeu. Com Burke, todas as nações
A Phitosophical Enquiry into the Origins of our Ideas of the
Sublime and the Beautiful (1765) ; europeias se lembraram do seu passado nacional. Torna-
Discursos: On American Taxation (1774); On Conciliation with ram-se, todas, românticas; sobretudo as nações protestantes
America (1775); For the better security of the Indepenãence of
Parliament and the Economical Reformation of the Civil and que, quatro séculos atrás, tinham rompido com o passado
other Establishments (1780), etc, etc.
Reflections on the Revolution in France (1790); Letters on a Re- e reconheciam agora, com tremor, as consequências. As
gicide Peace (1796-1797). nações católicas, porém, que carregaram todo o peso das
Edição por W. Wlllis e F. W. Raffety, 6 vols., London, 1906-1907.
J. Morley: Burke. An Historical Study. 2.a ed. London, 1893. tradições medievais, foram levadas a outras conclusões,
A. Cobban: Edmund Burke anã the Revolt against the Eigh- revolucionárias. É neste ponto que se separam os dois
tecnth Century. London, 1929.
Th. W. Copeland: Edmund Burke. London, 1950. romantismos: o anglo-germânico e o francês. Os poetas
L. Barry: Our Legacy from Burke. Cork, 1953. que realizaram poeticamente as doutrinas políticas de Bur-
i <m O I T O MAIUA CARPEATJX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1693

kc, pei teiu.inm à gcntry rural, àquela classe que se viu imbecil. Mathew Arnold, o mais inglês dos críticos ingle­
mneuçiidii, primeiro pela revolução industrial dos burgueses, ses, acreditava "firmemente" que a poesia de Wordsworth
o dopoÍH pela Revolução francesa, que começou com expro- fosse a maior em língua inglesa, depois de Shakespeare
priítcõcK agrárias. Disso resultou a conversão típica destes e Milton; e um crítico tão fino como Gosse considerava
poetas, estreando como adeptos apaixonados da Revolução, a mesma poesia como "alimento para burros". O próprio
para se converterem, depois, em tories ortodoxos, espécie Wordsworth criou equívocos. Escreveu muito, demais,
de vigários leigos de uma Wakefield conservadora. Vêm de modo que um grande número de poesias extraordinárias
diretamente do popularismo pré-romântico; preferiram mo­ se encontra dispersado entre um número maior de poesias
rar longe da cidade, entre gente humilde, na região dos
medíocres. É preciso certa indulgência para com a pessoa
lagos ingleses — de onde o apelido de "Lake Poets".
do poeta, mas Wordsworth fêz pouco para consegui-la: a
Parecem ingleses dos mais estreitos; não é seu mérito pes­
sua biografia é da mesma trivialidade que a sua cara e as
soal o que o céu lhes deu e que tinha recusado a Goldsmith,
suas atitudes. Percorreu a carreira típica dos "Lake P o e t s " :
Macpherson e Cowper: o génio Wordsworth e Coleridge
começou como adepto da Revolução francesa — o drama
são dos maiores génios em toda a literatura universal.
lírico The Borderers é revolucionário e anarquista como
Quem não aprendeu a viver em intimidade com a poesia os Raeuber, de Schiller, ou antes como a utopia do seu
de William Wordsworth ( 3 1 ), ficará perplexo, ouvindo so­ mestre de então, Godwin; converteu-se ao torysmo e à
bre êle as opiniões mais contraditórias. Keats, que não gos­ ortodoxia anglicana; acabou glorificando os benefícios do
tava de Wordsworth, considerava-o, no entanto, como gran­ analfabetismo, contando a conversão de um pecador por um
de poeta e até filósofo, ao passo que Byron o declarou burro, e celebrando um Idiot Boy, que Byron identificou
logo com o próprio poeta. Toda a poesia inglesa dos sé­
culos X I X e XX é, em certo sentido, wordsworthiana: foi
31) William Wordsworth, 1770-1850.
Descriptive Sketches (1793). The Borãerers (1795, publ. 1842); Pe- êle quem acabou com o estilo "elevado" da poesia classicista,
ter Bell (1798, publ. 1819); Lyrical Ballaãs (com Coleridge; 1798, ensinando a todos os poetas a falar em língua "coloquial",
1800); The Prelude (1799-1805, publ. 1850); Poems (1807); The
Excursion (1814); The River Duddon (1820); Ecclesiastical Son- em inglês normal. No prefácio da segunda edição dos Ly­
nets (1822); Yarrow Revisited (1835); Sonnets (1838); Guilt anã rical Ballaãs, Wodsworth codificou a nova teoria poética,
Sorrow (1842).
Edições por T. Hutchinson, 5 vols., Oxford, 1895; e por E. de Se- exigindo "to adopt the very language of men" e aconse­
lincourt e H. Darbishire, 5 vols., Oxford, 1940-1949. lhando evitar "personifications of abstract ideas" e a
M. Arnold: Essays in Criticism, vol. II, 1888.
W. Pater: Appreciations, 1889. chamada "poetic diction". Em vez de cantar assuntos mi­
C. H. Herford: The Age of Wordsworth. London, 1897. tológicos ou heróicos, Wordsworth pretende apresentar
W. Raleigh: Wordsworth. London, 1903.
G. M. Harper: William Wordsworth. His Life, Work and Influen- "incidents and situations from common life"; e em ne-
ce. London, 1916.
E. H. Legouis: William Wordsworth anã Annette Vallon. Lon­
don, 1922. H. Darbishire: The Poet Worãsworth. Oxford, 1950.
H. W. Garrod: Wordsworth. Oxford, 1923. L. Abercrombie: The Art of Wordsworth. Oxford, 1952.
H. Read: Wordsworth. London, 1930. (2.a edição, 1949). J. Jones: The Egotistical Sublime. A History of WorãsworWs Ima-
H. J. Fausset: The Lost Leaãer. Worãsworth. London, 1933. gination. London, 1954.
C. H. Patton: The Reãiscovery of Worãsworth. Boston, 1935.
R. Dexter Havens: The Mina of a Poet. A Stuãy of Wordsworth s F. W. Bateson: Worãsworth. A Re-Interpretation. London, 1954.
Thought. Baltimore, 1941. M. Moorman: William Wordsworth. A Biography. 2 vols. Oxford,
1956-1957.
1694 OTTO M A R I A CARPE ATJX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1695

nhuma parte acredita encontrar sentimentos mais profundos a ode — foi possível interpretá-la psicologicamente, pelas
e sinceros do que em "humble and rustic life". Daí a sua lutas íntimas na alma de Wordsworth.
preferência pela poesia pastoril, que ele entende com tanto Eis o ponto de partida para uma revisão geral da sua
naturalismo que não recua diante de assuntos triviais e biografia e da sua obra. Só em 1916 se descobriram os do­
até imbecis. Assim como o conservantismo de Wordsworth cumentos, revelando o que Wordsworth conseguira ocultar
se baseia na doutrina de Burke, assim também a sua teoria durante a vida toda e à posteridade: as suas relações de
poética se inspirou em ideias estéticas de Burke sobre a mocidade com uma jovem francesa, Marie-Anne Vallon,
eficiência poética do mero som sugestivo das palavras, sem que deu à luz um filho, e que êle abandonou. Durante a
muita atenção ao sentido nem sequer ao sentimento: a vida inteira, o "gentleman" hipócrita sofreu de remorsos,
poesia seria "emotion recollected in tranquillity". E as me­ e em toda a sua poesia, até à última obra Guilt and Sorrow,
lhores poesias de Wordsworth são, com efeito, realizações descobriram-se vestígios de uma mentalidade entre Werther
de verbalismo mais puro, "poésie puré", dignificada pela e Adolphe. Wordsworth, inglês típico, não era exibicio-
mais dura disciplina das emoções subjetivas. Infelizmente, nista. Conseguiu ocultar o seu passado, na vida e na poesia
Wordsworth possui "tranquillity" de mais; grande parte também; toda a emoção "recollected in tranquillity". Disso
da sua poesia é mera prosa em versos, e nem sequer boa resulta ser a sua poesia mais profunda do que parece;
prosa. Mas Coleridge, censurando a teoria de "poesia colo­ segundo a definição de Morley, "to touch the depth and
quial" como inexequível, já observou que Wordsworth nem not the tumult of the soul". Por isso, qualquer assunto,
sempre obedeceu aos seus próprios conselhos. Um poema por mais trivial que seja, lhe serve assim como qualquer
como Laodamia é dos mais clássicos — e dos mais belos metáfora servira aos "metaphysical poets". Mas há uma
— em língua inglesa, e o propósito de prosaísmo desaparece paixão secreta em muitas poesias suas, como nas famosas
de todo, quando Wordsworth pretende poetizar ideias filo­ Lucy Poems. E há uma grandeza monumental, quase sha-
sóficas. Está neste caso a Ode on the Intimations of kespeariana, num "pastoral põem" como Michael. Words­
Immortality from Recollections of Eaily Childhood, na worth estava, sem sabê-lo, perto de Donne, que desconhecia.
qual a teoria platónica do saber como anamnese é invocada Como este, também sabia escrever "songs" populares. —
para recuperar a fé do poeta, quando menino, na imorta­
lidade da alma. É extremamente difícil julgar esse poema,
o mais famoso que Wordsworth escreveu, porque está nas "My heart leaps up when I behold
antologias escolares e é, portanto, familiar de mais a todos A rainbow in the sky. . ."
os críticos. A alguns, parece expressão profunda do pan­
teísmo filosófico; para outros, é uma trivialidade superior­ — outras vezes, a sua emoção se transfigura em grande
mente metrificada — pensador não foi, decerto, quem es- elegia de estilo pré-romântico, como nas impressionantes
(TCVCU essa ode, mas foi grande poeta. Análises modernas Elegiac Stanzas Suggested by a Picture of Peele Castle in
não deixam dúvidas com respeito ao acordo perfeito entre a Storm, ou no sentimentalismo de ruínas das Lines Com-
wcn li mento e expressão; e quanto à evidente incoerência posed a Few Miles above Tintem Abbey. Ninguém soube
do poema — o poeta precisou de quatro anos para escrever transfigurar, como êle, a paisagem inglesa, sóbria e melan-

t
1696 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1697

cólica (Yarrow Unvisited, Yarrow Visited); e essa poesia College Chapei, Cambridge; e os 34 sonetos sobre o River
paisagística revela transformação daquela paisagem pela re­ Duddon, com o verso final:
volução industrial. As ruínas de conventos e castelos medie­
vais lhe servem de símbolos. Adverte — e isso parece aris­ " W e feel that we are greater than we know."
tocrático, medievalista — contra a "idolatry" das "rapine,
avarice, expense", dos vícios burgueses, e a sua doutrina É a autodefinição de Wordsworth. A nós, êle aparece
estética de uma poesia popular e bucólica é, no fundo, senti­ cada vez maior. Da tranquillity mais clássica até ao sim­
mentalismo democrático, rousseauiano. Wordsworth é gran­ bolismo mais mágico, êle tem tudo. Nos últimos 30 anos,
de inimigo de "l'art pour 1'art". A arte é um dom do Céu, os críticos e poetas mais avançados proclamam a glória
mas tem que servir à Terra. Daí o prosaísmo habitual de de Wordsworth, ao passo que Byron, tão mais famoso du­
Wordsworth, interrompido pelos raios de grande inspira­ rante o século passado, já é cada vez menos lido. Words­
ção; por isso mesmo, os seus poemas mais extensos, a auto­ worth é um inglês típico: não se abre logo. É preciso
biografia poética The Prelude — epopeia da realização goe- conquistar a intimidade com a sua poesia, para saber que
thiana da personalidade — e o poema contemplativo The os seus versos simples e "coloquiais" encerram algo do
Excursion, são leitura difícil e fastidiosa, mas ricos em tre­ "unerring light", e que esse poeta, tão pouco "filosófico",
chos extraordinários; são verdadeiros manuais de poesia é uma voz do
especificamente inglesa.

Os estrangeiros nem sempre sabem apreciar e admitir "Wisdom and spirit of the Universe."
a grandeza do poeta inglês Wordsworth. O acesso mais
fácil seria através dos sonetos — poucos poetas da litera­ Wordsworth era inglês de mais para receber muita
tura universal souberam empregar com tanto génio essa influência estrangeira. A viagem à Alemanha, que fêz em
forma meio artificial, para exprimir, com a maior liberdade, companhia de Coleridge, só serviu de antídoto contra o
todos os sentimentos e pensamentos possíveis, um verda­ "veneno francês". Os outros poetas ingleses da época,
deiro mundo de poesia: sentimentos de harmonia e desar­
"Lake Poets" ou não, distinguem-se de Wordsworth jus­
monia entre alma, vida e Universo ("It is a beauteous
tamente pelas influências alemãs que receberam ( 8 2 ). Scott
e v e n i n g . . . " , "The World is too much with u s . . . " , Personal
formou o seu medievalismo, traduzindo baladas de Buer-
Talk, " W h y art thou s i l e n t . . . " ) ; sentimentos do patriotis­
ger (1796) e o Goetz von Berlichingen (1799); Byron ad­
mo mais elevado (Composed Upon Westminster Bridge,
mira a grandeza de Goethe. Shelley aprende na nova lite­
"Great men have been among us...", "Milton! thou shouldst
ratura alemã o emprego romântico de símbolos gregos.
be living at this h o u r . . . " , Thought of a Biiton on the
Subjugation of Switzerland); grandes visões históricas (On
the Extinction of the Venetian Republic, To Toussaint
1'Ouverture); enfim, os 102 Ecclesiastical Sonnets, que 32) F. W. Stokoe: German Influence in the Englvsh Romantic Pe-
riod, with Special Reference to Scott, Coleridge, Shelley and
acompanham a história inteira da Igreja inglesa, e entre Byron. Cambridge, 1926.
os quais se encontra o cume dessa sua a r t e : Within King's M. L. Astaldi: Influenze tedesche sulla litteratura inglesa ãel pri­
mo 800. Milano, 1955.
1698 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1699

O grande mediador entre a Alemanha e a Inglaterra aproximar-se do seu génio é a exposição metódica dos
— mas, de longe, não só isso — é Coleridge ( 3 3 ). A sua fatos da sua existência.
tradução de Wallenstein, que saiu no mesmo ano que o A vida de Coleridge apresenta certas analogias com
original, é mais do que uma tradução — uma obra de arte a do seu amigo W o r d s w o r t h : um revolucionário convertido
independente, sem possibilidades no palco, mas um monu­ à ortodoxia política e eclesiástica, vegetando, depois, du­
mento da língua inglesa. O seu panteísmo místico, mistura rante decénios, em letargia estéril. O caso de Coleridge
estranha de elementos de Platão e Spinoza, vem de Schelling. é mais grave, porque a sua natureza boémia não chegou
As suas teorias literárias estão influenciadas por August nunca a exercer atividades regularizadas; afinal, entregou-
Wilhelm Schlegel, e em parte coincidem, sem influência se ao ópio, e as nuvens do entorpecente parecem escurecer,
direta, com ideias de Friedrich Schlegel. A formação ale­ até hoje, o seu retrato. Homem sem energia e sem vontade,
fragmentou-se inteiramente: a sua obra poética cabe num
mã de Coleridge separa-o de W o r d s w o r t h ; mas não basta,
pequeno volume, e a sua obra crítica está conservada, prin­
de maneira alguma, para explicar as suas qualidades parti­
cipalmente, em esboços ou em notas feitas por amigos.
culares. Coleridge é a figura mais ambígua, mais misteriosa
Mas se isso é fragmento, é o fragmento mais precioso em
da literatura inglesa, um Proteu que escapa a todas as
língua inglesa. Após o classicismo retórico de France: An
definições; até hoje existem apenas interpretações parciais Ode, na qual renunciou às ilusões revolucionárias, encon­
e insuficientes da sua vida e da sua obra. O único meio de trou o seu tom próprio: uma música etérea, que parece
exprimir todos os mistérios do Universo, mas que escapa
33) Samuel Taylor Coleridge, 1772-1834. a qualquer interpretação racional, dissolvendo-se em pura
Fears in Solitude (1798); Lyrical Ballads (com Wordsworth; música verbal. Assim são o Hymn Before Sunrisc, in the
1798); tradução de Wallenstein (1800); Christabel (1816); Si- Vale of Chamouni, Frost at Midnight, Dcjcction, e Youth
bylline Leaves (1817); Biographia Literária (1817); Aias to Re-
flection (1825); On the Constitution of Church anã State (1830) ; and Age. Coleridge empregou a mesma magia verbal para
Literary Remains (1836-1839); Notes and Lectures upon Shakes­ tornar verossímeis os milagres e superstições medievais, nas
peare and some of the Old Dramatists (1849); Lectures on Sha­
kespeare (1856); etc. duas grandes baladas Christabel e The Rime of the Ancient
Edição das obras completas por W. G. T. Shedd, 2.a ed., 7 vols., Mariner, esta última, sobretudo, uma obra-prima de "fris-
New York, 1884. son" romântico; a crítica "alegorista" do New Cristicism
Edição das obras poéticas por E. H. Coleridge, 2 vols., Oxford,.
1912. descobriu atrás das metáforas empregadas nessa obra a mes­
Edição das obras críticas por J. W. Mackail, London, 1908. ma filosofia que é a de Coleridge como crítico e pensador
J. L. Haney: The German Influence on Samuel Taylor Coleridge.
Philadelphia, 1902. metafísico. O cume da poesia de Coleridge é o pequeno
H. I. Fausset: Samuel Taylor Coleridge. London, 1926. poema Kubla Khan, a Vision, uma visão mágica do Oriente,
I. H. Muirhead: Coleridge as Philosopher. London, 1936.
E. K. Chambers: Samuel Taylor Coleridge. Oxford, 1938. inspirada pelo ópio; o alfaiate que veio interromper-lhe o
L. Hanson: The Life of Coleridge. The Early Years. London, 19*3. sonho, de modo que Coleridge nunca mais encontrou meio
I. L. Lowes: The Road to Xanadu. 3.a ed. Boston, 1940.
H. Read: Coleridge as Critic. London, 1949. para terminar o poema, deve ter sido o próprio Diabo do
R. Lutz: Samuel Taylor Coleridge. Seine Dichtung ais Ausãrucli
Hhischen Bewusstseins. Bern, 1951. prosaísmo. Isso é já quase t u d o ; e justifica a opinião de
II. House: Coleridge. London, 1953. Swinburne: "As a poet, his place is indisputable; it is
M. Margoliouth: Wordsworth and Coleridge, 1795-1834. Oxford.
IÍI5X high among the highest of ali time". Coleridge é, muito
.1. 13. Beer: Coleridge the Visionary. London, 1959
1700 OTTO M A B I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1701

antes dos tempos dos simbolistas, o maior poeta simbolista deixa entrever a fonte de natureza desultória do seu modo
da literatura inglesa. de pensar e da sua magia verbal. Mas o "aproach" psico­
lógico não diminui (nem enaltece) o valor das suas ideias,
Contudo, a sua importância ainda é maior como crítico
nem lhes determina o lugar na história da literatura. A
literário. As suas conferências sobre Shakespeare, outros
obra de Coleridge é um compromisso singular entre a "Lake
dramaturgos elisabetanos e Milton, conservadas infeliz­
Poetry" e o romantismo de Iena. De Iena lhe vieram o
mente só em notas, criaram a interpretação moderna das
medievalismo e o conceito da poesia como milagre místico;
obras literárias como estruturas coerentes e independentes
eliminando desse conceito a parte da "fancy" arbitrária
da realidade, nas quais o conjunto explica as partes, e vice-
dos esteticistas alemães, Coleridge chegou a estruturas poé­
versa. A Biographia Literária é a maior obra de crítica
ticas bem definidas, que podem ser aceitas, sob condição
literária inglesa: a distinção entre a imagination criadora
da "suspension of disbelief". Daí o "frisson" irresistível
e a fancy arbitrária e ilusória; a exigência da "suspension
das suas visões e baladas, até à verdade permanente das
of disbelief", para compreender e apreciar obras, que ex­
suas invenções mais estranhas: o Ancient Marines pode
primem crenças e filosofias alheias às nossas; e a definição
ser, hoje, objeto de estudos de mitologia comparada, Cole­
da poesia como expressão de um equilíbrio, como resultado
ridge criou uma nova província, no mundo das ideias poé­
de uma tensão dialética entre impulsos contrários na alma
ticas. Contudo, o inglês não se perdeu nas nuvens. Reco­
do poeta, e daí a definição da poesia como ambiguidade —
nheceu a tensão íntima em qualquer obra de homem, dis­
são ideias hoje familiares a todos — embora não indiscuti-
tinguiu as fontes da inspiração celeste e da inspiração
das — porque a crítica literária dos I. A. Richards, Empson,
sensual, ligou o céu à terra, reunindo-os na casa comum
T. S. Eliot, Cleanth Brooks se baseia nelas. Na Constitu-
de um Estado teocrático ou Igreja visível, e que não era,
tion of Church and State revela-se Coleridge como discípulo
afinal, senão a Inglaterra com o seu rei, parlamento, mi­
de Burke e anglicano ortodoxo; mas não é um T o r y comum,
nistros, bispos, usinas, neblinas e lagos, e, à beira dos
e a sua ortodoxia é meio duvidosa. Aids to Reflection foi
lagos, este "lake poet", um "anjo caído para a terra inglesa",
a obra pela qual pretendeu dissipar essas dúvidas, pro­
vestido de roupão, mas dispondo do cachimbo de ópio para
curando uma solução entre o cristianismo e a filosofia
se lembrar — um Platão inglês — da sua verdadeira pátria,
schellingiana, distinguindo entre dois instrumentos episte­
do reino das ideias imortais.
mológicos: "Reason", a faculdade lógica, e "Understan-
ding", a faculdade de intuição. Coleridge é o precursor de Coleridge é uma figura singular; Wordsworth, como
Newman, Bergson, dos modernistas católicos, da "psicologia poeta de génio, não foi menos singular. Mas como homens
do entendimento", de Dilthey. Coleridge é um dissemina- de letras não distam muito do terceiro dos "Lake Poets",
dor de ideias. que a "fable convenue" lhes associa: o medíocre Southey.
Neste sentido menor, "Lake Poetry" não é uma singula­
Toda a sua obra, pequena e imensa, pode ser conside­ ridade inglesa. "Lake Poets", poetas mais ou menos cris­
rada como o sonho rápido e iluminador de um génio, antes tãos, mais ou menos medievalistas, poetizando em "língua
de se deitar, dormir para sempre. Como sonho, está sujeita coloquial" assuntos nacionais e populares, "Lake Poets"
às regras da interpretação psicanalítica, que no caso de assim há em toda parte, entre 1800 e 1830. Até hoje, a raça
Coleridge já forneceu algumas explicações satisfatórias: ainda não se extinguiu de todo, mas só naquela época apa-
1702 OTTO MAIUA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1703

I ccem, entre esses poetas de álbum para moças, um Eichen- baladas históricas, medievais ou fantásticas. Todo alemão
dorff ou um Lamartine. culto está aborrecido com esse poeta, que enche as anto­
íístes, decerto, são exceções, mas nem todos são tão logias escolares e é muito considerado entre os nacionalistas
ruins como Erasmus Darwin, o poeta didático de The Bo- com ou sem formação universitária. Não convém, no entan­
tiuiic Garden (1789/1792) — o mérito principal deste "poe­ to, esquecer o mérito da sua linguagem poética, que Hebbel
ta" c o de ter sido o avô de Charles Darwin — ou William assinalou: uma linguagem "coloquial", realista, sóbria, pre­
Lisle Bowles, cujos Sonnets (1789) sugeriram a Words- cisa, na época de artifícios pós-classicistas e nebulosidades
worth o uso dessa forma, então meio esquecida. Um autên­ pós-românticas. Algumas das suas baladas merecem ser
tico "Lake Poet" é o irlandês Thomas Moore ( 3 4 ), cujas relidas depois dos anos de escola.
lrish Melodies, lieds populares, ainda vivem em simbiose O lado fantástico da "Lake Poetry" é representado
com melodias de Schumann e outros compositores; o seu por Justinus Kerner ( 3 6 ), que trata com preferência de
pomposo poema oriental, Lalla Rookh, situado, um tanto, espectros; estava acostumado a isso, como médico e propa­
entre Coleridge e Shelley, e então muito celebrado, está gandista da sonâmbula Friederike Hauffe, da famosa "vi­
hoje esquecido. sionária de Prevorst". Em tudo o mais, esse amigo de
Na Alemanha houve vários "Lake Poets", e os histo- Uhland teve o que faltou a quase todos os "Lake P o e t s " :
íiadores da literatura alemã acharam por bem reuni-los em senso de humor.
um grupo geográfico: a "escola da Suévia", na qual encar­ Outro país cheio de "lagos" poéticos foi a idílica Dina­
ceraram até o infeliz poeta húngaro Lenau, byronista e marca. A Christian Winther ( 8 7 ), autor das popularíssimas
exotista, só porque morou alguns anos em Stuttgart. Tam­ poesias amorosos Til Een e de um pequeno poema épico
pouco pertence àquela "escola" o suevo nato Moerike, gran­ "Hjortens F l u g t " ("A Fuga do Cervo"), de um encanto real­
de poeta de outra estirpe. O "Lake Poet" suevo ou "Words- mente "romântico", chamaram "trovador em forma byronia-
worth alemão" — sem o génio — é Uhland (3r>), doce cantor na", porque Byron havia popularizado na Europa inteira
de "lieds" sentimentais e patrióticos e autor de excelentes aquele género de poemas narrativos. Mas Winther não tem
nada de Byron; é o Thomas Moore dinamarquês. Poul Mar­
34) T h o m a s Moore, 1779-1852.
tin Moeller ( 3 8 ), o poeta dos estudantes alegres ou melancó-
Irish Melodies (1807-1834); Lalla Rookh (1817) etc.
Edição das obras completas, 10 vols., London, 1840-1841 (reim­
pressão, Boston, 1930). 36) J u s t i n u s Kerner, 1786-1862.
A. I. Symington: Thomas Moore. His Life anã Works. London, Reiseschatten von ãem Schattenspieler Lux (1811); Geãichte
1880. (1826); Die Seherin von Prevorst (1829).
S. G w y n n : Thomas Moore. 2. a ed. New York, 1924. Edição por P. Heichen, 8 vols., Berlin, 1903.
L. A. G. S t r o n g : The Minstrel Boy. London, 1937. J. H e i n z m a n n : Justinus Kerner ais Romantiker. S t u t t g a r t , 1908.
r.) Ludwig Uhland, 1787-1862. 37) Christian Winther, 1796-1876.
Gcâichte (1815); Vaterlaendische Geãichte (1816). Til Een (1835); Hjortens Flugt (1855).
Edição crítica por I. H a r t m a n n e E. Schmidt, 2 vols., S t u t t g a r t , H. Boegh: Christian Winther. 2 vols. Kjoetaenhavn, 1893-1900.
1898. J . Clausen: Christian Winther's Digtcyclus "Til Een". Kjoeben-
K. Mnyer: Ludwig Uhland, seine Freunãe unã Zeitgenossen. 2 havn, 1918.
vols. S t u t t g a r t , 1867. 38) Poul M a r t i n Moeller, 1794-1838.
II. I l a a g : Ludwig Uhland. Die Entwicklung ães Lyrikers. S t u t t - En ãanske stuâents eventyr (1824).
Itiu-t, 1907. V. Andersen: Poul Martin Moeller. 2. a ed. Kjoebenhavn, 1904.
11. Sclineider: Uhland. Leben, Dichtung, Forschung. Berlin, 1920. F . R o e n n i n g : Poul Martin Moeller. Kjoebenhavn. 1911.

t
1704 Oiro MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1705

Íleo», um (ION mais queridos em língua dinamarquesa, lembra tradutor de Thomas Moore, Uhland e dos poemas narra­
IIIOIH Kichuudorff; mas a sua língua é mais realista, como tivos, "lakistas", de Walter Scott. Também traduziu baladas
o do Ulilaud, e a sua luta de crítico literário contra o de Buerger, Goethe e Schiller, o Cid segundo a versão
"rutilo aietado" faz pensar em Wordsworth. A mesma alemã de Herder, e o seu gosto era tão "católico" que
ebuervação é sugerida pelo poeta holandês Staring ( S9 ) que incluiu Gray e Fouqué ao lado de Byron. Mas o seu género
ocupa, na história literária da sua pátria, um lugar muito predileto foi mesmo a balada de estilo alemão-inglês; e
honroso: foi o primeiro que rompeu a eloquência pomposa uma versão livre da Lenore, de Buerger, a Ludmila, saiu
dos Bilderdijk e Da Costa. O seu realismo poético preparou como a sua obra-prima. Chukovski criou a língua poética
os caminhos da renascença literária de 1880. de Puchkin e Lermontov. Seu papel na história da literatura
Também em outras partes, a "Lake Poetry" prestou o russa é de primeira ordem.
mesmo serviço de renovar a língua poética, continuando, Entre as nações protestantes, a poesia "lakista" é bas­
nisso, a obra do pré-romantismo. O idílio Wieslaw, do tante inofensiva; entre os católicos é que começam a surgir
poeta polonês Brodzinski ( 4 0 ), inspirado diretamente pelo as dificuldades, que já se adivinharam em Coleridge, anglo-
classicismo de Hermann und Dorothea, saiu meio romântico, católico "avant la lettre". A "Lake Poetry" não é bem
meio realista, como as poesias bucólicas de Wordsworth. A possível sem a doutrina política de Burke: as mesmas for­
língua poética de Brodzinski será a de Mickiewicz. Papel ças orgânicas da raça e do solo que criaram o Estado inglês
semelhante desempenhou Chukovski ( 41 ) na Rússia; foi criaram também as tradições populares e a poesia nacional.
A teoria é herderiana, no fundo; na Alemanha protestante,
a tradução das Reflections, por Gentz, amigo de Adam
39) Antonie Christiaan Staring, 1767-1840. Mueller, foi saudada como um livro alemão, e a sociologia
Dichtoefeníng (1791) ; Gedichten (1821, 1837).
C. S. Jolmers: Staring ais verhalend dichter. Groningen, 1918. romântica dos conservadores inspirar-se-á nos mesmos prin­
40) Kazimierz Brodzinski, 1791-1835. cípios. Já entre os alemães católicos, porém — não entre
Wieslaw (1820).
C. Marrené: Brodzinski. Kraków, 1881 (em língua polonesa). os convertidos como Adam Mueller e Friedrich Schlegel,
B. Gubrynowicz: Vida e obras de Brodzinski. Lwów, 1917 (em mas entre os católicos natos e autênticos — surgira a con­
língua polonesa).
tradição entre aquele nacionalismo cristão e o universalismo
41) Vassili Andreievitch Chukovski, 1783-1852.
Ludmila (1808); O bosque de Maria (1809); O conto do tzarevitch católico. A paz pública, imposta pelo absolutismo e pela
Ivan (1845). censura da Restauração, não permitiu discussões; e os cató­
Edição por C. Volpe, 2 vols., Leningrad (1939-1940).
Traduções: Gray (1801); Schiller (1817-1821); Poesias de Goethe, licos alemães, cujo sentimento nacional foi sempre suspeito
Byron, Moore, Buerger (1822-1829); Odisseia (1848-1849). aos seus patrícios protestantes, dilaceraram-se em lutas ínti­
M. Condamin: Joukovski. Lyon, 1889.
A. Lasurski: O Romantismo Ocidental e o Romantismo de Chu­ mas, às vezes trágicas. Fizeram tudo para guardar o seu
kovski. Petersburg, 1901 (em língua russa). segredo, e em certos casos essa ambiguidade talvez fosse,
A. Vesselovski: Vassili Andreievitch Chukovski. Moscou, 1904 (em
russo). segundo a teoria de Coleridge, a fonte da grande poesia.
A. Kobilinski-Ellis: Vassili Andreievitch Chukovski. Seine Per- Mas não foram bem compreendidos, e à crítica moderna
socnlichkeit, sein Lében und sein Werk. Berlin, 1933.
M. Ehrhard: V. A. Joukovski et le préromantisme. Paris, 1939. custou muito revelar-lhes a verdadeira significação.
I7(l(i Orio MAIUA CARPEATJX HISTÓRIA DA LITEHATURA OCIDENTAL 1707

Kicheiídorl f (*'-) é um dos mais populares entre os e a aparente monotonia dos motivos poéticos revela antes
poctíiM iilcinães, o poeta dos lieds para estudantes viajeiros, uma intenção muito certa.
jilc|;i es c enamorados, o poeta da saudade do Sul, da Itália, E m primeira linha, é uma intenção social. Os mais
liio íicqiicnte na Alemanha. Se êle não fosse aristocrata belos daqueles lieds estão insertos na novela A us dem Leben
silfsiano, os historiadores tê-lo-iam classificado como mem­ eines Taugenichts, história engraçada de um poeta nato,
bro da inofensiva "escola da Suévia". Distingue-se, porém, tipo boémio que não arranja nada na vida, e que encontra,
de um Uhland pela falta do elemento narrativo em sua no entanto, nas colinas perto de Viena — transfiguradas
poesia, pela maior pureza e espontaneidade do seu lirismo, em país de poesia — jardins, castelo e noiva. Um conto de
li, decerto, um dos muitos que imitam a poesia popular fadas sem fadas, expressão saudosista, bem da época da
alemã, descoberta por Brentano e Arnim e apresentada na Restauração, de uma vida puramente estética, sem respon­
famosa coleção Des Knaben Wunderhorn. E, assim, Eichen- sabilidades sociais. É uma reação aos terrores das guerras
dorff é geralmente definido como poeta popular da pri­ napoleónicas e sobretudo da Revolução, no conto "Schloss
mavera, das florestas, das viagens a pé, da saudade do Sul. Durande" descreveu o aristocrata Eichendorff o terror dos
"In einem kuehlen G r u n d e . . . " , "Laue Luft kommt blau jacobinos contra uma família aristocrática. E no romance
geflossen...", "Es schienen so golden die S t e r n e . . . " , todo Ahnung und Gegenwarth, romance de artistas românticos,
alemão conhece de cor esses lieds e o mundo os conhece parecido com o Franz Sternbald, de Tieck, já se discutem
através das composições congeniais de Schumann. Acon­ os problemas sociais. Por isso, Eichendorff foi definido
tece, porém, que não se trata de simples lieds. A música como "o último romântico", o que não está certo, nem
da língua e o sentimento da natureza harmonizam-se de tal sequer cronologicamente. É um aristocrata rural em tempo
modo que se pode dizer, sem exagero: essas pequenas de revolução industrial, já iniciada na Silésia mineira: é
composições são do número das poesias mais perfeitas, um "Lake Poet". Mas é católico; e o grande conflito da
das mais puras em língua alemã. Nada de ingenuidade; sua vida deu-se com o Estado prussiano, absolutista, vio­
lando os direitos da Igreja romana. O católico Eichendorff
não pôde aderir ao conservantismo burkiano. Também não
desconhecia a outra tentação romântica, a das forças mís­
42) Joseph von Eichendorff, 1788-1857.
Ahnung und Gegenwart (1815); Ans dem Leben eines Tauge- ticas. No conto "Das Marmorbild", simbolizou esse con­
nichts (1826); Das Marmorbild (1826); Schloss Durande (1837); flito, narrando uma sinistra lenda medieval, à qual aludem
Gedichte (1837) :
Edição por P. Ernst e H. Amelung, 6 vols., Muenchen, 1909-1913. várias poesias suas: o noivo que abandona a amada, para
Edição crítica por W. Kosch, 25 vols., Regensburg, 1908-1932. seguir uma mulher pálida, de beleza fascinante, que é, na
H. Keiter: Joseph von Eichendorff. Koeln, 1887.
I. Nadler: Eichendorffs Lyrik. Prag, 1908. verdade, uma estátua de deusa pagã Vénus, que o levará
H. Wegener: Eichenãorffs Ahnung und Gegenwart. Leipzig, 1908. para o inferno. Aquela harmonia entre música verbal e sen­
H. Brandenburg: Eichendorff. Sein Leben und sein Werk. Muen­
chen, 1922. timento da natureza não é um presente do céu a um poeta
F. Strich: Joseph von Eichendorff. Frankfurt, 1926. leve; é grande arte, resultado da disciplina verbal mais
A. Grolman: Introdução ó edição de obras de Eichendorff. vol. I.
Leipzig, 1928. estrita. Não é casualmente que quase toda a poesia de
W. Deubel: Der tragische Eichendorff. Muenchen, 1933. Eichendorff é noturna, e que "frissons" místicos e míticos
.1. Kunz: Eichendorff. Hoehepunkt und Krise der Spaetromantik.
Oborursel, 1951.

t
I7()lf OTTO MARIA CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1709

aparecem com frequência. Entre os poetas "lakistas" é


ambiente era menos calma, mais politizada. Os "lakistas"
liichendorf [ o trágico secreto.
franceses são católicos liberais, chocando-se com um anti-
O comentário dessas afirmações é a poesia de Annette
liberalismo absolutista, não burkiano, mas racionalista, obra
von Droste-Huelshoff ( 4 3 ), a maior poetisa alemã, filha
de outros "gentlemen" rurais que se defendem contra a
de uma grande família aristocrática da Vestfália; não en­
Revolução e a burguesia. Wordsworth e Coleridge foram
contrando amor nem compreensão, levou uma vida solitária,
poetas e doulrinadores ao mesmo tempo. Poetas "lakistas"
entre excursões na Natureza selvagem e rezas na igreja,
como Lnnuirliiie e Herculano chocam-se com doutrinadores
tonando-se cada vez mais sensível e cada vez mais histérica. "lnkiHtns" como De Maistre e Donoso Cortês. O conflito
Não foi grande artista; não sabia traduzir, senão em versos explodiu cm Lamennais, levando diretamente ao roman­
duros, as sensações inéditas que sentiu nas noites frias, à tismo revolucionário.
beira dos lagos e em florestas misteriosas; e a simplicidade
popular das suas poesias religiosas lhe convinha muito Cari Schmitt ( " ) , estudando as doutrinas políticas da
para ocultar as graves dúvidas que a assaltaram; mas às Contra-Revolução, estabeleceu oposição rigorosa entre o
vezes a sua expressão, sempre pesada, torna-se carregada romantismo político dos reacionários alemães, de inspiração
de termos místicos lembrando os visionários medievais. A herderiana, como Adam Mueller, e, por outro lado, a "so­
sua maior obra é o poema narrativo "Die Schlacht im Loe- ciologia da Restauração", inspirada em princípios clássicos
ner Bruch" ("A Batalha de Loen") ; mais uma vez, o género e universalistas, cujos representantes principais seriam De
deu oportunidade a confusões absurdas com o byronismo. Maistre, Bonald e Donoso Cortês. A oposição não é tão
Na verdade, trata-se de uma visão assustadora da história absoluta: Burke, o mestre da Contra-Revolução, não dei­
regional da sua terra, do fim dos grandes senhores. Visão xou de influenciar os latinos; e não é possível ignorar as
sinistra que a atraiu tanto como os fantasmas noturnos no raízes místicas do pensamento de De Maistre. Apesar do
pântano, reminiscências da mitologia germânica. Annette rigor lógico das suas deduções e do seu estilo De Maistre
von Droste-Huelshoff foi — como muita gente da sua terra continua a ser uma figura ambígua.
vestfálica — uma visionária. Joseph De Maistre ( 4 5 ), como escritor, foi definido,
por Thibaudet, como "gentilhomme de province", e essa
Conflitos semelhantes surgiram entre os católicos de
definição lembra imediatamente os "lakistas". A situação
língua latina; apenas lhes faltavam os resíduos da mitologia
v atitude de De Maistre em face da Revolução burguesa
germânica, substituídos por outro "paganismo", mais re­
cente, o liberalismo do século X V I I I ; e a atmosfera do
44) C. Schmitt: Politische Romantik. 2a. ed. Muenchen, 1925.
43) Annette von Droste-Huelshoff, 1797-1848. D. Bagge: Les idées politiques en France sous la Restauration.
Paris, 1953.
Die Schlacht im Loener Bruch (1838); Die Judenbuche (1842);
Geãichte (1844); Das geistliche Jahr (1851). 4,r>i Joseph De Maistre, 1753-1821.
Edição por B. Badt, K. Pinthus e K. Schulte, 5 vols., Muenchen, Considérations sur la France (1796); Du Pape (1819); Soirées de
1925. Saint-Pétersbourg (1821); Lettres (1851).
II. Hueffer: Annette von Droste-Huelshoff unã ihre Werice. 3.a Kdição Vitte e Pérussel, 14 vols., Lyon, 1884-1886.
(Hl. Gotha, 1911. K. Grasset: Joseph De Maistre, sa vie et son oeuvre. Paris, 1901.
W. von Scholz: Annette von Droste-Huelshoff. 2.a ed. Muenchen, O. Goyau: La pensée religieuse de Joseph De Maistre. Paris,
11)23.
W. lilnk: Annette von Droste-Huelshoff. Ein Leben neben der 1921.
'/.vil. Numíber, 1948. 10. Dermenghem: Joseph De Maistre mystique. Paris, 1923.
li. Johannet: Joseph De Maistre. Paris, 1932.
1710 OITO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1711

M&O como as de um aristocrata da Inglaterra patriarcal, A tarefa de sistematizar o providencialismo reacionário


mneiiçndo pela revolução industrial; e não é só isso. De coube a dois outros "gentilhommes de province": Bo-
Mnintre fora maçom, naquela época em que a maçonaria nald ('"), o "escolástico da Reação", e o espanhol Donoso
«e confundiu com seitas ocultistas de fins utópicos, huma­ Cortês C 7 ), orador fogoso, em que certo misticismo his­
nitários. O maçom De Maistre devia ter compreendido (e tórico, de origem agostiniana, contrastando a Cidade de
desprezado, por orgulho aristocrático) os ideais de Godwin, Deus com an cidades terrestres, se veste das dobras da
pelos quais o jovem Wordsworth e o jovem Coleridge se eloqllcncio ciceroniano — e apocalíptica. Aí já não se pode
entusiasmaram. E ao misticismo schellingiano de Coleridge falar, de modo algum, em romantismo. O romantismo estava
correspondem as relações de De Maistre com o místico do outro lado da barricada, com Lamennais e os poetas.
Louis Claude Saint-Martin, admirador de Jacob Boehme, Quanto a Lamennais ( 4H ), ao qual o catolicismo francês
sonhando com uma "Terceira Igreja" invisível, como fim deveu uma renovação gloriosa, é de importância primordial
providencial da História. De Maistre também é providen- conhecer as fontes da sua fé tradicionalista; só assim será
cialista; só podia compreender o acontecimento diabólico possível explicar a sua apostasia sensacional, depois de
da Revolução se ela estivesse prevista nos desígnios da tantas lutas apologéticas. Recentemente prestou-se muita
Providência divina. As Considération sur la France di­ atenção às analogias entre a Esquisse d'une philopohie,
vergem, no entanto, fundamentalmente das Reflections on de Lamennais, e as ideias de Saint-Martin, na tradução da
the Revolution in France, de Burke; De Maistre tem a Morgenroete im Auígang, de Boehme; Lamennais, como
cabeça clássica. Uma organização tão frágil e sempre amea­ 46) Louis-Gabriel Ambroise de Bonald, 1754-1840.
çada como o reino terrestre não lhe parece bastante garan­ La législation primitive consiãérée dans les derniers temps par
tida pelos instintos nacionais e por tradições variáveis. les seules lumières de la raison (1802).
Precisa de princípios certos, de um poder "moderador" B. Mauduit: La politique de Bonald. Paris, 1913.
47) Juan Donoso Cortês, marquês de Valdegamas, 1809-1853.
acima das flutuações históricas, e encontra-o no Papado, Ensayo sobre el catolicismo, el liberalismo y el socialismo (1851);
identificando a Igreja visível de Roma com a Igreja invi­ Obras (com biografia por G. Tejado, 5 vols., Madrid, 1859).
Edição das Obras por J. Juretschke, 2 vols., Madrid, 1946.
sível de Saint-Martin. Separando-se de Roma, a monarquia W. Schramm: Donoso Cortês. Hamburg, 1936. (Trad. esp., Madrid,
1936).
francesa estava perdida. O galicanismo é o pecado original W. Westemeyer: Donoso Cortês, Staatsmann unã Theologe.
da França cristianíssima, destinada, no entanto, a ser a Muenster, 1941.
48) Félicité-Robert de Lamennais, 1782-1854.
teocracia-modêlo. Poder temporal e Poder espiritual só Essai sur Vinãifférence en matière de religion (1817-1823) ; Paro­
vivem em simbiose: é a aliança da Inquisição e do Patíbulo. les d'un croyant (1834); Les Affaires de Rome (1836); Le Livre
ãu Peuple (1837); Esquisse d'une philosophie (1841-1846).
E De Maistre tira, com lógica implacável, as conclusões Edição (incompleta) pelo autor, 10 vols., Paris, 1844.
E. Spuller: Lamennais. Paris, 1892.
das Soirées de Saint-Pétersbourg, tão eloquentes como Ch. Boutard: Lamennais, sa vie et ses ãoctrines. 3 vols. Paris,
cruéis, celebrando a guerra e o carrasco como instituições 1905-1913.
F. Duine: Lamennais, sa vie, ses idées, ses ouvrages. Paris, 1922.
cristãs. De Maistre virou espantalho. Contudo, Thibaudet H. Bremond: "Lamennais et les origines du romantisme catholi-
lembrou bem que a inegável grandeza do escritor De Mais­ que". (In: Pour le romantisme. Paris, 1923.)
P. Vulliaud: Les Paroles d'un Croyant de Lamennais. Paris,
tre reside nas suas cartas particulares, e ali se revela o "gen- 1928.
tilhoinme de province", um poeta "lakista" em prosa. L. de Villefosse: Lamennais ou Voccasion manquée. Paris, 1945.
Y. Le Hir: Lamennais écrivain. Paris, 1949.
1712 OITO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1713

1)P Miiiniro, teria identificado a "Terceira Igreja" com a sidade de "Deus na Natureza", uma religiosidade "lakista",
l^ifjn de Roma, mas, desiludido depois pelas realidades que será a religião dos "Lake Poets" da França ( 4 8 _ A ).
políticas, teria separado os dois conceitos, abraçando a "Enfim Lamartine vint" — Lamartine, e não Chénier.
I|',reja democrática e socialista do futuro. Seria um De A diferença é como entre Teócrito e Virgílio, entre a Sicília
Miiistrc às avessas. Parece uma "vaticinatio ex eventu"; grega e as províncias rústicas da Itália; também poderiam
a ttsqiiisse d'une philosophie é de 1841 a 1846, escrita muitos ser as províncias rústicas da França, produzindo uma poesia
anos depois da apostasia, e pretende antes justificar o passo elegíaca, virgiliana. O pré-romantismo francês, transfor-
já dado. O tradicionalismo de Lamennais — muito dife­ mando-se em romantismo "lakista", tinha que evitar as
rente do teocratismo do martiniano De Maistre — é uma reminiscências clássicas, procurar outra atmosfera. Par-
aplicação das ideais de Burke sobre a tradição histórica, ny (•'"), natural da Ilha de Bourbon — atmosfera de Ber-
ao dogma; assim como o Estado se baseia nas tradições nardin de Saint-Pierre — não vive na história como autor
nacionais, assim também o dogma se baseia nas tradições da graciosa epopeia herói-cômica La guerre des dieux, bem
eclesiásticas. Lá os cidadãos, cá os fiéis sustentam o peso século X V I I I , e sim pela ideia de Sainte-Beuve de lembrá-
da História; e cá e lá eles exigirão, um dia, a responsabi­ lo entre os precursores de Lamartinte, como poeta elegíaco
lidade e o poder. Em De Maistre, a Providência fala pelo das Poésies érotiques e Chansons Madécasses, de sensua­
P a p a ; em Lamennais, pela "volonté générale". Os inimigos lidade idílica e tristeza tropical. Pode-se acrescentar que
Parny procurou mesmo novos ambientes poéticos: em Isnel
ortodoxos de Lamennais pretenderam sempre filiá-lo a
et Asléga, chegou ao escandinavismo ossiânico. Mais um
Rousseau; mas além de certa semelhança dos temperamen­
passo, e descobrir-se-á a poesia da província francesa, que
tos não existe prova disso. Lamennais é, como todos os
já respira, fracamente, em Millevoye ( s o ), o poeta senti­
românticos franceses, discípulo de Rousseau, mas discípulo
mental das "Chutes des feuilles" e do idílio Emma et Egin-
indireto, através de Chateaubriand, ao qual deve a elo­
nhard. A inspiração poética de Millevoye, passando pelo
quência exuberante do Essai sur Vindiííérence e o grande
sentimentalismo rousseauiano do Chateaubriand de René,
tom bíblico das Paroles d'un croyant. Em Chateaubriand,
no Génie du Christianisme, já está o tradicionalismo inteiro,
a veneração das coisas antigas do cristianismo, belas porque 48 A) M. Bonfantini: Le idee e la poesie dei primo romanticismo
são antigas. Lamennais, pessoalmente, não foi um esteti­ francese. Milano, 1951.
49) Evariste-Désiré de Forges, chevalier de Parny, 1753-1814.
cista e sim uma natureza de profeta, falso profeta, aliás, Poésies érotiques (1778); Chansons madécasses (1787); Isnel et
porque o verdadeiro profeta não é nunca tão pessoal; apos- Asléga (1798); La guerre des dieux (1799).
C.-A. Sainte-Beuve: "Parny". (In: Portraits Contemporains, vol.
latou; a sua propaganda democrática já não pertence ao IV).
ciclo do primeiro romantismo. Mas a sua repercussão como C.-A. Sainte-Beuve: "Parny, poete élégiaque". (In: Causeries ãu
Lunãi, vol. XV.)
escritor tradicionalista agiu no sentido da religiosidade R. Allard: "Parny". (In: Tableau de la Littérature Française, de
estética ou do esteticismo religioso. O tradicionalismo, Corneile à Chénier. Paris, 1939.)
abstraindo de muitos rigores da doutrina católica, parecia 50) Charles-Hubert Millevoye, 1782-1816.
Klégies, suivies ã'Emma et Eginharã (1812).
nienuar o dogma, facilitar uma religiosidade mais vaga e T!di<:ão por P.-L. Jacob, 3 vols., Paris, 1880.
sentimental, quase como a dos protestantes. Uma religio- M. Ijccomte: Biographie de Millevoye. Abbeville, 1884.
r. Ludoué: Un précurseur ãu romantisme. Millevoye. Paris, 1912.
1714 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1715

e pelo clima religioso que Chateaubriand e Lamennais cria­ foi um fracasso completo. Não sabia agir, porque não tinha
ram, e mais alguma influência do "lakista" Thomas Moore, nada que dizer. Lamartine deu à poesia francesa uma nova
e todos esses elementos reunidos em um autêntico "gen- sensibilidade e um novo verso; mas não deu à literatura
tilhomme de province", dar-nos-ão bem um "Lake Poet" francesa nenhum "conteúdo", nenhuma nova ideia, a ponto
francês: com efeito, assim se poderia construir a imagem de ele mesmo se confessar "incapaz de pensar". E as suas
do poeta do Lac, de Lamartine; ou antes a imagem con­ atitudes públicas, como royalista católico, depois como libe­
vencional desse grande poeta. ral, e enfim como revolucionário, eram sempre sinceras e
Lamartine ( 51 ) é um poeta muito grande, um dos maio­ generosas, mas sempre erradas, a ponto de levar a desilu­
res e mais puros da língua francesa. Um dos poucos grandes sões e fracassos. Lamartine não era um pensador nem um
poetas que conseguiram o sucesso merecido; o que não homem da ação, num momento histórico que exigiu o pen­
exclui, aliás, as injustiças da posteridade. Delas, o próprio samento e a ação. Daí a tentativa dos críticos do século
sucesso foi, no caso de Lamartine, o culpado: um "Lake XIX de explicar biogràficamente o fracasso do poeta, em
Poet", encarregado, pelo destino, de reformar uma litera­ vez de reconhecer, pela eliminação do elemento biográfico,
tura e representá-la perante a nação. Lamartine foi posto a pureza da sua poesia. Produziram uma biografia esti­
à prova, num sentido que não era o sentido da sua poesia. lizada; a vida de um adolescente ossiânico, poeta de suces­
O seu primeiro volume, as Premières médidations poétiques, sos mundanos, diplomata elegante, parlamentário de elo­
abriu uma nova época da literatura francesa; depois, as quência retumbante, revolucionário espetacular, e, enfim,
evoluções e revoluções da França levaram o autor até à um velho pobre e esquecido. Dessa biografia tiraram os
chefia do Estado. Mas a carreira pública de Lamartine traços de um retrato falso de Lamartine, reduzindo a sua
poesia aos elementos que podiam ilustrar a biografia. Como
fonte da sua inspiração aparece "le vallon de mon enfance",
51) Alphonse de Lamartine, 1790-1869. vale sombrio e melancólico, escurecido pelo "On dit qu'il
Premières méditations poétiques (1820); Nouvelles méãitations
poétiques (1823); Harmonies poétiques et religieuses (1830); 3o- faut mourir", iluminado por amores de adolescente e o
celyn (1836); Chute â'un ange (1838); Recueillements poétiques sentimento vago da presença de Deus. Lamartine teria
(1839); Histoire des Girondins (1847); Histoire de la Révolution
de 1848 (1849); Graziella (1849); Raphael (1849); etc. sido um Byron sem revolta, um Musset sem frivolidade; é
Edição Lemerre, 12 vols., Paris, 1885-1887. retratado como um "élegant" fatigado, olhando para o céu
Edição da Société propriétaire des oeuvres de Lamartine, 22 vols.,
Paris, 1900-1907. e para o espelho, fazendo versos de álbum para as mocinhas
Edição das Méãitations poétiques por G. Lanson, 2 vols., Paris,
1915. dos "pensionnats"; versos, aliás, que o "aumônier" pode
C.-A. Sainte-Beuve: Causeries ãu Lunãi, vols. I, IV, IX. aprovar sem escrúpulos. Deste modo, explica-se o fracasso
Ch. de Pomairols: Lamartine. Paris, 1890.
E. Deschanel: Lamartine. Paris, 1893. da vida pela fraqueza da poesia. Toda a poesia de Lamar­
F. Brunetière: Êvolution de la poésie lyrique, vol. I. Paris, 1894. tine seria só "um soupir mélodieux" — mas, se fosse apenas
E. Zyromski: Lamartine, poete lyrique. Paris, 1897.
R. Doumic: Lamartine. Paris, 1912. isso, já teria experimentado a morte do seu Poete mourant:
P, Hazard: Lamartine. Paris, 1925.
L. Larguier: Lamartine. Paris, 1929.
A. Thibaudet: "Lamartine". (In: Histoire de la Littérature Fran- "Moi je meurs, et mon âme, au moment qu'elle
<;.uise de 1789 à nos jours. Paris, 1936.) [expire,
li. Bortrand: Lamartine. Paris, 1940.
V. Lucas-Dubreton: Lamartine. Paris, 1951. S'exhale comme un son triste et mélodieux".
1716 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1717

Mas a poesia de Lamartine não morreu, e não morrerá •o cume da poesia lamartiniana está no terceiro volume:
tão cedo. Admite-se a pobreza de ideias nos seus versos Harmonies poetiques et religieuses. Não é possível excluir
harmoniosos, bem construídos, o que seria herança do clas­ da crítica da poesia um elemento subjetivo, do gosto pes­
sicismo, assim como em Chateaubriand; admite-se, nas obras soal. Lamartine não é do tipo Villon-Verlaine-Apollinaire;
mais ambiciosas, poemas narrativos à maneira de Byron nem pertence ao outro tipo de poesia francesa, caracteri­
como Jocelyn e La chute d'un ange, a falta de composição zado mais ou menos pelos nomes de Hugo e Baudelaire.
e, às vezes, a falta de bom-senso. Admitem-se as influên­ Nem todos gostarão da sua poesia religiosa, embora todos
cias: o clima moral e religioso da poesia de Lamartine é o de tenham que admitir a grandeza, solitária na poesia francesa,
Chateaubriand; do Génie du Christianisme e de René, mo­ de odes como "Hyme de la Nuit", "Bénediction de Dieu
dificado depois pela melancolia pensativa de Child Harold's dans la Solitude", "Paysage dans le Golfe de Genes" e,
Pilgrimage e o desespero de salão de Byron. Mas Lamar­ sobretudo, "Hymne du Soir dans les Temples". São — a
tine não é um Chateaubriand de província, nem um Byron expressão é do próprio Lamartine — "sacrés concerts" de
de colégio de moças, nem a síntese dos dois. O poema um grande artista que transforma o Universo inteiro em
narrativo da época não é só o género de Byron, mas também orquestra e sinfonia em louvor de Deus, lembrando Fray
o género de Wordsworth, de Southey, de Thomas Moore; Luis de L e ó n : " . . . el son sagrado con que este eterno
e a tradição poética francesa não se limita aos versos vazios templo es sustentado". Às vezes Lamartine evoca expres­
dos classicistas. Foi preciso restaurar aquele retrato antigo sões da liturgia, às vezes a eloquência dos profetas do Velho
do poeta. Testamento; e à luz das palavras litúrgicas — do "Introibo"
Lamartine, por mais paradoxal que pareça, não é muito — desaparece o chamado sentimentalismo de Lamartine:
lido: é lido nas antologias, das quais as suas composições
grandes estão excluídas pelo tamanho. Assim se conhece
"Quand ta corde n'aurait qu'un son,
apenas o Lamartine das Premières méditations: o autor
Harpe fidèle, chante encore
de Isolement, Valiou, Lac, Automne, poesias harmoniosas,
Le Dieu que ma jeunesse adore;
um pouco triviais, cujo sucesso se explica pela ausência
Car c'est un hymne que son nom!"
absoluta de poesia lírica na literatura francesa durante dois
séculos; o lirismo modesto daquelas primeiras poesias já
foi um acontecimento histórico, uma revelação. Mas La­ E o sentido profundo da evolução coerente da poesia de
martine não parou ali. A sua evolução é bastante rica em Lamartine seria: do Advento virgiliano, através da pro­
surpresas, não "sensacionais", mas de profundidade. As fecia bíblica, até o "Ite, Missa est".
Nonvelles méditations continuam com composições, mais A posição de Lamartine é diferente, vista de dentro
elaboradas, do primeiro tipo (Le Crucifix, Le poete mou- ou de fora, na literatura francesa ou na literatura universal.
r:mt, Les Étoiles) e algumas evidentemente superiores (Les Lamartine terminou o processo da transformação da prosa
1'róludcs, Ischia). Eis o Lamartine ao qual se dá — desde poética de Bossuet, Buffon, Rousseau e Chateaubriand em
Saintc-Beuve — o apelido de poeta virgiliano. Mas Lamar­ poesia poética. O autor daqueles grandes hinos católicos
tine tampouco parou ali. Devemos a Thibaudet e a poucos c mesmo o Bossuet da poesia. É o restaurador da poesia
outros leitores atentos de Lamartine a observação de que lírica na França; apenas, é preciso restituir o sentido pleno,
1718 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1719

histórico, ao apelido "restaurador". Num país em que, du­ rmodesta e provinciana. Escrita por poetas que foram e
rante dois séculos, se consideravam como poesia os exer­ ficaram provincianos até mesmo quando viveram em Paris,
cícios de metrificação — prosa enfeitada pelas rimas — a como Resséuguier ( B:í ), romântico da primeira hora, inti­
tradição poética estava interrompida. A renovação só podia mista delicado; ou Hyacinthe de Latouche ( B3 ), poeta de
começar, modestamente, com os temas permanentes do li­ grande talento não plenamente realizado, ao qual se deve
rismo subjetivo: natureza, amor, melancolia, noite, Deus.. a edição das poesias de Chénier. Algo diferente é Ulric
Não se precisava de uma revolução completa do verso — o Guttinguer ( B4 ), cuja intensa crise religiosa lembra o clima
verso de Lamartine aproxima-se muito ainda do verso clas- espiritual dos "lakistas", e no mesmo sentido se distingue
sicista — porque não se tratava de uma revolução, e sim de Marceline Desbordes-Valmore ( 5B ), talvez a maior das poe­
uma restauração: no primeiro Lamartine nota-se algo da
tisas francesas. Os elogios sinceros de Sainte-Beuve não lhe
religiosidade sentimental de Fenélon; depois, por mais
podiam poupar a fama de poetisa para mocinhas, uma espé­
blasfema que pareça a lembrança, não é de todo inútil
cie de sub-Lamartine feminino; mas era uma grande mulher,
comparar os seus hinos com os de Jean-Baptiste Rousseau
grande no sofrimento, e algo dessa grandeza transfigurou-se
e Le Franc de Pompignan. Talvez fosse justo procurar
em versos admiráveis. Até em peças antológicas, conhecidas
ainda mais atrás as fontes de inspiração de Lamartine:
demais, Robert de Montesquiou soube descobrir alusões e
deu à França o que o século X V I I não lhe pudera dar:
aliterações secretas e uma música verbal, que se tornou
algo como uma grande poesia barroca. Lamartine chegou
ao Barroco que permanecera inacessível a Wordsworth. cara aos simbolistas. Eis uma exceção. Os lamartinianos
No país da tradição poética interrompida, os contemporâ­ da província, em geral, antes lembram Millevoye: assim
neos não sabiam explicar a singularidade da poesia de
Lamartine, senão alegando influências alheias, de Chateau-
briand, de Byron. Visto no panorama da literatura uni­ 52) Jules de Rességuier, 1789-1862.
Tableaux poétiques (1828); Prismes poétiques (1838).
versal do começo do século XIX, Lamartine não é discípulo P. Lafond: Uaube romantique. Jules de Rességuier et ses amis.
do primeiro nem do segundo. Até as suas franquezas, a Paris, 1910.
imprecisão do pensamento e da expressão do pensamento, 53) Hyacinthe de Latouche, 1785-1851.
Vallé-aux-Loups (1833); Aãieu (1843); Les agrestes (1845).
lembram os "Lake Poets", entre cujas obras não causaria F. Ségu: Hyacinthe ãe Latouche. Paris, 1931.
estranheza encontrar Jocelyn e La chutte d'un ange. U m 54) Ulric Guttinguer, 1785-1866.
"Lake Poet" também é Lamartine, "gentilhomme de provin- Mélanges poétiques (1824).
H. Bremond: Le roman et Vhistoire ã'une conversion. Ulric
ce". Não possui a riqueza poética de Wordsworth nem a Guttinguer et Sainte-Beuve. Paris, 1925.
profundidade metafísica de Coleridge; mas é superior a 55) Marceline Desbordes-Valmore, 1786-1859.
tlégies (1819); Êlégies et poésies nouvelles (1825) ; Les Fleurs
ambos pela pureza musical, virgiliana, da sua expressão. (1833); Pauvres fleurs (1839); Bouquets et prières (1843); Poésies
Lamartine tinha algo a ensinar aos simbolistas; e ressusci­ inéãites (1860).
Edição Lemerre, 3 vols., Paris, 1886-1887.
tou, quando eles aprenderam o que é "poésie puré". Edição de poesias escolhidas por L. Descaves, Paris, 1927.
C.-A. Sainte-Beuve: Causeries âu Lunãi, vol. XIV.
A poesia de estilo lamartiniano, mal compreendida e B. de Montesquiou: Felicite. Êtude sur la poésie ãe Marceline
Desbordes-Valmore. Paris, 1894.
mal interpretada, continuou a levar na França uma vida. J. Boulenger: Marceline Desbordes-Valmore. 2.a ed. Paris, 1926.
1720 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1721

o desgraçado Hégésippe Moreau ( 5 6 ), em que se encontram,, às reivindicações de Lamennais. Mas é preciso admitir que
no entanto, alguns versos de sabor simbolista — não é o poeta da religiosidade vaga não podia respirar num am­
casualmente que esse fenómeno se repete entre os discí­ biente que se tornou cada vez mais dogmático, cada vez
pulos e imitadores de Lamartine. A nota regional é repre­ mais ortodoxo, e isso com élan muito "moderno". Os mes­
sentada pelo bretão Brizeux ( 5 7 ): os seus versos, muito mos anos de 1830 em que Lamartine se tornou liberal,
musicais, admirados por Leconte de Lisle, foram conside­ assistiram a um grande movimento de renovação católica
rados como antecipações do Parnasse; as suas paisagens na França, tentativa de realização dos sonhos medievalistas.
do país céltico lembram Rosália de Castro. Mas nenhuma Em 1833, dom Guéranger renovou a abadia beneditina de
comparação honrosa saberá revificar a memória de La- Solesmes, que viria a ser, mais tarde, berço do movimento
prade ( 5 8 ), poeta dos colégios eclesiásticos, representando litúrgico. Pelo mesmo tempo, Lacordaire (r'")> ° maior
o fim de um mundo poético a que não se pode chamar orador sacro francês desde os tempos de Bossuet, iniciou
exausto, porque fora sempre pobre. as suas famosas conferências em Notre-Dame de Paris. O
A obra dos poetas lamartinianos tem caráter marca­ liberalismo político de Lacordaire indica claramente as
damente apolítico. Esse abstencionismo explica-se, pelo me­ origens desse conterrâneo de Bossuet na aristocracia liberal
nos em parte, pelos progressos da revolução industrial, que pré-revolucionária da província; e o mesmo liberalismo
reduziram a nada o papel da gentry provincial na França. caracterizará a atitude de Montalember (""), que soube no
A aventura política de Lamartine não é uma continuação entanto evocar, à maneira de Walter Scott, as belezas morais
coerente da sua atitude anterior, mas uma tentativa de e estéticas do cristianismo medieval. Católicos como La­
evasão para a política, tentativa de sair da "Lake Poetry" cordaire e Montalembert julgavam-se autorizados a fazer
para o liberalismo byroniano. Atitude confusa e meio falsa, política liberal, porque consideravam o liberalismo como
destinada ao fracasso também por outro motivo: esse libe­ barreira contra a democracia social. Nesta última acabara
ralismo não podia harmonizar-se com a substância religiosa o tradicionalismo místico de Lamennais; a sua apostasia
da personalidade poética de Lamartine. Sintoma disso é coincidiu com o advento do romantismo revolucionário na
a escolha de um conflito de celibato em Jocelyn, não alheia França.
De três pontos de partida saiu o chamado "romantis­
56) Hégésippe Moreau, 1810-1838. mo": do grupo alemão de Iena, da emigração francesa e
Les Myosotis (1838; reimpressão, 2 vols., Paris, 1890). do distrito dos lagos ingleses. É costume distinguir um
L. Séche: Hégésippe Moreau, d'après des documents inédits. Pa­
ris, 1910.
G. Benolt-Guyot: La vie mauãite de Hégésippe Moreau. Paris,
1945. 59) Henri Lacordaire, 1802-1861.
57) Auguste Brizeux, 1806-1858. O. D'Haussonville: Lacordaire. Paris, 1895.
Marie (1831); La Fleur d'or (1841); Les Bretons (1845). E. Vaast: Lacordaire et les conférences de Notre-Dame. Paris,.
Edição por A. Dorchain, 4 vols., Paris, 1912. 1937.
A. Lecigne: Brizeux, sa vie et ses oeuvres. Poussielgue, 1898. S. M. Gillet: Lacordaire. Paris, 1952.
510 Victor de Laprade, 1812-1883. 60) Charles Forbes, comte de Montalembert, 1810-1870. (cf. "Roman-
Psi/ché (1841); Poèmes évangéliques (1852); Les Symphonies tismos de evasão", nota 52.)
(1855) etc. Vie de Sainte Elisabeth de Hongrie (1836); Les moines de VOcci-
I'. Kéchaud: Victor de Laprade. Uhomme, son oeuvre poétique. ãent, ãepuis Saint Benoit jusqu'à Saint Bernard (1860-1867).
1'Jii-l.s. 1934. V. Bucaille: Montalembert. Paris, 1912.
1722 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1723

romantismo medievalista e conservador e outro liberal e ou alto evasionismo, de novelística "gótica" ou de poesia
revolucionário, e identificar o primeiro com o romantismo simbolista.
alemão e o segundo com o romantismo francês, ao passo Dentro do romantismo liberal e revolucionário, o "hu­
que, na Inglaterra, se nota a presença das duas tendências. manismo" é representado pelos classicistas-pessimistas, que
Essa distinção de romantismos nacionais não é exata; leva não convém confundir com os pessimistas sentimentais,
a estabelecer conjuntos de todo incoerentes, como "La- os poetas do "mal du siècle" ou "Weltschmerz"; e entre
martine, Hugo, Vigny e Musset", ou "Byron, Shelley e estes últimos não faltam os desesperados por motivos na­
Keats". Para evitar essas confusões, seria preciso fazer cionais, sobretudo nas nações eslavas. Mas não pertencem
cortes transversais, segundo critérios estilísticos e ideo­ a este grupo os messianistas poloneses, que, por sua vez,
lógicos, através da literatura internacional, entre mais ou se aproximam do utopismo místico de um Shelley ou dos
menos, 1800 e 1840. Pelo menos um corte assim foi admitido transcendentalistas norte-americanos. A combinação desse
desde sempre, verificando-se um movimento de "mal du utopismo com elementos rousseauianos leva ao romantismo
siècle" ou "Weltschmerz", no qual se encontram os clas- revolucionário dos franceses.
sicistas Byron e Leopardi, os sentimentais Musset e Lenau, Todas essas distinções são puramente esquemáticas;
os utopistas estéticos Shelley e Slowacki, de modo que não representam, de modo algum, o movimento dialético
aquela confusão apenas é substituída por outra. Não basta, das ideias e formas. Só servem para classificar, de qualquer
portanto, distinguir um movimento conservador, partindo maneira, a imensa e multiforme riqueza poética do chamado
de Herder e Burke, e outro movimento, sentimental e revo­ romantismo. E torna-se cada vez mais claro, que essa
lucionário, partindo de Rousseau; age, dentro do roman­ palavra "romantismo" não tem nenhum sentido definido,
tismo, um terceiro fermento, de feição classicista, expri- nem sequer cronológico — é apenas o nome ambíguo de
mindo-se como humanismo dentro do romantismo conser­ um capítulo da história literária.
vador, e como oposição aristocrática dentro do romantismo
liberal e revolucionário. Prestando atenção às várias com­
binações entre esses três elementos, é possível conservar
aquela distinção fundamental entre romantismo conservador
ou de evasão e romantismo liberal e revolucionário, mo-
dificando-a, porém, devidamente.
Dentro do romantismo de evasão, distingue-se um
movimento medievalista e nacionalista, inspirando-se em
Burke e Herder, exprimindo-se principalmente pelo género
do romance histórico e pelo interesse na poesia popular
c folclore; e um movimento humanista, principalmente no
"Biedermeier" alemão e dinamarquês, e que toma entre os
ingleses a feição de uma renascença da poesia elisabetiana.
O Hcntimentalismo "romântico" revela, nesse ambiente, as
Hiian origens místicas, produzindo uma literatura de baixo
CAPÍTULO II

ROMANTISMO DE EVASÃO

A L T E R S C O T T 0 ) foi entre todos os escritores da


W literatura universal aquele que obteve, em vida, maior
sucesso. Venderam-se vários milhões de exemplares dos
seus romances, que foram traduzidos para todas as línguas,
e, imitados em toda parte, dominaram uma época inteira
da literatura europeia e americana. Num conto de um dos
seus imitadores alemães, "Die letzten Riter von Marien-
burg", de Hauff, encontra-se um quadro vivo da curiosidade

1) Sir WaJter Scott, 1771-1832.


T r a d u ç ã o das baladas The Chase e William and Helen de Buer-
ger (1796).
T r a d u ç ã o do Goetz von Berlichingen (1799); Baladas em Tales
of Wonãer (edit. por Monk Lewis) (1801).
Minstrelsy of the Scottish Border (1802); The Lay of the Last
Minstrel (1805); Marmion (1808); The Lady of the Lake (1810) ;
Rokeby (1812); The Lord of the Isles (1818); Poetry Contaíned
in the Novéis of the Author of Waverley (1822); — Waverley
(1814); Guy Mannering (1815); The Antiquary (1816); The Black
Dwarf (1816); Olã Mortality (1816); Rob Roy (1817) ; The Heart
of Miãlothian (1818); The Bride of Lamrnermoor (1819); A Le-
genã of Montrose (1819); Ivanhoe (1819); The Monastery (1820) ;
The Abbot (1820); Kenilworth (1821); The Pirate (1821); The
Fortunes of Nigel (1822); Peveril of the Peak (1823); Quentin
Durwarã (1823) ; Si. Ronan's Well (1824) ; Redgauntlet (1824) ;
The Talisman (1825); Wooãstock (1826); The Fair Maid of Perth
(1828); The Lives of the Novelisls (1821-1824).
Edição das obras poéticas por J. L. Robertson, Oxford, 1904.
Edições dos romances: EdinburR Edition, 48 vols., Edinburg, 1901-
1903.
Sono Edition, 25 vols., London, 1903-1905.
Oxíord Edition, 14 vols., Oxford, 1924.

t
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1727
I72<> Oiro MARIA CARPEAUX
menos para esse fim Kcnilworth, da época da rainha Eliza-
imensa com a qual aqueles romances foram esperados e beth, The Abbot, romance em torno de Maria Stuart, e
lidos. Para maior divulgação dos Waverley Novéis cria­ Woodstock, da época de Cromwell; aborrecem pela mono­
ram se os gabinetes de leitura e as bibliotecas circulantes. tonia dos processos novelísticos, as complicações e carac­
Penniliu-se a leitura às moças — ainda pouco antes, "ro­ teres convencionais, os artifícios antiquados, certa falsidade
mance" fora sinónimo de "livro imoral" — e até às meninas romanesca; e são mais pretensiosos. Em compensação, The
c meninos. Com o tempo, Scott tornou-se literatura infantil, Fortunes of Nigel, romance escocês do começo do século
e hoje nem as crianças querem saber de Ivanhoe nem de X V I I , A Legcnd of Montrosc, das lutas escocesas contra
Çucniin Durwarã. Só poucos — e não os piores — entre Cromwell, The Bride of Lanmicrnwor, que se passa na Es­
os críticos ingleses, consideraram sempre Scott como um cócia per volta de 1700, Old Morlality, da Escócia de 1670,
dos maiores romancistas de todos os tempos; e o abbé Bre- são romances muito bons, sem esquecer também as mara­
mond, aplicando os mesmos critérios conservadores, esta­ vilhosas descrições da paisagem escocesa em The Antiquary.
beleceu uma classificação dos romances de Scott, que cons­ Vem, depois, as obras-primas: Waverley, Guy Manncring
tituirá surpresa para muitos leitores modernos. Em nível e Rob Roy, a admirável trilogia da resistência escocesa
mais baixo, o crítico francês colocou Ivanhoe, o romance contra a Inglaterra no século X V I I I ; The Heart of Mi-
dos cruzados, e Quentin Durward, da época de Luís XI e dlothian c Redgauntlet, romances quase modernos, mas
Carlos o Temerário: porém, merecem continuar a ser afinal independentes de oscilações da moda literária. Nota-
considerados como étimos livros para meninos. Servem se logo que Scott não é propriamente medievalista: apenas
cinco dos seus muitos romances se passam na Idade Média,
J. G. Lockhart: The Life o/ Sir Walter Scott. 1938. (Edição em 5 e no mais Scott só parece medievalista porque a cena
vols., Boston, 1926.) preferida — a Escócia do século X V I I I — era um país
W. Bagehot: "The Waverley Novéis". (In: Literary Stuãies. 1879; muito atrasado, quase medieval. E quando Scott sai da
reedição, London, 1920.)
G. Saintsbury: Sir Walter Scott. London, 1897. líscócia, seja para a Inglaterra, seja para o Continente, logo
W. Freyl: The Influence of Gothic Literature on Sir Walter Scott. cai para o nível do romance de divertimento ou da leitura
Rostock, 1902.
A. Lang: Sir Walter Scott. London, 1906. inf.-.ntil. O chamado medievalismo de Scott merece, pois,
C. A. Young: The Waverley Novéis. An Appreciation. London,
1907. uma análise mais atenta: provém do pré-romantismo ale­
H. Bremond: "Walter Scott". (In: Pour le romantisme. Paris, mão — os primeiros trabalhos de Scott foram traduções
1923.) de baladas de Buerger e do Goetz von Berlichingen, de
A. Quiller-Couch: "Sir Walter Scott". (In: Stuãies in Literature,
vol. III. London, 1930.) Goethe — ou então do romance "gótico". O famoso Monk
J. Buchan: Sir Walter Scott. London, 1932. l.cwis foi o mentor literário dos seus começos; The Bride
J. A. Patten: Sir Walter Scott. London, 1932.
H. I. C. Grierson: Sir Walter Scott anã Sir Walter Scott Toãay. <>l l.nmmermoor é um dos espécimes mais bem feitos da­
London, 1932. quele género falso, ao qual ainda pertencem o melhor conto
I. T. riillhouse: The Waverley Novéis anã Their Critics. Minnea­ <le Scott, "Wandering Willie's Tale", e seu último romance
polis, 1936.
li. Croce: "Walter Scott". (In: Poesia e non. poesia. 2.a ed. Bari, uolavel, The Fair Maid of Perth. Por isso se nota em Scott
1936.) II apresentação artificial da Idade Média, as superficiali-
K. Muir: Scott anã Scotlanã. London, 1938. ■ IÍKII-S do enredo e da caracterização, tudo o que define o
II. Grierson, E. Muir, G. M. Young e S. C. Boberts: Sir Walter
Kcolt. l.vctures, 1940-1948. Edinburgh, 1950.
II. rcinson: Walter Scott. London, 1954.
I). Diiichcs: Literary Essays. London, 1956.
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V
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1727
I72(> OTTO MARIA CARPEAUX
menos para esse fim Kenilworth, da época da rainha Eliza-
iiiicii:..! com a q u a l a q u e l e s r o m a n c e s f o r a m e s p e r a d o s e
beth, The Abbot, romance em torno de Maria Stuart, e
lidou. Tara m a i o r d i v u l g a ç ã o d o s Waverley Novéis cria­
Woodstock, da época de Cromwell; aborrecem pela mono­
ram :;c os g a b i n e t e s d e l e i t u r a e as b i b l i o t e c a s c i r c u l a n t e s .
tonia dos processos novelísticos, as complicações e carac­
P e n n t l i u - s e a l e i t u r a às m o ç a s — a i n d a p o u c o a n t e s , " r o ­ teres convencionais, os- artifícios antiquados, certa falsidade
m a n c e " fora s i n ó n i m o d e " l i v r o i m o r a l " — e a t é às m e n i n a s romanesca; e são mais pretensiosos. Em compensação, The
c meninos. Com o tempo, Scott tornou-se literatura infantil, Fortunes of Nigel, romance escocês do começo do século
e h o j e n e m as c r i a n ç a s q u e r e m s a b e r d e Ivanhoe nem de X V I I , A Legcnd of Montrose, das lutas escocesas contra
Çuentin Durward. Só p o u c o s — e n ã o os p i o r e s — e n t r e Cromwell, The Bride of Lammermoor, que se passa na E s ­
os c r í t i c o s i n g l e s e s , c o n s i d e r a r a m s e m p r e S c o t t c o m o u m cócia por volta de 1700, Old Mortality, da Escócia de 1670,
dos m a i o r e s r o m a n c i s t a s d e t o d o s os t e m p o s ; e o a b b é B r e - são romances muito bons, sem esquecer também as mara­
m o n d , a p l i c a n d o os m e s m o s c r i t é r i o s c o n s e r v a d o r e s , esta­ vilhosas descrições da paisagem escocesa em The Antiquary.
b e l e c e u u m a c l a s s i f i c a ç ã o dos r o m a n c e s d e S c o t t , q u e c o n s ­ Vêm, depois, as obras-primas: Waverley, Guy Mannering
tituirá surpresa para muitos leitores modernos. E m nível e Rob Roy, a admirável trilogia da resistência escocesa
m a i s b a i x o , o c r í t i c o f r a n c ê s c o l o c o u Ivanhoe, o romance contra a Inglaterra no século X V I I I ; The Heart of Mi­
d o s c r u z a d o s , e Çuentin Durward, da época de L u í s X I e di othian e Redgauntlet, romances quase modernos, mas
Carlos o T e m e r á r i o : porém, merecem continuar a ser afinal independentes de oscilações da moda literária. Nota-
considerados como ótimos livros para meninos. Servem se logo que Scott não é propriamente medievalista: apenas
cinco dos seus muitos romances se passam na Idade Média,
J. G. Lockhart: The Life of Sir Walter Scott. 1938. (Edição em 5 e no mais Scott só parece medievalista porque a cena
vols., Boston, 1926.) preferida — a Escócia do século X V I I I — era um país
W. Bagehot: "The Waverley Novéis". (In: Literary Stuãies. 1879;
reedição, London, 1920.) muito atrasado, quase medieval. E quando Scott sai da
G. Saintsbury: Sir Walter Scott. London, 1897. Escócia, seja para a Inglaterra, seja para o Continente, logo
W. Freyl: The Influence of Gothic Literature 011 Sir Walter Scott.
Rostock, 1902. cai para o nível do romance de divertimento ou da leitura
A. Lang: Sir Walter Scott. London, 1906. infantil. O chamado medievalismo de Scott merece, pois,
C. A. Young: The Waverley Novéis. An Appreciation. London,
1907. uma análise mais atenta: provém do pré-romantismo ale­
H. Bremond: "Walter Scott". (In: Pour le romantisme. Paris, mão — os primeiros trabalhos de Scott foram traduções
1923.)
A. Quiller-Couch: "Sir Walter Scott". (In: Stuãies in Literature, de baladas de Buerger e do Goetz von Berlichingen, de
vol. III. London, 1930.) Goethe — ou então do romance "gótico". O famoso Monk
J. Buchan: Sir Walter Scott. London, 1932.
J. A. Patten: Sir Walter Scott. London, 1932. Lewis foi o mentor literário dos seus começos; The Bride
H. I. C. Grierson: Sir Walter Scott and Sir Walter Scott Today. of Lammermoor é um dos espécimes mais bem feitos da­
London, 1932.
I. T. Hillhouse: The Waverley Novéis and Their Critics. Minnea­ quele género falso, ao qual ainda pertencem o melhor conto
polis, 1936. de Scott, "Wandering Willie's Tale", e seu último romance
B. Croce: "Walter Scott". (In: Poesia e non. poesia. 2.a ed. Bari,
1936.) notável, The Fair Maid of Perth. Por isso se nota em Scott
E. Muir: Scott and Scotlanã. London, 1938. a apresentação artificial da Idade Média, as superficiali-
H. Grierson, E. Muir, G. M. Young e S. C. Roberts: Sir Walter dades do enredo e da caracterização, tudo o que define o
Scott Lectures, 1940-1948. Edinburgh, 1950.
H. Pearson: Walter Scott. London, 1954.
D. Daiches: Literary Essays. London, 1956.

m
1728 OITO MAIUA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1729

romance "gótico" e de divertimento. Daí resulta também "He is gone on the mountain,
o de Scott; e não é mero acaso o fato de muito dos seus H e is lost to the forest,
romances terem sido transformados em libretos de ópera. Like a summer-dried fountain
AH suas melhores obras salvam-se, porém, distinguindo-se W h e n our need was the s o r e s t . . .
da turba das imitações, pela nobreza da atitude literária, Like dew on the mountain,
por um intenso sentimento humano. Scott, afinal, é poeta. Like the foam on the river,
A poesia de Scott é considerada como a parte mais Like the bubble on the fountain,
fraca da sua Obra. Trata-se, porém, menos de julgá-la Thou art gone, and for ever!"
do que defini-la. Um poema narrativo como The Lady of
the Lake, com bonitas paisagens "românticas" e enredo Essa poesia ossiânica e aquela coleção de poesias populares
romanesco, define, já pelo título, todos os poemas e baladas lembram imediatamente o nome de Herder. Mas a fonte
de Scott: são autêntica "Lake Poetry". Não é possível principal do nacionalismo conservador escocês de Scott é
caracterizar romances por meio de citações, mas é possível a mesma do nacionalismo conservador inglês de Words­
caracterizar a essência "lakista" da obra inteira de Scott w o r t h : o tradicionalismo de Burke. Como discípulo de
por esses versos do Lay of the Last Minstral, evocação Burke, Scott era um "die hard", um tory arquiconservador,
das ruínas da abadia de Melrose: tradicionalista, patriarcalista, senhor de castelo, mas ligado
à gente humilde da sua terra pelo gosto do folclore e
"If thou would'st view fair Melrose aright, das tradições históricas. As tradições escocesas que Scott
Go visit it by the pale m o o n - l i g h t . . . defende são coisas do passado, mas não de um passado
W h e r e the broken arches are blank in night, remoto; ainda no século X V I I I , em que Scott nasceu, esta­
And each shafted oriel glimmers white; vam bem vivas, e só foram extintas pela revolução industrial
W h e n the cold light's uncertain power contra a qual os tories lutaram. Scott não é o poeta de
Streams on the ruined central t o w e r . . . exotismos históricos, mas o cronista de um país agonizante.
Then go — but go alone". É grande como romancista da Escócia do século X V I I I ;
The Heart of Midlothian chega a ser uma obra-prima de
É "romantismo" no sentido mais convencional do t e r m o ; romance dramático em torno de um grande conflito moral;
mas é, no entanto, autêntico, porque baseado em experiên­ mas torna-se fraco quando sai para a Inglaterra, o Conti­
cias pessoais. nente ou a Idade Média.
Scott é tão escocês como Wordsworth é inglês. Mar- A arte de Scott não tem nada em comum com o medie-
mion é mesmo o maior poema da paisagem escocesa, e a valismo artificial, puramente literário, dos pré-românticos.
Escócia — não se esqueça isso — é o país de Ossian. Scott Os seus romances baseiam-se em documentação cuidadosa,
aprendeu muito, organizando a sua preciosa coleção de c os maiores dentre eles, em documentação oral, ainda viva.
baladas escocesas, o Minstrelsy of the Scottish Border; e a Visto assim, Scott é realista. Não foi acidentalmente que
poesia ossiânica, tão convencional as mais das vezes, chegou escreveu as excelentes Lives of the Novelists, isto é, as
ti HCI poesia autêntica no canto fúnebre escocês "Coronach", vidas dos romancistas ingleses do século X V I I I , dos quais
tlc Scott: Smollett sobretudo o influenciou bastante. Scott não está
I7:»i OITO MARTA CARPEAUX HISTÓKIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1731

do to<l<> loi.i da tradição cervantina: Redgauntlet é um dievalismo ( 2 ) e motivo principal do sucesso enorme de
rumam <• de "contraste entre as aparências e a realidade"; Scott. E a repercussão foi imensa. Na Europa inteira, os
poin o romancista, por mais que lamentasse o fim da velha romances históricos brotaram como os cogumelos depois
Kriróci.i, reconheceu a irreversibilidade da evolução históri­ da chuva; e havia mais os poemas narrativos históricos,
ca. Si. Rorurís Well, admirado por Balzac e, inexplicavel­ baladas históricas, ciclos históricos ( :l ).
mente, não classificado por Bremond, já é um bom romance V/averley saiu, entre 1814 e 1817, cm 7 edições, e
realista. Em certo sentido, Scott é até mais realista do que The Antiquary, entre 181(5 c 1818, em 5 edições. Contudo
lodos os romancistas ingleses anteriores a H a r d y : o super- Scott não teve muitos imitadores nas próprias ilhas britâ­
íicialismo, muito censurado, na caracterização dos seus nicas. Ainsworth ( ' ) , escolhendo assuntos históricos sen­
personagens explica-se pelo cepticismo de Scott quanto à sacionais, dá uma meia-volta ao romance gótico; e G.P.R.
liberdade de ação dos homens; os seus personagens são fa­ James ( 5 ) já é conscientemente romancista para mulheres
talmente determinados pelo ambiente nacional e social da e menores, embora êle mesmo fosse personalidade interes­
Escócia; e esse determinismo fatalista, que tem suas origens sante, realmente romântica. Tornar-se o Scott da Irlanda
em Burke, levará ao determinismo naturalista de Zola. E católica foi a ambição de John Banim, no que foi acompa­
isso só não foi notado, porque está escondido no moralismo nhado pelo seu irmão Michael Banim ( ,; ) ; descrições dra­
típico do anglo-saxão Scott. máticas da luta irlandesa nos séculos X V I I e X V I I I têm
Como numa síntese dialética, Scott supera enfim o o fim confessado de excitar o sentimento nacionalista
seu romantismo conservador, patriarcalista: aquela mistura contra os ingleses. Bulwer já representará unia transição
de realismo e moralismo é bem burguesa. Scott, advogado burguesa; e o maior romance histórico pós-scottiano da
que comprou, com as rendas consideráveis dos seus roman­ Inglaterra, Barnahy Ruâge, de Dickens, tem já fins intei­
ces, um velho castelo, restaurando-o em estilo gótico, já ramente diferentes.
é um pseudo-aristocrata. Esse castelo de Abbotsford será
o modelo de inúmeros castelos e palacetes pseudogóticos,
de burgueses do século XIX, da época vitoriana. Scott 2) J. Ortega y Gasset: "Para un Museo romântico". (In: El Especta­
dor, vol. VI. Madrid, 1922.)
iniciou, em certo sentido, a era da literatura burguesa. Foi
o primeiro escritor que se tornou rico pela pena. Na bio­ 3) H. Butterfield: The Historical Novel Cambridge, 1924.
4) William Harrison Ainsworth, 1805-1882.
grafia monumental que John Gibson Lockhart lhe dedicou, The Tower of Lonãon (1840); Guy Fawkes (1841); Winãsor Castle
verdadeira epopeia de uma atividade literária industriali­ (1843).
S. M. Ellis: William Harrison Ainsworth anã his Frienãs. 2 vols
zada, o dinheiro desempenha papel preponderante, e nem London, 1911.
sequer falta, no fim de longa cooperação do autor com o 5) George Payne Rainsford James, 1799-1860.
editor, a falência. Richelieu (1829) ; Darnley (1830); Agnes Sorel (1853).
S. M. Ellis: The Solitary Horseman, or the Life anã Aãventures of
Neste sentido, Scott é o romancista da nova burguesia. George Payne Rainsford James. London, 1927.
0) John Banim, 1798-1842.
Aos burgueses vitoriosos, imitando assiduamente os trajes Tales of the 0'Hara Family (1825-1826); The Boyne Water (1826).
c costumes da aristocracia vencida, Scott forneceu os Michael Banim, 1796-1874
melhores modelos medievais; eis o motivo burguês do rae- The Croppy (1828).
H. S. Krans: Irish Life in Irish Fiction. New York, 1903.
Orro HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1733
17.'52 MARIA CARPEAUX

Intenso, mas efémera, foi a repercussão na França ( T ) : ^e a paisagem sóbria e melancólica dos lagos e pinheirais
depois de CiiK/Mars, de Vigny, é Notre-Dame de Paris, de Brandemburgo encontrou, em Alexis, o seu primeiro e
de Victor llii^o, a obra-prima do scottismo pitoresco, ao último poeta. Mas a incompreensão quanto à natureza do
plisso qne a descrição das lutas dos royalistas bretãos contra género era tão grande que esses romances notáveis mal
n Revolução, em Les Chouans, de Balzac, é como que um foram lidos fora daquela região, ao passo que Alexis deveu
eco do torismo de Scott. Os franceses compreenderam grande sucesso às suas primeiras obras, anónimas, sobre
sobretudo os aspectos pitorescos do género; transformaram assuntos escoceses, nas quais imitara tão habilmente o es­
romances históricos em libretos de "grands operas", com tilo do modelo, que passaram por traduções de obras des­
decorações suntuosas — óperas de Auber, Meyerbeer, Ha- conhecidas de Scott. Apreciaram-se os contos históricos,
lévy — e depois chegaram à arqueologia exata de Mérimée meio góticos, de E. T. A. Hoffmann, mas em geral o género
e à arqueologia ainda mais exata de Flaubert. tomou a direção "romance de divertimento". O popularís-
simo Lichtenstein, de Hauff ("'), tem pelo menos o mérito
Em nenhum país foi Scott tão lido e admirado como
de evocar para sempre outra paisagem regional, a da Suévia,
na Alemanha ( 8 ) ; mas não foi um amor muito feliz, se
mas não passa de um romance para a juventude; Hauff,
excetuarmos Alexis ( 9 ), talvez o maior dos discípulos de
dotado de imaginação vivíssima, deixou ótimos contos de
Scott no Continente. Foi só êle, entre todos, que com­
fadas. Heine teve a ambição de escrever o romance histó­
preendeu o verdadeiro sentido do género: a biografia de
rico dos judeus medievais; infelizmente, Der Rabbi von
uma nação — e escreveu a biografia da Prússia, ou antes,
Bacharach ficou como fragmento magnífico; e o enfadonho
do Brandemburgo, dos dias pitorescos da Idade Média até
Jude (1827), de Karl Spíndler, pôde substituí-lo no favor
os dias da humilhação napoleônica em 1806, revelando mais
do público, mas não na literatura. O fim foi o "medieva-
uma intenção bem scottiana, a da pedagogia nacional, ad­
lismo" de Scheffel ( 1T ), meras'mascaradas carnavalescas de
vertência contra os perigos morais que precedem a derrota.
burgueses liberais do século X I X ; o sentimentalismo estu­
Alexis é um narrador pouco hábil e um estilista lamentável,
dantil do poema narrativo Der Trompeter von Saekkingen,
mas tem alma de poeta: conseguiu criar tradições lendárias
e o humorismo engraçado, se bem que anacrónico, de
em torno de bairros e ruas da cidade prosaica de Berlim;
Ekkehard, romance do convento de St. Gallen na época
das invasões húngaras do século X, entusiasmaram o pú­
blico — foram os dois maiores sucessos de livraria da
7) L. Maigron: Le roman historique à 1'époque romantique. Essai sur literatura alemã no século XIX. Os romances históricos
Vinjluence de Walter Scott. 2.a ed. Paris, 1912.
8) F. W. Bachmann: Some German Imitators of Walter Scott. Chica­
de Freytag já pertencem à época do nacionalismo.
go, 1933.
W. Thomas: "Walter Scott et la littérature allemande". (In: Mé-
langes Henri Lichteriberger. Paris, 1934.)
10) Wilhelm Hauff, 1802-1827.
0) Willibaldi Alexis (pseudónimo de Georg Wilhelm Haering, 1798- Lichtenstein (1826); Maerchenalmanach (1826); Phantasien im
1871. Bremer Ratskeller (1827).
Walladmor (1824) ; Schloss Avalon (1827); Der Rolaná von Berlin H. Hofmann: Wilhelm Hauff. Darstellung seines Werãeganges.
(1H40); Der falsche Woldemar (1842); Die Hosen ães Herrn von Frankfurt, 1902.
Ilrcdow (1846); Ruhe ist ãie erste Buergerpflicht (1852) etc.
Hdtctio por L. Lorenz, 6 vols., Leipzig, 1912. 11) Josef Viktor Scheffel, 1826-1886.
Jl. A. Korff: Scott unã Alexis. Heidelberg, 1907. Der Trompeter von Saekkingen (1854); Ekkehard (1857) etc.
Th. Fontane: "Alexis". (In: Aus dem Nachlass. Berlin, 1908.) J. Proelss: Scheffels Leben unã Dichten. 2.a ed. Berlin, 1902.
I7:ÍI TTO MAUIA CAUPIÍATJX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1735

O sucesso de Scott na Alemanha é um fenómeno de ao fertilíssimo Van Lennep ( 1 5 ), burguês cheio de conde­
psicologia coletiva. Leituras de grandes façanhas heróicas corações tradicionais e dinheiro moderno; o seu melhor
110 passado distraíram uma gente meio entorpecida pela romance, Ferdinmid Iíuyck, não é medievalista; passa-se,
atiuosTcrn cinzenta e "idílica" da Restauração absolutista. caracteristicamente, na burguesia de Amsterdã do século
A mesma atmosfera e o mesmo entusiasmo scottiano se X V I I I . A posteridade prefere as obras de madame Bos-
observa na Escandinávia e nos Países Baixos. Leitura de boom-Toussaint ( : i ; ), menos por motivo das descrições ar­
colegiais são hoje os romances históricos do dinamarquês queologicamente exalas, tais como quadros holandeses
Ingemann ( , 2 ) , que também foi poeta "lakista", terno e vivificados, do que pelo zelo regilioso da escritora calvi­
devoto; as pessoas mais sérias entusiasmavam-se, então, nista; ela mesma participou dos opiniões e crenças dos
pelos seus reis medievais, que Erandes comparou justa­ seus personagens cio século X V l I , conseguindo assim uma
mente aos reis de papel colorido nas cartas de jogar. Os autenticidade histórica surpreendente.
romances históricos do seu patrício Hauch, poeta sério,
Não existe relação entre os valores literários e os
aproxirnam-se de problemas mais modernos; En polsk
efeitos sociais: o sucesso não é prova de valor; a medio­
ÍPiTiilie trata da revolução polonesa, e Robert Fulton dos
cridade não exclui consequências das mais benéficas. Re-
destinos de um inventor. O Ingemann sueco foi Wilhelm
velou-se isso muito bem no caso de Conscience ( 1 7 ),
Frcdrik Palmblad, autor de Aurora Koenigsmark (1846/
K! flamengo de origem francesa, que escreveu um romance
18-19) ( ), ao passo que outro sueco, o brilhante jornalista
histórico bastante fraco e criou, com isso, uma literatura
Crusenstolpe ( 1:, " A ), se serviu do género para fins dife­
e uma nacionalidade. Com efeito, a literatura flamenga
rentes: tratando como "história" a história do seu próprio
tempo, escreveu romances-panfletos vigorosos contra o rei
reacionário Cari Johan. Diferenças assim, e não só de valor 15) Jacob Van Lennep, 1802-1868.
Die Pleegzoon (1833); De Roas van Dekama (1836); Onze Voorou-
literário, também se verificam entre os romancistas histó­ ãers (1838-1845); Ferdinanã Huyck (1840) etc, etc.
ricos de língua holandesa ( 1 4 ). O sucesso nacional coube M. F. Van Lennep: Het leven van mr. Jacob Van Lennep. 2.a ed.
2 vols. Amsterdam, 1909.
16) Anna Louisa Gertruida Bosboom-Toussaint, 1812-1886.
De Graj van Leycester in Nederlanã (1845-1846); De vrouwen uit
het Leycestersche Tijãvak (1849-1850); De Delftsche Wonderãok-
l'J) Bernhard Severin Ingemann, 1789-1862. ter (1870).
Morgenscmge (1837) ; Holger Danske (1839); — Valdemar ãen I. Dyserinck: Anna Louisa Gertruida Bosboom-Toussaint, levens
Store (1824); Valdemar Sejr (1826) ; Erik Menveãs Barnãom — en karakterschets. Haag, 1911.
(1833); Kong Erik (1833); Dronning Margrethe (1836) etc. J. Prinsen:í)e ouãe en ãe nieuwe historische Roman in Neãer-
A. Galster: Ingemann's historiske romaner og digte. Kjoebcnhavn, land. Leiden, 1919.
1922.
F. Roenning: Bernhard Severin Ingemann. Kjoebenhavn, 1927. 17) Hendrick Conscience, 1812-1883.
De Leeuw van Vlaenãeren (1838); Jacob van Artevelãe (1849);
13) 10. Lindstroem: Walter Scott och ãen historiska romanen och De Boerenkrijg (1853) ; De Burgemeester van Luik (1866) ; — Hoe
vovellen i Sverige intill 1850. Goeteborg, 1925. men Schilder wordt (1841); Grootmoeãer (1846); Baes Gansen-
13 Ai Maiiiius Jacob Crusenstolpe, 1795-1865. ãonck (1850) ; De Loteling (1850) ; De arme Edelman (1851) etc.
Morianen (1844); Cari Johan (1846); Tessin (1850). Edição em 41 vols., Antwerpen, 1879-1881; muitas edições avulsas.
I. Almítlt: Magnus Jacob Crusenstolpe. 2 vols. Stockholm, P. de Mont: Henãrik Conscience, zijn leven en zijne werken.
18110-1831. Haarlem, 1883.
111 II. Vif.Kink: Scott anã His Influence ora Dutch Literature. Zwolle, M. Antheunis: Henãrik Conscience. Antwerpen, 1912.
E. de Bock: Henãrik Conscience en ãe Opkomst van ãe Vlaams-
che Romantiek. Antwerpen, 1920.

t
1736 OITO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1737

estava caluda havia mais de dois séculos, porque a própria' política e social em que se encontrava; só o caso espanhol
nacionalidade cessara de existir: a Bélgica, separada dos parece algo diferente.
Países-Baixos protestantes pela Contra-Reforma, e admi­ O tipo pitoresco encontra-se entre os russos e tchecos.
nistrada desde então pelos espanhóis e austríacos, que não» O romance histórico russo começou com o notável Júri
prestavam atenção à civilização nacional, tinha-se inteira­ Miloslavsk, de Zagoskin ( l 7 - A ), que foi livro de moda e
mente afrancesado, a ponto de a língua flamenga, quase teve a honra de ser citado por um personagem no Jnspetor
idêntica à holandesa, só ser considerada como gíria de Geral, de Gogol; e chegou à verdadeira arte em Alexei
criados e camponeses; e o novo reino da Bélgica, criado Konstantinovitch Tolstoi ( I H ), que também foi dramaturgo
em 1830, era um país oficialmente francês. Primeiro, o de mérito; o seu Príncipe Serebrianni é um dos melhores
romantismo alemão, vizinho, chamou a atenção para a Idade- romances scottianos, panorama impressionante da época
Média, quando o país ainda não estava afrancesado. Nos do tzar Ivan o Terrível. Basta rápida menção dos scottianos
historiadores franceses, Conscience encontrou descrições tchecos: Prokop Chocholousek (Os Templários na Boémia,
vivas das lutas das cidades flamengas medievais contra a 1843), e Josef Kajetan Tyl (O Decreto de Kuttenberg,
aristocracia feudal francesa, e descreveu-as, por sua vez, 1841), este último já com tendência patriótica.
no Leeuw van Vlaanderen (O Leão de Flandres), romance Em nenhum outro país europeu surgiram tantos ro­
convencional à pior maneira de Walter Scott e escrito em mances históricos como na Espanha ( 1 9 ) ; mas é marcada
língua impura, mas cheio de entusiasmo juvenil, contagioso. a preponderância do tipo pitoresco. Ponto de partida foi
Feia leitura desse livro, o povo flamengo recuperou a sua a poesia do duque de Rivas ( 2 0 ). Esse aristocrata aderira
consciência nacional, tornando-se nação. Mais tarde, Cons­
cience escreveu coisa melhor, idílios realistas da vida de 17 A) Michel Nikolaievitch Zagoskin, 1792-1853.
gente miúda na Flandres; esta literatura também lhe serviu Júri Miloslawski ou Os russos no ano ãe 1612 (1829).
para glorificar as virtudes do passado. Conscience acabou D. Jazykov: Zagoskin. Moscou, 1902.
18) Alexei Konstantinovitch Tolstoi, 1817-1875.
como "poet laureate" do partido católico-nacionalista entre Príncipe Serebrianni (1861); — Trilogia dramática: A morte de
os flamengos. Ivan, o Terrível, Tzar Fedor Ivanovitch, Tzar Boris (1866--1870).
Edição por A. Bykov, 4 vols., Petersburgo, 1907-1908.
Já é possível agora distinguir variedades diferentes S. A. Vengerov: Alexei Tolstoi. Petersburgo, 1907 (em língua
russa).
do género que W a l t e r Scott criara: uma variedade que A. Lirondelle: Le poete Alexis Tolstoi. Vhomme et Voeuvre. Pa­
aprecia só ou principalmente o aspecto pitoresco do pas­ ris, 1913.
sado; outra, que, por vários motivos, prefere o passado ao 19) G. Zeller: La novela histórica en Espana. New York, 1938.
presente; mais outra, que se serve do passado para construir 20) Angel Saavedra, duque de Eivas, 1791-1865.
El faro ãe Malta (1834); El Moro Exposito (1834); Don Álvaro ó
uma árvore genealógica de nobreza, para gente nova; uma La Fuerza dei Sino (1835); Romances históricos (1841); El de­
quarta variedade, que pretende renovar moralmente e espi­ sengano en un sueno (1842).
Edição dos Romances por C. Rivas Cherif (Clásicos Castellanos,
ritualmente a nacionalidade, lembrando-lhe as grandezas vols. IX e XII, Madrid, 1911-1912).
do passado; e enfim a última, parecida, que pretende dar Edição das tragédias em Obras completas, vol. IV, Madrid, 1855.
Azorín: Rivas y Larra. Madrid, 1916.
exemplos do passado para incentivar as lutas patrióticas E. A. Peers: Rivas anã Romanticism in Spain. London, 1923.
atuais. O último caso é o de Conscience. Em geral, cada G. Boussagol: Angel ãe Saavedra, ãuc de Rivas. Sa vie, son oeu-
uma das nações escolheu certo tipo, conforme a situação vre poétique. Paris, 1926.
N. González Ruiz: El Duque de Rivas. 2.a edição. Madrid, 1943.
i?:ut Oiro MA IH A CARPEATJX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1739

no movimento liberal contra o absolutismo, sendo exilado Rivas, já suspeito, literariamente, pela popularidade da sua
o W-vando uma vida cheia de aventuras perigosas, como o poesia, contribuiu para torná-lo antipático aos intelectuais;
IUTÓÍ de um poema de Byron; êle mesmo se julgou Byron serviu de exemplo para demonstrar o papel reacionário do
espanhol, escrevendo dois poemas narrativos, no estilo do romantismo pitoresco e a esterilidade literária da reação.
Famoso inglês, El íaro de Malta e El Moro Exposito, cujo Azorín tratou-o com desprezo, como mero colorista. Hoje,
preTácio, manifesto teórico do romantismo espanhol, foi o duque de Rivas é considerado como personagem principal
escrito pelo político e literato liberal António Maria Alcalá do romantismo espanhol. Poucos aprovarão a opinião de
Galiano. El MOTO Exposito, poema sobre lendas medievais, Menéndez y Pelayo, comparando Don Álvaro às melhores
é a primeira obra "histórica" do movimento; mas trata a peças do século X V I I ; mas El desengano en un sueiío
história espanhola como mero espetáculo pitoresco, como é uma verdadeira tragédia, a única do teatro moderno que
objeto de exotismo visto por um estrangeiro. A verdadeira possa ser comparada às de Calderón.
nacionalização deu-se no palco. Sobre o teatro nacional A literatura do duque de Rivas enquadra-se na ten­
espanhol do século X V I I pesava ainda a condenação pelos dência geral na Espanha de 1830 ( 20 ~ A ). Os romances his­
classicistas, contra os quais lutaram o erudito imigrante tóricos da época são todos só "pitorescos" e todos inferiores,
alemão Nicolás Boehl de Faber e o próprio Alcalá Galiano. embora se encontrassem entre os autores nomes tão grandes
Rivas também pretendeu reabilitar Calderón; mas, querendo como o do poeta Espronceda (Sancho Saldaria o el caste-
imitá-lo, só chegou a imitar o teatro romântico de Vítor llano de Cuéllar, 1834) e o do crítico Larra (El doncel de
H u g o : Don Álvaro o La Fuerza dei Sino é um dramalhão don Enrique el doliente, 1834). Não são melhores do que
tremendo, que foi depois oportunamente transformado em as obras do pioneiro do género, Ramón López Soler (Los
libreto da ópera La Forza dei Destino, de Verdi. Rivas bandos de Castilla o el Caballero dei Cisne, 1830; La
continuava nos aspectos pitorescos do romantismo; tinha catedral de Sevilla, 1834), e pouco superiores à sublitera-
também talento considerável para a pintura. Em vez de tura do polígrafo popularíssimo Manuel Fernández y
escrever o grande romance da história espanhola, à maneira González (Men Rodríguez de Sanabria, 1853; El cocinero
de Walter Scott, fragmentou o assunto, revivificando a de Su Majestad, 1857), com o qual o género acabou. Qua­
poesia nacional das "romanças". Os seus Romances Histó­ lidades poéticas podem-se elogiar no Senor de Bembibre,
ricos estão entre as obras mais lidas, mais populares da de Gil y Carrasco ( 21 ) ; este foi mesmo principalmente poeta,
literatura espanhola; toda a gente na Espanha conhece capaz de evocar o silêncio melancólico nas catedrais e em
El Conde de Villamediana, Un castellano leal e El mayor torno dos castelos abandonados da Espanha. O autêntico
desengano, reconstruções admiráveis do passado nacional,
brilhantes em todas as cores, embora haja entre essas pedras
preciosas, segundo a observação de Juan Ramón Jiménez, 20 A) A. Peers: History of the Romantic Movement in Spain. Cam­
bridge, 1939.
várias falsas.
21) Enrique Gil y Carrasco, 1815-1846.
Depois, o duque de Rivas mudou muito. No drama El seiíor de Bembibre (1844) ; Poesias líricas (1883).
El desengano en un sueíío exprimiu um pessimismo ines­ D. G. Samuels: Enrique Gil y Carrasco, a Stuãy in Spanish Ro-
manticism. New York, 1939.
perado. Saiu do partido liberal, tornou-se ministro conser­ J. M. Goy: Enrique Gil y Carrasco. Su vida y obra literária.
vador e abandonou a literatura. A apostasia política de I.eón, 1944.
H. Gullón: Cisne sin lago. Madrid, 1951.
1710 OITO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA L I T E R A T U R A OCIDENTAL 1741

c (Minidc r o m a n c e h i s t ó r i c o e s p a n h o l n ã o foi e s c r i t o ; t a l v e z e s p a n h o l : La conjuración de Venecia, t r a g é d i a q u e ele j u l ­


porque morreu cedo demais outro poeta, o catalão P i ­ gava calderoniana e que não passou de hugoniana. O p r o ­
f e r r e r ("■'). F o i u m p o e t a a u t ê n t i c o , a u t o r da Canción de g r a m a d a e v o l u ç ã o d o t e a t r o e s p a n h o l foi t r a ç a d o p o r
i:i Primavera, na qual a crítica m o d e r n a descobriu uma G a r c i a G u t i e r r e z ( 2 I ) : ° s e u famoso Trovador, famosíssi­
antecipação da música verbal de Ruben Darío. A s baladas m o , d e p o i s , p e l a m ú s i c a d e V e r d i , a i n d a é obra d e s e n t i ­
d e P i f e r r e r r e v e l a m o seu m e d i e v a l i s m o c a t ó l i c o ; e n o m e s ­ m e n t a l i s m o a f r a n c e s a d o , ao passo q u e as p e ç a s s e g u i n t e s
m o s e n t i d o o p o e t a d e s c r e v e u , n o s Recuerdos y bellezas se a p r o x i m a m cada vez m a i s d o v e r d a d e i r o m o d e l o n a c i o n a l .
de Espana, os m o n u m e n t o s g ó t i c o s d a p á t r i a , c o m a q u e l e N e s t e j á e s t a v a m m o l d a d o s Los amantes de Teruel, de
misto de erudição arqueológica e sensibilidade poética que H a r t z e n b u s c h ( 2 r i ), o b r a q u e e n t r o u d e f i n i t i v a m e n t e n o
teria dado um bom romance histórico. repertório nacional. É que Hartzenbusch, mais técnico do
Desse modo, o género acabou como começara: na poe­ teatro e do verso do que d r a m a t u r g o criador, soube imitar
sia p i t o r e s c a o ú l t i m o r o m â n t i c o e s p a n h o l s e r á Z o r r i l l a . o grande teatro nacional, que conhecia profundamente, e
A p e n a s c o m a d i f e r e n ç a q u e a g o r a se c o n h e c i a m e l h o r o que revivificou através das edições da "Biblioteca de A u ­
p a s s a d o e s p a n h o l . O m é r i t o era d o t e a t r o . O s r o m â n t i c o s t o r e s E s p a n o l e s " . D a l i foi só u m p a s s o p a r a o t e a t r o d e
espanhóis imitam assiduamente o teatro de Dumas Pai e Zorrilla.
V í t o r H u g o : t o m a m - l h e e m p r e s t a d o s os c o n f l i t o s e s p e - J o s é Z o r r i l l a ( 2 6 ) foi, n a E s p a n h a , o p o e t a m a i s i d o l a ­
t a c u l a r e s , a e l o q u ê n c i a t o r r e n c i a l , os e f e i t o s m e l o d r a m á t i c o s t r a d o d o s é c u l o X I X , e caiu d e p o i s n u m d e s p r e z o d o q u a l
e, e m b o r a n e m s e m p r e , a t e n d ê n c i a l i b e r a l . N u m a h i s t ó r i a n ã o m a i s se r e s t a b e l e c e u . I m p r o v i s a d o r d a p a l a v r a p u n ­
d o r o m a n t i s m o e u r o p e u , i n s p i r a d o e x c l u s i v a m e n t e em c r i ­ g e n t e e d o v e r s o fácil, i m i t o u v i r t u o s a m e n t e t u d o a q u i l o
t é r i o s e s t i l í s t i c o s , o l u g a r d o Trovador e d o s Amantes de d e q u e gostava, e o s e u g o s t o n ã o foi d o s m e l h o r e s . A
Temei seria perto de Hernâni e Marion de Lorme. O
E s p a n h a "romântica" que o encantara era a mesma dos
intuito dos dramaturgos românticos espanhóis, até dos
viajantes estrangeiros, uma E s p a n h a de grandes inquisi-
l i b e r a i s , era, n o e n t a n t o , d i f e r e n t e , a n t e s n a c i o n a l i s t a . M a r -
t í n e z d e la R o s a ( 2 3 ) , e x i l a d o l i b e r a l , c o m e ç a r a c o m u m
Édipo; c o n v e r t i d o ao r o m a n t i s m o , d e u o Hernâni d o t e a t r o 24) António Garcia Gutierrez, 1813-1884.
El Trovador (1836); Simón Bocanegra (1843); Venganza catala-
na (1864); Juan Lorenzo (1865).
N. B. Adams: The Romantic Dramas of Garcia Gutierrez. New
22) Pablo Piferrer, 1818-1848. York, 1922.
Recuerdos y bellezas de Espana (1839); Composiciones poéticas 25) Juan Eugénio Hartzenbusch, 1806-1880.
(1851). Los amantes de Teruel (1837).
J. Sarda: Necrologia de don Pau Piferrer. Barcelona, 1879. E. Hartzenbusch: Bibliografia de Hartzenbusch. Madrid, 1900.
Azorin: "Piferrer y los clásicos". (In: Los valores literários. Ma­ E. Heinermann: Cecília Boehl de Faber y Eugénio Hartzenbusch*
Madrid, 1944.
drid, 1913.)
23) Francisco Martínez de la Rosa, 1787-1862. (Cf. "O Fim do Ro­ 20) José Zorrilla y Moral, 1817-1893.
mantismo", nota 47.) Cantos dei Trovador (1841); Obras completas (vols. I, II; 1847);
Granada (1848); — El Zavatero y el rey (1841); El punal ãel
í:dipo (1833); La conjuración de Venecia (1834).
Godo (1842); Don Juan Tenório (1844); Traidor, inconfeso y
M Menéndez y Pelayo: "Martínez de la Rosa". (In: Estúdios de
mártir (1849).
critica literária, vol. I, 2.a ed. Madrid, 1893.) Edição (incompleta) por I. Ovejas, 3 vols., Paris, 1847-1851.
.1 Knrrailh: Un homme ã'état espagnol: Martínez de la Rosa. N. A. Cortes: Zorilla, su vida y sus obras. 3 vols. Valladolid, 1916-
I'siris, 1930. 1020 (2.a edição, 1943).
li. <le Sosa: Martínez de la Rosa, político y poeta. Madrid, 1934.
1742 Oiro MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1743

dorcH, lidíilf;os e Carmens. Essa Espanha falsificada apa­ à vida cinzenta as aparências de um estilo artístico. O
rece fimi lodo o brilho, nas suas famosas leyendas, das quais conflito entre essas duas tendências era agudo na E s p a n h a :
nlf.iim.-iH — "A buen juez mejor testigo", "El desafio dei os mesmos homens que reabilitaram a literatura nacional
tlinblo", "justicias dei rey Don P e d r o " — são das poesias do passado eram os chefes do liberalismo que pretendeu
mais famosas da literatura espanhola. Enfim, Zorrilla bateu europeizar a Espanha; a vida do duque de Rivas é, por
todos os recordes de popularidade com a tragédia Don assim dizer, aquele conflito vivido. O género "romance"
Juan Tenório, que continua até hoje invariavelmente re­ não se prestava para a representação dessa ambiguidade
presentada, em todas as cidades e cidadezinhas da Espanha, de ideias; desta surgiu, no entanto, uma poesia. Mas a
no dia de finados; a obra tornou-se um pedaço da vida do plena representação do conflito só foi possível no género
povo espanhol. Basta isso para explicar o desprezo unânime em que as ideias se defrontam, no teatro.
dbs intelectuais, pelo poeta. A reabilitação está, porém, a A variedade saudosista do romance histórico, aquela
caminho. Não será fácil "salvar" a poesia de Zorrilla, que não olha para a Idade Média remota e sim para estados
embora seja algo melhor do que a sua fama. Mas aquelas sociais imediatamente anteriores, é a que está mais perto
poesias difamadas pertencem quase todas à mocidade do do próprio Walter Scott. Esse género de romance parece
poeta precoce. Depois, dedicou-se mais ao teatro. Don Juan tremendamente reacionário; mas teve o seu maior repre­
Tenório, com todos os seus defeitos, deve ser e é uma sentante, depois de Scott, na América, em Cooper ( 2 T ). A
peça que corresponde plenamente a algo na alma espa­ afirmação pode parecer paradoxal aos que consideram o
nhola; e isso é tanto mais admirável quanto é certo que grande romancista americano só como criador do "india-
Zorrilla se serviu de modelos franceses — do Don Juan nismo"; mas o paradoxo desaparece, quando se analisa
de Marana, de Dumas Pai e das Ames du Purgatoire, de Mé- aquele saudosismo. Com efeito, Cooper era saudosista, mas
rimée — sem cair nos galicismos teatrais dos seus prede­ nem sempre da mesma maneira, de modo que os contem­
cessores. Trabalho perfeito de nacionalização. Outra peça porâneos e a posteridade não conseguiram unificar os as­
de Zorrilla, El zapatero y el rey, é superior ao modelo, El pectos diferentes da sua obra. Para os contemporâneos,
montanés Juan Pascual, de Hoz y Mota. Enfim, Zorrilla
tratou, em Traidor, inconfeso y mártir, a lenda do rei D. 27) James Fenimore Cooper, 1789-1851.
Sebastião, e superou não apenas o modelo imediato, o Pas- The Spy (1821); The Pioneers (1823); The Pilot (1824); The Last
telero de Madrigal, de Cuéllar, mas também peças de as­ of the Mohicans (1826); The Prairie (1827); The Monikins
(1835); The American Democrat (1838); The Chronicles of
sunto parecido como Perkin Warbeck, de John Ford, e Cooperstown (1838) ; Homeward Bound (1838); Home as Found
Demetrius de Schiller — nomes significativos. Traidor, (1838); The Pathfinder (1840) ; The Deerslayer (1841); The
Redskins (1846); — The History of the Navy of the United Sta­
inconfeso y mártir é um caso singular de reconstituição tes of America (1839).
integral do estilo de um dos grandes teatros nacionais. Fdicão em 32 vols., New York, 1900.
T. B. Lounsbury: James Fenimore Cooper. Boston, 1883.
O caso do "romantismo histórico" espanhol é altamente M. E. Phillips: James Fenimore Cooper. New York, 1912.
instrutivo para compreender a natureza e significação do M. M. Gibb: Le roman de Bas-ãe-Cuir. Paris, 1927.
H. W. Boynton: James Fenimore Cooper. New York, 1931.
jjC-ncro de Walter Scott. É um género de intenções am­ R. E. Spiller: James Fenimore Cooper, Critic of his Times. New
bíguas: serviu às forças reacionárias para evocação sau- York, 1931.
J Grossman: James Fenimore Cooper. New York, 1949.
doHisln do passado e serviu aos novos burgueses para dar H. N. Smith: Virgin Land. Cambridge, 1950.
1744 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRTA DA LITERATURA OCIDENTAL 1745

Coopcr foi sobretudo o romancista do Spy, primeiro ro­ rente. Essa atitude revelou-se nos seus últimos romances
mance marítimo, à maneira de Walter Scott, e o historiador que excitaram então, nos Estados Unidos, discussões vio­
da marinha de guerra dos Estados Unidos. Só nessa quali­ lentas, incompatibilizando o escritor com o seu ambiente;
dade lhe retribuíram elogios entusiasmados; e, com efeito, depois, foram inteiramente esquecidos em favor do Cooper
Coopcr soube evocar com força poética os feitos dos "romancista infantil", e só em nosso tempo, a redescoberta
marujos na guerra da Independência, com poesia evocativa, daquela literatura tornou possível a apreciação justa de
porque a grande época da marinha americana, então, já Cooper. Voltando das suas viagens europeias, Cooper se
pertencia ao passado. O espírito de bravura já tinha saído encontrou desambientado: uma nova democracia, turbulen­
dos portos comercializados, refugiando-se para o interior, ta e indisciplinada, enchia as ruas da cidade: eram os
a "fronteira" entre a civilização e os índios selvagens. eleitores do presidente general Jackson, que fora o herói
Cooper é o romancista da "fronteira", no sentido em que da "fronteira". A "fronteira" corrompera a democracia,
T u r n e r a definiu como motor da expansão democrática fornecendo aos grandes comerciantes e banqueiros de Nova
do país para o Oeste. Mas Cooper, pertencendo a família York as massas violentas de eleitores, que esmagaram a
de "terratenientes" meio feudais, não viu com agrado essa "verdadeira democracia" rural do interior. De maneira
expansão. As suas simpatias voltaram-se para o índio e o confusa, Cooper misturou, em romances-panfletos de valor
pioneiro, expulsos pela civilização urbana e pelo policia­ literário duvidoso e grande interesse histórico, os ideais
mento da "fronteira"; e assim o ciclo dos romances do pio­ da democracia jeffersoniana e o saudosismo dos terrate­
neiro Natty Bumppo transformou-se em "Amadis" america­ nientes. Tornou-se, então, o Walter Scott autêntico da
no, novo romance de cavalaria, forte na evocação poética, América: o saudosista de uma situação social irremedia­
fraco no que diz respeito à caracterização dos personagens. velmente passada. Afinal, Cooper, com todos os seus de­
feitos, foi um grande escritor e um homem notável.
Nada há mais parecido com o medievalismo convencional
de Walter Scott; mas nenhum processo novelístico é mais O "indianismo" de Cooper não pode, pois, ser inter­
capaz de idealizar realidades sociais pouco ideais e já pretado como anseio de conseguir para o burguês americano
passadas. As Leatherstocking Tales são incomparáveis um pedigree nobre, idealizando os indígenas pré-colombia-
como leitura para gente que ainda não conhece a realidade nos. Esse anseio encontra-se antes em romances indianistas
social: para a mocidade. É esse o papel de Cooper na de escritores latino-americanos. No Sul do Continente, as
história literária do século X I X , como criador do "india- "elites" que tinham conquistado a Independência das novas
nismo". repúblicas, não eram de descendência puramente europeia;
Sobre o valor desses romances ouviu-se, porém, uma procuravam uma nobreza não-européia como predecessora
voz divergente, a de Balzac: "Se Cooper tivesse possuído ideal. Eis por que o brasileiro José de Alencar ( 2 8 ), político
a capacidade de caracterizar personagens, teria dito a últi­
ma palavra da a r t e " ; e comparou Cooper a Homero. A
grande simpatia de Balzac por Cooper baseia-se em afini­ 28) José de Alencar, 1829-1877.
O Guarani (1857); Iracema (1865) ; As minas ãe Prata (1865), etc.
dades secretas: Balzac era reacionário político e social, Edição das Obras de ficção, 16 vols., Rio de Janeiro, 1351.
defendendo a ordem monárquica e aristocrática contra a Tristão de Araripe Júnior: José ãe Alencar. 2.a edição. Rio de
Janeiro, 1894.
novn burguesia; e a atitude de Cooper não era muito dife- A. Motta: José ãe Alencar. Rio de Janeiro, 1921.
1746 OITO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1747

conservador, autor do notável romance scottiano As Minas cultos; era o porta-voz literário do Sul dos Estados Unidos,
Í/C Pr;it;i, idealizou em O Guarani e Iracema os índios da sua em que o governo de uma elite altamente civilizada se
terra; c significativo ter o mesmo Alencar pretendido rom­ baseava na escravidão dos pretos; enquanto a abolição já
per as relações literárias e linguísticas do Brasil com Por­ se tornara reivindicação da poderosa burguesia, menos culta,
tugal; mas Alencar é, incontestavelmente, o primeiro gran­ dos Estados do Norte. Nos últimos anos, quando a crise
de prosador do Brasil; seu papel histórico foi o de criar económica nos Estados Unidos favoreceu um movimento
no Brasil uma personalidade literária bem definida. É o "agrarista" entre os intelectuais do "Old South", dá-se
que não conseguiu o indianismo hispano-americano. O maior atenção a Simms, que foi o escritor mais importante
poema épico Tabaré, do uruguayo Zorrilla de San Mar­ daquela "aristocracia" escravocrata.
tin ( 2 0 ), obra na qual se misturam elementos byronianos Nos países meio feudais da Europa revela o romance
com o mais autêntico romantismo espanhol. As glórias do histórico mais a tendência antiburguesa de ressaltar as
passado asteca do México não foram romanceadas no pró­ "liberdades" medievais das classes rurais. Ainda entre a
prio México, mas pela poetisa cubana Gertrudis Gómez de variedade pitoresca e a variedade tendenciosa do romance
Avellaneda ( 3 0 ), mais um poeta hispano-americano que deve histórico situa-se Rebelo da Silva ( 3 2 ), historiador nos
ao entusiasmo hispanista do grande crítico Menéndez y romances e romancista nas obras históricas, escritor híbrido
Pelayo elogios exagerados; o seu romance não mereceu da palavra fácil, que uma vez, porém, no conto históri­
essa atenção. co "Última Corrida de Touros em Salvaterra", encontrou
Os discípulos de Walter Scott são, quase todos, con­ algo como um estilo pessoal. Rebelo da Silva pertence a
servadores como êle; mas é um conservantismo moderado, uma corrente característica do romance histórico portu­
menos de orgulho aristocrático do que de preconceitos da guês: obras que pretendem lembrar as glórias do passado
classe média, admirando a beleza do passado, porque recea­ para promover reformas atuais da pátria decadente. E n t r e
vam a decadência moral pela invasão das ideias avançadas. esses romancistas encontra-se a maior figura literária do
O romance histórico torna-se reacionário, no próprio sen­ romantismo português, Almeida Garrett, com o Arco de
tido da palavra, quando é expressão de uma classe dirigente SanfAna (1845), e sobretudo a maior figura humana do
ainda poderosa e já ameaçada. Os romances do americano do mesmo movimento: Herculano ( 3 3 ). Eis um autêntico
Simms ( 31 ) eram fortes até à brutalidade, meio da "fron­
teira", meio "góticos". Simms era natural da Carolina do 32) Luís Augusto Rebelo da Silva, 1822-1871.
Última corrida de touros em Salvaterra (1848) ; A mocidade de
Sul, do Estado dos escravocratas mais ferozes e mais D. João V (1852); História de Portugal nos séculos XVII e XVIII
' (1860-1871).
33) Alexandre Herculano de Carvalho e Araújo, 1810-1877.
2!)) Cf. "Romantismos de oposição", nota 34. A voz do profeta (1836); Harpa do crente (1838); Eurico, o Pres­
30) Onrtrudis Gómez de Avellaneda, 1814-1873. bítero (1844); O Monje de Cister (1848); História de Portugal
Poesias líricas (1841); Guatimorzin, último emperador de Mejico (1846-1853); Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portu­
(1IM0). gal (1854-1859); Opúsculos (1872-1908).
V.. Colarelo y Mori: La Avellaneda y sus obras. Madrid, 1930. A. de Serpa Pimentel: Alexandre Herculano e o Seu Tempo. Lis­
31) Wllliam Gilmore Simms, 1806-1870. boa, 1881.
(iiiy Uwcrs (1834); The Yemassee (1835); The Partisan (1835); A. Fortes: Alexandre Herculano. Lisboa, 1910.
Woodtiraft (1852), etc. José Agostinho: Alexandre Herculano. Porto, 1910.
W. I'. Trcnt: William Gilmore Simms. New York, 1892. A. Forjaz de Sampaio: Alexandre Herculano. Lisboa, 1924.
1748 Oiro MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1749

grande homem. A poesia da sua mocidade, inspirada no Grossi ( 35 ) deveu a glória efémera a um poema narrativo
cristianismo sentimental de Lamartine, já não ignora o sentimental, Ildegonda; e a sua "epopeia nacional", I lom-
catolicismo democrático de Lamennais; e os dois grandes bardi alia prima crociata, tornou-se nacionalista só na versão
romances históricos, Eurico, o Presbítero e O Monge de dramática, musicada por Verdi. O seu romance Marco
Cister tratam de conflitos religiosos. São fracos como Visconti continua no sentimentalismo: narrando os sofri­
romances, mas fortes como documentos de uma grande mentos dos italianos em séculos passados, pretende sugerir
erudição histórica, que produziu, depois, a primeira história simpatias pelos italianos sofredores do século XIX. Marco
crítica de Portugal na Idade Média e uma impressionante Visconti foi chamado, e com razão, caricatura da grande
história da Inquisição portuguesa. Herculano era um cató­ obra do amigo íntimo de Grossi: dos Promessi sposi, de
lico liberal e um liberal conservador. O povo simples de Manzoni. Mas aí, uma intenção parecida realizou-se sob
Portugal — camponeses trabalhadores e infelizes — era o a influência de conceito diferente da história; motivo pelo
seu grande amor, e por esse povo lutou contra reacionários qual o romance de Manzoni se distingue de todos os outros
egoístas e pseudoliberais ignorantes. Caráter duro, indo­ romances históricos, pertencendo a um outro mundo lite­
mável, incompatibilizou-se deste modo com todos, e o gran­ rário.
de erudito acabou retirando-se para os campos, tornando-se A corrente principal do romance histórico italiano era
mesmo um camponês como aqueles que amava. Depois, o patriótica sans phrase e de sentido algo simplista. O grande
romance histórico português chegou logo a ser veículo de revolucionário e político republicano Guerrazzi (3B) es­
tendências: tendências políticas no Mário (1868), de An­ creveu de propósito para excitar as paixões; daí o grande
tónio da Silva Gaio, tendências sociais nos romances histó­ sucesso do Assedio di Firenze; e daí os artifícios da cons­
ricos de Camilo Castelo Branco. trução, os desleixos do estilo, o caráter "gótico" dessa lite­
ratura romanesca, que De Sanctis, embora simpatizando
O romance histórico a serviço de aspirações nacionais
com a tendência política de Guerrazzi, censurou implacà-
e políticas é caso frequentíssimo entre as nações que, na
velmente. Menos violento, nos romances e na política, foi
primeira metade do século XIX, ainda tinham que lutar
o liberal D'Azeglio ( 3 7 ), que depois dos famosos "casi di
pela liberdade nacional. Aí está o caso da Itália. Os come­
Romagna", em 1846, deixou de escrever história para fazer
ços, no entanto, foram menos agressivos do que sentimen­
história, tornando-se, ao lado de Cavour, um dos constru-
tais ( 3 4 ). Icastello di Trezzo (1827), de Giovanni Battista
Bazzoni, ao qual parece caber a prioridade, e Sibilla Oda-
35) Tommaso Grossi, 1791-1853.
leta (1827), de Cario Varese, são produtos inofensivos. Ildegonda (1820); I Lombardi alia prima crociata (1821-1826);
Marco Visconti (1834).
G. Brognoligo: Tommaso Grossi. Messina, 1916.
36) Francesco Domenico Guerrazzi, 1804-1873.
C. Portugal Ribeiro: Alexandre Herculano, a Sua Vida e a Sua La battaglia di Benevento (1827); VAsseãio di Firenze (1836);
Obra. 2 vols. Lisboa Lisboa, 1933-1934. Beatrice Cenci (1854).
Vit. Nemésio: A Mocidade de Herculano, até a Volta ão Exílio. G. Busolli: Francesco Domenico Guerrazzi. Parma, 1912.
2 vols. Lisboa, 1937. P. Miniati: Francesco Domenico Guerrazzi. Roma, 1927.
,J Burradas de Carvalho: As Ideias Políticas e Sociais de Ale­ 37) Massimo Taparelli D'Azeglio, 1798-1866.
xandre. Herculano. Lisboa, 1949. Ettore Fieramosca (1833) ; Niccolò de Lapi (1841); Gli ultimi casi
IM) (1. Ar.noli: CAi albori dei romanzo slorico in Itália e i primi imi- di Romagna (1846); I miei ricordi (1867).
luloti di Waller Scott. Piacenza, 1906. N. Vaccalluzzo: Massimo D'Azeglio. Roma, 1925.
1750 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1751

tores do reino da Itália. O seu melhor romance histórico O tipo patriótico do romance histórico é o mais fre­
é o que conta só verdade histórica: as suas memórias, I quente na Europa oriental. E não deu os melhores resul­
miei ricoreli. Na mesma forma autobiográfica saiu, enfim, tados. O húngaro Jósika (:1Í)), embora traduzido para muitas
aquela que é, depois dos Promessi sposi, a obra-prima do línguas, não passa de um romancista de leitura fácil; Kemé-
romance histórico italiano: as Confessioni de Nievo ( 3 8 ). nyi (;i9-A) pertence à mentalidade de uma outra época; e
"Nacqui veneziano ai 18 ottobre 1775, giorno deli' Evan­ Jókai ( 4 0 ), muito mais famoso e considerado como escritor
gelista Luca, e morro, per la grazia di Dio, italiano quando nacional da Hungria, só é um Dumas père magiar, um herói
vorrà quella Provvidenza che governa misteriosamente il da subliteratura. Até mesmo o célebre Taras Bulha, de
mondo" — assim começa aquele livro maravilhoso, infeliz­ Gogol, o grito de batalha dos ucranianos contra os polo­
mente pouco conhecido no estrangeiro. É a autobiografia neses, não é a melhor das obras do grandíssimo escritor.
imaginária de Cario Altoviti, que nasceu cidadão da Repú­ Enfim, os poloneses: entre eles, o romance histórico tomou
blica de Veneza, passou a mocidade no pitoresco castelo feição de verdadeira arma da nacionalidade, lutando pela
de Fratta — ali, Nievo conta a sua própria mocidade — viu existência ( 4 1 ) ; mas ali também prevaleceram os malogros,
Revolução francesa e guerras napoleónicas, liberdade efé­ e os sucessos foram dos menos admissíveis. Os chefes do
mera e Restauração austríaca, e acabou no exílio dos patrio­ patriotismo polonês eram, na grande maioria, aristocratas
tas italianos, em Londres, continuando a esperar, apesar da católicos e conservadores, às vezes tão tremendamente rea-
derrota de Novara. A vida de Cario Altoviti, que morreu cionários como Rzewuski ( 4 2 ), que se confessou discípulo
com oitenta anos de idade, no exílio, e a vida de Ippolito de De Maistre; a essa atitude doutrinária deveu o sucesso
Nievo, poeta patriótico, que encontrou com trinta anos a
morte pela pátria, soldado no corpo expedicionário de Ga­
ribaldi, confundem-se inextricàvelmente. Mas não é um 39) Nikolaus Jósika, 1794-1864.
Abafi (1836); O último Báthori (1837); Os boémios na Hungria
livro patético. É pitoresco, sentimental e humorístico ao (1839); Zrinyi, o poeta (1843).
mesmo tempo; patético só é o pressentimento da morte A. Szaak: A vida e a obra de Jósika. Budapest, 1891 (em língua
prematura: Cario Altoviti não viu as obras da "Provvi­ húngara).
L. Dézsi: O barão Nikolaus Jósika. Budapest, 1916 (em língua
denza", a libertação da Itália, e Nievo só a viu no momento húngara).
de morrer. Seria exagero imperdoável a comparação, fre­ 39 A) Cf. "Do realismo ao naturalismo", nota 10.
quente na Itália, de Nievo com Gogol; mas é preciso admitir 40) Maurus Jókai, 1825-1904.
Um nabob húngaro (1853); Zoltán Kárpáthy (1855); O novo se­
que, no género "romance histórico", não existe nada de nhor (1863); Diamantes pretos (1870); Um homem de ouro
comparáveis às Confessioni di un ottuagenario. (1875); A dama de olhos côr do mar (1900), etc, etc.
Edição nacional, 100 vols., Budapest, 1898.
F. Zsigmond: Jókai. Budapest, 1924 (em língua húngara).
:m> Ippolito Nievo, 1831-1861. 41) I. Krzyzanowski: "História do walter-scottismo polonês". (In:
Lucciole (1858); Amori Garibaldini (1860); Le confessioni di un Przeglad Wspólcz, 130, 1933.) (Em língua polonesa.)
oltuar/enario (1867). 42) Henryk Rzewuski, 1791-1866.
Kdição das Confessioni por G. Gatta, Napoli, 1914; Edição das As memórias do trinchante-mór Soplica (1839); Novembro (1845-
Obras por S. Romagnoli, Milano, 1952. 1846).
I). Míintovani: II poeta soldato Ippolito Nievo. Milano, 1900. St Tarnowski: Henryk Rzewuski. Kraków, 1887 (em língua po­
I1'. Kiitlorcllo: Ippolito Nievo. Udine, 1922. lonesa) .
M. Kilourusso: Uumorismo di Ippolito Nievo. Pisa, 1928. Z. Szewczykowski: Os romances históricos de Henryk Rze­
I1'. Ullvi: /( romanticismo di Ippolito Nievo. Roma, 1947. wuski. Warszawa, 1922 (em língua polonesa).

t
17.12 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1753

HCU romance As memórias do Trinchante-mor Soplica, pano- X V I I ; essa vasta trilogia histórica merece respeito; até
runin da vida aristocrática polonesa no século X V I I I ; e é capaz de inspirar entusiasmo. Tampouco a tendência
quando o vento virou, Rzewuski acabou no ostracismo; conservadora prejudicou, antes ao contrário, aprofundou
mas nem o sucesso nem o ostracismo podem modificar o os romances nos quais Sienkiewicz descreveu a sociedade
lalo de que o Soplica é um livro alimentado da melhor polonesa moderna, sobretudo em Sem dogma, a vida inútil
seiva da terra polonesa, um dos livros mais deliciosos das dos aristocratas esteticistas no estrangeiro; é sua obra-
literaturas eslavas. Kraszewski X 4 3 ), aristocrata que- se prima. De modo que se pode afirmar: o romancista Sien­
converteu ao liberalismo, polígralo fertilíssimo e famosís­ kiewicz, bastante apreciável, foi estragado pelo êxito de
simo, já não foi mais do que o Jókai polonês. E o sucesso Quo vadis?
mundial de Sienkiewicz ( 44 ) é um "caso". Çuo vadis? não
é um romance arqueológico; a esse respeito é inferior ao Sienkiewicz deveu o sucesso internacional às velhas
modelo imediato, Os Últimos Dias de Pompeia, de Bulwer. simpatias pelos poloneses, nação aristocrática, e à tendência
O historismo do romance de Sienkiewicz é cinematográfico. católica, que lhe abriu as salas de leitura dos colégios. Não
Contribuiu para o sucesso o equívoco de ser aquilo con­ pôde obter o mesmo sucesso o Sienkiewicz de uma outra
siderado como "literatura católica"; mas ninguém incluiria nação eslava, composta democraticamente de camponeses
Çuo vadis? na categoria de Manzoni e Claudel. O cato­ e artesãos, e portadora de uma velha tendência herética,
licismo de Sienkiewick foi, sem dúvida, sincero; mas o dos hussitas: o tcheco Alois Jirasek ( 44 " A ). Em vastos
seu catolicismo literário não passa de um pretexto. O romances panorâmicos, cuja elaboração exata precisou de
martírio dos primeiros cristãos serviu apenas de símbolo muitos anos, Jirasek descreveu as lutas épicas da sua nação
ao patriota polonês para evocar simpatias pelos mártires contra toda a Europa medieval reunida, no tempo das guer­
da nação polonesa. No mesmo espírito e em melhor estilo, ras hussíticas; a época da reação contra-reformista, no
à maneira de Walter Scott, Sienkiewicz já havia narrado século X V I I ; e a recuperação da consciência nacional, entre
as guerras dos poloneses contra os ucranianos no século 1780 e 1848. Jirasek contribuiu mais do que qualquer outro
escritor para a "renascença" nacional dos tchecos e eslo­
vacos. A crítica literária, porém, não deixou de censurar,
43) Jozef Ignacy Kraszewski, 1812-1887.
Hrabina Cosei (1874); Bruehl (1875); Morituri (1874-1875); Re- nesse ídolo da nação, certa falta de arte da composição e
surrecturi (1874-1875) etc, etc. desleixo estilístico; preferiu-lhe a arte mais fina de Zik-
P. Chmielowski: Kraszewski. Lwów, 1888 (em língua polonesa).
44) Henryk Sienkiewicz, 1846-1916.
Com fogo e ferro (1884) ; Dilúvio (1886); Pan Wolodyjowski
(1887) ; Sem dogma (1891) ; A família Polaniecki (1895); Quo
Vadis? (1896); Os cruzados (1900). 44 A) Alois Jirasek, 1851-1930.
P Chmielowski: Henryk Sienkiewicz à luz ãa crítica. Lwów, Cabeças de cão (1884) ; F. L. Vek (1888-1905); Contra todos
1901 (cm língua polonesa). (1893); Em nossa terra (1896-1902); Trevas (1915), etc.
M. M. Gardner: Henryk Sienkiewicz, the Patriot Novelist of Po- Edição completa, 47 vols., Praha, 1931-1939.
lund. London, 1926. J. Fryc: A vida e as obras de Alois Jirasek. Praha, 1921 (em
K. Wojcicchowski: Henryk Sienkiewicz. 3.a edição. Warszawa, língua tcheca).
l!).'l.r> (cm língua polonesa). H. Jelinek: Alois Jirasek. Praha, 1930 (em língua tcheca).
W. I.cdnicki: Henryk Sienkiewicz (tradução para o inglês). New Zd. Nejedly: Quatro estudos sobre Alois Jirasek. Praha, 1949
Y o r k , 1048. (em língua tcheca).

t
1754 OITO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1755

mimei Winler ( 4 I " B ), cujas novelas são evocações'admiráveis pitorescos da corte da Borgonha, por Barante ( 4 5 ), que se
da velha Praga. confessou discípulo de Scott. Mais ou menos, essa mesma
maneira encontra-se em historiadores tão diferentes como
A multiplicidade das repercussões do romance de Wal­
Thierry e Michelet, Carlyle e Macaulay, e até num espírito
ter Scott não permite a interpretação do género como ex­
clássico, latino, como o florentino Gino Capponi ( 4 6 ), re­
pressão de evasionismo sans phrase. Nem o próprio W a l t e r
fundindo as crónicas de Compagni e Villani e revigorando
Scott é apenas evasionista. Ou antes, o termo "evasão" é
o classicismo historiográfico de Maquiavel. Ao desejo
ambíguo, compreendendo tendências divergentes; às vezes,
de colorir a história, de narrá-la como uma "história", ce­
a evasão para fora de uma determinada realidade leva a
dem os liberais mais cinzentos como Mignet C 7 ) e Gui-
outras realidades, bem reais. Na verdade, atrás da multi­
zot( 4 8 ). Até mesmo Thiers ( 4 "), burguês por excelência,
plicidade daquelas repercussões escondem-se tantos outros
aspirando à regularidade clássica dos historiadores antigos,
conceitos diferentes da História, conclusões diferentes do
narrou a história de Napoleão como uma grande epopeia; e
conceito de Herder e Burke, de que o romance histórico
as obras hitoriográficas de Lamartine são romances de
nasceu. As diferenças aparecem claramente na própria his­
verdade. J á a escolha dos assuntos — revoluções, abdica­
toriografia, que deve a Scott impulsos decisivos.
ções, traições, execuções — revela o estilo da época; são
O conservantismo medievalista não é a única diferença os temas preferidos de pintores, como Delaroche. Em
nem sequer a principal entre a nova historiografia do século primeira linha, porém, a maneira colorida serviu aos con-
X I X e a historiografia da Ilustração. A diferença essen­
cial reside no "senso histórico" que Viço e Herder susci­
taram e ao qual Burke tinha conferido uma tendência polí­ 45) Guillaume Prosper Brugière, baron de Barante, 1782-1866.
tica: o senso pelas diferenças essenciais entre as épocas, Histoire des dues de Bourgogne de la maison de Valois (1824-
1826).
a substituição do desprezo racionalista dos "séculos es­ Sobre Barante: artigos na Revue des Deux Mondes por C.-A.
curos" pelo amor compreensivo das belezas diferentes do Sainte-Beuve (1843) e por F. Guizot (1867).
passado. Walter Scott foi mesmo a expressão novelística 46) Gino Capponi, 1792-1876.
Storia delia Repubblica ãi Firenze (começada em 1849, publ. em
do senso histórico, embora a psicologia, nos seus romances, 1875).
nos pareça hoje bastante anacrónica. A primeira repercus­ A. Reumont: Gino Capponi. Gotha, 1880 (trad. ital., 2 vols.. Fi­
renze, 1881).
são de Scott na historiografia foi uma nova maneira de G. Gentile: Giwo Capponi e la cultura toscana nel secolo deci-
narrar as coisas, a ponto de tratar a história como se fosse monono. Firenze, 1922.
romance histórico. É típica a reconstituição dos tempos 47) François Mignet, 1796-1884.
Histoire de la révolution française (1824); Introduction à Vhis-
toire de la suecession d'Espagne (1835); António Pérez et Phi-
lippe II (1845); Histoire de Marie Stuart (1851); Charles-Quint,
son abdication, son séjour et sa mort au monastère de Yuste
41 TJ) Zikmund Winter, 1846-1912. (1852-1854).
Imagens da velha Praga (1889); Contos históricos (1904); Mes­ E. Petit: François Mignet. Paris, 1889.
tre Ctnnpanus (1909). 48) Cf. "Fim do Romantismo", nota 22.
I''. X. Salda: Novidades. Praha, 1912 (em língua tcheca).
A. Novnk: A Alma e o Povo. Praha, 1936 (em língua tcheca). 49) Cf. "Fim do Romantismo", nota 23.
1756 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1757

servadores, aos medievalistas, como Raumer ( 5 0 ). Até por Por mais conservadores que sejam, os historiógrafos
volta de 1820, a casa imperial dos Hohenstaufen, dos séculos "scottianos" são, até certo ponto, progressistas, e sê-lo-
XI e X I I , fora apenas objeto de estudos eruditos de poucos iam mesmo se preconizassem apenas o progresso "orgânico",
especialistas; Raumer reconstituiu os anais do Império lento e espontâneo, que o próprio Burke admitira; são
medieval com tanto entusiasmo pelas "glórias alemãs na todos, direta ou indiretamente, discípulos de Herder, no
Itália" que a história dos Hohenstaufen se transformou em qual aprenderam o "senso histórico", o senso das diferenças
lenda popular do povo alemão, fonte de numerosos romances essenciais entre as épocas históricas. Esta conquista da
e tragédias da época. A tendência medievalista torna-se historiografia romântica era, porém, continuamente amea­
violenta, agressiva, em Carlyle, enquanto no seu discípulo çada pela ideia do progresso, produzindo julgamentos ana­
Froude ( 51 ) prevalece o medievalismo catolizante e o prazer crónicos, "atualizando" o passado; na filosofia de Hegel,
do artista em reconstituir o passado; o representante auto­ aparecia toda a evolução passada como caminho de prepa­
rizado do catolicismo entre esses medievalistas é Monta- ração para o presente; e entre os historiadores hegelianos
lembert, narrando a vida de santos e monges alemães e encontrar-se-á de novo a arrogância "modernista" dos his­
franceses, defendendo a tese de que a civilização moderna toriógrafos do século X V I I I . Contra esse falso hegelianis-
é obra da Igreja. O exemplo de Michelet, discípulo de mo surgiu, protestando, a grande figura de Ranke ( 5 3 ).
Scott e democrata, revelará que o medievalismo não está O seu ponto de partida também fora Scott: a leitura de
fatalmente ligado a tendências reacionárias; e o que o Quentin Durward impressionou-o tanto como tinha impres­
democrata Michelet fêz pela Idade Média francesa foi sionado Barante; mas, depois, a leitura da fonte do romance
justamente o mesmo que fêz pela Idade Média flamenga de Commynes chamou a sua atenção para a diferença entre
o católico Kervyin de Lettenhove ( 5 2 ), baseando-se nas ficção e verdade; e assim se formou o seu conceito da
mesmas crónicas pitorescas de Froissart. Mas o barão belga, historiografia: seu objetivo foi dizer "o que aconteceu
filho de uma nação de pintores e comerciantes, já dá aten­ realmente". A serviço desse ideal criou o método crítico, a
ção devida às lutas de classe nas cidades medievais; apren­ pesquisa nos arquivos e a apreciação cautelosa da fidedig­
deu isso na historiografia de Thierry, que foi romântico nidade dos documentos. Os interesses estéticos, tão vivos
pelo estilo, mas diferente pelo intuito: é o pai da histo­ ainda no seu trabalho sobre a poesia italiana da Renascença,
riografia política do liberalismo. foram renegados. A ideia do progresso foi eliminada, afir-
mando-se que "todas as épocas estavam e estão igualmente

60) Friedrich Ludwig Georg von Raumer, 1781-1873.


Geschichte der Hohenstaufen und ihrer Zeit (1823-1825). 63) Leopold von Ranke, 1795-1836.
W. Friedrich: Friedrich von Raumer ais Historiker und Politiker. Fuersten und Voelker von Suedeuropa im 16. und 17. Jahrhunãert
Leipzig, 1929. (1827); Zur Geschichte der italienischen Poesie (1837); Die roe-
51) Jnmes Anthony Froude, 1818-1894. mischen Paepste (1834-1839); Deutsche Geschichte im Zeitalter
Hi.st.ori/ of England from the Fali of Wolsey (1856-1869). der Reformation (1839-1847); Franzoesische Geschichte, vornehm-
A. Cooper: James Anthony Froude. London, 1907. lich im 16. und 17. Jahrhunãert (1852-1861); Englische Geschichte
im 16. und 17. Jahrhunãert (1859-1868), etc.
r>l!) JoKoph-Marie, baron de Kervyn de Lettenhove, 1817-1891. II. Hclmolt: Leopold von Ranke. Leipzig, 1907.
lll.il.oirc de Flandre (1847-1855). ]■:. Simon: Ranke und Hegel. Berlin, 1923.
K Kervyn de Lettenhove: Le baron Kervyn de Lettenhove. Bru- Th. H. von Laue: Leopold Ranke: The Formative Years. Prin-
Kivi. 11)00. cclon, 1950.
l7. r »B OTTO M A B I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1759

perto de Deus". Ranke é o precursor da historiografia posi- nante das crueldades e infâmias de uma época de deca­
tiviHta, de coleção de "fatos sem ideias". Neste sentido, dência: um romance histórico, à maneira de Walter Scott,
n3o pertence à época do romantismo; pertence a ela, no nas cores ardentes de um quadro de Delacroix. Thierry
entanto, pelo fato de se ter iludido a respeito da sua própria não romanceou a história; mas à apuração dos fatos se-
teoria. A sua maneira de narrar os fatos, êle mesmo a ca­ guiu-se logo a explicação pela analogia entre a decadência
racterizou, falando de Guicciardini: " . . . assim como merovíngia e a decadência pré-revolucionária; a substitui­
Ariosto no Orlando Furioso, o historiador tem na mão todos ção da dinastia merovíngia pelos parvenus carolíngios e a
os fios, começando aqui, interrompendo-se, voltando-se para substituição da monarquia francesa pela ditadura napoleô-
outro assunto e retomando o primeiro, mas não com a nica. Resultou uma teoria da história francesa: os fun­
mesma liberdade do poeta". As obras de Ranke também damentos da nação foram lançados, quando os gauleses
são grandes romances, com a diferença que a lei da com­ latinizados foram subjugados pelos invasores germânicos;
posição não é ditada pela imaginação, e sim pela documen­ e desde então, a história da França é uma luta entre as
tação — esta seria a testemunha da realidade. Quanto ao duas raças, a aristocracia de origem germânica e a burguesia
conceito "realidade", porém, Ranke esqueceu-se da crítica de origem gaulesa. Thierry, liberal e historiador do "Tiers
epistemológica de Kant, hipostasiando o próprio processo état", é um precursor da interpretação marxista da história
como luta de classes.
histórico como última realidade acessível ao espírito hu­
mano. Nisso, Ranke é romântico; e no solo do seu positi­ A sucessão imediata da historiografia romântica caberá
vismo avant la lettre crescerão as mais diversas teorias à historiografia política dos liberais Thierry, Guizot, Ma-
daquele processo, as hipotéticas "leis" da História. caulay e Grevinus que interpretarão as guerras e revoluções
A historiografia romântica não fora capaz da impar­ do passado como lutas internas entre governantes e oposi­
cialidade olímpica de Ranke; desejara ela reconstituir o cionistas; pensavam constantemente na Casa dos Comuns,
passado, segundo o exemplo de W a l t e r Scott; mas, revivi- reformada pela lei de 1832, e na Chambre des Deputes do
ficando a história, atualizou-a, modernizou-a, interpretan- rei Louis-Philippe.
do-a conforme as experiências políticas dos próprios his­ "Historiografia política" tem outro sentido, naciona­
toriadores e da sua época. Thierry ( B4 ), o historiador lista e romântico, entre nações que ainda não haviam pas­
romântico por excelência, é ao mesmo tempo o pai da his­ sado pela revolução industrial: aí, a historiografia desem­
toriografia política do liberalismo. Os seus Rêcits des penha o papel político de definir a nacionalidade — o que
temps mérovingiens apresentam um panorama impressio- constitui uma das funções do romantismo. Quando o poeta
romântico, meio místico, Erik Gustaf Geijer ( 55 ) escreveu

54) Augustin Thierry, 1795-1856. (Cf. "O Fim do Romantismo", nota 55) Erik Gustaf Geijer, 1783-1847.
85.) Svenska folkets historia (1832-1836); Minnen (1834); Skaldes-
Histoire de la conquête de VAngleterre par les Normanãs (1825); tycken (1835).
Récita des temps mérovingiens (1840); Essai sur 1'histoire de la Edição das Obras completas por J. Landquist, 13 vols., Stockholm,
formation et des progrès âu tiers état (1853). 1923-1931.
A. Augustin-Thierry: Augustin Thierry d'après sa correspondan- J. Landquist: Erik Gustaf Geijer, hans levnad och verk. Sto­
ce et ses papiers. Paris, 1922. ckholm, 1924.
(1. Augustin-Thierry: Les récits des temps mérovingiens. Paris, E. Norberg: Geijers vaeg fran romantik till realism. Stockholm,
1929. 1944.
1760 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1761

a história da Suécia, não saíram "anais do reino" e sim gressismo nacional de Herder e o conservantismo evolucio­
Svenska folkets historia, a "História do povo sueco"; não nista de Burke não coincidem inteiramente; e onde não foi
lhe importou a nação em sentido político, como centro dos possível separá-los posteriormente os conflitos íntimos não
acontecimentos históricos, mas o povo em sentido étnico, tardaram em se revelar. De origem herderiana é, princi­
do qual emana o caráter nacional. O historiador Pa- palmente, o medievalismo pitoresco, entusiasmado pelas
lacky (BG) viu-se mesmo obrigado a seguir o mesmo pro­ catedrais e castelos: Raumer inspirou uma infinidade de
cesso, porque o povo tcheco não tinha, havia séculos, exis­ romances e tragédias em torno dos Hohenstaufen; e Ba-
tência política independente; aí, a realidade histórica rante inspirou novamente o gosto pelos aspectos pitorescos
estava apenas nas ideias de cuja realização a Providência
da Idade Média, em Hugo, Vigny, Dumas père. Na linha
teria encarregado aquele povo. A doutrina da "missão his­
do pensamento herderiano também está a expansão geográ­
tórica" de que cada povo é encarregado pela Providência,
fica da literatura, a descoberta da Itália e da Espanha;
encontrou repercussão profunda entre os eslavos, todos eles
depois, a conquista literária dos sete mares; o fim do género
mais ou menos no mesmo caso dos tchecos, excetuados os
W a l t e r Scott será o romance marítimo e de aventuras, ao
russos. Na Rússia, país independente e poderoso, já havia
passo que os elementos "baixos" do género, herança do
uma "ideia realizada": a da autocracia tzarista. Celebrou-a
Karamsin ( B7 ). Fora poeta sentimental e ficcionista pré- romance "gótico", engendraram uma renascença do "ro­
romântico. Transformou-se em prosador de grande estilo mantismo vulgar", romance de ladrões generosos e de es­
retórico na sua "epopeia do tzarismo": não é a história pectros e assombrações; até o romance policial. De origem
do "povo" russo, mas a do seu "Império". Ali se revela a burkiana é, principalmente, o medievalismo conservador;
filiação estranha entre o torysmo saudosista de Walter mas a mistura com elementos herderianos, que também se
Scott e o orgulho racial do futuro pan-eslavismo. evidencia no zelo folclorista da época, leva a conflitos irre-
solúveis, como no católico Manzoni, ou a misticismos nacio­
Na historiografia romântica distinguem-se duas ten­ nalistas, dos escandinavos e sobretudo dos eslavos.
dências diferentes, inspiradas na mesma fonte. Em geral,
a Europa conheceu Herder através de B u r k e ; mas o pro- A obra-prima do novo medievalismo pitoresco, à ma­
neira francesa, é Notre-Dame de Paris, de Hugo ( B 8 ): com
toda a falsidade "gótica" do enredo e dos personagens, é
56) Frantisek Palacky, 1798-1876. uma das maiores visões históricas que já se imaginaram;
Geschichte von Boehmen (1836-1867). um Ensor iria ilustrar esse infernal sonho de febre da
J. Pekar: Frantisek Palacky. Praha, 1912 (em língua tcheca).
O. Fischer: As ideias e a obra de Palacky. 2 vols. Praha, 1926- história. O personagem principal é, como em uma gravura
1927 (em língua tcheca). de Ensor, a massa popular em torno da catedral, ideia que
67) Nikolai Michailovitch Karamsin, 1765-1826. (Cf. "O Pré-Roman- parece de Rousseau e provém, na verdade, de Herder. Na
tisino", nota 89).
A pobre Lisa (1792); História do Império Russo (1818). historiografia de Michelet voltará esse conceito democrá­
Kdiçilo das Obras por V. V. Sipovski, Petersburgo, 1919. tico da História. À literatura ou subliteratura bastavam os
M. P. Pogodin: Biografia de Karamsin. 2 vols. Moscou, 1865 (em
IIIIIMIII russa).
V V. Sipovski: Nikolai Michailovitch Karamsin. Pettersburg,
1111(11 (cm língua russa).
li. lliicchtold: Karamsin's Weg zur Geschichte. Zuerich, 1946. 58) Cf. "Romantismos de Oposição", nota 71.
TT > , V/BA OCIDÍ:NTAL 1763
I7(>2 OTTO M A R I A CARPEAUX
HISTORIA DA \ ^ ^

elementos romanescos como em Dumas père ( 5 9 ). Embora i A T.-v assaram o M e d i t e r r â n e o e


logo se cansaram da Ital. „-*S „e „ .
certos críticos ingleses teimem em encontrar valores lite­
, . . A ,.. Utra tos f ranc eses preferiram
rários na sua obra, admirando-lhe a "imaginação fecunda", descobriram a Argélia, o ,.*.„■£* ~ ,
s
Us l i t e ^ Ay±il X V I I I a Ven Espanha apre-
Dumas père pertence à literatura só como fenómeno histó­ atravessar os Pireneus. k , ■*0 >* u es ^re
H>secu^ Inquisição- H v quisitão
rico. O seu romantismo degenerado é, na verdade, pré- senta-se como o país atn.s , A p ,oc,.
• ,- t> 1 , . *do ^D bíblias protestantes na
romântico, "gótico"; nada mais "gótico^jio que a sua peça inglês Borrow ( 60 ), disu .^3*' An - A
La Tour de Nesles; e nada mais "gótico" também, do que v . ,. , . "fibuio^ í g o e conhe c e d o r d ° s ciga-
os enredos dos seus romances. Este "medievalismo pito­ Espanha catohcíssima, gi« , „.<i í & n^^ &

resco" não é herderiano, é ante-herderiano e apenas pito­ . , _ , ^ ' i d e a í ' ' .r nenhuifl3 C a r m e n ; na
nos, ainda nao chegou s u&6 „_ „
resco; assim como a fantástica massa popular em Notre- ,. - , . ' c o n h ^ ; a a j u d o u . o um senso de
Dame de Paris, não tem nada com o povo francês da penetração da alma popb -ix\e _, A , .
1,r a m
realidade. Na obra de Dumas père evidencia-se a tendência u ;• , j - ■ «eus livros «ma das l e i t u -
humor fieldinguiano quet +nA ■ „,„ ,-- ~
evasionista do medievalismo pitoresco; e êle mesmo indicou . , ,. . ,. 'az d o ^ s sa . Humonsn10 J a "ao se
ras mais deliciosas em liri. . ^ 1 . Í_
um dos endereços principais da viagem de evasão pós-ro- .toa i n £ ,0s românti^ f r a nceses,
encontra na Espanha pit, „ O ,a ,
mântica a falsa Espanha de seu Don Juan de Marana. . -*■ , J °resca Hugo e Pms P e re no
b
nas tragedias melodrama,. *e •?„„ ,
A "lei" do evasionismo romanesco é a permanente ex­ . . . > a s <* ,sset; é ur** a p a n h a de
pansão geográfica: conquista-se um país após outro, até boemismo pouco autentn , xA ,. „ . .
a vista se perder no mar que rodeia a ilha da Utopia. Onde ,, • , ., . . ^ d e ^ ^ é r i m é e , efi 1ue a f " e z a
superfície colorida, aind9 , „ J>* ,,j« „
dos e n r
o evasionista chega, a realidade perde os contornos, trans- , ... . . , 'a de f or "gótico edos.
formando-se em sonho estético e, as mais das vezes, subli- do estilo nao esconde de \. vi"
terário. Primeiro transformaram a Itália: no século X V I I I , ~ . . . ,. Moo** .podera-se d°s fflares. nos
Depois, o imperialismo li. , •„ &< „J„ ,
fora o país das antiguidades greco-romanas; no romance .. ' .F . . , V á r i o a t (6i) (epode alegar
livros de leitura íuveml A ^«„<;í> ^ t-
"gótico" já estrondearam os espectros. Depois, descobre- . . "e M a * e s maruios continuam a
circunstancias atenuantes ^v , UOJ
se a Itália dos artistas vivos, das tragédias de paixão, , • os ímollett e ia ome^m a
estirpe dos Fpicaros maritL A & ' , r „„_ .
encantando pequenos-burgueses alemães, imitadores de . *\ W s o ^ ^ d e honra ie C o n r a d ; e
Scott, como o talentoso Philipp Joseph Rehfues (Scipio mais do que um ponto (L , A;é,c u.-.„4.- ..
„ \ u. f ^ ^ c o d i ^sf. 0 d a «mannha antiga",
Cicala, 1832) e o oficial napoleónico Stendhal. Esse cami­ em Marryat ha algo d o . ,„*í
nho levará à Cavalleria rusticana. Os pintores franceses .
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(1836); etc; — Les Tróia Mousquetaires (1844); Le Comte de 61) Frederick Marryat, 1792-. , ( 1 8 3 4 ) . ,.*í itSearch
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I7()2 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1763

elementos romanescos como em Dumas père ( 5 9 ). Embora logo se cansaram da Itália; atravessaram o Mediterrâneo e
certos críticos ingleses teimem em encontrar valores lite­ descobriram a Argélia. Os literatos franceses preferiram
rários na sua obra, admirando-lhe a "imaginação fecunda", atravessar os Pireneus. Ao século X V I I I , a Espanha apre-
Dumas père pertence à literatura só como fenómeno histó­ senta-se como o país atrasado da Inquisição. O esquisitão
rico. O seu romantismo degenerado é, na verdade, pré- inglês Borrow ( 6 0 ), distribuindo bíblias protestantes na
romântico, "gótico"; nada mais "gótico"_do que a sua peça Espanha catolicíssima, grande amigo e conhecedor dos ciga­
La Tour de Nesles; e nada mais "gótico" também, do que
nos, ainda não chegou a conhecer nenhuma Cármen; na
os enredos dos seus romances. Este "medievalismo pito­
penetração da alma popular alheia ajudou-o um senso de
resco" não é herderiano, é ante-herderiano e apenas pito­
humor fieldinguiano que faz dos seus livros uma das leitu­
resco; assim como a fantástica massa popular em Notre-
ras mais deliciosas em língua inglesa. Humorismo já não se
Dame de Paris, não tem nada com o povo francês da
realidade. Na obra de Dumas père evidencia-se a tendência encontra na Espanha pitoresca dos românticos franceses,
evasionista do medievalismo pitoresco; e êle mesmo indicou nas tragédias melodramáticas de Hugo e Dumas père no
um dos endereços principais da viagem de evasão pós-ro- boemismo pouco autêntico de Musset; é uma Espanha de
mântica a falsa Espanha de seu Don Juan de Marana. superfície colorida, ainda a de Mérimée, em que a frieza
do estilo não esconde de todo o horror "gótico" dos enredos.
A "lei" do evasionismo romanesco é a permanente ex­ Depois, o imperialismo literário apodera-se dos mares, nos
pansão geográfica: conquista-se um país após outro, até
livros de leitura juvenil de Marryat ( 6 l ) , que pode alegar
a vista se perder no mar que rodeia a ilha da Utopia. Onde
circunstâncias atenuantes: os seus marujos continuam a
o evasionista chega, a realidade perde os contornos, trans-
estirpe dos pícaros marítimos de Smollett e já obedecem a
formando-se em sonho estético e, as mais das vezes, subli-
mais do que um ponto do código de honra de Conrad; e
terário. Primeiro transformaram a Itália: no século X V I I I ,
fora o país das antiguidades greco-romanas; no romance em Marryat há algo do saudosismo da "marinha antiga",
"gótico" já estrondearam os espectros. Depois, descobre- dos veleiros, como em Cooper. Depois surgem várias possi­
se a Itália dos artistas vivos, das tragédias de paixão, bilidades: as fantasias técnicas de um Júlio Verne e de
encantando pequenos-burgueses alemães, imitadores de Wells, o exotismo decadentista de um L o t i ; e até é possível
Scott, como o talentoso Philipp Joseph Rehfues (Scipio
Cicala, 1832) e o oficial napoleónico Stendhal. Esse cami­
nho levará à Cavalleria rusticana. Os pintores franceses 60) George Borrow, 1803-1881.
The Zincali (1841); The Bible in Spain (1843); Lavengro (1851).
Edição por Cl. Shorter, 16 vols., London, 1923-1924.
E. Thomas: George Borrow, the Man anã His Books. 2.* ed.
59) Alexandre Dumas père, 1803-1870. London, 1920.
Ilcnri III et sa cour (1829); Antony (1831); La Tour ãe Nesles S. M. Elam: George Borrow. New York, 1929.
(1832); Don Juan ãe Marana (1836); Kean ou Désorãre et génie M. Armstrong: George Borrow. London, 1950.
(1«3fi>; etc; — Les Trois Mousquetaires (1844); Le Comte de 61) Frederick Marryat, 1792-1848.
Monl.c-Cristo (1844-1845); Vingt ans après (1845); La Reine Mar- Peter Simple (1834); Jacob Faithful (1834); Japhet in Search
liol (1845) etc. of a Father (1836); Mr. Midshipman Easy (1836); Masterman
II. 1'urlRot: Alexandre Dumas. Paris, 1901. Ready (1841-1842).
A. Omlu Bell: Alexandre Dumas. London, 1950. D. Hannay: The Life of Frederick Marryat. London, 1889.
II. Cloiuud: Alexandre Dumas. Paris, 1955. O. Warner: Captain Marryat. A Reãiscovery. London, 1953.
1764 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1765

a fina arte de Stevenson ( 6 2 ) : é certo que ele fêz literatura Die Elixiere des Tenteis (As Drogas do Diabo) é mesmo
infantil, "virginibus puerisque"; mas os seuíTromances de o melhor de todos os romances "góticos", é a história de
aventuras, "góticos", não constituem a sua obra inteira. O um monge, possuído do Diabo e levado até ao incesto,
evasionismo paisagístico dos seus livros sobre o Pacífico narrada com tanta habilidade, mesmo diabólica, que até ao
é muito mais fino do que o de Loti, e os dois romances de leitor mais desabusado de hoje se arrepiam os cabelos.
ambiente escocês — The Master of Ballantrae e Weir of Hoffmann abusou mesmo dessa capacidade de sugerir es­
Hermiston — revelam o último e digno sucessor de Walter panto e angústia. Na coleção Die Scrapionsbrueder (Os
Scott; são obras-primas sans phrase. Sonhando, imaginan­ Irmãos Serapião) encontram-se, ao lado de uma obra-prima
do, Stevenson foi o último dos românticos; escrevendo, comovente, "Rat Krespel", ao lado de excelentes contos his­
foi o último clássico da prosa inglesa. tóricos, à maneira de Walter Scott ("Doge und Dogaressa",
O elemento "gótico", fantástico, em Stevenson revela- "Meister Martin"), ao lado de contos de um humorismo fas­
se, sobretudo, no seu romance policial — The Strange Case cinante ("Die Fermate", "Die Brautwahl"), também vários
of Dr. Jekyll and Mr. Hyde — em que imitou consciente­ contos medíocres, escritos às pressas para divertir ou assus­
mente o maior "romântico vulgar" do romantismo alemão. tar o público e ganhar dinheiro. O estilo lamentável de
Mas assim não está bem definida a arte estranha de E.T.A. Hoffmann, um dos piores de que jamais se serviu um grande
Hoffmann ( 6 3 ). As origens são indubitavelmente "góticas"; escritor, também o denuncia como um dos iniciadores da '
literatura industrializada em língua alemã. Mas esse defeito I
fi2) Robert Louis Stevenson, 1850-1894. desaparece nas traduções; e Hoffmann é, ao lado de G o e t h e ,
Virginibus puerisque (1881); Familiar Studies of Men and Books e Heine, um dos poucos escritores alemães de repercussão
(1882); The Treasure Islanã (1883) ; Kiânapped (1886); The universal: é inconfundível a sua influência em Gogol, Poe,
Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde (1886); The Master of
Ballantrae (1889); Island Nighfs Entertainment (1893) ; The Baudelaire, Bécquer, Stevenson. Menos conhecida é a sua
South Seas (1896); Weir of Hermiston (1896). influência sobre a música; não existe nenhum escritor em
Edição por L. Osbourne e F. G. Stevenson, 26 vols., London, 1922-
1923. que tantos compositores tivessem procurado inspiração para
F. R. Swinnerton: Robert Louis Stevenson. A Criticai Stuãy. óperas. De contos de Hoffmann descendem o Tannhauser,
London, 1914. de Wagner, Coppelia, de Delibes, Die Brautwahl, de Busoni,
I. A. Stewart: Robert Louis Stevenson, Man anã Writer. Lon­ e inúmeras outras óperas, menos felizes; e um personagem
don, 1924.
D. Daiches: Robert Louis Stevenson. Norfolk, Conn., 1947.
de Hoffmann, o fantástico maestro Kreisler, exerceu in­
M. Mc Loren: Stevenson and Edinbourg. London, 1951. fluência profunda sobre o estilo de vida e arte de Schumann
V. C. Furnas: Voyage to Winãward. The Life of Robert Louis e Berlioz. Afinal, o próprio Hoffmann tornou-se herói de
Stevcnron. London, 1952.
C3) Ernst Theodor Amadeus Hoffmann, 1776-1822. ópera, em Contes d'Hoíímann, de Offenbach. Nenhum ou-
Fantasiestuecke in Callots Manier (1814-1815); Die Elixiere ães
Tcu/els (1815) ; Nachtstuecke (1817) ; Die Serap:onsbrueãer (1819-
1821) ; Prinzessin Brambilla (1821); Lebensansichten ães Kater
Murr (1820-1822); Meister Floh (1822). K. Willimzik: E. T. A. Hoffmann. Die arei Reiche seiner Gestal-
Edição por W. Harich, 15 vols., Weimar, 1924. tenwelt. Berlin, 1939.
(1. Ellinser: Holfmanns Leben und W erice. Hamburg, 1894. B. van Eysselsteyn: E. T. A. Hoffmann, der verteller der roman-
W Harich: E. T. A. Hoffmann. Das Leben eines Kuenstlers. 2 tiek. Haag, 1944.
vols. licrlin, 1920. H. W. Hewett-Thayer: Hoffmann, Author of the Tales. Prin-
li, HoUiicchiari: E. T. A. Hoffmann, novelliere. Firenze, 1922. ceton, 1948.
K lli'lll)oi-n: E. T. A. Hoffmann. Berlin, 1926.
J. Mistler: Hoffmann, le fantastique. Paris, 1950.
I. Mliil.lci" La vie d'Hoffmann. Paris, 1927.
1766 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1767

tro escritor soube como êle traduzir em palavras impressões o único escritor europeu, antes de Zola que se tornou tão
musicais, em contos tão extraordinários como "Rifter naturalista. O contraste fortíssimo entre o naturalismo do
Gluck" e "Don Juan". Excelente crítico musical, o primeiro ambiente e o pavor das aparições — eis o recurso supremo
que reconheceu a grandeza e significação de Beethoven, da arte de Hoffmann. Os efeitos humorísticos e os terrores
Hoffmann foi ao mesmo tempo um compositor genial; a sua fantásticos confundem-se nele porque têm a mesma raiz:
ópera Undine chegou a honras póstumas bem merecidas. é a invasão da vida burguesa e normal pelas criaturas e
Contudo, literatura e música não esgotaram os talentos monstros do "lado noturno da Natureza" — título de livro
desse sujeito extraordinário, pintor muito bem dotado, ca­ do autor que, a par dos romances "góticos" e do humorismo
ricaturista, diretor de teatro, que introduziu Calderón no de Jean Paul, exerceu maior influência sobre Hoffmann:
palco alemão, boémio dissoluto, bebedor apaixonado — pro­ Gotthilf Heinrich Schubert, o grande filósofo romântico
tótipo do artista romântico. Esse mesmo Hoffmann, artista, da Natureza. Hoffmann pertence, em certo sentido, ao
visionário e bêbedo de noite, era de dia um funcionário romantismo de Iena. O sonho de uma vida puramente esté­
modelar, um dos juízes mais honrados e — em tempos tica não encontrou expressão mais fantástica, mais encan­
difíceis de reação política — dos mais independentes que tadora do que no conto "Prinzessin Brambilla", inspirado
houve jamais na Prússia. Levou verdadeira existência du­ pelos desenhos de Callot e pelas comédias de Gozzi. E a
pla, como o Dr. Jekyll e Mr. Hyde da novela de Stevenson; obra-prima de Hoffmann, Der goldene Topf (O Pote
e transfigurou essa sua condição humana na composição de Ouro), símbolo da existência do artista no mundo da
singular do romance Kater Murr, em que as páginas são prosa, foi chamado, por Baudelaire, "O mais completo tra­
escritas, alternadamente, uma pelo fantástico maestro tado da estética".
Kreisler e a outra pelo gato Murr, encarnação do prosaísmo
E m Hoffmann separam-se os caminhos. De um lado, a
burguês.
transformação do romantismo em mero espetáculo, comer­
A dissociação da personalidade de Hoffmann é sintoma cialmente explorado, para as grandes massas de leitores;
de um romantismo de evasão extremo. Hoffmann é, ao do outro lado, a subida para as alturas onde o pensamento
mesmo tempo, escritor industrializado, na sua existência de Novalis se encontra com a arte de Baudelaire. '
diurna, e artista fantástico, na sua existência noturna. O O caminho da vulgaridade foi iniciado por Bulwer (« 4 ),
primeiro criou espectros pára uso dos burgueses; o outro o autor notório de algumas das obras mais divulgadas da
viu espectros de verdade, tremeu em angústias terríveis literatura universal, como o romance "histórico" The Last
como as crianças, no seu conto espantoso "Der Sandmann"; Days of Pompeii, produto de um literato habilíssimo, si­
e porque viu realmente os espectros, soube descrevê-los com tuado entre Scott e Sienkiewicz. Mas esse aspecto não é
o realismo de um Balzac, assustando-nos. A própria rea­
lidade transfigurou-se-lhe de maneira inédita; a cinzenta 64) Edward George Earl Lytton Bulwer-Lytton, 1803-1873.
Falkland (1827); Pelham (1828); Eugene Aram (1832); The Last
e prosaica cidade de Berlim, então muito provinciana, apa­ Days of Pompeii (1834); Rienzi or The Last of the Tribunes
rece nos seus contos como um inferno de diabos inquietan­ (1835); Zanoni (1842); The Caxtons (1849); A Strange Story
(1862) etc, etc.
tes c às vezes cruelmente humorísticos; tanto mais in­ New Knebworth Edition, 29 vols., London, 1895-1898.
quietantes que Hoffmann indica como endereço dos seus T. H. S. Escott: Eãward Bulwer, First Lorâ Lytton. London, 1910.
espectros os nomes de ruas e casas realmente existentes — E. B. Burgum: The Literary Career of Edward Bulwer, Lord
Lytton. Springfield, 111., 1924.
1768 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1769

o único do narrador virtuose. The Caxtons, escrito no estilo infelizmente um pouco lunáticos, filhos pródigos da "Lake
de Fielding e Smollett, vale pelo humorismo, embora algo Poetry". Esta última classificação não está, aliás, de todo
artificial; Zanoni, obra de grande influência sobre o movi­ errada: constituem o "missing link" entre a "Lake Poe­
mento ocultista na Inglaterra, representa "o lado noturno"; t r y " e o simbolismo. Reúnem os processos poéticos do
Eugene Aram é um engenhoso romance policial, passando- simbolismo e a filosofia "lakista", quer dizer, a estética
se na Inglaterra do século X V I I I , e iluminado por alguns mística de Coleridge, por detrás do qual aparecem os cien­
raios de poesia pré-romântica. Falkland e Pelham, os me­ tistas místicos alemães, como Gotthilf Heinrich Schubert,
lhores romances de Bulwer, inspiraram-se mesmo em Wer- e, enfim, Novalis. A coerência relativa dos grupos sueco e
ther e René, vistos pelos olhos aristocrático-inglêses de polonês deve-se a influências especiais: a de Swedenborg
Byron. Em Bulwer revela-se bem a relação entre certos na Suécia, a do messianismo político-religioso na Polónia.
géneros "modernos" de "romantismo vulgar" e o pré-roman- Mas as origens são, em todos os casos, alemãs.
tismo. A mesma relação existe, embora menos evidente, As origens filosóficas do misticismo romântico foram
em Wilkie Collins ( 6 5 ), o inventor dos romances policiais esclarecidas — até onde a palavra é conveniente — pelos
mais engenhosos em língua inglesa. Mas Collins já passara estudos de Albert Béguin ( 8 0 ), explicando assim a exis­
pela influência do seu amigo Dickens; é muito diferente tência singular de certa poesia francesa, do germanizante
do romance policial de Poe, que neste género também ma­ Nerval, de Baudelaire e até do surrealismo, ao lado do
nifestou a inteligência brilhante que irá inventar a teoria "romantismo" tão diferente dos Vigny, Hugo e Musset.
da poesia "pura". Na origem encontra-se o estudo dos sonhos pelos inquietos
Com exceção de pequenos grupos de poetas suecos e Lichtenberg e Moritz; depois, a "ciência romântica" ocul­
poloneses, não se pode falar em mística durante a primeira tista, de Gotthilf Heinrich Schubert e dos outros, culmi­
metade do século XIX. O grande movimento místico do nando na nobre figura de Carus ( 6 7 ), grande médico, que
pré-romantismo fragmentou-se, na nova era, em certo nú­ modelou a sua vida intencionalmente pelo exemplo de Goe­
mero de existências isoladas, atomizadas, cada uma como the, em cuja filosofia da Natureza descobriu a lei da pola­
que sozinha perante o mistério. Dos poetas de evasão mís­ ridade, reencontrando-a nos movimentos do subconsciente.
tica, muitos não foram reconhecidos ou descobertos antes Na psicologia de Carus anunciam-se futuros pensamentos
da época simbolista, ou mesmo só o foram pelos surrea­ de Bachofen e Freud, transfigurados pela mesma poesia
listas : Stagnelius, Nerval, Slowacki participaram do desti­ que se manifesta nas paisagens românticas de Carus que
no póstumo de Novalis, sendo considerados durante a maior também era pintor e nas suas magníficas descrições dos
parte do século X I X como cantores "ternos" e "frágeis",
66) A. Béguin: Vâme romantique et le rêve. 1 vols. Marseille, 1937.
67) Cari Gustav Carus, 1789-1869.
05) William Wilkie Collins, 1824-1889. Vorlesungen ueber Psycho7ogie (1831); Neun Briefe uéber Lanã-
The Woman in White (1860); Armadale (1866); The Moonstone schaftsmalerei (1831): Goethe, zu dessen naeherem Verstaenãnis
(1868), etc. (1843); Psyche (1846); Lebenserinnerungen unã Denkwuerãigkei-
T. S. Eliot: "Wilkie Collins and Dickens". (In: Selecteã Essays. ten (1865-1866).
2." ed. London, 1941.)
Chr. Bernoulli: Die Psychologie von C. G. Carus unã ãeren
1). I,. Snyers: Wilkie Collins. London, 1941. geistesgeschichtliche Beãeutung. Jena, 1925.
K. Knblnson: Wilkie Collins. London, 1951. S. von Arnim: Cari Gustav Carus, sein Leben unã Wirken. Dres-
lt. A.shluy: Wilkie Collins. London, 1952. dcn, 1930.
1770 OTTO M A R I A CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1771

arredores de Dresden, na sua autobiografia — a mesma


drich Schlegel e Tieck: uma farsa agressiva contra os
paisagem, aliás, em que se passa Der goldene Topf, de
"filisteus" e uma comédia espirituosíssima à maneira espa­
E.T.A. Hoffmann. Carus sobreviveu a si mesmo; a figura
nhola, Ponce de León, talvez a peça mais "latina" da lite­
do goethiano e romântico octogenário era quase inconce­
ratura alemã, afirmaram-no como "romântico" no sentido
bível na época de Darwin e do jornalismo liberal de 1860.
da vagabundagem boémia, fora de todas as possibilidades
Mas sempre já foi surpreendentemente limitada, depois
da vida económica. No conto humorístico "Wehmueller"
de Novalis, a repercussão dessa mística na Alemanha. O
narrou Brentano, mais tarde, as tolices de artista daqueles
penãant literário de Carus é E.T.A. Hoffmann; nos outros
dias; e em outro, "Chronica eines fahrenden Schuelers"
só há vestígios da mesma mentalidade em Tieck, Arnim,
("Crónica de um Escolar Viajante"), retratou-se a si mes­
Kleist e Eichendorff, e, às avessas, em Heine. A rigor, só
mo, viajando de cidade para cidade, assustando os bur­
um poeta alemão depois de Novalis pode ser considerado
gueses, logrando os hoteleiros, oferecendo serenatas às
místico: Brentano; e este não se tornou ocultista, mas
moças — aliás, canções de uma musicalidade tão harmoniosa
católico.
como nem Goethe nem Eichendorff souberam cantar, ver­
Clemens Brentano ( 6 8 ), renano turbulento, que tinha
dadeiros lieds populares à maneira dos Heds autênticos
a poesia no corpo como outros têm o Diabo, apareceu em
que Brentano, junto com seu amigo Arnim, colecionou e
lena quando o círculo romântico estava desaparecendo.
publicou em Des Knaben Wunderhorn. Brentano era
Ninguém parecia representar melhor as intenções dos Frie-
artista acima e fora das doutrinas de Schlegel e dos arti­
fícios de Tieck, e os ienenses sentiram a distância que os
68) Clemens Brentano, 1778-1842. (Cf. nota 100.) separava. Godwi, o romance inacabado de Brentano, chegou
Godwi (1801); Ponce de León (1801); Des Knaben Wunãerhorn
(com Arnim, 1805-1808); Der Philister vor, in unã nach der Ges- a aborrecê-los, pela confusão intencional do enredo e pelo
chichte (1811); Gockel, Hinkel und Gackeleia (1811); Kantate aparente cinismo das confissões sexuais; o poeta não era,
auf den Tod der Koenigin Luise (1811); Die Gruendung Prags
(1815); Geschichte vom braven Kasperl und schoenen Annerl como eles, um homem do século X V I I I , mas de uma nova
(1817); Die mehreren Wehmueller und ungarischen Nationalge- geração, um sonhador da estirpe de Novalis, um "romântico
sichter (1817); Aus der Chronica eines fahrenden Schuelers
(1818); Das bittere Leiden unseres Herrn Jesu Christi (1833); das profundidades da alma"; e não era um libertino aris­
Gesammelte Schriften (as obras precedentes, e: Weltliche Ge- tocrático, polido, mas uma natureza devastada e devasta­
ãichte; Geistliche Gedichte; Die Erfindung des Rosenkranzes;
1852-1855). dora. Distinguiu-se de Novalis pelo génio diabólico, ou
Edição (inacabada) das Obras completas por C. Schueddekopf, antes, patológico. A vida de Brentano, incapaz de enqua-
8 vols. (dos 18 projetados), Muenchen, 1909-1917. drar-se na sociedade humana, é uma série de aventuras
Edição por H. Amelung e K. Viêtor, 4 vols., Frankfurt, 1923 (in-
compl.) eróticas, casamentos errados, divórcios, tolices e tragédias,
J. B. Diel e W. Kreiten: Clemens Brentano, ein Lebensbild. 2 até chegar, um dia, o colapso de nervos e a conversão, ou
vols. Freiburg, 1877-1878.
G. Mueller: Brentanos Romanzen vom Rosenkranz. Goettingen, antes a reconversão à fé dos antepassados. A literatura
1922. acabara. Brentano passou anos e anos perto da cama da
L. Vincenti: Brentano. Contributo alia caratteristica dei roman-
ticismo germânico. Torino, 1928. religiosa estigmatizada Katharina Emmerich, anotando-lhe
R. Guignard: Un poete romantique allemand: Clemens Brentano. as revelações sobre a Paixão de Nosso Senhor, publicando-as
Paris, 1933. mim dos livros de edificação mais divulgados em todo o
W. Pfciffer-Belli: Clemens Brentano. Ein romantisches Dichter-
Icbcn. Freiburg, 1949. tumulo. Quando morreu, o brilhante poeta de outrora estava
1772 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1773

completamente esquecido. Sobreviveu-lhe o nome apenas lendária Die Gruendung Prags, (A Fundação de Praga),
como colecionador dos lieds populares do Wunderhorn; e influenciada por Zacharias Werner, documento impressio­
a sua memória só foi cultivada por alguns padres renanos nante da sua ânsia de encontrar, nos estados primitivos
que o apresentaram como exemplo edificante de pecador da civilização, a verdade não falsificada; e, já além desse
arrependido. pré-romantismo, o poema narrativo Die Erfindung des Ro-
Na verdade, Brentano é o único poeta alemão, com­ senkranzes (A Invenção do Rosário), um Fausto católico,
parável aos Nerval, Keats, Stagnelius, Slowacki, e superior não confuso — como se pensou antigamente — mas her­
até a um Poeta pela arte da música verbal. Os lieds do mético. Nas suas últimas poesias religiosas chegou Bren­
Wunderhorn também não são transcrições fiéis, mas antes tano a uma "poésie puré", sem sentido lógico, mero agru­
versões feitas por um grande artista, como revela a com­ pamento de símbolos místicos, sendo a sintaxe substituída
paração de uma conhecida canção anónima com a forma que pela música do inefável:
êle lhe deu —
"O Stern und Blume, Geist und Kleid,
" E s ist ein Schnitter, der heisst Tod, Lieb', Leid und Zeit und Ewigkeit".
Er maeht das Korn, wenn's Gott g e b o t . . . "
Brentano foi uma figura solitária na literatura alemã do
— na qual a música fúnebre dos muitos "o" lembra o seu tempo, então ainda imbuída de espírito luterano; o
emprego parecido das vogais no soneto "On the late Massa­ próprio luteranismo não favorece as expansões místicas nem
cre in Piedmont", de Milton. Na cantata sobre a morte da as expressões simbólicas. Precisava-se, para tanto, de um
rainha Luísa da Prússia chegou Brentano ao cume da dogma heterodoxo, de um "mito". Aos suecos, também
musicalidade, da qual a língua alemã é capaz, e ao mesmo luteranos, forneceu-o a memória ainda fresca das visões
tempo à expressão de uma mística quase dantesca, perso­ de Swedenborg, misturando-se com o entusiasmo pré-ro-
nificando de maneira tremenda a M o r t e : mântico de Shaftesbury, o panteísmo neoplatônico de Gior-
dano Bruno, transmitido por Schelling, e com a filosofia
" W e h ! sein Fuss steht im Staub da natureza de Novalis — mistura que dá ao romantismo
Sein Haupt in M i t t e r n a c h t . . . sueco uma feição singular ( 6 9 ). O modelo literário de
Ohn' Erbarmen Atterbom ( 70 ) foi Tieck, do qual imitou os "dramas" fan­
In den Armen tásticos, enchendo-os com um lirismo hermético, à maneira
Traegt er die kindische, de Novalis, sacrificando o sentido lógico à música das pala-
Taumelnde W e l t !
Tod — so heisst er!" (III) A. Nilsson: Svensk Romantik. Stockholm, 1916.
701 Diiniol Atterbom, 1790-1855.
Eis o reverso de uma poesia "existencial" da qual já se Hlommorna (1812, 1838); Lycksalighetens Oe (1824-1827); Fogel
Ma (1830); Svenska Siare och Skalder (1841-1855).
disse: "Brentano não era um poeta, mas um poema". Es­ IWIcfto por F. Boeoek, 6 vols., Stockholm, 1927-1929.
capou a esse esteticismo perigoso pela conversão. Deixou I1'. Vettcrlund: Fogel Bla. 2 vols. Stockholm, 1900-1902.
I1'. VctXcrlund: Lucksalightens Oe. Stockholm, 1924.
dois grandes monumentos da sua inquietação: a tragédia II. KrykciiHtedt: Daniel Atterbom. 3 vols. Lund, 1951-1955.
1771 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1775

vr«H. Attcrbom também era teórico: empregou os termos da comédia Torsten Fiskare, e pela ironia, em epopeias herói-
filoHofia schelinguiana para encontrar um sentido cristão cômicas. A última solução foi o gnosticismo: se o homem
na mitologia nórdica; e o hermetismo musical da sua poesia é um anjo caído, preso ao corpo impuro, então se explicam
pretende simbolizar a dissolução da realidade material em as tentações da carne. Além de Swedenborg e Schelling,
harmonia das esferas. Atterbom está bastante perto de P o e ; Stagnelius estudara a filosofia de Boehme, e o drama
mas o ambiente poético da sua época e da sua terra não o Bacchanterna, que trata dos mistérios de Orfeu, indica o
isolou tanto copio ao americano; e a nova língua poética que ponto final do seu pensamento: um orfismo antinomista.
criara, encontrou logo a realização plena em Stagnelius ( 7 1 ), Daí será só um passo para o romantismo imoralista, revo­
o poeta mais genial da literatura sueca. Génio extraordi­ lucionário, de Almquist.
nário foi preciso, com efeito, para aguentar e transfigurar
Analogias inconfundíveis existem entre o romantismo
em poesia a angústia febril em que Stagnelius se debatia.
Por fora, era um poeta cristão, de exaltações místicas; en­ sueco e o romantismo polonês: o mesmo entusiasmo reli­
controu em Chateaubriand o enredo de uma tragédia cristã, gioso, o mesmo erotismo meio místico, a mesma tendência
Martyrerna (Mártires), na qual exprimiu o desejo ardente para a sublimação musical da língua, sobretudo em Stag­
do sacrifício no altar de Deus; mas essa tragédia está in­ nelius e Slowacki. A diferença reside nas teorias místicas:
cluída num volume que é, no mais, uma coleção de poesias entre os suecos, o neoplatonismo schellinguiano, que se
líricas, Liljor i Saron, nas quais as expressões bíblicas do afasta por completo da T e r r a ; entre os poloneses, o messia­
Cântico não ocultam, antes revelam, o erotismo mais ar­ nismo de Hoene-Wronski e Towianski, que considera a
dente; Stagnelius levou duas existências: a de um funcio­ Polónia martirizada pela Prússia czarista como sacrifício
nário civil da igreja sueca e poeta cristão; e outra, noturna, no altar de uma nova Igreja da futura Humanidade eslava.
de poeta pagão e homem quase patologicamente debochado. Este patriotismo místico era tão forte entre os poloneses
Stagnelius lembra um pouco Keats, também pelo estilo que os espíritos mais diferentes aderiram: o byroniano
classicista em que tratou assuntos da história heróica es­ meio classicista Mickiewicz, o lamartiniano byronizado
candinava. Mas o neoplatonismo impôs-lhe uma disciplina Slowacki, o católico conservador Krasinski — os três maio­
ascética que o poeta inglês ignorava. Stagnelius pretendeu res poetas da Polónia, contemporâneos todos, de modo que
combater, de qualquer maneira, o erotismo ou antes sexua-
nada parece mais conveniente do que considerá-los como
lismo que lhe consumiu o corpo: pelas exaltações da fé;
um conjunto magnífico: os historiadores da literatura fize­
pela disciplina classicista; até pelo realismo popular na
ram sempre assim. Mas é, mais uma vez, uma "fable con-
venue". O conservador Krasinski é diferente dos outros,
71) Erik Johan Stagnelius, 1793-1823. que são revolucionários, pela ideologia política; e o mesmo
Vladimir den store (1817); Liljor i Saron (1821-1822); Bacchan- messianismo que fortaleceu o entusiasmo patriótico de Mic­
terna (1822); Samlade Skrifter (Blenda; Sigurd Ring; Wisbur;
Riddartornet; Torsten Fiskare etc; 1824-1826). kiewicz, levou Solowacki, enfim, a reinos celestes fora das
Edição por F. Boeoek, 5 vols., Stockholm, 1911-1919. preocupações nacionais. Talvez não fosse o "mesmo" mes­
F. Boeoek: Erik Johan Stagnelius. Stockholm, 1919.
S. Ederblad: Studier i Stagnelius romantik. Stockholm, 1923. sianismo? Com efeito, o messianismo utópico de Hoene-
O. Holmberg: Sex kapitel om Stagnelius. Stockholm, 1941. Wronski não é idêntico ao messianismo teosófico de
F. Boeoek: Stagnelius aen en gang. Stockholm, 1942.
1776 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1777

Towianski ( 7 2 ), que se parece bastante com a teosofia de último também é evidente no orientalismo de Mazeppa,
Swedenborg. Não Hoene-Wronski, mas Towianski foi o até no assunto que o inglês também tratou. Slowacki su­
grande acontecimento na vida de Slowacki, ao passo que cumbiu com facilidade a sugestões e influências. Desilu-
Mickiewicz rompeu mais tarde com o profeta, que se negou dindo-se do nacionalismo arrogante e sempre derrotado dos
às visões de reformas democráticas. A análise estilística aristocratas poloneses, tornou-se byroniano no sentido das
confirma a diferença: Mickiewicz é, como Byron, classi- sátiras radicais do inglês, imitando o Don Juan, na epopeia
cista pela expressão, e a nação compreendeu-o imediata­ irónica Benjowski, sátira tremenda contra aristocratismo e
mente, enquanto que Slowacki só será apreciado pelos clericalismo. Os poloneses não gostaram nunca dessa here­
simbolistas. sia. Preferiram colocar Slowacki como "poeta menor" ao
Slowacki ( 73 ) é um dos grandes poetas da literatura lado de Mickiewicz; mais ou menos assim como os ingleses
universal; um daqueles que, como Hoelderlin e Nerval, do século XIX colocaram Shelley ao lado de Byron. A con­
sofreram interpretação errada como "sonhadores infelizes", fusão foi sugerida por mais uma comunidade de assuntos,
adolescentes meio femininos, os "fracos" ao lado dos fortes as duas tragédias Beatrice Cenci, uma de Shelley e outra
Goethe, Hugo e Mickiewicz. O que sempre se admitiu em de Slowacki. O que este último escreveu depois da conver­
Slowacki foi a magnificência da sua língua, a combinação são ao misticismo de Towianski, foi considerado como
fascinante de melancolia desesperada e exotismo colorido. sonhos de febre de um espírito perturbado. Com efeito,
Slowacki teria sido uma espécie de Lamartine oriental; Rei Espírito, a última obra e obra máxima de Slowacki,
e algumas das suas obras justificam essa apreciação: Anheli parece monstruosa; a esperada vitória, no fim, do Espírito
e O pai dos Pestíferos em El Arish — obras da sua moci­ sobre o terrível tirano Popiel não é capaz de atenuar a
dade, por sinal, e as mais populares na Polónia. No convívio impressão assustadora da obra, nem tampouco a interpre­
dos poetas maiores, Slowacki foi admitido, porque não se tação como metempsicose purificadora do povo polonês
fechou à desgraça da pátria polonesa e aos sentimentos através de pecados e sofrimentos inéditos. Mas Slowacki
patrióticos: Korduan é uma grande acusação, no estilo já antes havia escrito tragédias enormes e confusas assim:
de Mickiewicz e no espírito de B y r o n ; a influência deste Balladyna e Lilla Weneda, cheias de belezas líricas, mas
de enredo pouco claro. Em todo caso, não era possível
72) Andrzej Towianski, 1799-1878. reduzi-lo a "sonhador inofensivo".
M. B. Begey: Vita e pensiero di Andrea Towianski. Milano, 1918. A originalidade de Slowacki não reside no pensamento,
73) Juljusz Slowacki, 1809-1849. mas na sua língua: é êle o criador da poesia polonesa
Maria Stuart (1830); Poesias (1832-1833); Korduan (1833); Balla-
ãyna (1834); Na Suíça (1836); O pai dos pestíferos em El-Arich moderna. No resto, foi um letrado cultíssimo, aberto a
(1838); Anheli (1838); Beatrice Cenci (1839); Lilla Weneda
(1839); Três poemas (1839); Mazeppa (1840); Benjowski (1841); todas as influências, um espírito livresco em que as ideias e
Padre Marek (1843); Rei Espírito (1847). formas de todas as literaturas e civilizações se encontraram.
Edição por I. Kleiner, 16 vols., Warszawa, 1924-1932.
J. Ttetiak: Juljusz Slowacki. 2 vols., Kraków, 1904 (em língua Um "poet's poet". Nas influências que se sentem em Slo­
polonesa). wacki, é possível distinguir várias camadas. Primeiro, as
J. Kleiner: Juljusz Slowacki. 4 vols. Warszawa, 1919-1927 (em influências de leitura que lhe forneceram motivos literá­
língua polonesa).
T. Grabowski: Juljusz Slowacki. 2.a ed. 2 vols. Kraków, 1920- rios: de Calderón — do qual traduziu El príncipe constante
102(1 (em língua polonesa).
W. Iicdnlckl: Jules Slowacki. Paris, 1927. — provém a construção "colossal" das suas tragédias; de
1778 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1779*

Shakespeare, especialmente do MiãsummeT-Night's Dream, A poesia de evasão mística constitui na França um


o gosto da íéerie; do seu confrade polonês Malczewski, o rio intermitente entre o pré-romantismo de Rousseau e
exotismo ucraniano. Depois, a forma literária, que ele Cfaateaubriand e o romantismo de Hugo. A mística novali-
aprendeu na maior influência poética do seu tempo, èm siana, apoiada pelas especulações de Maine de Biran, apa­
Byron. Enfim, a atitude visionária, na qual imitou, cons­ rece só de maneira mais ou menos oculta: em Sénan-
cientemente, Dante. Mas tudo isso não se refere à substân­ cour ( 7B ), escondida sob as aparências do wertherismo de
cia. No fundo, Slowacki é um "Lake Poet", não no sentido um emigrante desesperado; apenas certos ingleses lhe sen­
de Lamartine, mas no sentido de Coleridge; em toda a tiram o sentimento religioso, como Matthew Arnold, que
poesia ocidental, é Kubla Khan o único produto que poderia afirmou ter lido cinco vezes o romance Obermaun. Sob
70
ser de Slowacki. Ao sincretismo literário de Slowacki outro disfarce apareceu o misticismo em Nodier ( ), o
corresponde o seu sincretismo religioso, comparável ao de presidente espirituoso do primeiro cenáculo romântico.
Hoelderlin e Nerval. Slowacki já é simbolista; e só os Parece ter tido medo de revelar-se aos franceses zomba­
simbolistas o entenderão. Compreende-se que tenha parti­ dores, e deu-se como blagueur, quando acreditava seriamen­
cipado desse destino o seu único sucessor, o poeta-pintor te na significação dos seus sonhos. Assim, o autor de Smar-
Norwid ( 7 4 ), que levou no exílio parisiense uma existência ra e Trilby ficou como uma espécie de sub-Hoffmann, ilu­
estranha, pintando, tocando magistralmente Chopin, des­ dindo os franceses a respeito do sentido do misticismo ale­
perdiçando a sua fortuna, acabando como esquisitão esque­ mão. Os que pretenderam aderir a este, ficaram comprome­
cido. Os seus quadros não têm nada com a sua poesia; são tidos como "fantasistas nebulosos", se não conseguiram apa­
recer como inspirados pelo Diabo, tal como Aloysius Ber-
doces como os de Ary Scheffer, com alguns raios de luz,
trand ( 7 7 ), o precursor do "poema em prosa" de Baudelaire,
à maneira de Corot. O outro lado da sua existência expri-
e precursor, através de Lautréamont, dos surrealistas.
miu-se em contos hoffmannescos — "Flores Brancas", "Flo­
res pretas" — que assustaram os contemporâneos. A sua
poesia, confusa, caótica até, iluminada por inspirações sur­ 75) Etienne Pivert de Sénancour, 1770-1846.
preendentes, foi redescoberta só depois de 1900 pelo sim­ Obermann (1804).
Edição por G. Michaut, 2 vols., Paris, 1912-1913.
bolista Zenon Przesmycki; comparam-na à de Nerval, e I. Merlant: Sénancour, poete, penseur religieux et publiciste, sa
os contos, aos de Nodier. vie, son oeuvre, son influence. Paris, 1907.
76) Charles Nodier, 1783-1844.
Le peintre de Salzbourg (1803); Jean Sbogar (1818); haure Ruth-
wen ou Les vampires (1820); Smarra ou Les âémons de la nuit
(1821); Trilby (1822); La Fée aux miettes (1832) etc.
74) Cyprian Norwid, 1821-1883. Edição de obras escolhidas por A. Cazes, Paris, 1914.
Promethidion (1851); Poesias (1863); O piano de Chopin (1865); M. Salomon: Charles Nodier et le groupe romantique. Paris, 1908.
Obras (Quidam; Stigma; Flores brancas; Flores pretas etc, I. Larat: Tradition et exotisme dans Voeuvre de Charles Nodier.
1885); Cleópatra (publ. por Z. Przesmycki, 1905). Paris, 1925.
Edição por St. Cywinski, 8 vols., Kraków, 1912-1914. P. G. Castex: Le conte fantastique en France, de Nodier à Mau-
V. Krechowiecki: Cyprian Norwid. 2 vols. Kraków, 1909 (em lín- passant. Paris, 1951.
Kua polonesa).
F. Schoell: "Etudes sur Norwid". (In: Europe Centrale, 1932/XII.) 77) Aloysius Bertrand, 1807-1841.
7,. Falkowski: Cyprian Norwid. Warszawa, 1933 (em língua po­ Gaspard de la Nuit (1842).
lonesa) . Edição por I. de Marthold, 2.* ed., Paris, 1903.
I. Garbaczewska: Cyprian Norwid. Warszawa, 1948 (em língua J. Charles-Pavie: Aloysius Bertrand. Paris, 1911.
polonesa). C. Sprietsma: Aloysius Bertrand, une vie romantique. Paris, 1927.
Cl 780 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1781

Nerval ( 78 ) atribuiu suas visões a uma origem dife­ algumas poesias líricas de Goethe justificam a definição
rente ; e pagou caro. Em vários manuais da história literária de Nerval como romântico alemão em língua francesa; o
francesa o nome de Nerval não aparece; em outros,' é requintado artista Gautier ficou tão encantado com essa
tratado como "poeta menor", autor das Odelettes e outras simplicidade musical que se tornou responsável pelo equí­
"poésies fugitives", pequeno provinciano ao lado dos gi­ voco: ver um talento chaimant onde
gantes Lamartine, Hugo e Musset; o destino funesto desse
"poeta amável", que acabou na loucura e no suicídio, teria "La Terre a tressailli d'un souffle prophétique".
sido consequência das suas preferências esquisitas pela lite­
ratura nebulosa dos alemães, incompreensível aos franceses, Nerval era um pobre-diabo, inadaptado para a vida, per-
donos da famosa clarté. Com essas "preferências" aludiu-se dendo-se em reminiscências da infância, transfigurando
à tradução de Fausto, por Nerval, uma das melhores tra­ casas de campo e moças bucólicas em castelos e princesas
duções que existem em língua francesa; mas, na verdade, o medievais, como fazia qualquer adolescente sonhador da­
misticismo de Nerval está mais perto de Novalis — in­ quela época ilusionista; tampouco passam de evocações
compreensível, aliás, aos próprios alemães de então —, e charmantes certos contos de Nerval: "Angélique", "Sylvie".
a indiferença do ambiente burguês importunava pouco o De repente, porém, o "Desdichado" — como se chamava —
poeta, que começara a carreira literária como "chansonnier" começa a falar em alusões herméticas —
patriótico e admirador de Béranger. Êle pôde esperar;
hoje, tendo saído do limbo dos "românticos secundários",
"Ve suis le ténébreux — le veuf — 1'inconsolé..."
é considerado como um dos maiores poetas de língua fran­
cesa.
— produzindo uma série de sonetos obscuros, ininteligíveis,
As poesias leves de Nerval só parecem ligeiras; são que definiu, pelo próprio título da coleção, como Chimè­
feitas com mão de artista. Peças como Fantaisie ( " . . . un res: "Myrtho", "Horus", "Antéros", "Deifica", "Artémis",
air três vieux, languissant et fúnebre") e as traduções de "Le Christ aux Oliviers", poemas encerrando símbolos como
que de uma religião terrível e esquecida; são as poesias mais
enigmáticas da literatura francesa. Não é possível, nem
78) Gérard de Nerval (pseudónimo de Gérard Labrunie), 1808-1855.
La France guerrière, élégies nationales (1827); tradução de Faust sequer preciso, decifrar-lhes o sentido exato: a música
(1828); Odelettes (1832-1835); Contes et facéties (1852); Petits verbal deixa adivinhar profundidades que a língua humana
châteaux de Bohème (1853); Les Filies ãu Feu et Les Chimères
(1854); Aurélie (1855); La Bohème galante (1855); Voyage en não poderia exprimir com clareza maior. O hermetismo
Orient (1856). de Nerval é tão diferente do hermetismo de Mallarmé quan­
Edição por A. Marie e I. Marsan, 15 vols.. Paris, 1925-1939; Edi­
ção crítica das Chimères por J. Moulin, Genève, 1949. to são diferentes a vida e a a r t e ; não é poesia "purificada",
Edição por A. Béguin e J. Richer, Paris, 1952. mas é a expressão natural de uma personalidade dissociada,
A. Marie: Gérard de Nerval. Paris, 1914.
P. Audiat: L'Aurélie de Gérard de Nerval. Paris, 1926. a poesia espontânea do esquizofrénico. "Espontânea", aliás,
H. Strentz: Gérard de Nerval, son oeuvre. Paris, 1933. é pouco exato; as Chimères são tampouco espontâneas como
A. Béguin: Gérard de Nerval. Paris, 1937.
C. Ducray: Gérard de Nerval. Paris, 1946. aqueles lieds musicais. Nerval continuou, na loucura, a ser
J. Richer: Gérard de Nerval et les ãoctrines ésotériques. Paris, um espírito lúcido com mão de artista. "Though this be
1949.
H. A. Rhodes: Gérard de Nerval. London, 1952. inadness, yet there's method in't." Como muitos esquizo-
J7H2 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1783

frênicos, Nerval inventou uma mitologia para o seu uso O mesmo romantismo alemão costuma-se salientar em
particular; mas serviu-se dessas fantasias para novas trans­ Gustavo Adolfo Bécquer ( 7 9 ) ; talvez, em parte, porque o
figurações dos seus sonhos de mocidade, para não esquecê- nome do poeta espanhol sempre sugeriu origens alemãs.
los na noite da amnésia patológica. Nessa noite, o senhor A verdade, porém, é que Bécquer era de família flamenga,
dos "petits châteaux de Bohème" transformou-se em "Prince residente em Sevilha havia séculos.
d'Aquitanie à la tour abolie" — a diferença não importava Bécquer definiu a sua condição humana e poética no
na realidade. Os elementos daquela religião particular fo­ verso:
ram fornecidos pelo gnosticismo romântico, pedaços do
cristianismo renegado, reminiscências gregas, fantasias "Cayó sobre mi espíritu la n o c h e . . . " —
orientais — muito disso lembra o maniqueísmo de Lautréa-
mont, o helenismo de Nietzsche, o sincretismo religioso de e os neo-românticos espanhóis de hoje gostam de cha-
Hoelderlin, Stagneliús, Slowacki. Nerval, apesar de ser o mar-lhe, com palavras suas, "huésped de las nieblas". As
mais hermético de todos eles, é ao mesmo tempo o mais
suas famosas Rimas, pequenas poesias quase epigramáticas,
lúcido entre eles, o mais enérgico, talvez o único capaz de
"suspiros y risas, colores y notas", as mais das vezes eró­
dirigir deliberadamente as suas alucinações: o conto ex­
ticas, não correspondem de todo àquela definição. São
traordinário Aurélie, que êle apresentou como descrição
popularíssimas na Espanha, a ponto de muitos versos ini­
exata das suas visões patológicas, é, na verdade, uma alu­
ciais se terem tornado proverbiais ("Cuando me lo contaron,
cinação artificialmente produzida para perpetuar aqueles
senti el f r i o . . . " , "Antes que tú me m o r i r é . . . " , "Del salón
sonhos da realidade passada — "1'épanchement du rêve dans
en el ângulo o s c u r o . . . " , "Cerraron sus o j o s . . . " , "Los in-
la vie réelle." Com isso, Nerval realizou as ambições de
visibles átomos dei a i r e . . . " , "Hoy la tierra y los cielos me
magia verbal de Novalis; contudo, não é um Novalis francês,
s o n r í e n . . . " , "Los suspiros son aire, y van ai a i r e . . . " ) . É
justamente porque sabe "realizar" os seus sonhos; a sua
"poesia pura", pela falta de conteúdo narrativo; mas as
arte quase lembra a força criadora dos gregos que, criando
Rimas em conjunto constituem o diário poético de um amor
um mundo ideal, não sabiam depois distingui-lo da reali­
frustrado; e daí a sua popularidade imensa. Apenas, a
dade. Os versos de Nerval são puros, clássicos como de
um Racine, embora sem sintaxe lógica. Sabia que

79) Gustavo Adolfo Bécquer, 1836-1870.


"La Muse m'a fait l'un des fils de la Grèce"; Obras (Rimas, Leyenãas, Historia de los templos de Espana; publ.
por B. Corrêa, 1871).
Edição: 8." ed. das Obras, Madrid, 1922.
mas da "outra" Grécia, da órfica, noturna. Nerval é um F. Schneider: Gustavo Adolfo Bécquer. Leipzig, 1914.
B. Jarnés: La doble agonia de Bécquer. Madrid, 1936.
"pré-nietzschiano", assim como o grego Hoelderlin. No J. Guillén: La poética de Bécquer. New York, 1943.
entanto, apesar de Nerval ser grande poeta, o senso das Dám. Alonso: "Originalidad de Bécquer". (In: Ensayos sobre poe­
sia espanola. Buenos Aires, 1946.)
dimensões impede defini-lo como o "Hoelderlin francês". G. M. Bertini: La poesia di Gustavo Adolfo Bécquer. Venezia,
Essa definição envolve, porém, em evidente exagero, um 1951.
E. L. King: Gustavo Adolfo Bécquer, from Painter to Poet. Mé­
grão de verdade: Nerval é, em versos franceses, um autên­ xico, 1953.
tico romântico alemão. J. P. Diaz: Gustavo Adolfo Bécquer, vida y poesia. Montevideo,
1955.
I 7114 OTTO M A R I A CAHPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1785

forma não tem modelos na poesia espanhola, e até hoje não la escena dei mundo. Fecunda, como el lecho de amor de­
se resolveu o problema das possíveis influências estran­ la miséria, y parecida a esos padres que engendran más
geiras. Afirmou-se, desde sempre, a influência de H e i n e ; hijos de los que pueden alimentar, mi musa concible y pare
mas Bécquer é antes um espírito parecido, de ironias amar­ en el misterioso santuário de la cabeza, poblándola de crea-
gas por trás da "nube de dolor"; as análises recentes pa­ ciones sin n ú m e r o . . . y aqui dentro, desnudos y deformes,
recem indicar influências de Byron, com algo de senti­ revueltos y barajados en indescriptible confusión, los siento
mentalismo à maneira de Musset. Se fosse só isso, Bécquer a veces a g i t a r s e . . ."; assim introduziu Bécquer as suas
seria um poeta menor, um intimista; não seria muito con­ Leyendas, contos fantásticos, obras-primas da estirpe de
veniente considerá-lo como precursor da poesia espiritual E.T.A. Hoffmann: "Maese Pérez el Organista", "La Rosa
de J u a n Ramón Jiménez, J o r g e Guillén e Cernuda. Com de Pasión", "El Gnomo", " E l Miserere", "Las Hojas Se­
efeito, a poesia de Bécquer não é tão espiritual como parece. cas", "La Mujer de Piedra". Assim como o lirismo de
Alimenta-se de sonjhos, mas sabe descrevê-los com realismo Bécquer se podia materializar em rimas eróticas, também
surpreendente. H á em Bécquer, realmente, algo de H e i n e : a sua mística só achou materialização em contos "góticos".
com franqueza e coragem maiores do que o ex-romântico Mesmo assim conseguiu a desmaterialização dos pobres
alemão sabe manifestar a base muito real, até física das géneros dos quais se serviu: a matéria da sua arte são "los
suas angústias eróticas. E m Bécquer há um realista. Sua invisibles átomos dei aire".
língua poética, apesar da grande riqueza em expressões pito­ Mais ou menos, todos esses místicos perdidos no mundo
rescas e ritmos musicais, é algo pobre em comparação com da prosa são "poetes maudits"; o prosador "maudit" entre
outros poetas místicos. A culpa seria da linguagem român­ eles, é o estranho inglês Thomas De Quincey ( 8 0 ), que a
tica, materializada demais pela influência de Victor Hugo, atividade de certos editores reduziu a autor de "sensacio­
de modo que o "anjo" Bécquer só encontrou, em vez de nais confissões de um opiófago". Infelizmente, as Con-
um órgão, um acordeão para fazer música — "un acordeón fessions of an English Opium Eater, livro de uma música
tocado por un ángel", dizia D'Ors. O que faltava a Bécquer verbal superada apenas pelo próprio De Quincey em outras,
era menos uma tradição linguística do que uma tradição obras, são um livro intraduzível; na tradução fica apenas
ideológica. Assim como a sua inquietação espiritual tinha a confissão. De Quincey era um burguês inglês, um "right
que disfarçar-se de atitude de herói byroniano, assim o honorable gentleman" de opinões rigorosamente toristas,
seu misticismo (talvez de origem flamenga) encontrou, conservador como seu amigo Coleridge, esse outro famoso»
como objetos de admiração e contemplação, os monumentos
góticos da Espanha, as cidades, catedrais, castelos medie­
vais, que esse último medievalista descobriu no momento HO) Thomas De Quincey, 1785-1859.
Cónfessions of an English Opium Eater (1822); On the Knocking
cm que a Europa descobriu a Espanha pseudo-romântica at the Gate in Macbeth (1823); Murder Considered as One of the
da Cármen, de Bizet. O medievalismo de Bécquer escondeu Fine Arts (1827-1839); Klosterheim or the Masque (1832); The
FHght of a Tartar Tribe (1837); Suspiria de Profundis (1845);
ânsias mais profundas. " P o r los tenebrosos rincones de mi The English Mail-Coach (1849).
Edição por D. Masson, 14 vols., Edinburg, a1889-1900.
cérebro, acurrucados y desnudos, duermen los extravagan­ r,. Stephen: Hours in a Library, vol. II. 2. ed. London, 1892.
tes hijos de mi fantasia, esperando en silencio que el arte K. Sackville-West: A Flame in Sunlight. The Life anã Work of
Thomas De Quincey. London, 1936.
los vista de la palabra para poderse presentar decentes en II. A. Eaton: Thomas De Quincey. Oxíord, 1936.
1786 OTTO M A R I A CAHPEAUX HISTÓBIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1787

opiófago da literatura inglesa. É como uma intoxicação nos seus engenhosos contos policiais e em vários tratados
pelo exotismo do Império britânico — com a diferença meio científicos; é como a arma de defesa do romântico,
que as fantasias extravagantes de Coleridge se tornaram filho espiritual de Novalis e Coleridge, perdido no am­
meio verdade na vida de De Quincey. The Coníessions of biente hostil dos comerciantes americanos. Infelizmente
an English Opium Eater descrevem, com a maior franqueza, Poe dispunha de mais uma arma: do charlatanismo. Poe
a história da juventude do autor, da sua fuga de casa, va­ chegou a inventar uma biografia sua, inteiramente falsi­
gabundagem de mendigo, aventuras com prostitutas, noites ficada, enganando os biógrafos e críticos posteriores; e
nas tavernas de ópio — e misturando a verdade com inven­ custou muito revelar a verdade: a vida não tão "romântica",
ções extraordinárias. E por meio de uma eloquência da "byroniana", mas muito infeliz de um neurastênico gra­
qual não há outro exemplo na literatura universal, De vemente inadaptado à vida, literato paupérrimo entre bur­
Quincey consegue fazer acreditar que aquela história ver­ gueses arrogantes e jornalistas sensacionalistas, cheio de
dadeira também só é sonho de ópio. Essa eloquência per­ complexos patológicos — Poe não tinha outro caminho do
suasiva dá a um ensaio seu como a defesa da "arte de assassi­ que declarar-se
nar" (Murder Considered as One of the Fine Arts) o haut-
gout do terror nas entrelinhas da ironia mais espirituosa. "Out of Space,
Em De Quincey renasceram, mentalmente, os monstros da out of Time",
tragédia elisabetiana, invadindo a cinzenta realidade ingle­
sa de 1840. The English Mail-Coach, descrição de uma na poesia com o título significativo Dreamland. Mas Poe
viagem na diligência daqueles bons velhos tempos sem não se conformou com a derrota. Resolveu impor aos ame­
estrada de ferro, é o pesadelo mais terrível que um cérebro ricanos as suas fantasias; no dizer de um crítico, empre­
humano jamais imaginou, em uma prosa na qual se mistu­ gando o termo de Coleridge: Poe pretendeu impor aos ame­
ram órgãos celestes e orquestras infernais. Num famoso ricanos a "suspension of disbelief"; para eles acreditarem.
ensaio crítico, On the Knocking at the Gate in Macbeth,
interpretou De Quincey a famosa cena humorística do
porteiro, em Macbeth, como missing-link entre o assassinato Edições por E. C. Stedman e G. E. Woodberry, 10 vols., New
York, 1898, e por Ch. F. Richardson, 10 vols., New York, 1902.
no mundo dos grandes e o mundo trivial de todos os dias; G. E. Woodberry: The Life of Edgar Allan Poe. 2.» ed. Boston,
foi uma autodefinição e uma definição da arte dos seus 1909.
TI. Allen: Israfel. The Life anã Times of Edgar Allan Poe. 2 vols.
irmãos no espírito visionário e perturbado. New York, 1926.
M. E. Phillips: Edgar Allan Poe, the Man. 2 vols. Chicago, 1926.
Uma das qualidades mais estranhas de De Quincey é I. W. Krutch: Edgar Allan Poe, a Study in Genius. New York,
o seu bom-senso inglês que fica imperturbável no meio dos llilifi.
A. II. Quinn: Edgar Allan Poe, a Criticai Biography. New York,
espectros mais assustadores. A qualidade correspondente IIMI.
cm Poe ( 81 ) é sua extrema lucidez de espírito que se revela I). Murlon: Le méthoãe intellectuelle ã'Eâgard Poe. Paris, 1943.
N. I). Fuiíin: The Histrionie Mr. Poe. Baltimore, 1949.
A COIIIIIK: Edgar Allan Poe. Paris, 1952.
Hl) Edgar Allan Poe, 1809-1849. l'h. I.lnd.sny: The Haunted Man. A Portrait of Edgar Allan Poe.
Tamerlane and Other Poems (1827); Al Aaraf, Tamerlane and I .ondoii. 1952.
Afinor Poems (1829); Tales of the Grotesque and Arabesque N .1. HOIIN.SOU1U.S: La Peur et VUnivers ãans 1'oeuvre ã'Egard Poe.
(1839); The Raven and other Poems (1845); Tales (1845). 1'IUIM, 1UD2.
1788 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1789

Na poesia, serviu-lhe para esse fim a música verbal de Poe tem exercido influência enorme ( 8 1 _ A ). Através
Shelley — Poe era grande conhecedor e ótimo intérprete de Baudelaire, a poesia simbolista toda estava profunda­
da poesia inglesa. Poesias como Israíel, Ulalume, Lenore, mente impressionada por Poe. Até o severo Mallarmé lhe
Annabel Lee estavam destinadas a hipnotizar os ouvidos e sacrificou num soneto. Até Valéry lhe deve sua teoria
o espírito do leitor; e conseguiram isso. For Annie é, no poética: que pode, aliás, ser aceita por quem não aceita a
género, uma verdadeira obra-prima, superior ao Raven, que poesia de Poe. Todos os nossos conceitos de lirismo puro
se gravou, no entanto, mais firme na memória: sem elementos narrativos e didáticos e sem retórica, assim
como nossa preferência pelo poema curto, descendem da
teoria de Poe. Por isso mesmo, os europeus (e os latino-
"On the morrow he will leave me, as my Hopes americanos) também lhe adoram a poesia. A crítica ame­
have flown before — Then the bird said, Ne- ricana moderna é menos indulgente. Quando não considera
vermore". Poe como "génio adolescente" e malogrado, prefere chamá-
lo "decadente", "artificial", "irreal", "poeta de segunda or­
Poe é um virtuose dos ritmos, da música sem sentido li­ dem". Salienta-se que Poe exerceu influência sobre as teo­
teral; não hermética, mas sem sentido algum. A sua inte­ rias de Baudelaire e Valéry, mas não sobre a poesia atual
ligência lucidíssima sabia, porém, aproveitar-se das teorias deles; que influenciou menos os simbolistas autênticos do
de Coleridge para justificar os seus processos: a teoria que os decadentistas. Lembram o caso parecido de Oscar
da "inintellectual beauty", da "poésie puré" nasceu como Wilde.
sofisma de advogado, sendo destinada a um futuro surpre­ É verdade que a poesia puramente "sensual" (no sen­
endente. A mesma tática ditou a Poe o uso dos terrores tido do adjetivo inglês "sensuous") de Poe não se enquadra
"góticos" no conto — já a escolha do género mais curto na tradição da maior poesia de língua inglesa. É verdade
em vez do romance foi um golpe inteligentíssimo. Não que — para empregar os termos do seu mestre Coleridge
será preciso elogiar "The Fali of the House of Usher", — esse charlatão de génio fêz deliberadamente confusão
"The Masque of the Red Death", "Berenice Black Cat", entre a "imaginação" criadora e os produtos da sua "fan­
tasia" irresponsável. Poe é, como poeta americano, de se­
"The Pit and the Pendulum" — Poe, inspirando-se em
cunda ordem. Mas também é de segunda ordem dentro da
Monk Lewis e Charles Brockden Brown, nunca alcançou
hierarquia da poesia universal; e esse lugar é bastante
a profundidade poética nem o realismo profundo de E.T.A.
honroso.
Hoffmann; mas supera-o pela arte infalível de sugerir to­
Nerval, Bécquer, Poe são poetas puros. Causa estra­
das as angústias ligadas aos complexos subconscientes dos
nheza o fato de que justamente esses criadores de lirismo
leitores. Juntando a esses artifícios "góticos" a habilidade
tiimhém são, todos eles, criadores de coisas muito diferen-
do repórter em investigar e revelar "casos" sensacionais, o N-M: de contos de espectros e fantasmas, de diabolismo
autor de "Purloined Letter" e "Murders in the Rue Mor­ yioienco. Km todos eles " duermen los extravagantes hijos
gue" criou o moderno romance policial. De qualquer ma­
neira, esse antiamericano era bem americano. Só o seu
HUCCHSO era antes europeu. NI Ai <' I*. Ciuiibiiiire: The Influence of Edgar Allan Poe in France.
New York, Ji)27.
1790 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1791

de [su] f a n t a s i a . . . por los tenebrosos rincones de [su] do romance, em vez de predestinado para o Céu, comete
cérebro". São, a esse respeito, os melhores discípulos de seus crimes porque predestinado para o Inferno; e como
E.T.A. Hoffmann que foi o génio do conto "gótico". Tam­ seu conselheiro aparece o próprio Diabo.
pouco se esquecem, nessa altura, os sonhos criminosos de O novo romance "gótico" não conseguiu manter-se
De Quincey e os contos fantásticos de Norwid. Aqueles nessa altura. Contudo, os leitores ingleses ainda têm alto
poetas puros, em poesia ou em prosa, também são "diabó­ apreço pelos romances de "mistério" de Le Fanu ( 8 1 _ D ).
licos". E Stevenson não foi o último dessa grande tradição.
Trata-se de uma grande e muito característica corrente Houve, depois dêlc, o esquisito americano Ambrose Bier-
do romantismo ( 8 1 _ B ). Todos os românticos têm a obsessão ce ( 8 1 - E ), jornalista extravagante como Poe, satanista por
do Amor e da Morte; e atrás d«las sempre aparece, como convicção profunda e autor de alguns contos de horror,
nas gravuras de Félicien Rops e, mais tarde, nos quadros indubitavelmente magistrais.
de Ensor, a sombra do Diabo. O "Inimigo" está igualmente Só na Alemanha não houve, na mesma época, poetas
presente nos contos de Hoffmann e na poesia de Victor comparáveis a Nerval ou Bécquer; pois Brentano é de
Hugo, assim como mais tarde na de Baudelaire. A figura outra estirpe. Tampouco há sucessores dignos de E.T.A.
suprema do satanismo romântico é Lord Byron em quem Hoffmann. A segunda geração romântica na Alemanha
os contemporâneos assustados acreditavam ver o Diabo é essencialmente diferente da primeira ( 8 2 ). A mudança
encarnado; e Byron gostava de fazer esse papel. dos centros literários, da Universidade de Iena para a de
Mas a suprema manifestação literária do satanismo Heidelberg, da capital protestante Berlim para a capital
fomânitco só foi há poucos anos tirada do esquecimento católica Viena, é significativa. E m vez da poesia pura e
e popularizada pelos elogios desse "satanista" contempo­ do satanismo renasce, agora com sentido diferente, o me-
râneo que foi André Gide. Durante muitos decénios, James dievalismo.
Hogg ( 81 " c ) apenas sobreviveu na história literária como O romantismo da segunda geração, na Alemanha, é,
o "Ettrick Shepherd", camponês escocês pouco culto que por assim dizer, mais autêntico e menos crítico. E m vez
escrevera poesias populares à maneira de Burns. Agora da crítica estética dos Schlegel, os estudos folcloristas de
se reconhece nos seus Private Memoirs and Confessions
of a Justified Sinner uma obra-prima psicológico-metafí-
111 D) Joseph Sheridan Le Fanu, 1814-1873.
sica, uma inversão diabólica do calvinismo escocês: o herói The House by the Church-Yard (1863); Wylãer's Hand (1864);
Uncle Silas (1864).
S. M. Ellis: Wilkie Collins, Le Fanu anã Others. London, 1931.
81 B) M. Praz: La Carne, la Morte e il Diavolo nella letteratura ro­ Ill K) Ambrose Bierce, 1842-1914.
mântica. Torino, 1942. Tales of Solãiers anã Civilians (1891) etc.
81 C) James Hogg (the Ettrick Shepherd), 1770-1835. Edição das Obras completas por W. Neale, 12 vols., Washington,
The Queerís Wake (1813); The Private Memoirs and Con­ 1009-1912.
fessions of a Justified Sinner (1824). C. Mc. Williams: Ambrose Bierce. A Biography. New York, 1929.
Edição das Confessions of a Justified Sinner por T. E. Welby, O. II. Grattan: Bitter Bierce. A Mystery of American Letters.
London, 1924. New York, 1929.
H. T. Stephenson: The Ettrick Shepheherd. A Biography. Hiii UW\ Huch: Ausbreitung unã Verfall ãer Romantik. ll. a ed. Leip-
Bloomington, 1922. •/,lK, 1924.
A. L. Strout: The Life Letters of James Hogg, Lubbock, Tex, II A. Korff: Der Geist der Goethezeit. IV: Die Hochromantik,
194(1. l«lp/lK, 1953.

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1790 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1791

de [su] f a n t a s i a . . . por los tenebrosos rincones de [su] do romance, em vez de predestinado para o Céu, comete
cérebro". São, a esse respeito, os melhores discípulos de seus crimes porque predestinado para o Inferno; e como
E.T.A. Hoffmann que foi o génio do conto "gótico". Tam­ seu conselheiro aparece o próprio Diabo.
pouco se esquecem, nessa altura, os sonhos criminosos de O novo romance "gótico" não conseguiu manter-se
De Quincey e os contos fantásticos de Norwid. Aqueles nessa altura. Contudo, os leitores ingleses ainda têm alto
poetas puros, em poesia ou em prosa, também são "diabó­ apreço pelos romances de "mistério" de Le Fanu ( 8 1 - D ).
licos". E Stevenson não foi o último dessa grande tradição.
Trata-se de uma grande e muito característica corrente Houve, depois dele, o esquisito americano Ambrose Bier-
do romantismo ( 8 1 _ B ). Todos os românticos têm a obsessão ce ( 8 1 _ E ), jornalista extravagante como Poe, satanista por
do Amor e da Morte; e atrás delas sempre aparece, como convicção profunda e autor de alguns contos de horror,
nas gravuras de Félicien Rops e, mais tarde, nos quadros indubitavelmente magistrais.
de Ensor, a sombra do Diabo. O "Inimigo" está igualmente Só na Alemanha não houve, na mesma época, poetas
presente nos contos de Hoffmann e na poesia de Victor comparáveis a Nerval ou Bécquer; pois Brentano é de
Hugo, assim como mais tarde na de Baudelaire. A figura outra estirpe. Tampouco há sucessores dignos de E.T.A.
suprema do satanismo romântico é Lord Byron em quem Hoffmann. A segunda geração romântica na Alemanha
os contemporâneos assustados acreditavam ver o Diabo é essencialmente diferente da primeira ( 8 2 ). A mudança
encarnado; e Byron gostava de fazer esse papel. dos centros literários, da Universidade de Iena para a de
Mas a suprema manifestação literária do satanismo Heidelberg, da capital protestante Berlim para a capital
românitco só foi há poucos anos tirada do esquecimento católica Viena, é significativa. E m vez da poesia pura e
e popularizada pelos elogios desse "satanista" contempo­ do satanismo renasce, agora com sentido diferente, o me­
râneo que foi André Gide. Durante muitos decénios, James di evalismo.
H o g g ( 81 " c ) apenas sobreviveu na história literária como O romantismo da segunda geração, na Alemanha, é,
o "Ettrick Shepherd", camponês escocês pouco culto que por assim dizer, mais autêntico e menos crítico. E m vez
escrevera poesias populares à maneira de Burns. Agora da crítica estética dos Schlegel, os estudos folcloristas de
se reconhece nos seus Private Memoirs and Confessions
of a Justified Sinner uma obra-prima psicológico-metafí-
Hl D) Joseph Sheridan Le Fanu, 1814-1873.
sica, uma inversão diabólica do calvinismo escocês: o herói
The House by the Church-Yard (1863); Wylãer's Hand (1864);
Vncle Silas (1864).
81 B) M. Praz: La Carne, la Morte e il Diavolo nella letteratura ro­ S. M. Ellis: Wilkie Collins, Le Fanu anã Others. London, 1931.
mântica. Torino, 1942. Ill E) Ambrose Bierce, 1842-1914.
81 C) James Hogg (the Ettrick Shepherd), 1770-1835. Tales of Solãiers anã Civilians (1891) etc.
The Queen's Wake (1813); The Private Memoirs anã Con­ Edição das Obras completas por W. Neale, 12 vols., Washington,
fessions of a Justified Sinner (1824). 1909-1912.
Edição das Confessions of a Justified Sinner por T. E. Welby, C. Mc. Williams: Ambrose Bierce. A Biography. New York, 1929.
London, 1924. C. H. Grattan: Bitter Bierce. A Mystery of American Letters.
H. T. Stephenson: The Ettrick Shepheherd. A Biography.
Bloomington, 1922. New York, 1929.
A. L. Strout: The Life Letters of James Hogg. Lubbock, Tex, im Hlc. Huch: Ausbreitung unã Verfall der Romantik. ll. a ed. Leip-
11)40. zlif, 1924.
II. A. Korff: Der Geist der Goethezeit. IV: Die Hochromantik,
Uilpzlg, 1953.
OTTO M A R I A CAKPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1793
17;
Goerres; em vez do medievalismo artificial dos protes­ meçara com coisas fantásticas e em parte licenciosas à
tantes Wackenroder e Tieck, o medievalismo do católico maneira de Tieck; ainda mais tarde, o conto "Isabella von
/ Brentano; em vez de conversões ao catolicismo, o cato­ Aegypten" é a expressão máxima de todas as curiosidades
licismo legítimo dos renanos e austríacos, e, no Norte, o do subconsciente romântico, e o drama de tamanho imenso
pietismo luterano de A r n d t ; em vez Ao cosmopolitismo Halle und Jerusalém é o maior repositório do medievalismo.
/ literário dos Schlegel e Tieck, o nacionalismo alemão de Mas aí já se revelam as preocupações morais que fazem
Goerres e Arnim; em vez do antifilistinismo boémio, a do romance Die Graefin Dolores um ponto crítico da evo­
reação monárquica e ortodoxa. Os estetas começam a rezar lução, no sentido de maior responsabilidade. Depois,
e os sonhadores tornam-se políticos. O medievalismo, que Arnim é capaz de escrever um romance histórico, Die
foi no resto da Europa negócio de aristocratas saudosistas Kronenwaechter (Os Guardas da Coroa), fantástico nas
ou de burgueses ávidos de um estilo mais nobre de viver, premissas e realista na elaboração, com contornos mais níti­
torna-se, na Alemanha, ideal da nação ( 8 2 - A ): proclama-se dos do ambiente do que nos romances do próprio Walter
que seria preciso anular a obra da europeização da Ale­ Scott. Então, o antigo poeta já se tornara o a que a origem
manha, iniciada pelos pré-românticos e pela gente de Iena; numa família de " J u n k e r s " prussianos o destinava: "roya-
só no regresso à Idade Média parece encontrar-se a pro- lista" ortodoxo, inimigo da industrialização, terrateniente
teção necessária das particularidades da nação alemã contra conservador. Evolução análoga, embora tirando conclusões
nefastas influências estrangeiras e revolucionárias. O so­ diferentes, seguiu sua esposa, a irmã de Clemens, Bettina
nho medievalista vira política reacionária. Os poetas acom­ Brentano ( 8 4 ), na juventude tão boémia e exuberante como
panharam essa evolução só de longe: os católicos Brentano o irmão. No livro autobiográfico, antes romance epistolar,
e Eichendorff saíram da literatura, se bem que por motivos Goethes Briefwechsel mit einem Kinde (A Correspondên­
diferentes e de maneiras diferentes; Uhland, liberal dou­ cia de Goethe com uma Criança), transfigurou as suas rela­
trinário, não tem nada com o estilo romântico propriamente ções de criança e moça com Goethe, criando uma obra de
dito, senão nos assuntos; o medievalismo dos poetastros que rara força de imagiação — e deformação da verdade. Os
romancearam e dramatizaram a história dos Hoenstanfen, últimos livros de Bettina parecem mais românticos, mais
utilizando e explorando a obra de Raumer, não pertencem confusos na forma; mas o assunto é a revolução industrial
à literatura.
Trata-se de uma dominação do romantismo pelo con-
servantismo; e a testemunha desse processo é o amigo e haima (1813); Die Kronenwaechter (1317); Der tolle Invalide auf
dem. Fort Ratonneau etc.
depois cunhado de Brentano, Achim von Arnim ( 8 3 ). Co- iMiçâo completa por W. Grimm e B. Brentano, 22 vols., Berlin,
IÍÍ39-1856.
KdKão de obras seletas por M. Jacobs, 4 vols., Berlin, 1908.
!•'. Schoenemann: Arnims geistige Entwicklung. Leipzig, 1912.
112 A) G. Salomon: Das Mittelalter ais Ideal der Romantik. Muen- It. CJuignard: Achim d'Arnim. Alger, 1936.
chen, 1922. MH HrUina Brentano (Bettina von Arnim), 1785-1859.
U3> Achim von Arnim, 1781-1831. Corilirs Briefwechsel mit einem Kinde (1835) ; Dies Buch gehoert
Ilollins Liebesleben (1802); Ariels Offenbarungen (1805); Des tlcin Kocnig (1843); Gespraeche mit Daemonen (1852).
Knahcn Wunderhorn (com Brentano; 1805-1808); Armut, Reich- KdK-uo por W. Oohlke, 7 vols., Berlin, 1920-1922.
IIIIH, Schulâ und Busse der Graefin Dolores (1809); Baile und Je­ K ||. Htrobl: lieltina. Bielefeld, 1906.
rusalém (1811); Isabella von Aegypten (1812); Die Paepstin Jo- II /.mie: llctlina. En livsvaeg kring Goethe. Stockholm, 1916.

t
1794 OTTO M A R I A CARPEAUX lIiKT/tiuA HA LITERATURA OCIDENTAL 1795

na Prússia, o pauperismo, as possibilidades de uma solução sociologia conservadora cm escritores tão pouco "sociais"
patriarcalista da questão social. Essa conversão dos antigos como Novalis, Tieck e Eichendorff ( " ) ; trata-se de refle­
românticos à realidade social é um fenómeno geral que se xos de um movimento ^eral que chegou à sua primeira
pode acompanhar bem nas tentativas dos românticos de expressão nítida em Adam Mueller (*N), que, com a ajuda
dominar o género mais anti-romântico de todos, o roman­ dos poetas Kleist e Arnim, fora o porta-voz jornalístico
ce ( 8 0 ). Franz Sternbalds Wanderungen, de Tieck, e o dos junkers contra o ministro liberal Hardenberg. Depois,
Heinrich von Ofterdingen, de Novalis, são fantasias esté­ convertido ao catolicismo, Adam Mueller serviu ao ministro
ticas ou religiosas em forma de romance; Godwi, de Bren- austríaco Metternich, defendendo o legitimismo monárqui­
tano, é um cume insuperável de individualismo. Questões co, em companhia de Gentz (""), um dos estilistas mais
sociais surgem timidamente em Ahnug und Gegenwart, de brilhantes da literatura alemã, tradutor das Reflections on
Eichendorff, mais acentuadas na Graefin Dolores, de Ar- the Revolution in France, de Burke. Mudando-se de Berlim
nim; e até o velho Tieck escreveu uma novela Der junge para Viena, Adam Mueller tinha, porém, caído em contra­
Tischlermeister, que trata da ascensão de uma artífice para dições irresolúveis.
as alturas da civilização estética. Maior consciência da O patriarcalismo que Mueller defendera na Prússia
mudança dos tempos revela Immermann ( 8 6 ), prussiano podia identificar Estado e Nação, considerando a monar­
típico, que na tragédia Das Trauerspiel in Tirol (Tragédia quia como expressão biológica das forças nacionais. Esse
no Tirol), sacrificara ao nacionalismo antínapoleônico, e conceito biológico, racial, da nação, veio de H e r d e r ; tam­
no poema Merlin dera uma das obras mais significativas bém inspirou as Reden an die deutsche Nation (Discursos
do misticismo romântico. O romance meio autobiográfico à Nação Alemã), de Fichte ( 9 0 ), essas proclamações elo­
Die Epigonen trata os românticos como epígonos de tempos quentes contra Napoleão. O mesmo conceito encontrava
passados, encarando firmemente a ascensão da burguesia. as suas fórmulas nítidas, científicas, na obra do grande
Mas Immermann observou a transição social como conser­ jurista Savigny ( 9 1 ) : ao desejo dos burgueses e liberais
vador : no romance Muenchhausen incluiu uma novela, "Der de obter um novo Código Civil conforme o modelo do
Oberhof", o primeiro conto rústico do século X I X , necro­ Código Napoleónico respondeu Savigny de maneira polé­
lógio comovente do camponês alemão à antiga, cedendo mica, negando à sua época e a todas as épocas a capacidade
à revolução industrial.
Sociólogos perspicazes, talvez perspicazes demais, acre­ 87) J.a Baxa: Einfuehrung in die romantische Staatswissenschaft.
2. ed. Jena, 1931.
ditam ter descoberto vestígios de um verdadeiro sistema de
88) Cf. "Pontos de partido do romantismo", nota 18.
85) F. Luebbe: Die Wendung vom Individualismus zur sozialen Ge- 89) Friedrich von Gentz, 1764-1832.
meinschaft im romantischen Roman. Berlin, 1931. Politisches Journal (1799); Staatschriften etc. (ed. por B. Weick,
1836-1838).
80) Karl Lebrecht Immermann, 1796-1840. E. Guglia: Friedrich von Gentz. Wien, 1901.
Cardenio und Celinde (1826); Das Trauerspiel in Tirol (1828); 00) Cf. "Pontos de partida do romantismo", nota 5.
Merlin (1832); Die Epigonen (1836); Muenchhausen (1838).
Edição por R. Boxberger, 20 vols., Berlin, 1883. 1)1) Friedrich Karl Savigny, 1779-1861.
A. W. Porterfield: Immermann, a Stuãy in German Romanticism. Geschichte des roemischen Rechtes im Miitelalter (1815-1831);
New York, 1911. Vom Beruf unserer Zeit zur Gesetzgebung und Rechtswissenschaft
H. Maync: Karl Lebrecht Immermann. Muenchen, 1920. (1814).
H. W. Klein: Immermann. Duesseldorf, 1926. E. Mueller: Friedrich Karl Savigny. Leipzig, 1907.

t
1796 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1797

de criar arbitrariamente Códigos, porque a Lei não é obra O conflito entre os dois conceitos revelou-se na Itália,
dos juristas e sim do "Volksgeist", do "espírito nacional" onde uma nação bem definida estava sob dominação de
que a cria espontaneamente durante os séculos. Sem dú­ um Estado estrangeiro. Acrescentou-se, ali, outra incom­
vida encontram-se no historicismp de Savigny germes do patibilidade: entre o sentimento nacional dos italianos
racismo alemão. A conclusões semelhantes chegou o grande católicos e o universalismo da Igreja católica que apoiava
jornalista Goerres ( 9 2 ), antigo jacobino, depois nacionalista aquele Estado estrangeiro, a Áustria. O conflito girava
antinapoleônico; folclorista eminente, editor dos "Volks- em torno do catolicismo liberal, inspirado pela nobre figura
buecher", das versões populares, prosificadas, das epopeias sacerdotal de António Rosmini ( 9 3 ). Vítima do conflito
de cavalaria; prosador de eloquência extraordinária; enfim, psicológico foi Tommaseo ( 9 4 ), patriota de um conservan-
grande historiador da mística católica. Já em 1822, o renano tismo altamente ilustrado e liberal de profundas convicções
protestara, porém, contra a anexação da sua província pela católicas. A sua religiosidade, não sem influências do este-
Prússia, e num conflito entre o Estado prussiano e a Igreja ticismo de Chateaubriand, tinha a feição pré-romântica
romana atacou Goerres, em Athanasius, com toda a veemên­ de um René burguês ou Werther católico, de um erotismo
cia, o "esqueleto racionalista", o Estado. No terreno cató­ inconfundível ao qual Tommaseo só uma vez permitiu ex­
lico revelou-se pela primeira vez a incompatibilidade do pressão, no romance sentimental Fede e Bellezza. Tomma­
conceito herderiano de Nação com o conceito absolutista seo lutou contra si mesmo, e essa luta dá vida aos ritmos
de Estado; e em nenhuma parte essa incompatibilidade simples, talvez simples demais, da sua poesia religiosa,
devia provocar perigos maiores do que na Áustria, onde
hoje altamente apreciada pela sinceridade do sentimento;
uma monarquia absolutista e patriarcalista reuniu alemães
como poeta, Tommaseo é algo comparável a madame Des-
e tchecos, húngaros, poloneses e italianos e várias outras
bordes-Valmore. Sobre o seu romance disse Manzoni a
nacionalidades sob o domínio da mesma Coroa. No fundo,
frase famosa: "Mezzo giovedi grasso e mezzo venerdi
trata-se da mesma contradição entre os conceitos de Herder
santo". Tommaseo castigava-se pela disciplina de um clas-
e Burke que estava minando o romance histórico. Com
sicista e de um monge; conseguiu sufocar em si o erotismo
efeito, aquela contradição teve repercussões literárias imen­
sentimental e o sentimento romântico; mas ao preço de cair
sas: acabou, pelo menos teoricamente, em Manzoni, com o
romance histórico; condenou à esterilidade as tentativas
93) António Rosmini-Serbati, 1897-1855.
de uma literatura conservadora; criou um movimento lite­ Le cinque piaghe delia Santa Chiesa (1848); Constituzione se-
rário de extensão vastíssima, a literatura folclórica; incen­ condo la giustizia sociale (1848).
F. Palhoriès: Rosmini. Paris, 1909.
tivou um movimento político de consequências inesperadas,
94) Niccolò Tommaseo, 1802-1874.
o eslavofilismo; e acabou suavemente na tranquilidade per­ Fede e Bellezza (1840); SuWeducazione (1846); Dizionario esté­
manente das províncias escandinavas. tico (1857); Corrimento a Dante (1869); Storia civile nella lette-
raria (1872); Poesie (1872).
Edição das Poesie por G. Manni, Firenze, 1902.
M. Lazzari: L'anima e Vingegno di Niccolò Tommaseo. Milano,
92) Jukob Jo.seph von Goerres, 1776-1848. 1911.
l)ic tcutschen Volksbuecher (1807); Mythengeschichte der asia- A. Vesin: Niccolò Tommaseo poeta. Bologna, 1914.
lischcn Welt (1810); Die christliche Mystik (1836-1842); Atha­ B. Croce: "Niccolò Tomcaseo". (In: La letteratura delia nuova
nasius (1837), etc. Itália, vol. I. 3.a ed. Bari, 1929).
KdlVÍio por W. Schellberg, 13 vols., Koeln, 1928-1932. R. Ciampini: Vita ãi Noccolò Tommaseo. Firenze, 1945.
W. Hcliullbcrp;: Jakob Joseph von Goerres. 2.a ed. Koeln, 1926. M. Puppo: Tommaseo. Brescia, 1950.
1798 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1799

em esterilidade. Eis o clima psicológico em que Manzoni descrição impressionante da peste. É um dos mundos mais
tinha que resolver o mais grave problemi político e lite­ completos que jamais um poeta criou: mantido em equi­
rário; no fundo, um problema religioso. líbrio perfeito pela mão de Deus. Manzoni, católico de fé
Os Promessi sposi, de Alessandro Manzoni ( 9B ), são firme, acreditava na Providência divina; por isso, não se
um dos romances mais lidos da literatura universal: todo duvida nunca do desfecho feliz da tragédia, e essa fé trans­
mundo conhece a história dos amantes Renzo e Lúcia, forma o romance em símbolo da harmonia celeste, não per­
pobres camponeses lombardos do terrível século X V I I , se­ turbada por nenhum elemento de terror "gótico" — aliás,
parados pela violência brutal dos aristocratas feudais sob o único romance da escola de Walter Scott de que esse
o governo espanhol, meio tirânico e meio anárquico, e reu­ elemento "gótico" está completamente ausente. Já se afir­
nidos depois da prova terribilíssima da peste em Milão; mou, por isso, que o Céu em cima da Lombardia de Man­
todo mundo conhece as famosas personagens: do heróico zoni é uma cúpula de igreja; e Benedetto Croce censurou,
e santo arcebispo Borromeo até o covarde padre don Abbon- no romance, o elemento da "oratória", a vontade de con­
dio; e o misterioso innominato. É o quadro completo da vencer o leitor da capacidade da fé de garantir o idílio
vida de uma nação em determinada época histórica; é a e o desfecho feliz. Um crítico malicioso chamou a esse
voz de uma paisagem da Lombardia; o verdadeiro perso­ romance providencialista "um conto de fadas, narrado por
nagem principal é o povo, como se revela sobretudo na um historiador erudito"; e os Promessi sposi são muitas
vezes considerados assim, como leitura para a mocidade
católica. Não é possível, porém, equivocar-se de maneira
96) Alessandro Manzoni, 1785-1873.
In morte ãi Cario Imbonati (1805); Urania (1809); II Conte ãi mais completa com respeito ao conteúdo daquela "har­
Carmagnola (1820); II Cinque Maggio (1822); Aãelchi (1822); monia celeste". Se isto é idílio, então é idílio trágico. Nos
Inni Sacri (1824); I Promessi sposi (1825-1826); Sulla morale
cattolica (1826); La storia delia colonna infame (1840); Del ro- Promessi sposi estão presentes todos os sofrimentos infer­
manzo storico (1845). nais dos quais a humanidade é vítima: tirania, violência,
Edição por M. Scherillo, G. Sforza e G. Gallavresi, 4 vols., Mi-
lano, 1912-1921. paixões, injustiças, e a peste e até aquele inimigo mais
Fr. De Sanctis: Manzoni. Stuãi e Lezioni. 1872-1883. (Edição por terrível da espécie, a burrice covarde, na pessoa de Don
G. Gentile, Bari, 1922.
F. D'Ovidio: Discussioni manzoniane. Città di Castello, 1886. Abbondio, que é uma criação de espírito cervantino. Mas
L. Beltrami: Alessandro Manzoni. Milano, 1898. os horrores estão atenuados pela perspectiva histórica;
F. D'Ovidio: Nuovi stuãi manzoniani. Milano, 1908.
C. De Lollis: Alessandro Manzoni e gli storici liberali delia Res- e até a trivialidade da pequena gente é transfigurada pelo
taurazione. Bari, 1926. humorismo irónico e indulgente. De maneira cósmica, a
A. Galletti: Manzoni, il pensatore e il poeta. 2 vols. Milano, 1927.
L. Tonelli: Manzoni. Milano, 1927. Providência divina e os atos humanos estão entrelaçados;
B. Croce: Alessandro Manzoni. Saggi e Discussioni. Bari, 1930. o romancista, quase como Deus, está com paciência divina
F. Rufini: La vita religiosa ãi Alessandro Manzoni. Bari, 1931.
A. Momigliano: Alessandro Manzoni, la vita e le opere. 2.a ed. igualmente perto e igualmente longe de todos os persona­
2 vols. Messina, 1933. (5.a edição. Milano, 1952.) gens, de modo que essa Comédia Humana da literatura
A. Zottoli: Umili e potenti nella poética ãi Alessandro Manzoni.
Bari, 1934. italiana pode terminar, como a outra, a Divina Comédia,
F. Nicolini: Arte e storia nei Promessi sposi. Milano, 1939. t.om a expressão do "amor che muove il sole e 1'altre stelle":
L. Russo: Personnaggi dei Promessi sposi. Roma, 1946.
N. Bapepno: Uopera di Alessandro Manzoni. 2 vols. Roma, 1946- "Dite loro che perdonino sempre, sempre! t u t t o ! t u t t o ! "
1947.
A. Colquhoun: Manzoni anã his Times. London, 1954. I'1: o maior romance histórico que jamais se escreveu.
1800 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1801

A fonte dessa grande arte, divina e profundamente bardo: hoje, depois de minuciosas investigações biográ­
humana, é o respeito de Manzoni pelo que foi. A História ficas, conhecemos o fundo patológico da sua alma e as
tinha significado para êle, como a "Madre dei Santi" no graves crises que atravessara. Manzoni fora livre-pensador,
seu hino Pentecoste, antes de ser convertido por um padre jansenista; e um
germe de jansenismo, de catolicismo "oposicionista", não
" . . . immagine o abandonou nunca. O jansenismo abriu a esse aristocrata
Delia città superna, lombardo a compreensão da História assim como o liberal
Del Sangue incorruttibile Thierry a interpretava: como luta de raças e classes. Nos
Conservatrice eterna." Promessi sposi há mais de um vestígio daquela interpre­
tação: é, conforme a expressão feliz de Zottoli, o romance
0 rigoroso respeito pela verdade histórica entrou em con­ "dos poderosos e dos humildes". O providencialismo cató­
flito, em Manzoni, com a vontade de criar história, pelo lico de Manzoni é na verdade um predestinacionismo meio
menos na ficção. Fiel aos preceitos da estética aristotélica jansenista. Esse predestinacionismo aparece claramente, no
da Contra-Reforma, Manzoni acabou condenando o romance romance, na personagem misteriosa da freira de Monza.
histórico como género híbrido, como falsificação da ver­ Mas não é uma fé negativa. Também aparece como fé do
dade; e o fim do conflito foi uma longa noite de meio liberal Manzoni no destino providencial da classe que fará
século de esterilidade literária, de letargia quase patoló­ a história da Itália. Mas esse progressismo herderiano
gica em face daqueles grandes acontecimentos históricos entrou em conflito com o senso histórico, todo burkiano,
que terminaram para sempre, na Itália, a época dos Pro- de Manzoni, assim como o seu nacionalismo italiano entrou
em conflito com o universalismo católico, e, enfim, o seu
messi sposi. Realizou-se o que êle desejara: a liberdade da
liberalismo com o seu catolicismo. Não havia solução. Man­
pátria. Mas Manzoni continuou mudo.
zoni evadiu-se da literatura e do mundo — a verdadeira
O conflito de Manzoni estava dentro da sua fé. Os
tragédia de Manzoni é essa evasão que acabou em mutismo.
Inni sacri, sobretudo Rissurrezione e Pentecoste, são a
Km vez de fazer a história, devia sofrê-la; mas com a espe­
poesia católica mais grandiosa que a época moderna ouviu,
rança "che perdonino sempre, sempre! t u t t o ! t u t t o ! "
porque estão livres de qualquer convenção edificante e
de qualquer sentimentalismo. Como o romance, os hinos A Restauração absolutista, depois de 1815, conseguiu
são expressões da alma coletiva em face da presença divina impor um regime; mas não conseguiu criar uma literatura,
nos destinos do mundo; são expressões de um catolicismo Hcníio, por mais paradoxal que pareça, uma literatura de
moderno, democrático, seguro de si mesmo. O próprio oposição, quer dizer de resistência às concessões que os
Benedetto Croce acabou, na velhice, retratando-se, admi­ i:oviinos fizeram ao "espírito da época", ao liberalismo.
tindo a ausência daquela "oratória" nos Piomessi spo­ I)<nnes estranhos bardos da Reação merece a atenção o ho-
96
si ( lir,A
). Atrás dessa segurança escondeu-se, porém, o con- IMIMW-H Tsaac da Costa ( ), judeu de origem portuguesa,
1 lito. Manzoni, contemplador calmo do mundo durante meio
VIU ír.nnr (lu Oo.st.u, 1798-1860.
século, parecia aos contemporâneos o tipo do burguês lom- Tlitl.vuiiini (1822); Hagar (1855); De Slag bij Nieuwpoort (1859).
I' I1' 'l'li. vmi llooiíslraten: Da Costa, eene stuãiê. Haag, 1875.
W (I (!. Hyviuick: Ih: jcugá van Isaac ãa Costa. 2 vols. Leiden,
IlhAi In Sprllalorc italiano, março de 1952. 1111)4
1802 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1803

convertido ao calvinismo da mais estrita observância ho­ Henrique, o chefe dos aristocratas, se defronta com Pan-
landesa, discípulo de Bilderdijk e panfletário poético con­ crazio, o chefe dos proletários revolucionários; Pancrazio
tra o liberalismo; sob a influência de Carlyle, tornou-se é caracterizado como demagogo, mas Henrique também
medievalista, escrevendo poemas épicos históricos, de uma aparece antipático, como esteta vazio; e no fim caem ambos,
considerável força de expressão, talvez a mais eloquente fulminados pela visão da Cruz. Krasinski partiu de pre­
poesia em língua holandesa, depois de Vondel, e por isso missas erradas: substituiu, na luta de classes, a burguesia
condenada pela crítica moderna. O único grande poeta por feudais poloneses; e não conheceu outro proletariado
entre os conservadores da época é o conde polonês Zygmunt senão as massas famintas e meio inconscientes das revoltas
Krasinski ( 9 7 ). Exilado pelos russos, experimentou na Eu­ trabalhistas de Lião que lhe inspiraram a obra. Contudo,
ropa as primeiras convulsões da questão social; viu o abis­ a Comédia não Divina é, em 1835, a primeira obra da
mo entre os ideais nacionais e religiosos da aristocracia literatura universal na qual foi tratada, em vez de questões
polonesa e as aspirações políticas e sociais da burguesia e políticas, a questão social; e a forma, meio prosaica, meio
do proletariado na E u r o p a ; encheu-se-lhe o cérebro de simbólica, já é a dos grandes dramas de Ibsen. Krasinski
visões apocalípticas, anunciando o fim da civilização cristã. não conservou, aliás, o seu otimismo religioso. Em Três
Filho de um general que, ficando fiel ao tzar, tinha traído
Pensamentos, a Igreja romana, sacudida por um aconteci­
a causa da revolução polonesa, Krasinski não ousou publicar
mento apocalíptico, cai em pedaços, e nas ruínas fica com
as suas obras sob o seu nome, tornando-se famoso como o
o Papa só o último paladino da velha ordem, a aristocracia
"Poeta Anónimo da Polónia". Êle, sim, era patriota, e de
polonesa; a Igreja do futuro, que Krasinski previu, revela
velho estilo: no drama Iridion simbolizou a luta polonesa,
a face de uma "Terceira Igreja", meio messianista, meio
representando os sofrimentos dos primeiros cristãos nas
socialista à maneira de Lamennais. Nos últimos anos, Kra­
catacumbas; e ainda na sua última obra, Salmos do Futuro,
sinski evadiu-se da literatura para a contemplação mística.
aparece a Polónia como representante de Deus na Terra,
O desacordo entre o sentimento nacional e o sentimento
lutando contra as revoluções inspiradas pelo ateísmo. A
patriótico, consequência do conflito entre Revolução e Es­
importância de Krasinski na literatura universal reside na
tado, entre Rousseau-Herder e Burke, revela-se na impossi­
sua tragédia enorme Comédia não Divina, na qual o conde
bilidade de criar uma poesia nacionalista. O que os alemães
produziram nesse campo, antes e depois do levante contra
97) Zygmunt Krasinski, 1812-1859. Napoleão em 1813, é uma miséria. O patriotismo bombás­
Comédia não divina (1835); Iridion (1836); Três pensamentos
(1840); Noite ãe verão (1841); Antes da aurora (1843); Salmos tico c mal rimado das canções patrióticas de Koerner ( 98 )
do futuro (1845-1848); Glosa de Santa Teresa (1852). deveu imerecida fama à morte do poeta adolescente no
Edição por J. Czubek, 8 vols, Kraków, 1912.
J. Klaczko: "La poésie polonaise au XIXe siècle et le Poete ano- Tampo de batalha e a uma intensa propaganda nas escolas;
nyme" (In: Revue des Deux Mondes, 1862/1.) MH consequências para a evolução do gosto poético na Ale-
J. Kleiner: Zygmunt Krasinski. 2 vols. Lwów, 1912 (em língua
polonesa). nmnhii continuam funestas. É muito característico o fato
St. Tarnowski: Zygmunt Krasinski. 2.a ed. 2 vols. Kraków, 1912
(rm língua polonesa).
M. M. Gardner: The Anonymous Poet of Polanã, Zygmunt Kra-
Hinski. London, 1919. MUI TIIIMHIIII' Kncmrr, 1791-1813.
A. Brueckner: Zygmunt Krasinski. Warszawa, 1927 (em língua l,t<U<'i llinl Schwrrl. (1H14).
Ijoloncsu). K. Ilt<i'ii<<r: ThvoUor Koerner. Bielefeld, 1912.
1804 OTTO M A R I A CABPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1805

de que a poesia patriótica desses Koerner, Arndt, Schen- O inspirador era Goerres, então professor na Univer­
kendorf, imaginada como poesia para o povo, não passa de sidade de Heidelberg; e foram os seus discípulos Brentano
imitação lamentável da poesia classicista, sem a menor se­ e Arnim que editaram Des Knaben Wunderhorn ( 1 0 °), a
melhança com a verdadeira poesia popular, que justamente mais rica coleção de poesias populares alemãs e a mais
então se revelou em consequência de um grande movimento bela coleção de poesias populares que existe no mundo
folclorista. inteiro. Lieds como "Jnsbruck, ich muss dich l a s s e n . . . " ,
O interesse intenso pela poesia popular e outros pro­ "Es ist ein Schnitter, der heisst T o d . . . " , "Zu Strassburg
dutos literários do folclore, como epopeias, romanças e auf der S c h a n z ' . . . " , " E s liegt ein Schloss in Oesterreich...",
contos de fadas, veio do pré-romantismo, e continuava, no "Ein Jaeger aus K u r p f a l z . . . " , são as peças mais preciosas
início, nos mesmos moldes. À descoberta do Nibelungenlied da poesia alemã, fonte de inspiração para os Eichendorff
e do Poema dei Cid seguiu-se, em 1836 e 1837, a da Chanson e Heine, Moerike e Lilliencron e toda a lírica alemã em
de Roland, editada por Paulin Paris e por Francisque Mi- tom menor; o Wunderhorn criou, mais, o lied musical dos
chel; em 1835, Elias Loenrot ( 98 - A ) publicou a Kalewala, Schubert e Schumann, Brahms e Hugo Wolf. E quanto
a epopeia nacional dos finlandeses. E n t r e 1857 e 1861 apa­
às repercussões internacionais desse lied alemão pode-se
receu a Kalevipoeg, epopeia nacional dos estonianos, des­
afirmar que com Des Knaben Wunderhorn começa uma
coberta por Friedrich Reinhold Kreutzwald. Nota-se, aliás,
nova época da literatura universal. Destino literário mais
nas gerações entre 1800 e 1840, uma mudança de atitude,
modesto, mas repercussão semelhante coube aos Kinder —
diferente do interesse folclorista dos pré-românticos ( " ) .
O novo senso histórico sabe distinguir melhor entre as unde Hausmaerchen (Contos de fadas), dos irmãos Jakob
expressões das épocas. Ossian já está em descrédito e meio e Wilhelm Grimm ( 1 0 1 ), grandes folcloristas, estudiosos
esquecido; o falso escandinavismo dos "bardos" desaparece da mitologia germânica e da história do direito alemão;
por completo; diminui o interesse pelas epopeias, as baladas a sua encantadora coleção de contos de fadas foi traduzida
históricas e a poesia medieval, em favor da poesia popular para todas as línguas e incentivou em toda parte o zelo
ainda viva, expressão do "Volksgeist", do "espírito popu­ <1c reunir coleções semelhantes, sobretudo na Noruega, por­
lar" e racial. J á não se permitiriam os processos de Percy, que os contos de fadas foram reconhecidos como resíduos
remodelando as velhas baladas ao gosto do século X V I I I , mais ou menos deformados da mitologia germânica, da qual
nem o processo de Herder, incluindo poesias de poetas
conhecidos e modernos entre os poetas anónimos do povo.
O novo movimento folclorista é fiel ao espírito da nação; mui Des Knaben Wunderhorn (publicado por Clemens Brentano e
é nacionalista. Achim vom Arnim, 1805-1808). (O título, que não é bem tradu-
■/Ivel, significa, mais ou menos: o corno mágico do menino.)
Mi
1
l leão por K. Bode: 2 vols., Berlin, 1918.
I '. Kicser: Des Knaben Wunderhorn unâ seine Quellen. Dort-
nuiiul, 1907.
II» A) D. Comparetti: 11 Kalevala e la poesia tradizionale dei Finni.
Roma, 1891. 101 > .inml) Orimm, 1785-1863, e Wilhelm Grimm, 1786-1859.
A. Anttila: Elias Loennrot. Helsinki, 1945 (em língua finlan­ Kindrr und Hausmaerchen (1812-1815); Deutsche Sagen
desa). (IMKI llllll).
Ilí) > H. Lohrc: Von Percy zum Wunderhorn. Leipzig, 1902. NillvAo das Macrc.hen por I. Lefftz, Leipzig, 1926.
W Mclicicr: Jacob Grimm. 2." ed. Berlin, 1885.
1806 OTTO M A R I A CARPEAUX HisTÓniA DA LITERATURA OCIDENTAL 1807

os noruegueses ainda se orgulham. Asbjoernsen e Moe ( 1 0 2 ), O movimento folclorista era de alcance universal, atin­
um zoólogo e um vigário, colecionaram os contos e lendas giu outras raças e outros continentes, nem sempre sob
populares da Noruega, fornecendo assuntos e documentação influência direta do romantismo germânico, mas como ele­
riquíssima a uma geração inteira de poeta, Bjoernson e mento característico do romantismo em geral. Imitação
Ibsen entre eles; nas peças da fase romântica dos dois dos vizinhos eslavos levou Janós Erdélyi à coleção das
grandes dramaturgos noruegueses também citam-se com Canções e Lendas Populares Húngaras (1846/1848); e o
frequência canções populares, das quais Moe publicou em mesmo motivo agiu, sem dúvida, no romeno Vasile Alec-
1840 a primeira coleção, seguida pela edição monumental sandri ( 10B ), que era, aliás, um escritor de importância,
do vigário e poeta popular Magnus Brostrup Landstad dominando igualmente o tom popular e o estilo classicista;
(Norske Folkeviser, 1853) ( 102 " A ). Sob a influência ime­ estava filiado a todos os movimentos de "Renascença la­
diata dos alemães editaram Knud Lyne Rahbek, Rasmus tina", mormente ao "Félibrige" dos provençais Mistral e
Nyerup e H.W.F. Abrahamson uma importante coleção de Aubanel. A repercussão geograficamente mais remota do
poesias populares dinamarquesas Udvalgte danske Viser folclorismo alemão, através do romantismo português, ma-
fra Middelalderen (1812/1814), logo superada pela grande nifestou-se na poesia de Gonçalves Dias ( l o e ) , o maior
edição de Grundtvig ( 1 0 3 ), Danmarks gamle Folkeviser, poeta romântico do Brasil, erudito que sabia imitar a poesia
que se iniciou em 1835, para terminar só em 1890. A parte portuguesa medieval, inventor de um folclore poético índio.
de consciência nacional e também de vaidade nacional nes­ Sua poesia erótica é muito pessoal; mas nos lieds do grande
ses trabalhos revelou-se na discussão acalorada entre dina­ indianista, a influência alemã é inconfundível.
marqueses e noruegueses com respeito à prioridade crono­ O movimento folclorista alcançou as maiores dimensões
lógica das respectivas poesias populares, questão que os e uma importância transcendental entre os povos eslavos.
dois partidos resolveram, de acordo comum, em detrimento A prioridade, não a cronológica mas a da assiduidade, coube
da poesia popular sueca, considerada mero eco das outras; aos tchecos, sobretudo ao primeiro poeta lírico importante
as canções suecas, reunidas por Geijer ( 104 ) e Arvid August da literatura tcheca, Celakovsky ( 1 0 7 ). A grande admiração
Afzelius nos volumes Svenska íolkvisor fiam forntiden
(1814/1817) podem ser posteriores; mas não são inferiores. 105) Vasile Alecsandri, 1821-1890.
Poesii populare ale Romanilor (1852-1866); Pastele (1867); Le­
gende (1871); Dumbrava rosie (1872).
102) Peter Christen Asbjoernsen, 1812-1885, e Joergen Engebrektsen A. Zaharia: Alecsandri. Bucuresti, 1919.
Moe, 1813-1882. N. Petrescu: Alecsandri. Bucuresti, 1926.
Norske Folke-Eventyr (vols. I/II, 1842-1844; vol. III, 1871);
Norske Huldreeventyr og Folkesagn (1845-1848). 10(1» António Gonçalves Dias, 1823-1864.
A. Larsen: Peter Christen Asbjoernsen. Oslo, 1872. 1'riniciros cantos (1846); Segundos Cantos e Sextilhas de Frei
Henr. Jaeger: "Asbjoernsen og Huldreeventyret". (In: Norske Antão (1848); Últimos Cantos (1851); Os Timbiras (1857).
jorfattere, vol. I. Oslo, 1883.) Krtiçilo por M. Bandeira, 2 vols., S. Paulo, 1944.
F. Grimnes: Dikteren Moe. Oslo, 1929. I..-M. Pereira: A vida de Gonçalves Dias. Rio de Janeiro, 1943.
K. Liestol: Peter Christen Asbjoernsen. Mannen og livsverket. 107) Knmllsck Celakovsky, 1799-1852.
Oslo, 1947. 1'OCSIUK populares eslavas (1822-1827); Eco das canções russas
102 A) H. Nilsen: Magnus Brostrup Landstad. Hans liv og diktning. HIIMIO; Eco das canções tchecas (1839); Filosofia dos povos es-
Oslo, 1921. liirm cm provérbios (1852).
I':ill(.iu) por L. Quis (com introdução), 3 vols., Praha, 1871-1877.
l(i:n Cf. nota 124. .1 Miiclml: O trabalho fundamentai de Celakovsky. Praha, 1899
1041 Cl', notu 55. *«'iii llnnuu Idiccu).
1808 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1809

da sua vida era a poesia classicamente simples e objetiva mente poeta de formação tcheca e alemã, de um lirismo
de Goethe; e dela conseguiu aproximar-se no volume Eco mais puro do que a maioria dos poetas iugoslavos, atraídos
das canções tchecas, que não é uma coleção de poesias irresistivelmente pela balada histórica, o produto mais ori­
populares, mas de poesias originais à maneira popular. Já ginal da poesia popular sérvia. Já no século XVIII, o
antes, e com o mesmo sucesso, Celakovsky imitara a poesia italiano Alberto Fortis chamou a atenção da Europa culta,
popular russa. E aprendera tudo isso no seu trabalho de traduzindo e inserindo no seu Viaggio in Dalmazia (1774)
folclorista na grande coleção das Poesias Populares Es- algumas canções sérvias; uma delas a "Canção Fúnebre
lavas. A inspiração veio-lhe diretamente de Herder; e não das Mulheres de Asan Aga", foi logo traduzida por Goethe
menos significativo é o fato de que Celakovsky, filho de e incluída nas Stimmen der Voelker in Liedern, de Herder.
um povo eslavo sem independência política e isolado A grande sorte coube, depois, ao sérvio Vuk Stefanovic
no centro da Europa, reunira poesias de todos os eslavos, Karadzic (IO»-A) : a s SU as Canções Populares (1814, 1823/
considerando-as como expressões de uma alma coletiva co­ 1833) revelaram uma grande epopeia histórica, fragmentada
mum. Celakovsky encontrou muitos companheiros zelosos. em cantos à maneira das "Chansons de geste". O eco dessa
O padre Josef Vlastimil Kamaryt reuniu as Canções Reli- descoberta era grande na Europa ( 1 1 0 ). Contribuiu para
giosas do Povo Tcheco (1831/1832); Frantisek Susil, as chamar, na Rússia, a atenção para Kolzov ( 110 - A ), poeta-
Canções Nacionais de Morávia (1835); e os dois grandes camponês ao qual Turgeniev chamou "Burns russo". Ne­
eslavistas Jan Kollar e Josef Safarik associaram-se para a nhum desses poetas menores alcançou, porém, a cultura
edição das Canções Populares Eslovacas (1823/1827). En­ literária de Preseren; e parece que a poesia popular russa
tre os últimos dessa geração de folcloristas tchecos encon- ofereceu modelos menos adequados; a famosa Coleção de
tra-se Erben ( 1 0 8 ), que prestou atenção especial às baladas Poesias Antigas (1868/1874), que o eslavófilo Peter Kire-
e conseguiu imitá-las magistralmente; nas baladas de Erben jevski reunira durante a vida inteira, inspira ligeira decep­
ressuscitam as lendas antigas, tremem as angústias do povo ção ( 110 " B ).
primitivo; são superiores até às baladas de Buerger.
A descoberta de Karadzic foi provavelmente o motivo
109
O maior discípulo de Celakovsky era Preseren ( ), de uma grande falsificação literária, de consequências ines­
o grande poeta do povo eslovaco; embora também cedendo peradas. Falsificações literárias são fenómeno de todos
a outras influências — italianas nos sonetos, inglesas da
"Lake Poetry" no poema narrativo — é Preseren principal- 10!) A) L. Stojanovic: A vida de Vuk Karadzic. Beograd, 1924 (em
língua sérvio-croata).
108) Karel Jaromir Erben, 1811-1870. no* D. Subotic: Yugoslav Popular Ballads, their Origin and Deve-
lopment. Cambridge, 1932.
As canções nacionais da Boémia (1842-1845); Ramalhete de flo­
res (1853); Cem contos de fadas eslavos (1865). no Ai Aloxander Vassiljevitch Kolzov, 1809-1842.
Edição por J. Sutnar, Praha, 1905. Poesias (1835).
V. Brandi: A obra de Karel Jaromir Erben. Brno, 1887 (em A. Schalfejev: A poesia popular de Kolzov e a poesia popular
língua tcheca). russa. Moscou, 1910 (em língua russa).
K)í)> Frunz Preseren, 1800-1849. l Kl III ivtr Vassilievitch Kireievski, 1808-1856.
Poesias (publ. por I. Stritar, 1866). Killçfio cia Coleção de poesias antigas por V. F. Miller e M.
Edição por A. Askerc, Ljubljana, 1902. N. Kpcranski, Petersburgo, 1911.
V. Kidric: Franz Preseren. 2 vols. Ljubljana, 1936-1938 (em M. (Ici-Kclienuon: Petr Vassilievitch Kireievski. Vida e Can-
lliiKiui e.slovena). V<»'.v. Mo.scou, 1911 (em língua russa).
mio OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1811

os tempos; o romantismo criou, porém, uma predisposição doeu a falta de monumentos literários da antiguidade da
para aceitá-las. Ilusionismo, ironia, "poesia de espelho" sua nação; e, confiando na sua capacidade de imitar a
dos românticos de Iena não eram fenómenos isolados. Para língua eslava arcaica, publicou em 1817 um manuscrito,
aumentar a ilusão, surgiu a moda de fazer passar romances encontrado na cidade de Koeniginhof na Boémia, contendo
por transcrições de manuscritos, encontrados num velho um tesouro de lendas poéticas medievais; no ano seguinte,
castelo. Já Horace Walpole publicou The Castle oí Otranto no "manuscrito de Gruenberg", leu-se o poema épico O
como sendo tradução de um velho manuscrito italiano; no tribunal de Libussa, revelando a altura extraordinária da
fim da época romântica escreveu Meinhold ( i n ) um ro­ civilização tcheca no século X. Dois grandes eslavistas,
mance interessantíssimo sobre a bruxaria na Alemanha do Dobrovsky e Kopitar, chamaram logo a atenção para os
século X V I I , Die Bernsteinhexe (A Bruxa de Âmbar), erros linguísticos e os anacronismos nos dois manuscritos.
imitando a língua daquela época e alegando ter transcrito Mas a Europa inteira já prestara as maiores homenagens
uma crónica; e muitos acreditavam. Pois a base dessas à "antiga poesia tcheca" — Goethe traduzira um dos poe­
mistificações foi uma teoria científica. Conforme Savigny mas. A vaidade nacional estava em questão; eruditos tão
e Grimm, a Poesia e o Direito eram criações do espírito cole- grandes como Palacky e Safarik manifestaram-se a favor
tivo em tempos remotos. E n t r e essas produções já se tinham da autenticidade dos documentos. Passaram decénios até
encontrado obras-primas anónimas. Por que não acreditar — por volta de 1880 — Gebauer, Goll e Masaryk consegui­
na possibilidade de descobrir mais outras? Além disso, aque­ rem dissipar as nuvens da mistificação e purificar a atmos­
las teorias colocaram a produção poética em misteriosas dis­ fera nacional, envenenada por fraude e vaidade. Até então,
tâncias do tempo e misteriosas profundidades da alma cole- os manuscritos de Koeniginhof e Gruenberg foram consi­
tiva, de modo que a rleação entre autor e obra se tornou derados como documentos decisivos de uma grande civili­
duvidosa. O Ossian de Macpherson é um produto do gosto zação eslava nos começos da Idade Média; e isso serviu aos
primitivista dos pré-românticos; as falsificações de Chatter- desígnios do "eslavofilismo".
ton pretenderam agradar as vaidades locais e pessoais. In­ Nas origens desse movimento importantíssimo encon-
terveio, depois, o desejo de conseguir documentos do passa­ tra-se, mais uma vez, a grande figura de Herder ( 1 1 3 ). Na
do nacional, para satisfazer ao gosto medievalista e justificar juventude, como professor da escola luterana em Riga,
reivindicações político-culturais. E n t r e 1800 e 1840 é a entusiasmara-se pelo Império russo e os seus povos eslavos;
época áurea das crónicas e manuscritos falsificados. Ao considerava Catarina a Grande como ideal de um príncipe
eslavista tcheco e poeta fracassado Vaclav Hanka ( 112 ) conforme Montesquieu; desejava tornar-se êle mesmo o
Montesquieu dos eslavos. E quando num filósofo eslavo,
111) Wilhelm Meinhold, 1797-1851. no tcheco Comenius, encontrou as fórmulas definitivas do
Die Bernstenhexe (1843).
K. Tranmer: Wilhelm Meinhold ais Romanschriftsteller. Wuerz-
burg, 1923.
112) Vaclav Hanka, 1791-1861. A. Knizek: A querela em torno dos manuscritos de Koeniginhof
Manuscrito de Koeniginhof (1817); Manuscrito de Gruenberg r1- (iruenberg. Praha, 1888 (em língua tcheca).
(1818). I . M. Bartok: Os manuscritos de Koeniginhof e Gruenberg.
I. Gebauer: "Unechtheit der Koeniginhofer und Gruenberger 1'niha, 1946 (em língua tcheca).
Handschrift" (In: Archiv fuer slavische Philologie. X/XI, 1887- Min .1 pntzncr: "Herder und die Slaven". (In: Zeitschrift fuer
1888. (iHtctuopaeische Geschichte, 1927/II-IV.)
1812 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1813

seu humanitarismo espiritualista, chegou a identificar os tico de J a n Kollar ( 1 1 4 ). Era um pobre estudante de teologia
eslavos com uma raça ideal de^àgricultores sem belicosi- luterana em Iena, eslovaco de nascimento, quer dizer,
dade, um povo idílico, vivendo em liberdade algo anárquica, daquela parte da nação tcheca que os húngaros privaram
sem Estado, nas estepes orientais, esperando a sua hora desde séculos de todos os vestígios de existência nacional.
para entrar na História. No famoso capítulo IV do livro Na Alemanha conheceu a teologia livre de Lessing, as ideias
X V I , parte I V das Ideen zu einer Philosophie der Ges- humanitárias de Herder — sobretudo Herder — e o nacio­
chichte der Menschheit (Ideias sobre uma Filosofia da nalismo racial de F i c h t e ; o historiador romântico Luden
História da Humanidade), publicado em 1791, Herder pre­ sugeriu-lhe ideias fantásticas sobre a antiguidade eslava.
viu, depois da derrota histórica dos gregos e romanos, E Kollar leu muito Schiller e Byron. Por isso deu ao
também a das raças latina e germânica, já decadentes, atri­ seu grande poema Slávy Dcera a forma classicista de um
buindo aos eslavos a missão histórica de estabelecer o futu­ ciclo de 645 sonetos. Mas no fundo é uma grande elegia
ro reino da Paz, Agricultura e Poesia, para realizar o ideal pré-romântica sobre o "império" e a civilização desapareci­
dos dos eslavos na região entre os rios Elba e Oder. É
humanitário. Sem dificuldade reconhece-se nessas ideias
muito significativo o título de um tratado de Kollar, escrito
a velha doutrina mística da "Terceira Igreja" sempre viva
em alemão: Sobre a Reciprocidade Literária entre as Dife­
entre os tchecos, agora modificada conforme as ideias do
rentes Tribos da Nação Eslava. Apoiando-se na grande
humanitarismo da Ilustração e do nacionalismo pré-român-
semelhança entre as línguas eslavas, Kollar tratou a raça
tico. Não é estranhável que aquele capítulo tenha sido
eslava como uma nação homogénea, exigindo para ela uma
logo traduzido para a língua tcheca, e isso nada menos
literatura comum. Kollar é o pai do pan-eslavismo literário.
do que quatro vezes, por Fortunat Durych, Dobrowsky, Através de Kollar e outros literatos tchecos o pan-esla­
Kopitar e Josef J u n g m a n n ; os tchecos, vivendo desde sé­ vismo literário entrou na Rússia, tomando uma feição dife­
culos sob dominação estrangeira, tornaram-se todos her- rente. Ali não se tratava de sugerir esperanças a uma
derianos, especialmente os estudantes protestantes eslova­ nação oprimida; os russos constituíam um Império pode­
cos, então numerosos na Universidade de Iena, Kollar e roso. Por isso, o arqui-russo Karamsin rejeitou as ideias
Safarik entre eles. Contaminou-os o nacionalismo alemão de Kollar, declarando os russos satisfeitos com a sua própria
da época da revolta contra Napoleão; e a ciência fantástica herança histórica, quer dizer, o autocratismo tzarista e a
dos românticos ofereceu-lhes um pendant historiográfico l|',ioja ortodoxa. Outros, porém, imbuídos de ideias huma-
das esperanças do futuro herderiano. Os antigos germanos
não eram tão sem cultura como os humanistas pensavam,
lll) .Iiin Kollar, 1793-1852.
afirmou Jakob Grimm; ao contrário. Então, surgiu ao Slávy Dcera (1824-1832;; Ueber ãie literarische Wechselseitigkeit
lado da arqueologia fantástica dos germanos uma eslavística íiwischen ãen verschieãenen Staemmen der slavischen Nation
<1K37).
igualmente fantástica. Lembraram que a atual Alemanha Th. G. Masaryk: "A comunidade eslava em Jan Kollar." (In:
oriental, até o rio Elba, fora território habitado por eslavos Ntisc Doba, 1894.) (Em língua tcheca.)
M. Murko: Die ãeutschen Einfluesse auf ãie Anfaenge der
até o século X. As falsificações de Hanka contribuíram IHIVII mixchen Romantik. Graz, 1897.
para encher aquela época com templos e palácios imaginá­ .1 .i.ikutae: Literatura ceska. Vol. II. 2.a ed. Praha, 1913. (Em
liiip.uu Ichcca.)
rios de uma civilização eslava extinta — eis o ambiente poé- A Mniz: Jan Kollar. Estudo literário. Praha, 1952. (Em língua
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1814 OTTO M A R I A CARPEAUX
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nitárias, olharam com espanto a decadência do Ocidente
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programa político; conservou sempre os vestígios da sua iá não são A m a i d í l i c a °' K o n s t a n t i n Ser-
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115) Th. G. Masaryk: Russland, unã Europa- Zur russischen Ges- revolta de S ^ t r a a * ! ' o O c i d e l " 1 8 ^ " " ^ *
chichts — unã Religionsphilosophie. Vol. I. Jena, 1913. •.ecularizacã * * » d s t i a i / ' C ° n t r a ° H°e-
G. Smolic: "Westler und Slawophile in der neueren Forschung". ,cculanzaça^ fistian raais m o d mg
(In: Zeitschrift fuer slavische Philologie, IX/X, 1932-1933.) inlismo. Mr, Q 0 to anal'.. c o m „ m ,,,. ±"uvm-
115 A) V. Liaskovski: Os irmãos Kireievski. Sua vida e seus traba­ ^ \mert. -IÍI Preludio na Ale-
lhos. Petersburgo, 1899. (Em língua russa.) manha. O 1 nmae f. a
nnno, deu-s *varvT ' /Cscandi" n t r _ M ! l r . _ ** ie
116) Alexis Stepanovitch Khomjakov, 1804-1860. ^ na f nacio»» 1 Na ol
P e a o , entre 1806
VEglise latine et le protestantisme au point de vue de VEgUstt W91-1859.
|(f!lí»l-1859.
d'Orient (1858); Poesias (1844-1859). M7i Hcrgoi -K vi t c h i!
AK |íi/âwcza tfe Barrou (1858)
V. Z. Zavitnevitch: Alexis Stepanovitch Khomiakov. 2 vols. Klev, (■/•(mico W e i t y t o a85fciHoscou, 1891. (Em língua russa 1
1902-1913. (Em língua russa.) V. ostroíe tanf$ergei A^fwitch Aksakov". (In m ^ ^
N. Berdiaiev: Alexis Stepanovitch Khomiakov. Moscou, 1Q12. V. K. s K / k i : ? "SergeijM, edit. por D. N OvsTanfkT
(Em língua russa.) rí« /,i/crVadni%iWso «o',,!!12. (Em língua russa)
E. Ehrenberg: Oestliches Christentum. Vol. I. Muenchen, 1933. KullkovAwa * I 1 1 ' Moi;,indução inglesa da Crónica ãP
A. Gratieux: A . S. Khomiakov et le mouvement slavophile. Pa­ '> n. 4 i , voVíptroduç^Kndon, 1924. ^-roTizca tíe
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riu, 1939. In mil la, '>sky: ' C Beveí
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1814 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1815

nitárias, olharam com espanto a decadência do Ocidente geração ainda pertence o pai dos irmãos, Sergei Timo-
revolucionário; e proclamaram a missão histórica dos esla­ feivitch Aksakov ( 1 1 7 ), que ocupa lugar dos mais honrosos
vos, quer dizer, dos russos, de salvar o mundo. De maneira na história literária russa; as suas memórias ou romances
ingénua identificaram o humanitarismo herderiano com as autobiográficos, que já foram comparados à obra de Proust,
instituições russas, considerando o Império como garantia apresentam um panorama minucioso e não menos delicioso
da paz perpétua, o autocratismo como garantia da igual­ da vida dos aristocratas russos nos seus latifúndios no fim
dade social de todas as classes, e o credo da Igreja ortodoxa do século XVIII. As descrições da Natureza, na Crónica
como fortaleza cristã contra o ateísmo ocidental, quando de Família, são tão magistrais como a caracterização dos
catolicismo e protestantismo já estariam em plena deca­ inúmeros personagens, fielmente recordados. É uma velha
dência. Esse eslavofilismo ( 115 ) não era, no início, um Rússia idílica; mas não falsificada. Os filhos de Sergei
programa político; conservou sempre os vestígios da sua já não são homens idílicos. O mais velho, Konstantin Ser-
origem literária, da "reciprocidade eslava". Entre os pri­ geievitch Aksakov, fêz o que os eslavófilos da primeira
meiros chefes preponderaram espíritos puramente teóricos: geração nunca fizeram: renunciou por completo às ideias
o literato Ivan Kirejevski; seu irmão, o folclorista Peter humanitárias, identificando o ideal eslavo com o despotismo
Kirejevski ( 11B -A) ; e sobretudo o poeta e teólogo Khom- moscovita e a intolerância do Santo Sínodo, as instituições
jakov ( 1 1 6 ) : nos seus escritos teológicos de um leigo algo legitimamente russas. É a transição de Herder a De Maistre.
confuso já se encontram todas as ideias de Dostoievski, O outro irmão, Ivan Sergeievitch Aksakov, tirou as con­
menos a agressividade política; e as suas poesias, graves clusões quanto à política exterior: a Rússia teria o dever
e sonoras, serviam para o mesmo fim de lamentar as ruínas e o direito de libertar as pequenas nações eslavas; e os
do Ocidente e exaltar a salvação do mundo pela Rússia outros povos europeus teriam o dever de submeter-se à
eslava e ortodoxa. Só muito mais tarde, com a adesão dos chefia da Rússia. É o programa do pan-eslavismo; religião
irmãos Aksakov, o eslavofilismo mudou de feição; virou nacional, nacionalismo religioso.
pan-eslavismo político e imperialista. Mas àquela primeira O movimento eslavo parece uma revolta nacionalista
contra o cristianismo ocidental; no fundo, é antes uma
revolta de povos atrasados, firmes na fé cristã, contra a
115) Th. G. Masaryk: Russlanã unã Europa. Zur russischen Ges-
chichts — unã Religionsphilosophie. Vol. I. Jena, 1913. secularização do cristianismo no Ocidente, contra o libe­
G. Smolic: "Westler und Slawophile in der neueren Forschung". ralismo. Movimento análogo, mais modesto, mais provin­
(In: Zeitschrift fuer slavische Philologie, IX/X, 1932-1933.)
115 A) V. Liaskovski: Os irmãos Kireievski. Sua viãa e seus traba­ ciano, deu-se na Escandinávia, com um prelúdio na Ale­
lhos. Petersburgo, 1899. (Em língua russa.) manha. O levante nacional contra Napoleão, entre 1806
116) Alexis Stepanovitch Khomjakov, 1804-1860.
VEglise latine et le protestantisme au point ãe vue ãe VEglise
ã'Orient (1858); Poesias (1844-1859). 117) Sergei Timofeievitch Aksakov, 1791-1859.
V. Z. Zavitnevitch: Alexis Stepanovitch Khomiakov. 2 vols. Kiev,
1902-1913. (Em língua russa.) Crónica ãe família (1856) ; A infância ãe Bagrov (1858).
N. Berdiaiev: Alexis Stepanovitch Khomiakov. Moscou, 1912. V. Ostrogorski: Sergei Aksakov. Moscou, 1891. (Em língua russa).
(Em língua russa.) V. F. Savadnik: "Sergei Timofeievitch Aksakov". (In: História
da Literatura Russa no Século XIX, edit. por D. N. Ovsianiko-
E. Ehrenberg: Oestliches Christentum. Vol. I. Muenchen, 1923. Kulikovski, vol. III. Moscou, 1912. (Em língua russa.)
A. Gratieux: A. S. Khomiakov et le mouvement slavophile. Pa­ 1). S. Mirsky: Introdução da tradução inglesa da Crónica ãe
riu, 1939. família, por M. C. Beverley. London, 1924.
1816 OTTO M A R I A CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1817

e 1813, estava apoiado num movimento religioso entre os


ticismo, que permite sínteses entre o cristianismo e qual­
luteranos prussianos, chamado às vezes "segundo pietismo".
quer paganismo. A vítima trágica do conflito foi Esaias
O nacionalismo antifrancês e antiliberal era uma reação
Tegnér ( 1 2 0 ), poeta suave e bispo da Igreja luterana da
contra o mundo ocidental; e essa tentativa de anular a
Suécia. Tegnér é um dos poetas mais conhecidos da lite­
europeização da Alemanha voltou, coerentemente, ao lutera­
ratura universal. A sua Frithjois-Saga, versão idealista e
nismo. Ao "segundo pietismo" aderiram os chefes do nacio­
classicista de uma saga nórdica, bastante cristianizada, em
nalismo prussiano, generais, ministros, professores de teo­
versos harmoniosos e retóricos, é o livro clássico da escola
logia, menos os poetas patrióticos, que, talvez por isso, não
sueca, o presente usual para os colegiais no fim do ano
manifestavam emoção profunda. Exceção faz Arndt ( 1 1 8 ),
letivo; e deve a essas mesmas qualidades inúmeras edições,
poeta péssimo e popularíssimo, mas grande alma de um
a tradução para todas as línguas, uma popularidade algo
homem realmente nórdico, pesado, fiel, sonhador, duma
duvidosa, e — desde o simbolismo — a condenação quase
religiosidade viril. Era um prosador poderoso: Der Geist
unânime pela crítica: como poesia falsa. O que se condena
der Zeit (O Espírito da Época) é um livro admirável,
na Frithjofs-Saga é a influência de Schiller: o idealismo
defendendo em frases duras uma política nacional, cristã
humanitário, a falsificação idealista da grosseria nórdica,
e patriarcalista, algo à maneira de Carlyle. Arndt era da­
a eloquência versificada. As verdadeiras qualidades do
quela região antigamente eslava que os sonhadores tchecos
poema — a clareza quase grega em meio das brumas do
reivindicaram; e no fundo do seu cristianismo luterano
romantismo escandinavo — só se revelam em comparação
descobriram estudos recentes muita coisa herética, um pan­
com o poema precedente Axel, que ainda era muito ossiâ-
teísmo mal dissimulado, uma veneração devota das forças
nico. Tegnér era no fundo um classicista ilustrado, inimigo
da Natureza. Talvez fosse isso herança eslava; Arndt, muito
do obscurantismo religioso do romantismo alemão. O seu
mais velho que os outros, filho da época pré-romântica,
ideal heróico tem infelizmente algumas nuanças da poesia
devia interpretá-lo como herança nórdica, germânica. Na
patriótica de Koerner, que êle admirava; mas o patriotismo
Escandinávia, a gente era mais "romântica", quer dizer,
sueco de Tegnér tem motivos especiais. Tegnér era o por-
mais herderiana. Ali, o conflito entre nacionalismo e cris­
ta-voz poético da nação contra o novo rei Cari Johan, da
tianismo se revelou abertamente.
família Bernadotte, estrangeiro imposto ao povo e odiado
Revelou-se no historiador e poeta Geijer ( 1 1 9 ), que como absolutista reacionário. Contra êle e a sua camarilha
defendeu em tom muito sério a mitologia germânica, lamen­ erigiu-se Tegnér em profeta poético da "Svea" autêntica.
tando a vitória do cristianismo. Atterbom tentou uma Nattvardsbarnen, pequeno poema narrativo em que se des-
síntese entre conceitos cristãos e conceitos germânicos;
Stagnelius evadiu-se do conflito para a mística do gnos-
120) Esaias Tegnér, 1782-1846.
Nattvardsbarnen (1820); Axel (1822); Frithjofs-Saga (1825);
lllli Ernst Moritz Arndt, 1769-1860. Kronbruden (1827); Samlaâe ãikter (1828).
Der Geist der Zeit (1806-1818); Gedichte (1818), etc. Edição por W. Wrangel e F. Boeoek, 10 vols., Stockholm, 1919-
Edicíio por E. Schirmer e E. Lorenz, 14 vols., Magdeburg, 1909. 1925.
K. Mucsebeck: Ernst Moritz Arndt. Gotha, 1914. G. Brandes: Esaias Tegnér. Kjoebenhavn, 1876.
K. Lce.se: "Arndt". (In: Die Krisis und Wende des christlichen F. Boeoek: Esaias Tegnér. Stockholm, 1917.
(1 ristes. Berlln, 1932). G. Rudberg: Tegnér, humanisten och hellenisten. Stockholm,
1930.
111(1 (!f. nolii 55. F. Boeoek: Esaias Tegnér. 3 vols. Stockholm, 1946-1947.
1818 OTTO M A B I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1819

creve a preparação de crianças de aldeia para a primeira herdeiro de Winckelmann, que se tornou em Roma o maior
comunhão, parece um idílio à maneira de Voss; na verdade, escultor classicista do século para encher a cidade nórdica
é um sermão de cristianismo ilustrado, sem dogma e huma­ de Copenhague com estátuas gregas. Oehlenschlaeger, o
nitário. Frithjofs-Saga não é uma peça modernizada de maior poeta dinamarquês, era uma natureza muito rica;
arqueologia escandinava, mas um protesto do paganismo venceu o conflito aberto pela felicidade do seu tempera­
nacional contra a moral "europeia". O equívoco, que trans­ mento equilibrado, para acabar no bem-estar mental da
formou mais tarde a Tegnér em autor escolar, já então era pequena burguesia satisfeita. Adolescente ainda, foi con­
tão forte que as honras oficiais o sufocaram. Foi nomeado vertido ao romantismo pelo entusiasta meio cristão, meio
bispo; e o espírito neurastênico de Tegnér caiu em graves nórdico Steffens; e a sua primeira poesia, que o tornou
escrúpulos religiosos. Tentou evadir-se para a realidade logo famoso, "Guldhornene" ("O Copo de Ouro"), celebrou
social: em Kronbruden, o poeta idílico deu de repente um a propósito de uma peça arqueológica os deuses nórdicos,
quadro muito realista da vida rústica. Mas não se salvou. vencidos pelo cristianismo. Eis o tema permanente de
O bispo Esaias Tegnér morreu em desespero e loucura. Oehlenschlaeger. O primeiro volume de poesias também
A feição pseudoclassicista, pseudo-humanista da opo­ revela a sua forma permanente: o verso harmonioso, su­
sição escandinava manifestou-se com maior clareza na Di­ gestivo, mas ligeiramente classicista, equilibrado como a
namarca, então inteiramente sob influência alemã, primeiro arte de Raffaello, ou antes a de Thorwaldsen. Oehlensch­
laeger era um vencedor da vida, um homem feliz; e trans-
de Weimar, depois de Iena. Schack von Staffeldt ( 121 )
figurou-se a si mesmo na sua maravilhosa comédia fantás­
era mesmo alemão de nascimento; e nunca chegou a do­
tica Alaããin, transformando o "génio" rebelde e revolucio­
minar com perfeição a língua dinamarquesa. Esquisitão
nário dos pré-românticos em "génio" espontâneo, vencedor
melancólico, estudando Goethe na solidão dos campos, ex­
feliz sem consciência racional. A lâmpada milagrosa, que
primiu em versos malfeitos um profundo sentimento pan-
o racionalista Nureddin pretende conquistar por estudos
teísta da Natureza, dando ao paganismo goethiano ares de
profundos da magia, cabe ao jovem Aladdin, sem outro
uma religião particular. Os conflitos fatais que arruinaram
mérito do que ser predestinado para a felicidade pela Na­
Tegnér e isolaram Schack, manifestam-se com clareza em
tureza. Aladdin foi traduzido para o alemão pelo próprio
Oehlenschlaeger ( 1 2 2 ) : mas com clareza quase mediterrâ­
;uitor; e é a obra mais feliz do romantismo alemão, rea­
nea, como no seu patrício e contemporâneo Thorwaldsen,
lização da síntese a que Novalis e Eichendorff aspiraram
sem consegui-la. Na tradução, Oehlenschlaeger já inseriu
121) Adolph Wilhelm Schack von Staffeldt, 1769-1826. .ili;umas indiretas contra o romantismo, quer dizer, contra
Digte (1803-1808).
G. Brandes: "Schack von Staffeldt." (In: Danske Digtere. KJoe-
benhavn, 1877.)
H. Strangerup: Schack von Staffeldt. Kjoebenhavn, 1940. Kdições por J. L. Liebenberg, 32 vols., Kjoebenhavn, 1857-1862,
122) Adam Oehlenschlaeger, 1779-1850. c por H. Topsoe-Jensen, 5 vols., Kjoebenhavn, 1926-1930.
Guldhornene (1802) ; Digte (1803) ; Alaããin (1805); Hakon Jarl <}. B r a n d e s : Danske Personligheder. Kjoebenhavn, 1889.
(1805); Nordiske Digte (1807); Balãur hin Godé (1808); Thors V. Andersen: Adam Oehlenschlaeger. 3 vols. Kjoebenhavn, 1899-
rejse til Jotunhejm (1808); Palnatoke (1809) ; Axel og Valborg I !>(><).
(1810); Correggio (1811); Digtninger (1811-1813); Staerkoddcr I. Kulbe-Hansen: Oehlenschlaegefs nordiske Digtning. Kjoe-
(1812); Helge (1814); Hagbarth og Signe (1815); Erik og Abel hciihiivn, 1921.
(1820); Vaeringerne i Miklagaard (1826); Hrolf Krake (1828); I" Kubow: Dansk litteraer Kritik. Kjoebenhavn, 1921.
Oirvarodds Saga (1841); Dina (1842); Amleth (1846). V. MIKIHCII: Adam Oehlenschlaeger. Kjoebenhavn, 1929.
1820 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1821

o medievalismo cristão e catolizante. O seu ideal pagão kespearianas; na verdade, Bredahl era humanista como
era meio grego, meio nórdico. Na sua série de grandes Oehlenschlaeger, mas isolado numa pobre aldeia da J u -
tragédias, a tendência anticristã é inconfundível: em Hakon tlandia. Sua obra é dissonante; mas harmoniza com o acorde
Jarl, contra a cristianização da Noruega por Santo Olavo; de Aladdin. Grundtvig ( 124 ) fêz oposição mais sistemática,
em Baldur Hin Godé, contra o assassínio dos velhos deuses com êxito profundo e, no entanto, sem modificar a situação
pelos missionários; em Vaeringerne i Miklagaard, o con­ espiritual do país. Ninguém mais romântico do que esse
traste entre os vikings nórdicos e o ambiente mediterrâneo homem apaixonado, hercúleo como os gigantes nórdicos que
é significativo. Mas a forma dessas obras "nórdicas" é sem­ cantou em versos duros. Pastor racionalista no início,
pre "sofocléia", a da tragédia grega vista através de Wei- apoiando depois as suas ideias na mitologia germânica,
mar; Oehlenschlaeger é classicista como Thorwaldsen. No fundando enfim a seita dos "grundtvigianos", na qual o
seu poema Helge, até Brandes achou digna de elogios a Símbolo apostólico é aceito como o mínimo necessário de
"beleza rafaélica" dos versos. E Oehlenschlaeger escolheu fé cristã, misturado com uma moral "nórdica"; espécie de
um pintor da mesma estirpe, "Correggio", para herói da tra­ metodismo dinamarquês em termos escandinavos. O sur­
gédia sentimental que apresenta a sorte infeliz do artista preendente é que a nova liturgia de Grundtvig foi meio
em ambiente incompreenssivo. Esse pendant trágico (e me­ aceita pela Igreja oficial que se "grundtvigizou" cada vez
nos bem realizado) de Aladdin reflete as lutas literárias mais, ao ponto de Grundtvig ficar hoje venerado como o
de Oehlenschlaeger contra o pré-romântico Baggesen e padre de Igreja da Dinamarca. Essa solução se impôs por­
outros inimigos. Mas Oehlenschlaeger venceu sempre, se que o pastor rebelde tinha conquistado o povo. Em 1843
bem ao preço de atenuar a sua atitude; acabou como bur­ fundou as primeiras Universidades populares que elimina­
guês satisfeito, transformado o paganismo em mera cultura ram o analfabetismo, transmitindo aos camponeses uma
estética, a "oposição" escandinavista em patriotismo "pan- cultura mais alta do que a da população rural em qualquer
escandinavo", reivindicando a união dos três reinos nór­ país da Europa. Contra a civilização aristocrática e huma­
dicos. Na catedral de Lund, na Suécia, Oehlenschlaeger nista das elites urbanas, Grundtvig fundou uma civilização
foi coroado "Poet laureate" da Suécia, Dinamarca e No­ nacional e cristã do povo, realizando em ambiente restrito
ruega. A influência do seu romantismo aburguesado, idí­ os ideais de Herder e Carlyle. Essa civilização popular
lico, sobre as três literaturas escandinavas era incalculável.
ora fatalmente conservadora; reconciliou-se com a Igreja,
Só Ibsen quebrará o domínio de Alladin.
<• não fêz nunca oposição política. Criou uma base firme
Havia uma literatura popular, na Dinamarca, ao lado
dessa literatura burguesa; mas a sua evolução foi análoga.
\:'A) Nikolai Frederik Severin Grundtvig, 1783-1872.
Bredahl ( 123 ) parecia rebelde: pessimista desesperado, ca­ Nordcns Mythologi (1808); Optrin af Kaemplivets Unãergang i
ricaturando a Dinamarca como fantástico Império Kyhlam Nord (1809) ; Optrin af Norners og Asers Kamp (1811); Chris-
Irligc Praeãikener (1827-1830); Sangvaerk til ãen danske Kirke
na Lua, numa série incoerente de cenas dramáticas, sha- < 115:17-1841); Christenhenãens Syvstjaernet (1860).
K. líocmung: Nicolai Frederik Severin Grundtvig. 4 vols. Kjoe-
hrnlmvn, 1907-1914.
123) Christian Hvid Bredahl, 1784-1860. M. Holrn.slroem: Nikolai Frederik Severin Grundtvig. Upsala,
Dramatiske Scenen (1819-1833).
G. Brandes: "Bredahl". (In: Danske Digtere. Kjoebenhavn, IIH7.
1877.) .1 Monmd: Nikolai Frederik Severin Grundtvig. Kjoebenhavn,
O. Thyregod: Christian Bredahl. Kjoebenhavn, 1918. llixt.
I «22 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1823

da ordem estabelecida, e sobre essa base pôde continuar na Noruega que defendia a completa identificação linguís­
calmamente aquele romantismo meio humanista e idílico tica e literária com a Dinamarca. É digno de nota que as
da burguesia de Copenhague. Despedida literária do popu- suas tragédias da história norueguesa, moldadas em Oeh-
larismo pré-romântico parece a obra de Blicher ( 1 2 6 ), es­ lenschlaeger, foram preferidas pelo público às de Bjoernson
crita pela maior parte no dialeto dos camponeses da Ju- e Ibsen. Munch, como todos os estetas da época, gostava
tlandia, poesias e contos humorísticos e melancólicos, com de viver na Itália e tratar assuntos de uma Espanha român­
a melancolia de quem se estreara com uma tradução dina­ tica.
marquesa de Ossian e acabou como pobre vigário de aldeia.
Assim como a reação popular de Grundtvig chegou
Era um Vigário de Wakefield; obra que também tinha
a fortalecer o romantismo aburguesado, assim o hegelia-
traduzido.
nismo de Johan Ludvig Heiberg ( 1 2 8 ), cujos vaudevilles,
O poeta principal do humanismo dinamarquês pós-
pequenas peças humorísticas ou irónicas, criaram em Co­
oehlenschlaegeriano era Hauch ( 1 2 0 ), homem sereno e pro­
penhague uma atmosfera parisiense; para nós outros, hoje,
fundo, poeta sincero, impedido por uma inibição qualquer
refletem de maneira deliciosa a pequena vida provinciana
de se exprimir livremente. As suas tragédias e poemas
daquela época de 1830. Apesar dos seus ares de livre-pen-
narrativos são obras de um fino amador das letras; cedeu
sador hegeliano — Heiberg lutava sem descanso contra o
ao gosto da época, escrevendo bons romances históricos.
lirismo de Oehlenschlaeger — também era uma natureza
Na sua poesia lírica manifesta-se, às vezes, o sofrimento
romântica. Na comédia fantástica Elverhoej, popularíssima
de uma natureza viril, quebrada pela atmosfera sufocante
na Dinamarca, imitou com felicidade o Midsummer-Nighfs
do idílio. Com menos escrúpulos foi mais feliz o Hauch
Dream; e quando na peça satírica En Sjael efter Doeden
norueguês, Andreas Munch ( 1 2 7 ), chefe daquele partido
(Uma Alma depois da Morte), a alma do filisteu pequeno-
Imrguês, depois da morte, é condenada à mais terrível das
125) Steen Steensen Blicher, 1782-1848.
Digte (1814); Praesten i Vejlby (1829); Hoestferierne (1841); penas, quer dizer, a repetir a sua vida vazia, o anti-român-
En Bindstouw (1842). tico Heiberg tinha-se pronunciado como bom romântico.
J. Aakjaer: Steen Steensen Blicher Livstrageãie. 3 vols. Kjoe- As suas poesias satíricas dirigiram-se contra o radicalismo
benhavn, 1903-1906.
J. Norvig: Blicher. Hans Liv og Vaerker. Kjoebenhavn, 1943. político da mocidade hegeliana — o idílio não devia ficar
126) Carsten Hauch. 1790-1872.
Hamaãryaden (1824-1825); Tiberius (1828) ; Vilhelm Zdbern
(1834); Guldmageren (1836); En polsk familie (1839); Soestrene
paa Kinnekullen (1849); Robert Fulton (1853); Valdemar Seir
(1862). l.lMi .lohun Ludvig Heiberg, 1791-1860.
F. Roenning: Carsten Hauch. Kjoebenhavn, 1890. <>m Vaudevillen (1826); Et eventyr i Rosenborghave (1827); El-
K. Galster: Carsten Hauch's Barnãom og Ungdom. Kjoebenhavn, vrrhocj (1828); De Danske i Paris (1833); En Sjael efter Doeden
1930. (11141) ; Nye Digte (1841).
K. Galster: Carsten Hauch's Manããom og Alãerdom. Kjoeben­ I' Hn.ii.scn: Om Johan Ludvig Heiberg. Kjoebenhavn, 1866.
havn, 1935.
(I liniiidcs: "Heiberg". (In: Danske Digtere, Kjoebenhavn,
127) Andreas Munch, 1811-1884. IM77.I
Donna Clara (1840); Sorg og Troest (1850); En Aften paa Giske .1 ('IniiNcn: Kullurhistoriske studier over Heiberg's vaudeviller.
(1855); Hertug Skule (1864).
Edição por M. I. Monrad e H. Lassen, 4 vols., Oslo, 1887-1890. K.|ncl)i'iiliiivn, 1891.
J. Knudsen: Andreas Munch og samtiãens norske sprogstrev. M ll()iii|>: Johan Ludvig Heiberg. 3 vols. Kjoebenhavn, 1947-
Oslo, 1923. IIMII
1824 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1825

ameaçado. Espírito e romantismo de Heiberg continuaram- daquele estilo: Moerike ( 1 3 2 ). O seu romance Maler Nolten
se em Henrik Hertz ( 1 2 9 ), virtuose do verso, cujas peças è o último dos muitos romances românticos que opuseram
intensamente românticas não deixaram de influenciar a à educação "prosaica" de Wilhelm Meister uma educação
mocidade de Ibsen. Lembram-se mais outros contemporâ­ artística. Apenas, a de Moerike fracassou, acabando no
neos de Hauch e Munch, Heiberg e H e r t z : as poesias devo­ idílio de uma aldeia suévia, na qual o poeta levou uma vida
tas e os romances histórico-patrióticos de Ingeman ( 1 3 °); feliz, nas aparências, mas tragicamente insatisfeita no fun­
os contos e Heds estudantis de Paul Martin Moeller ( 131 ) do. Haveria mesmo um desfecho trágico, com loucura ou
— é um quadro completo daquilo a que os alemães chamam suicídio, se Moerike, vigário como seu irmão no espírito
"Biedermeier". em Wakefield, não se tivesse ascèticamente humilhado,
renunciando à vida quase como um monge. Assim nasceu
O "Biedermeier" é palavra intraduzível; significa,
o Moerike da fable convenue, um poeta suave e idílico de
mais ou menos, "a boa roda dos bons velhos tempos". E,
encantadores Heds em tom popular, um Eichendorff da
antes de tudo, um estilo de viver: a vida calma e idílica
Suévia protestante. Quase um Teócrito alemão; e Moerike
da pequena burguesia nas pequenas residências e cidade­
traduzira o Teócrito grego; e os seus Heds estão muitas
zinhas da Alemanha na época da Restauração, entre a queda
vezes, apesar da simplicidade do tom, em metros gregos. O
de Napoleão e as revoluções de 1830 e 1848. Vida sem
grecismo de Moerike tem um fundo trágico, como o de
estradas de ferro, com muita arte, música, estudos gregos
Goethe ao qual tanto amou; Goethe vencera o "Demónio";
e vigilante polícia política, um pitoresco idílio dos "bons
o vigário de aldeia suévia vencera os instintos românticos,
velhos tempos"; nos quadros de Schwind e Spitzweg, o
frustrados. Moerike parece inteiramente calmo, como o
"Biedermeier" vive para sempre; e de vez em quando vol­
"Biedermeier"; mas assim não é o equilíbrio de quem teve
tam as suas modas, os fraques azuis e crinolinas brancas,
a visão do "balanço de ouro do Tempo, enfim equilibrado":
móveis, palacetes e jardins de Rococó aburguesado. Uma
pequena-burguesia culta, com estilo de viver aristocrático.
Mas quem é o poeta do "Biedermeier"? Eichendorff sa­ " . . . die goldne W a g e nun
tisfaz a várias condições; mas é firme demais nas suas der Zeit in gleichen Echalen stille ruhn."
convicções católicas, tem um fundo trágico. Aos poetas
da "escola da Suévia", Uhland, Kerner, faz falta a poesia
íntima do estilo. Resta outro poeta suévio, que pelo génio '.'i/i Kduard Moerike, 1804-1875.
Malcr Nolten (1832); Gedichte (1838); Idylle vom Bodensee
se situa fora da "escola" e encarna as melhores tendências (1840); Mozart auf der Reise nach Prag (1855); Tradução de
rrócrito (1855).
Killgúo por H. Maync, 2.a ed., 3 vols., Leipzig, 1914.
K. Físcher: Eduard Moerike. Leben und Werke. Berlin, 1901.
129) Henrik Hertz, 1797-1870. II Muync: Eduard Moerike, sein Leben und Dichten. Stuttgart,
Svcnã Dyrings Hus (1837); Kong Renés Datter (1845). l!K!7.
H. Kyrre: Henrik Hertz. Liv og digtning. Kjoebenhavn, 1910.
II von Wlcse: Eduard Moerike. Tuebingen, 1950.
130) Cf. nota 12. II Mcyci-: Eduard Moerike im Spiegel seiner Dichtung. Stutt-
Klli Cf. "Pontos de partida do romantismo", nota 38. cnrf., limo.

t
1826 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1827

O grecismo de Moerike parece esteticista como o do "Bie- tervenções do Estado nos negócios do Espírito. Por isso,
dermeier"; mas assim não é o conceito de beleza de quem os intelectuais da Universidade de Berlim chamavam aos
afirmou que "o que é belo é feliz": tempos de Hegel "época halcyônica". Este clima era pró­
prio para a tarefa educativa e auto-educativa desses ho­
"Was aber schoen ist, selig scheint es in ihm selbst.'"
mens: dominar nos outros e em si mesmos os titanismos
do romantismo; "medida" e "forma" são novamente ideais,
Em toda a literatura universal não existe outro verso que
como em Goethe, que, em 1830, está vivo; classicismo e hele­
lembre tanto a Keats. Moerike é um Keats alemão, quer
nismo perdem o aspecto erudito, tornando-se, como em
dizer, com menos arte e com mais música. Mozart — outro
equilíbrio sobre fundo trágico — era o seu grande amor; Goethe, forças reguladoras da conduta. O senso artístico
celebrou-o numa novela deliciosa. A poesia de Moerike é tão forte que chega a esquecer a opressão policial; só
é toda música; e à música voltaram os seus lieds pelas fica um sentimento de resignação cansada, certo quietismo
composições de Hugo Kolf. Às vezes, a "poésie puré" de sublime que adora as forças insensíveis e contudo inven­
Moerike chega a ser hermética, sem sentido lógico, como cíveis da Natureza. Em tudo isso nota-se, porém, o aspecto
no inesquecível Gesang Weylas, que não podemos imaginar pequeno-burguês, ou antes provinciano do "Biedermeier".
nem compreender sem o acompanhamento da música de A Dinamarca era então, espiritualmente, uma província da
Wolf: Alemanha. Toda a Alemanha, desmembrada em numerosos
Estados e estadozinhos pacíficos, era uma grande província.
"Du bist Orplid, mein Land, A mais fechada dessas províncias era a Áustria, separada
das ferne leuchtet! do mundo pelo absolutismo de Metternich. Uma censura
Vom Meere dampfet dein besonter Strand rigorosíssima sufocava todo vestígio de vida pública, des­
den Nebel, so der Goetter W a n g e feuchtet." viando as atenções para a música — a época é de Beethoven
e Schubert — e sobretudo para o teatro. Nesse tempo, o
Análises mais acuradas revelaram um "Biedermeier" teatro imperial de Viena, o Hofburgtheater, torna-se o
que não é só pitoresco nem só lírico: um verdadeiro estilo,
primeiro palco da Alemanha, a cena das maiores represen­
no sentido da transfiguração da realidade; o "Biedermeier"
tações de Schiller, Shakespeare e Calderón. O teatro é o
como estilo literário ( 1 3 3 ). A calma política da época é
centro do humanismo goethiano na Áustria. Mas ao lado
menos o motivo do que a condição: a filosofia de Hegel,
desse teatro nobre existe outro, popular, em que continuam
mediando dialèticamente entre historismo herderiano e con-
servantismo prussiano, não foi nunca a filosofia oficial sobrevivendo as tradições barrocas do teatro jesuítico, po­
da Prússia, mas sim uma garantia aparentemente definitiva pularizado e muitas vezes em forma parodística, na qual
contra revoluções políticas e, ao mesmo tempo, contra in- se manifesta o espírito zombador e irónico dos vienenses,
desconhecido entre os alemães. Em compensação, os aus­
tríacos desconhecem o titanismo fáustico, tipicamente ale-
IX)) W. Bietak: Das Lebensgefuehl des Biedermeier. Wien, 1931. ni;To; a experiência dos séculos e a herança barroca, atenua­
P. Kluckhohn: "Der Biedermeier ais literarischer Begriff". (In: da pelo humanismo, os tinham transformado em quietinta»
Deutsche Vierteljahrsschrift, IX, 1931; XIII, 1935.)
1828 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1829

elegíacos. Deste modo, o "Biedermeier" é a idade áurea revela um mestre precoce do palco. A peça teve sucesso
da literatura austríaca ( 1 3 4 ). enorme e desgraçou o poeta: classificou-o para sempre
Franz Grillparzer ( 135 ) é o poeta mais completo do como "Muellner número 2 " ; e quando essa moda desapa­
seu país; a sua obra é uma verdadeira enciclopédia da recera, Grillparzer foi totalmente esquecido e ignorado na
história e do caráter austríaco; por êle, a nação está repre­ Alemanha. Mas também contribuiu para isso a incompreen­
sentada na literatura universal. Era um pequeno-burguês são dos alemães para com o poeta de uma literatura estran­
vienense, de vasta cultura literária e musical — coube-lhe geira, escrita como por acaso na mesma língua; pois as
a honra de fazer o discurso fúnebre para o enterro do seu tradições históricas das duas nações são diferentes; e Grill­
amigo Beethoven —, mas inibido por uma gravíssima here­ parzer é, antes de tudo, poeta da história.
ditariedade neurótica que o tornou velho solteirão e res­ É verdade que preferiu, durante certo tempo, enredos
mungão, e pela opressão da censura policial que chegou antigos; mas sempre soube atualizá-los. Sua segunda peça,
a desgostá-lo da literatura. Grillparzer acabou como alto Sappho, afigurou-se aos alemães obra de epígono de Goethe;
funcionário público aposentado — carreira vazia em vez da mas Byron que a leu em tradução italiana, reconheceu-a
carreira literária que começara esplendidamente. Die Ahn- logo como tragédia psicológica, anotando, em 1821, no seu
írau é uma tragédia fatalista, à maneira dos Zacharias diário: "É preciso gravar na memória o nome inpronun-
W e r n e r e Muellner; mas reminiscências do teatro espanhol ciável desse grande poeta". Das goldene Vlies (O Tosão
indicam a herança barroca; e o aproveitamento das supers­ de Ouro) é mais uma versão, e talvez a mais forte de todas,
tições populares para conseguir irresistível efeito teatral de um tema antigo: a tragédia de Medeia; mas o verdadeiro
tema é o choque entre duas civilizações, entre os gregos
e os bárbaros. Grillparzer tinha alta consciência histórica.
134) J. W. Nagl e J. Zeidler: Deutsch-oesterreichische Literaturges- Glorificou, em Koenig Ottokars Glueck und Ende (Glória
chichte. Vols. I-II. Wien, 1899-1910.
e Fim do Rei Otocar), a fundação da monarquia habsbúrgi-
135) Franz Grillparzer, 1791-1872.
Die Ahnfrau (1817); Sappho (1818); Das golãene Vlies (1820); ca. Mas o pendant dessa tragédia schilleriana não é Libussa,
Koenig Ottokars Glueck unã Ende (1825); Ein treuer Diener a da fundação da civilização eslava, e sim, Der Traum ein
seines Herrn (1828); Des Meeres unã der Liébe Wellen (1831);
Der Traum ein Leben (1834); Weh' ãem, der luegt (1838); Der Leben (O Sonho é uma Vida): parece uma das "comédias
arme Spielmann (1848); Saemtliche Werke (1872); (as obras pre­ <le sonho", tão frequentes no teatro popular vienense — um
cedentes, e: Libussa; Die Juedin von Toledo; Esther; Ein Bru-
derzmist im Hause Habsburg; Epigramme etc.). ambicioso vê no sonho as consequências trágicas das ambi­
Edição por A. Sauer, 20 vols., Stuttgart, 1892-1894. ções realizadas; e, quando despertado, já aprendeu a renun­
Edição crítica por A. Sauer, St. Hock e outros, 32 vols., Wien,
1909-1937. ciar às glórias ilusórias. Essa tragicomédia tipicamente
A. Ehrhard: Franz Grillparzer. Paris, 1900. barroca, que parece pendant de La Vida es sueno, é, na
.1. Volkelt: Grillparzer ais Dichter des Tragischen. 2." ed. Muen-
chen, 1909. v n d a d e , a suma das experiências históricas da nação aus-
E. Alker: Grillparzer. Marburg, 1930. ti íaca.
E. Reich: Grillparzer Dramen. 4.a ed. Wien, 1938.
1). Yates: Grillparzer. A Criticai Biography, vol. I. Oxford, 1949. Mais uma vez voltou Grillparzer ao tema do choque en-
E. Fischer: Franz Grillparzer. Wien, 1948.
E. Hock: Franz Grillparzer. Besinnung auf Humanitact. Hum- iic chins civilizações, desta vez, entre francos e latinos, na
bun;, 1949. <•>
' <>< a merovíngia; mas o insucesso ruidoso dessa comédia,
(1. Buumann: Franz Grillparzer, sein Werk unã das oenterr»l»
chinche Wesen. Freiburg, 1954. IVr/r </<•/)), der luegt (Ai de Quem Mente), forneceu a
1830 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1831

Grillparzer neurótico desiludido, o pretexto quase desejado da Casa d'Áustria. Era epígono, porque se tratava do último
para retirar-se definitivamente da literatura. Saudou com grande dramaturgo barroco. Daí o caráter elegíaco da sua
satisfação a revolução de 1848 ijue acabou com a censura; obra. Mas não era igualmente grande como poeta. Não
mas amaldiçoou essa revolução quando ela pretendeu des­ conseguiu transformar sua elegia em música verbal. Fugiu,
truir o Império multinacional. Grillparzer era um liberal, também, da música — que tanto amava — por inibição de
vindo do século X V I I I , com instintos profundamente con­ neurótico e por não poder dominar seu desespero em face
servadores; venerou a casa dos Habsburgos, dos quais não do fracasso da sua vida e da sua pátria. No conto "Der arme
ignorou os defeitos e erros. Só depois da sua morte saiu Spielmann" ("O Pobre Músico"), história de um músico
a tragédia histórica Ein Bruderzwist im Hause Habsburg genial que acaba, por inabilidade inata de adaptar-se à vida
(Um Conflito de Irmãos na Casa dos Habsburgos), quadro prática, como mendigo, tocando nas ruas de Viena; Grill­
realmente shakespeariano da família imperial no momento parzer depositou nesse conto a sua alma, a do último aus­
decisivo da Contra-Reforma, antes de se iniciar a Guerra tríaco autêntico.
de Trinta A n o s ; na figura do infeliz imperador Rodolfo I I , O barroco em Grillparzer não era produto de estudos
incapaz de agir, por medo de "perturbar o sono do mundo" eruditos; era resultado de experiência viva no teatro po­
e desencadear o caos, retratou o poeta abúlico a si mesmo pular de Viena, no qual aquela tradição nunca acabara ( i : , ( i ).
e previu o destino e o fim da velha Áustria. No começo do século X V I I I , o ator Joseph Anton Stra-
Grillparzer era um homem enigmático, cheio de con­ nitzky introduziu em Viena a "commedia dell'arte" italiana;
tradições. Dramaturgo hábil, seguro dos seus efeitos, e outro ator, Gottfried Prehauser, criou o tipo do "Hans-
quietista elegíaco; idealista incurável e céptico amargura­ wurst", palhaço em que se perpetuou o gracioso do teatro
do, aliviando-se o espírito em mil epigramas que, com mor­ espanhol; em Phillip Hafner surgem elementos da comédia
dacidade terrível, acompanharam a história austríaca du­ de caracteres. O grande teatro jesuítico perpetuou-se na
rante o século mais desgraçado dela. Grillparzer é, sem ópera imperial; e com uma obra, a Zauberfloete (Flauta Má­
dúvida, um epígono: veio de Schiller; e os seus estudos gica) de Mozart, essa arte aristocrática chegou até ao povo.
intensos do antigo teatro espanhol só criaram mais uma Os dois géneros fundiram-se no começo do século X I X em
influência, embora Die Juedin von Toledo (A Judia de comédia popular, enfeitada de decorações suntuosas e in­
Toledo), versão de uma peça de Lope de Vega, revela toda tervenções supranaturais de fadas, meio parodísticas. Rai­
a mestria de um génio do teatro, descobrindo no velho mund ( m ) é o génio desse teatro popular — "génio" não
enredo inesperadas profundidades psicológicas. Grillparzer
tornou-se classicista para dominar em si o romantismo caó­ 136) O. Rommel: Die Alt-Wiener Volkskomoedie. Wien, 1952.
tico da época; e tornou-se romântico, evasionista, para fugir 137) Ferdinand Raimund, 1790-1836.
da realidade insuportável da Áustria daquele tempo; mas Der Bauer ais Millionaer (1826); Alpenkoenig und Menschen-
feind (1828); Der Verschwender (1833), etc.
justamente essa fuga o fêz compreender melhor e realizar Edição por O. Rommel, 3 vols., Wien, 1908-1912.
poeticamente o espírito da Áustria. A verdadeira contra­ A. Farinelli: Grillparzer und Raimund. Leipzig, 1897.
A. Moeller: Ferdinand Raimund. Graz, 1923.
dição na sua alma era entre a sua formação, de um liberal K. Vancsa: Ferdinand Raimund, ein Dichter ães Biedermeier.
ilustrado à maneira do século X V I I I , e a sua herança, cató­ Innsbruck, 1936.
H. Kindermann: Raimund. Wien, 1940.
lica c barroca. Esse austríaco era um espanhol dos tempos H. Cysarz: "Raimund und die Metaphysik des Wiener Theaters".
(In: Weltraetsel im Wort. Wien, 1948.)
1832 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1833

é exagero; mas génio austríaco, isto é, malogrado. Alpen- dos seus personagens, pobres-diabos e esnobes, palhaços,
kocnig und Menscheníeind é uma "comédia de conversão ofendidos e humilhados e cretinos das ruas de Viena. Lera
moral" de um homem mau por meio de uma intervenção muito Schopenhauer, não por erudição filosófica, mas por
supranatural; mas a ideia de convencer e converter o mi­ afinidade dos temperamentos. O "Aristófanes vienense",
santropo paranóico por meio de um sósia que lhe põe diante tão alegre como ator no palco, era no foro íntimo um pessi­
dos olhos uma caricatura grotesca de si mesmo, é uma ideia mista terrível e cínico, não acreditando em nada. Escreveu
genial, digna de Molière. Infelizmente ninguém curou o a sátira do "Biedermeier", o epílogo da tragédia íntima
paranóico Raimund que acabou suicidando-se. E r a um de Grillparzer e Stifter.
grande humorista e teria sido um poeta lírico. O seu palco Adalbert Stifter ( 139 ) era professor, ou antes mestre-
é um idílio fantástico: montanhas sublimes e índias exóti­ escola. Estava acostumado a explicar a meninos as mara­
cas, e no meio delas uma rua de Viena, cheia de gente vilhas da Natureza, e assim formou-se o maior poeta descri­
zombadora. Mas sobre eles paira a sombra do F a d o ; a tivo da literatura alemã; poeta em prosa. As suas descrições
canção, em Der Bauer ais Millionaei, do lixeiro simbólico de prados e montanhas, lagos e florestas, chuvas, tempes­
que no fim do dia alegre e da vida alegre vem levar as tades e soalheiras são insuperáveis, infelizmente tão minu­
cinzas — "Ein' Aschen! ein' Aschen!" ("Cinzas! Cinzas!") ciosas que a leitura se torna torturante. É um autor para
— é, Farinelli o salientou, a suma da sabedoria de Calderón. "trechos seletos"; não é fácil ler um volume seu inteiro.
Esse elemento lírico já não existia em Nestroy ( 1 3 8 ), Seus contos são magistrais; Thomas Mann incluiu-os entre
cujo espírito mordaz acabou com a comédia poética de Rai­ os melhores da literatura universal. Os seus dois romances
mund. Era um farsista genial, apoderando-se sem escrú­ estavam, até há pouco, quase esquecidos. Stifter, que era
pulos de quaisquer vaudevilles franceses ou outras peças um estilista da maior consciência artística, esqueceu o ele­
medíocres de proveniência estrangeira, modificando lugares mento principal de todo estilo: a arte de suprimir e eli­
e nomes, traduzindo-os para o dialeto vienense — e jus­ minar o que não é essencial. Recusou-se peremptoriamente
tamente aqui começa a sua arte. Era, no dialeto das camadas a distinguir entre coisas importantes e coisas insignifican­
baixas do povo, um artista da palavra, revelando infalivel­ t e s : "O que é grande, parece-me pequeno: o que a outros
mente o verdadeiro sentido dos lugares-comuns do palco e parece pequeno, é grande". Estava convencido de que as leis
da gíria, revelando e despindo impiedosamente as almas
139) Adalbert Stifter, 1805-1868.
Studien (1844-1850); Bunte Steine (1852); Nachsommer (1857);
138) Johann Nestroy, 1801-1862. Witiko (1865-1867).
Der boese Geist Lumpazivagabundus (1833); Zu ebener Erãe und Edição por A. Sauer, 21 vols., Praha, 1901-1928.
crster Stock (1835); Das Haus der Temperamente (1837); Die H. Bahr: Adalbert Stifter. Wien, 1919.
verhaengnisvolle Faschingsnacht (1839); Einen Jux will er sich A. Grolman: Stifters Romane. Muenchen, 1926.
machen (1842) ; Der Zerrissene (1844); Freiheit in Kraehwinkel J. Bindtner: Adalbert Stifter. Wien, 1928.
(1848); Judith und Holofernes (1849), etc, etc. E. Lunding: Adalbert Stifter. Kjoebenhavn, 1946.
Edição por O. Rommel e F. Bruckner, 15 vols., Wien, 1924-1930. E. A. Blackall: Adalbert Stifter. Cambridge, 1948.
K. Kraus: Nestroy und die Nachwelt. Wien, 1912. F. Michels: Adalbert Stifter, Leben, Werke und Wirken. Frei-
O. Rommel: Nestroy und das Wiener Volksstueck. (Vol. XV da burg, 1949.
edição citada.) H. Kunisch: Adalbert Stifter. Mensch und Wirklichkeit. Berlin,
O. Forst de Battaglia: Johann Nestroy, Abschaetzer der Men- 1950.
Hrhcn, Magier des Wortes. Leipzig, 1932. E. Staiger: Adalbert Stifter ais Dichter der Ehrfurcht. Zuerich,
I1'. II. Muutner: Nestroy und seine Kunst. Wien, 1937. 1952.
ui:ti Oiro MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1835

<ID Universo são sustentadas pelas coisas mínimas, e que tade da forma, até o "l'art pour l'art", ao esforço educativo;
ti vci lindeira grandeza reside na vida de todos os dias, no à resignação fatalista; ao realismo provinciano e saudosista;
tiiihallio de todos os dias. A respeito de Stifter já se falou às veleidades de zombaria "oposicionista" — então se des­
<le "fanático da calma". Era liberal: mas detestava a revo­ cobre o "Biedermeier" em toda parte como fenómeno uni­
lução, porque esses terremotos perturbam o sono sacro do versal, reverso singular do romantismo. O estilo aparece
mundo e deturpam a inocência das coisas primitivas. Stifter muito puro na poesia. Tiutchev ("") é o único grande
é o maior idilista do "Biedermeier". Mas conhecia a fra­ poeta russo entre Puchkin e o simbolismo; e só os simbo­
gilidade do equilíbrio, sabendo-se epígono; epígono de listas russos redescobriram a obra desse homem tímido,
Goethe. O seu romance Nachsommer (Veiânico) é o último retirado da vida, excluindo-se deliberadamente do movi­
rebento de Wilhelm Meister, romance de uma educação para mento literário. Durante uma época na qual toda a "Inteli-
os supremos ideais da beleza e bondade, do serviço à hu­
gentzia" russa era liberal ou revolucionária, o eslavófilo
manidade. Não era a beleza pura o fim pedagógico desse
Tiutchev foi conservador; o utilitarismo social dos "oci-
grande educador, mas a beleza ética, a Ordem e Liberdade
dentalistas" desprezou a arte "inútil" de Tiutchev como
pelo respeito religioso em todos os níveis da hierarquia
"l'art pour l'art". As influências alemãs que agiram sobre
cósmica. À educação para esse "respeito" no nível da vida
êle — Goethe, Eichendorff — não eram da Alemanha dos
política dedicou o romance Witiko, na aparência um ro­
hegelianos e feuerbachianos. Parecia suspeito de "religião"
mance histórico à maneira de Walter Scott, na verdade o
o seu panteísmo; e atrás das formas rigorosamente clássicas
último "espelho de príncipes" barroco. O romance daquilo
que a Áustria "poderia ter sido e não foi". Stifter foi sem­ não se viu o caos dolorosamente dominado. Como poeta
pre educador, e "educar" significava-lhe: ajudar a outros lírico, Tiutchev apresenta as maiores analogias com Moe-
a viver. Só a êle mesmo ninguém ajudou. No fundo da r i k e ; o homem Tiutchev parece-se mais com Stifter. Só
sua serenidade goethiana havia uma inteligência crítica, os simbolistas foram capazes de apreciar-lhe a arte, porque
tão subversiva como a de Nestroy, e instintos patológicos, cultivaram doutrina semelhante à sua. Tiutchev é um
tão violentos como os de Grillparzer. Educara-se; mas afi­ "poet's poet" da beleza pura. Será conveniente compará-lo
nal fracassou contra as forças da Natureza que tanto amara; a Keats. A mesma comparação é usual na Dinamarca para
acabou, como Raimund, no suicídio. Hoje, um crítico inglês
verifica que durante e depois do nosso século nunca mais
serão escritos livros de tão profunda, de tão calma sabedo­
140) Fedor Ivanovitch Tiutchev, 1803-1873.
ria como os de Adalbert Stifter. Poesias (1854-1868).
Edições por V. I. Brussov, Petersburgo, 1900, e por D. D. Blagoj,
O "Biedermeier", definido como estilo literário, não 2 vols., Moscou, 1933.
c um fenómeno especificamente alemão com irradiações na D. D. Jazykov: Tiutchev, seu espírito e sua poesia. Moscou, 1904.
Áustria e Dinamarca. Quando se presta menos atenção aos (Em língua russa.)
J. I. Aichenwald: "Tiutchev". (In: Silhuetas russas. Moscou,
trajes e móveis pitorescos da época e ao esteticismo quie- 1903.) (Em língua russa.)
tista em face de uma polícia vigilante, quando se presta S. Frank: "Das Kosmische Gefuehl in Tiutchevs Dichtungen".
(In: Zeitschrift fuer slavische Philologie, III, 1926.)
maior atenção às qualidades essenciais do estilo — à von- D. Stremukov: La poésie et Vidéologie âe Tiutchev. Paris, 1935.
ni:W) Oiro MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1837

cnrnctcM iznr a arte lírica de Aarestrup ( 1 4 1 ), erótico ardente, gentil e alegre, um gentleman inglês, mas mais espirituoso
IIP behzn plástica da expressão, confundido na época com do que é em geral essa raça, com alguns tiques, em parte
llcinc v. Musset, revelado pelos simbolistas dinamarqueses. como dos esquisitões do século X V I I I , em parte de um in­
JCHHÍIS comparações com Keats têm bom sentido, assim como divíduo psicopatológico por herança. Estava cheio de idios­
no caso de Moerike. O poeta inglês aparece contra o fundo sincrasias, como conta no ensaio Impeifect Sympathies;
de um grande país de relativa liberdade política e poder gostava sentimentalmente da música, sem o mínimo talento
mundial; seu ambiente não é "Biedermeier". Mas nota-se de distinguir dois tons diferentes (Ears); experiências pró­
certa indiferença de Keats quanto às questões públicas; o prias inspiraram-lhe a divisão da humanidade em Two
seu "l'art pour l'art" acentuado; o gosto medievalista e Races of Men, os que emprestam dinheiro e a outra raça,
italianizante. A roupa que Keats vestia era a da "Regency" infinitamente superior, dos que tomam emprestado dinheiro.
do futuro rei Jorge IV, entre 1810 e 1830, isto é, os trajes O idílio pessoal se amplia em Chiist's Hospital, relato dos
do "Biedermeier", com o seu gosto excessivo pelo teatro, seus dias de escola; Oxford in the Vacation, reminiscências
ópera e elegância masculina — a época do grande dandy da Universidade que nunca frequentou; e South Sea House,
Brummel. Enfim, ao classicismo goethiano dos Oehlensch- esboço satírico do ambiente da repartição onde serviu.
laeger, Moerike e Stifter corresponde o grecismo de Keats; Esses três últimos ensaios fornecem uma espécie de auto­
apenas, o poeta inglês, pouco erudito, só viu Homero através biografia, meio idílica, meio irónica; e como desfecho serve
da tradução elisabetana de Chapman — On first looking um dos poucos poemas felizes de Lamb, um dos mais que­
into Chapmarís Homer é o título do seu famoso soneto; ridos em língua inglesa:
em geral, pode-se afirmar que ao classicismo continental
corresponde, na Inglaterra, uma renascença da poesia eli­
" . . . How some they have died, and some they have
sabetana, promovida por Coleridge e Hazlitt e, sobretudo,
left me,
por Lamb, cujos ensaios apresentam — aí não há mais
And some are taken from m e ; ali are departed —
dúvida — o quadro encantador do "Biedermeier" inglês.
Ali, ali are gone, the old familiar faces."
Os Essays of Elia, de Charles Lamb ( 1 4 2 ), são em pri­
meira linha um retrato do seu autor: "gentle and frolic",
E será difícil negar que Lamb é o "Biedermeier" inglês.
É o maior ensaísta da língua, um Montesquieu em tom me­
141) Emil Aarestrup, 1800-1856. n o r ; também sabia escrever cartas deliciosas; e recusou
Digte (1838-1863). peremptoriamente a denominação do conjunto dos seus
Edição por H. Brix e F. Ramskioer, 4 vols., Kjoebenhavn, 1922-
1923. escritos como "Obra". Lamb deixou no entanto um livro
G. Brandes: "Aarestrup". (In: Aesthetiske Studier. Kjoebe­ que, pela maior parte não era seu, e que representa uma
nhavn, 1868.)
H. Brix: Emil Aarestrup. Kjoebenhavn, 1952. obra das maiores repercussões na literatura inglesa: os
142) Charles Lamb, 1775-1834.
Tales jrom Shakespeare (1807); Specimens of English Dramatic E. Blunden: Charles Lamb and His Contemporaries. Cambridge,
Poets who lived about the time of Shakespeare (1808); Essays 1933.
o/ Elia (1823-1833). A. C. Ward: The Frolic and the Gentle. London, 1934.
Edição completa por A. Ainger, 12 vols., London, 1899-1900. J. L. May: Charles Lamb, a Study. London, 1934.
I. Derocquigny: Charles Lamb. Lille, 1904. K. Anthony: The Lambs. A Story of Pre-Victorian Englanâ.
W. Jerrold: Charles Lamb. London, 1905. New York, 1945.
1II3U OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1839

Specimens of English Dramatic Poets who lived about the " . . . divine melodius t r u t h ;
time oi Shakespeare. Lamb, por mais que admirasse o maior Philosophic numbers smooth;
dramaturgo inglês, já então objeto de uma idolatria, só o Tales and golden histories
considerava como o maior entre outros, menores, mas tam­ Of heaven and its mysteries."
bém grandes. Os Specimens são uma antologia dos Chap-
man, Jonson, Beaumont e Fletcher, Massinger, Tourneur, — caracterizou a sua própria poesia. É poesia intensamente
Webster, Middleton, Ford então quase esquecidos, anto­ musical, "filosófica" só pela reprodução da harmonia das
logia de cenas e trechos otimamente escolhidos e acompa­ esferas, fugindo do mundo para céus sonhados: romantismo
nhada de um comentário crítico, cheio de entusiasmo, con­ de evasão. A biografia confirma isso. Pobre proletário,
taminando do mesmo entusiasmo toda a crítica inglesa do filho de um cocheiro, sem estudos regulares, poeta auto-
século X I X . Ao ensaísta, menos versado na língua grega, didata maltratado pelos críticos incompreensivos, consu-
o renascimento da poesia elisabetana substituiu o classi­ mindo-se numa paixão erótica das mais ardentes; sem espe­
cismo helenista dos "Biedermeiers" continentais. A renas­ rança de realização; destruído, com 26 anos de idade, pela
cença elisabetana é elemento característico do "Bieder- tuberculose e sepultado no cemitério dos protestantes em
meier" inglês. Sem ela não haveria, ou não existiria assim Roma: uma vida infeliz e "romântica", em torno da qual
a poesia de Keats. se criou logo a lenda do "adolescente" romântico, assim
Keats ( 143 ) admirava imensamente os elisabetanos. Fa­ como no caso de Hoelderlin. A lenda foi desmentida pela
lando de Beaumont e Fletcher, em Bards of Passion and of publicação das cartas de Keats, que constituem um verda­
Mirth — deiro tratado de arte poética, de valor incalculável: "The
Sun, the Moon, the sea and Men and Women who are crea-
143) J o h n K e a t s , 1795-1821.
Poems (1817); Enãymion (1818); Lamia, Isabella, The Eve of tures of impulse are poetical and have about them an un-
St. Agnes, and Other Poems (1820); Letters and Literary Re- changeable attribute — the poet has none; no identity —
mains (1848).
Edição das obras completas por H. Buxton F o r m a n , 5 vols., L o n - he is certainly the most unpoetical of ali God's Creatures".
don, 1898-1901. Essa citação afasta logo o conceito do "adolescente inspi­
Edição das poesias por H. W. Garrod, Oxford, 1939.
A. Lowell: Keats. 2 vols. Boston, 1925. rado mas decadente". Keats não era decadente e sim vigo­
C. D. T h o r p e : The Mina of Keats. Oxford, 1926. roso, apesar da doença que lhe destruiu o corpo. Inspiração,
H. W. G a r r o d : Keats. Oxford, 1926.
J. M. M u r r y : Studies in Keats. Oxford, 1930. êle tinha demais, não se pode negar; não é admirável certa
M. R. Rodley: Keats" Craftmanship. Oxford, 1933. abundância excessiva da linguagem num poeta de vinte
B. I. E v a n s : Keats. London, 1934.
C. L. F i n n e y : The Evolution of Keats' Poetry. 2 vols. Cambridge, anos; também se notam certos truques aprendidos em Spen-
Mass., 1936. ser e os elisabetanos, como o excesso de metáforas perso­
L. J. Zillman: John Keats and the Sonnet Traãition. Los A n ­
geles, 1940. nificadas e das maiúsculas. Mas trabalhavam seriamente;
W. J. B a t e : The Stylistical Development of Keats. New York, era um grande construtor do verso, nesse sentido talvez o
1945.
E. R. W a s s e r m a n : The Finer Tone. Keats' Major Poems. L o n ­ maior em língua inglesa. Deu só quinta-essências, toda pa­
don, 1953. lavra uma imagem, todo verso uma definição. É de objeti-
li. Gittings: The Mask of Keats. London, 1956.
M. Hcnzulli: John Keats, 1'uomo e íl poeta. Roma, 1956. vidade miltoniana; sabia construir sonetos de uma frase
H. Bluckstone: The Consecrated Um. An inierprtLation of só, como Milton. É, em suma, o clássico da língua, um
Kcala. London, 1959.
1840 Orro MARIA G4RPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1841

clássico grego, imperturbado, pagão, desejando as mulheres, "l'art pour l'art" ("What shocks the virtuous philosopher,
não querendo muito bem à gente, alegre sem fé. Um grego, delights the camelion P o e t " ) ; daí o emocionalismo delicado
não como os gregos eram, mas como foram imaginados. e o "sfumato" dessa poesia, pela qual Keats se tornou o
Um grego, porém, sem filosofia. "O for a Life of sen- precursor dos simbolistas, o "poet's poet" por excelência.
sations rather than that of Thought!", gritou. A parte "A thing of beauty is a joy for ever"; mas foi a única ale­
menos original da sua poesia é o neoplatonismo místico de gria dessa pobre vida quase sem materialidade.
Endymion; e o famoso verso com que esse poema começa —
" W h e r e are the songs of springs? Ay, where are
they?
"A thing of beauty is a joy for ever"
Think not of them, thou hast thy music too."

— precisa de outra interpretação do que da "grecista" para Keats é evasionista como nenhum outro; mas não é místico,
ser mantido como representando o pensamento autêntico de é um espírito lúcido, claro, halcyônico como o evasionista
Keats. Com efeito, seria mais do que admirável se Keats, antimístico Moerike.
que nem sabia língua grega, tivesse chegado a um classicis­ Keats já foi, ocasionalmente, comparado a Baudelaire,
mo autêntico. O seu Homero era o de Chapman — o que nos parece equívoco inadmissível; essa comparação
já se aplica melhor ao mais elisabetano dos evasionistas
"Yet did I never breathe its puré serene ingleses, a Beddoes ( 1 4 4 ), esquisitão dos mais excêntricos
Till I heard Chapman speak out loud and bold: que acabou suicidando-se. Em torno da morte girou todo
Then felt I like some watcher of the skies o seu pensamento; e para exprimi-lo serviam-lhe tão bem
W h e n a new planet swims into his ken." o verso agitado e sentencioso de John Webtser como a
invenção de fantasmas à maneira de E.T.A. Hoffmann. A
— e o metro preferido de Keats é a "Spenserian stanza". poesia de Beddoes, embora cheia de versos de lucidez bri­
Através da poesia elisabetana, "loud and bold", o prole­ lhante, é positivamente a do manicômio, o que não lhe
tário Keats, doente e hiperestético, descobriu novos mundos desmente os valores poéticos, nem sequer exclui a saudade
de magia verbal, do idílio:

"Charm'd magic casements, opening on the foam "A cottage lone and still,
Of perilous seas, in faery lands forlorn", W i t h bowers nigh,
Shadowy, my woes to still,
mundos que a sua própria imaginação criou — uma carta Until I die."
comenta: "The Imagination may be compared to Adam's
144) Thomas Lovell Beddoes, 1803-1849.
dream — he awoke and found it truth". Daí — do sonho — Death's Jest Book or the FooVs Tragedy (1850); Poems (inclui
o antiintelectualismo da sua poesia, eternizado no final os fragmentos dramáticos Torrismonã e The Last Man; 1851).
Edição por H. W. Donner, Oxford, 1935 (2.a edição, 1950).
da Ode on a Grecian Urn: R. H. Snow: Thomas Lovell Beddoes. Eccentric and Poet. New
"Beauty is truth, truth beauty —, that is ali"; daí a York, 1928.
H. W. Donner: Thomas Lovell Beddoes. The Maleing of a Poet.
irresponsabilidade moral, como no sonho, da sua teoria do Oxford, 1935.
Ill 12 (hm MAIUA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1843

O idílio é uma espécie de obsessão do "Biedermeier"; e recriando na memória a Madri do Rococó. Mais típico,
dow neuróticos assim como dos temperamentos de pequenos porque menos poético, era Mesonero Romanos ( 1 4 7 ), que
biirf.ncses; idílio muito diferente do pré-romântico. Os acompanhou a transformação da Madri antiga em Madri
poctíis lhe dão expressão grega ou elisabetana; os prosa­ burguesa, criando um dos maiores repositórios de tipos e
dores, mais modestos, limitam-se a saudades provincianas, costumes e dialetos que qualquer cidade no mundo possui,
regionalistas ou da mocidade, encontrando às vezes o ca­ lamentando discretamente o desaparecimento dos bons ve­
minho para certo realismo rústico que antecipa o futuro. lhos tempos e mantendo a antiga honestidade pelo menos
Mas são todos conservadores. Um tipo desses — um Moe- na sua própria literatura e no seu jornalismo, abundante
rike sem poesia, um Stifter sem cultura — é o holandês como o de Balzac e calmo como o de Stifter. O evasionismo
Beets ( 1 4 5 ), cuja Câmera Obscura, contos da vida das clas­ é mais marcado, porque mais regionalista, em Estébanez
ses médias, é o livro mais popular da literatura holandesa. Calderón ( 1 4 8 ), o "Solitário", antigamente admirado pela
Os simbolistas de 1880 revoltaram-se contra essa popula­ riqueza lexicológica das suas Escenas andaluzas; hoje é
ridade de um realismo "fotográfico", antipoético. Mas a lembrado só como caso curioso de um espanhol que aceitou
censura é tão injusta como é excessivo o elogio da compa­ a imagem da "Espanha pitoresca" dos românticos estran­
ração de Beets com Dickens. O humorismo sentimental do geiros. O "costumbrismo" chegou à plena consciência dos
holandês não pretende fazer propaganda social, mas tornar seus objetivos em Fernán Caballero ( 1 4 °), filha do célebre
mais idílica a atmosfera de quartos fechados, descobrir pe­ calderoniano alemão e modelo perfeito de uma senhora de
quenas virtudes em vidas cinzentas que se desvanecem. província espanhola: católica até o fanatismo, conservadora
Beets que viveu até aos começos do século XX, era um ao ponto de se revoltar contra a construção de estradas de
saudosista, que passou a vida lembrando-se dos seus dias de
estudante em Leiden.
147) R a m ó n de Mesonero Romanos, 1803-1882.
As saudades — a vontade do "O temps! suspends ton Panorama matritense (1832-1835) ; Escenas matritenses (1836-
1842) ; Tipos ?/ Caracteres (1843-1862) ; Memórias de un set.entón,
vol!" — criaram na Espanha um género literário: o "ar­ natural y vecino ãe Madrid (1880).
tículo de costumbres". Até um Larra encontra-se entre J. Olemedilla y Pui<?: Bosquejo biográfico dei popular escritor
ãe costumbres don Ramón ãe Mesonero Romanos. Madrid, 1889.
os cultores desse género, mas a sua crítica subversiva dos J . R . Lomba: "Costumbristas espanoles de la primera m i t a d dei
"costumes estabelecidos" já não é "Biedermeier". O re­ siglo X I X " . ( I n : Cuatro estúdios en torno a Larra. Madrid,
1936.)
presentante perfeito desse estilo é Somoza ( 1 4 e ), poeta 148) S e r a í í n Estébanez Calderón, 1799-1867.
medíocre em versos e poeta delicioso em prosa, evocando Escenas andaluzas (1847).
A. Cánovas dei Castillo: El Solitário y su tiempo. 2 vols. M a ­
drid, 1883.
149) F e r n á n Caballero (Cecília Boehl de F a b e r ) , 1796-1877.
La Gaviota (1849); Cuaãros ãe costumbres povulares anãaluces
145) Nicolaas Beets, 1814-1903.
(1862).
Camera obscura (1839-1851).
J. Dyserinck: Nicolaas Beets. Harlem, 1903. J. M. Asencio: Fernán Caballero y la novela contemporânea.
G. Van Rijn e J. J. D e e t m a n : Nicolaas Beets. 3 vols. R o t t e r d a m , Madrid, 1893.
1911-1916. A. Morel-Fatio: " F e r n á n Caballero". ( I n : Etuães sur VEspagne,
vol. I I I . Paris, 1904.)
II. P h . fHooft: De stuãent Beets. Harlem, 1915.
L. Coloma: Recuerãos de Fernán Caballero. Bilbao, 1910.
14(1) Jo.se Somoza, 1781-1852. B. Croce: " F e r n á n Caballero". ( I n : Poesia e non poesia. 2. a ed.
Artículos en prosa (1842). Bari, 1936.)
Hillcúo (com estudo) por J. R. Lomba, Madrid, 1904. M. Baquero: El cuento espanol en el siglo XIX. Madrid, 1950.
1844 OTTO MARIA CARPEATJX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1845

ferro, mas gostando do povo e dos seus costumes arcaicos, tade do século XIX, a poesia dialetal era antes de tudo
e tremendo em face dos "tempos modernos". Os idílios anticlerical, apoiando desse modo a luta dos patriotas contra
de Fernán Caballero têm tendência pedagógica; pretendem o clero que se aliara aos estrangeiros. Um Porta, um Belli
demonstrar a superioridade do que foi ou se vai. Lá, no pertencem à oposição política, mas só até certo ponto; no
passado, está para ela a verdadeira realidade social; con­ fundo estão identificados com o seu ambiente pequeno-
sidera as reformas como expressões de um romantismo burguês, essencialmente apolítico. Cario Porta ( 1 5 1 ), que
caótico; julga-se realista; e em certo sentido é. Mas o escreveu em dialeto milanês, talvez seja o mais poético
estilo a desmente, um estilo em que um crítico tão severo entre os poetas dialetais; uma arte notável da expressão fina
como Benedetto Croce reconheceu as qualidades de uma e nuançada dentro da gíria popular torna-o o "poet's poet"
modesta, mas intensa poesia. entre os parodistas. E revela admirável força dramática
A mesma aura poética envolve as Nouvelles genevoises na caracterização dos seus tipos da vida milanesa de 1820:
do desenhista Toepffer ( 1B0 ), idílios deliciosos da vida sobretudo o famoso Fraa Pasqual, o monge que vive muito
genebrina, na época de transição entre a decadência do bem da veneração supersticiosa que as velhas beatas lhe
calvinismo rigoroso e o advento dos democratas e radicais dedicam, sacrificando-lhe o último dinheiro. O próprio
na cidade de Calvino. Não existe no mundo coisa mais Porta é um pobre-diabo; e o "herói" do seu poema mais
"Biedermeier"; mas também há nesses contos o contraste famoso não é um patriota revolucionário, mas o pequeno
marcado entre os orgulhosos aristocratas de velha estirpe burguês de pernas curvas que canta nas ruas as suas des­
e a gente humilde dos bairros "baixos"; qualquer coisa graças matrimoniais, no Lament dei Marchione di gamb
como oposição. E oposição assim está sempre presente avert. Nestroy teria gostado.
dentro do "Biedermeier", uma oposição que zomba e ri, Ambição maior, talvez desmesurada, inspirou a Be­
mas, afinal, se conforma. lli ( 162 ) nada menos que 2281 sonetos no dialeto de Tras-
Zombadores assim são frequentes na poesia dialetal tevere, subúrbio proletário de Roma. Conforme sua própria
italiana da época. Na Itália, a poesia dialetal constitui, des­
de a Contra-Reforma, um protesto permanente do povo miú­
do contra os intelectuais cuja poesia grandiloqúente preten­ 151) Cario Porta, 1776-1821.
Poesie milanesi (1827).
de perpetuar os gestos renascentistas e classicizantes, mas Edição por E. Verga, Roma, 1921.
revelando apenas a miséria moral da nação em decadência. A. aMomigliano: Vopera di Cario Porta. Città di Castello, 1909.
(2. edição, 1923.)
Assim está Ruzzante contra a comédia plautiniana dos hu­
152) Giuseppe Gioachino Belli, 1791-1863.
manistas; assim, a "commedia dell'arte" contra os trágicos; Edições dos sonetos por L. Morandi, 3 vols., 1889 (reimpressão
r,ssim, os poetas rústicos sicilianos contra a Arcádia. Fo- completada, 3 vols., Roma, 1923-1924), e por G. Vigolo, 3 vols.,
Milano, 1952.
lengo não é o modelo, mas o arquétipo. Na primeira me- L. Morandi: "La sátira a Roma e i sonetti in dialetto romanesco
di Giuseppe Gioachino Belli". (In: Rivista Contemporânea, 1896.)
E. Bovet: Le peuple de Rome vers 1840 ã'après les sonnets en
dialecte transtéverin de Giuseppe Gioachino Belli. Neuchâtel,
i:>0> Rodolphe Toepffer, 1799-1846. 1896.
Nouvelles genevoises (1840). F. Clementi: Roma papale nei sonetti di Giuseppe Gioachino
A. Mondei e P. Miraband: Roãolphe Toepffer. Uécrivain, Par­ Belli. Roma, 1925.
tiste cl. iliomme. Paris, 1886. El. Clark: "G. G. Belli, roman poet". (In: Rome anã a Villa. New
I'. Courthion: Genève ou Le portrait de Toepffer. Paris, 1936. York, 1952.)
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1847
uno O I T O MARIA CARPEAUX

(locliirnçftn: "Io ho deliberato di lasciare un monumento no Fernandez de Lizardi ( 1 5 3 ), um dos livros mais lidos em
dl qucllo che c oggi la plebe di Roma". Vale a pena analisar língua espanhola. Parece o último romance picaresco, pelo
OMHII níiiinação. "La plebe di Roma", isto é, todas as classes engraçado humorismo popular, e, também, pela tendência
da Cidade Eterna, dos cardeais e da aristocracia até os men­ moralizante. Fernandez de Lizardi, "El pensador mexi­
digos c prostitutas da rua e os ladrões da Campagna, fiel­ cano", era jornalista popular, e o seu intuito era pedagó­
mente observados em sua condição social e humana, uma gico: pela história de uma vida picaresca no ambiente
verdadeira "Comédie humaine" ou "Comédia não divina", pitoresco dos últimos tempos da dominação espanhola no
cheia de cenas humorísticas e trágicas, burlescas e diabó­ México pretendeu educar o povo. Esse ambiente é muito
licas, comoventes e pitorescas. Também é um "monumen­ parecido com o das Memórias de um Sargento de Milícias,
t o " : pois Belli, que era poeta fraco em língua italiana, é do brasileiro Manuel António de Almeida ( 1 K I ), romance
artista incomparável da palavra e do verso em dialeto ro­ que também já foi caracterizado como picaresco, embora
manesco. Certos daqueles sonetos têm a qualidade de me­ as letras de língua portuguesa nunca tenham preferido esse
dalhas de bronze; outros, parecem inscrições lapidarias. E género. Por outro lado pode Manuel António ser conside­
rado como um precursor do realismo; é, afinal, contem­
essa arte é tanto mais admirável quando se sabe que Belli os
porâneo de Balzac, se bem que num ambiente literário ainda
escreveu com rapidez incrível, dezenas de sonetos por dia e
dominado pelo romantismo. Enfim, há nessa obra algo do
todos eles dentro de poucos anos. "Oggi", isto é, o governo
realismo rudimentar dos novelistas provincianos do "Bie­
corrupto e hipócrita do Papa Gregório X V I , por volta de
dermeier".
1840. Belli ridicularizou impiedosamente o chefe da Igreja.
Lamentando a falta de um Calvário em Roma, sugere que São, todos, "costumbristas". Foram clasificados confor­
toda sexta-feira santa se levantem três cruzes no Monte me a atitude social ( 1 B 5 ): Somoza, o último intelectual do
Mário, crucificando-se todo ano um papa e, aos seus lados, século X V I I I ; Estébanez Calderón, o burguês provinciano,
dois cardeais. Belli persegue quase fanaticamente o clero, pensando só no passado; Mesonero Romanos, o burguês
injuriando-o assim como amaldiçoa a aristocracia romana. da capital, vivendo só no presente; Larra, o primeiro inte­
Chega a parodiar as histórias bíblicas do Velho e Novo lectual espanhol do século XIX, olhando para o futuro.
Testamento, da maneira mais blasfema. E, de repente,
declarou todos aqueles sonetos como inspirados pelo Diabo. 153) José Fernandez de Lizardi, 1776-1827.
Numa grave crise religiosa, chegou a querer queimá-los. El Periquillo Sarniento (1816); La Quijotita y su prima (1818);
I. R. Spell: The Life anã Works of José Fernandez de Lizardi.
Acordou do pesadelo como pequeno burguês pacato, viven­ Philadelphia, 1931.
do a expensas de uma viúva rica e com o seu ordenado L. González Obregón: Novelistas mexicanos: José Fernandez ãe
Lizardi. 2.a ed. México, 1938.
de funcionário a serviço do Papa. Deve ter sido, realmente, P. Radin: The Opponents anã Frienãs of Lizardi. San Fran­
o Diabo que perturbara essa existência de um cidadão da cisco, 1939.
Roma do "Biedermeier". Mas o Diabo tinha feito um 154) Manuel António de Almeida, 1830-1861.
Memórias de um Sargento ãe Milícias (1855).
grande poeta. Edição (com estudo de Mário de Andrade), S. Paulo, 1941.
"Bierdermeier" encontra-se até na América Latina, ao Marques Rebelo: Vida e obra ãe Manuel António ãe Almeida.
Rio de Janeiro, 1943.
lado das odes grandiloqiientes de Olmedo. Seria possível 155) J. R. Lomba. "Costumbristas espaiioles de la primera mitnd dei
classificar assim o famoso Peiiquillo Sarmento, do mexica- siglo XIX". (In: Cuatro estúdios en torno a Larra. Madrid, 1936.)
UMÍÍ OITO MAIUA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1849

Larra, sim, o trafico "Fígaro", é também "costumbrista", mais impressionante da prosa espanhola: enquanto toda
é uté o único génio no género dos "artículos de costumbres". gente sai de Madri para comemorar no cemitério o dia
o embora tudo cm Larra — oposicionismo radical, atitudes, de finados, Fígaro descobre que a própria Madri é o
barba» c trajes românticos, desespero byroniano e suicídio maior cemitério da Espanha, o túmulo de todos os esforços
cNpctacular — pareça situá-lo fora do idílio, não se esquece frustrados da nação. "Libertad! Constitución! T r e s v e c e s !
o género das suas produções e a volta súbita ao partido Opinión nacional! Emigración! Verguenza! Discórdia!
conservador, no fim da sua vida. Respira-se a atmosfera Todas estas palabras parecían repetirme a un tiempo los
do "Biedermeier" na sala dedicada a Larra no Museu Ro­ últimos ecos dei clamor general de las campanas dei dia
mântico em Madri. O suicídio, afinal, tampouco é raro de difuntos de 1836. Una nube sombria lo envolvió todo.
entre os Stifter e Beddoes, os neuróticos do "Biedermeier". E r a la n o c h e . . . . Quise refugiarme en mi propio c o r a z ó n . . .
Larra ( 1B6 ) é um tipo altamente romântico de génio Santo cielo! También otro cementerio. Mi corazón no es
malogrado: escritor que empolga um país inteiro pelo más que otro sepulcro. Qué dice? Leamos. Quién ha muer-
humorismo penetrante do seu desespero; até acabar no to en él? Espantoso letrero. Aqui yace la esperanza! Si­
suicídio por motivo de uma aventura amorosa. Larra teria lencio, silencio!" Três meses depois, Fígaro estava morto,
sido o Byron espanhol, quer dizer, assim como os europeus a bala suicida no peito. As suas barbas, fraques e amores
do Continente imaginaram Byron, como herói misterioso, românticos tornaram-se proverbiais; com a sua morte so­
poeta festejado, zombando da Criação malograda, rindo-se nharam os moços. A glória de Larra sobreviveu à moda,
freneticamente das fraquezas do género humano desprezado menos pelas suas qualidades extraordinárias de grande
e revelando, de repente, os abismos na sua alma. Assim jornalista do que pela descoberta de um Larra diferente.
a Espanha riu-se com o espírito malicioso dos seus "artí­ Tinha traduzido as Paroles d'un cioyant, do apóstata revo­
culos de costumbres" — El castellano viejo, Yo quiero ser lucionário Lamennais; tinha, no famoso artigo Cuasi, esbo­
cómico, Vuelva usted mahana, e outras sátiras do "pobrecito çado o panorama de uma Europa arrasada pela mediocridade
Hablador". Depois, quando "Fígaro" abriu os abismos na dos quase-absolutistas e quase-revolucionários; tinha for­
sua alma, a Espanha inteira tremeu com o seu pessimismo necido, em Dios nos asista, a crítica mais aguda do per­
apocalíptico. El dia de Defuntos de 1836 talvez seja a peça manente mal político da Espanha, do absolutismo disfar­
çado, das eleições fraudulentas; foi o primeiro, talvez, que
156) Mariano José de Larra, 1809-1837. — em Literatura — colocou nos termos mais incisivos o
Colección de artículos dramáticos, literários, políticos y de cos­ problema da decadência espanhola. Assim Azorín o cele­
tumbres (1832-1837).
Edições por J. R. Lomba y Pedraja (Clásicos Castellanos, vols. brou como precursor do movimento de 98, que se iniciou
XLV, LII, LVII), e por M. de Almagro San Martin, Madrid, 1944. mesmo com uma romaria ao túmulo de Larra, o Beaumar-
M. Chaves: Mariano José de Larra, su tiempo, su vida, sus obras.
Sevilla, 1898. chais trágico, o Fígaro da revolução espanhola. Mas, depois,
Azorín: Rivas y Larra. Madrid, 1916. já não quiseram saber do seu pessimismo romântico; repa­
E. Mc Guire: A Study of the Writings of ãon Mariano José de
Larra. Berkeley, 1918. raram que Larra não tinha "criado" nada, que fora só um
Cármen de Burgos (Colombina) : Fígaro. Madrid, 1919. crítico estéril. Agora surgiram tentativas tímidas de rei­
M. de Almagro San Martin: Mariano José de Larra, su tiempo
V su obra. (Prólogo da edição citada.) vindicá-lo para a direita: em grande série de artigos Larra
J. L. Varela: Larra y nuestro tiempo. ÍCuadernos Hispanoame- tinha combatido a influência francesa na vida espanhola;
ricanos, dec. 1960 — jan. 1961.)
11!.r)0 OITO MAIUA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1851

c, cu Tini, o antigo liberal tornara-se conservador. Este úl­ crianças: Thorwaldsen, o escultor, tão precoce que não
timo lato c inegável: situa Larra entre os "moderados" precisava aprender a escultura; Oersted, o físico, que deveu
tio romantismo; caracteriza o seu desespero político, tão a descoberta do electromagnetismo a um acaso e não sabia
fortemente influenciado pela paixão erótica, como manobra explorá-lo; Andersen que era criança mesmo. O país perdeu
tlc evasão. Aqueles artigos antifranceses dirigem-se, todos inteiramente o senso das realidades. A vitória inesperada,
cies, contra o teatro romântico francês. Larra não é tão em 1850, sobre a Alemanha politicamente dividida — o
romântico como parece, não mais do que a moda do tempo país dos Nureddins eruditos mas sem poder nem sorte —
impôs. O seu modelo imediato é o grande panfletário envolveu a Dinamarca em nuvens de ilusões. Mas em 1864,
Courier, grecista ortodoxo. Mas para não exagerar, basta Nureddin venceu; o pequeno país foi derrotado pela Prús­
definir Larra como revolucionário romântico malogrado, sia, que lhe roubou a metade do seu território. O reflexo
fracassando porque no fundo não era revolucionário. Havia, literário está na obra do norueguês dinamarcófilo Ibsen.
no seu tempo, mais do que um que atacou o ambiente sono­ Rei Hakon e Jarl Skule, em Kongsemnerne, ainda repetem
lento do "Biedermeier", e fracassou porque estava intima­ a relação Aladdin — Nureddin. Peer Gynt já é a inversão:
mente ligado àquele ambiente. Até um Kierkegaard, um o "poeta" revela-se como aventureiro, a "poesia" como
Gogol, estavam em situação parecida. mentira.
O "Biedermeier" mais típico não é o alemão nem o A análise de Brandes é penetrante, mas injusta. Omite,
austríaco nem o espanhol, mas o dinamarquês: num tubo talvez de propósito, os sintomas que anunciaram a catás­
pequeno observa o físico melhor seu experimento. A cultura trofe, de modo que o pessimismo amargo de Ibsen parece
universal de Goethe, reduzida para "cultura geral" do bur­ mero produto do acontecimento político. Oehlenschlaeger
guês letrado; o romantismo tão atenuado que sente prazer não era a única influência da época. Não era menos forte
estético diante do espetáculo de uma vida pública parada e a influência do seu inimigo Heibcrg, hegeliano, dialético
paralisada; o "génio" romântico, criador e revoltado, trans­ portanto, mas de uma dialética tão atenuada como se ate­
formado em Aladdin, de Oehlenschlaeger, o moço poético nuara o romantismo de Oehlenschlaeger. A síntese das
ao qual a sorte dá tudo de presente. Em estudo pene­ contradições, na filosofia hegeliana, foi interpretada pelos
trante ( 1 5 7 ), Brandes analisou a substância poética e as dinamarqueses como mera mediação ou "compromisso" (no
consequências morais de Aladdin, a peça mais famosa da sentido inglês da palavra), como garantia da situação feliz
literatura dinamarquesa. A ideia fundamental da comédia já estabelecida. Por enquanto, só se levantou o protesto
era altamente poética; mas na elaboração já interveio cada de um Aladdin às avessas, de uma grande criança infeliz:
vez mais o moralismo atenuante; Aladdin, concebido como Andersen.
homem excepcional, tornou-se felizardo ao qual fadas ra­ Andersen ( 1 5 8 ), o maior narrador de contos de fadas,
zoáveis recompensam a boa conduta, enquanto o estudioso deu à sua própria autobiografia o título de um conto de
Nureddin não consegue nada. Parece simbólico que o velho
Oehlenschlaeger voltou à infantilidade mental. Os génios
dinamarqueses daquela época eram, todos eles, grandes 158) Hans Christian Andersen, 1805-1875.
Improvisatoren (1835); O. T. (1836); Kun en Spillemand (1837);
Eventyr og Historier (1835-1837; 1845; 1847-1848; 1852-1862; 1871-
UVÍ) O Brandos: "Oehlenschlaegers Aladin". (In: Mennesker og Va- 1872); Billeãbog uãen Billeãer (1840); Mit Lyvs Eventyr (1855);
crkf.r. Kjoebenhavn, 1883.) / Spanien (1863).
nir.i: OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1853

fndim — "Mit Lyvs Eventyr" ("O Conto de Fadas de "Biedermeier"; Kun en Spillemand, história de um pobre
Minha V i d a " ) ; e estava certo. Nasceu como filho de um músico, é mesmo uma obra-prima. Em tudo o que Andersen
itapnteiro e de uma lavandeira, frequentou durante pouco escreveu, nota-se a forte simpatia social para com os ofen­
tempo uma escola de meninos pobres, pretendeu tornar-se didos e humilhados; e a análise mais acurada percebeu,
cantor, depois bailarino, fracassou em tudo, voltou com enfim, certas alusões que os estudos biográficos ajudaram
dezoito anos de idade à escola, experimentou todas as des­ a interpretar: Andersen era homossexual. Considerando-se
graças de um menino proletária — e trinta anos mais tarde os efeitos da sua educação e formação, isso só podia signi­
era um escritor mundialmente conhecido e querido, tra­ ficar a repressão completa da sexualidade. Andersen era
duzido para todas as línguas, convidado a almoçar com o como são as crianças. Era um adulto, vivendo no clima
rei da Dinamarca e com a rainha da Inglaterra, vivendo, espiritual em que todos nós vivemos antes da puberdade;
a sua atitude em face da vida, que negou tudo aos seus
mimado como uma criança, nos castelos da aristocracia.
esforços e lhe deu tudo de presente, era a de uma criança.
É um conto de fadas. E deveu a glória não aos seus tra­
Por isso, ninguém entendeu, como ele, a alma infantil. A
balhos literários "sérios", os romances que tinham pouco
vida lhe parecia brincadeira, sem continuação na realidade.
sucesso, mas a certos pequenos contos que começara a es­
Os homens, os animais, os objetos, a Natureza inteira —
crever para divertir os filhos de seus amigos. Era um
tudo brinquedo. Mas, como toda criança, tomou a sério
improvisador — Imptovisatoren é o título do seu primeiro a brincadeira; descreveu aqueles brinquedos mortos ou vi­
romance — um Aladdin. Apenas, esse Aladdin revelou cer­ vos com o realismo de um artista objetivo. É o Homero
tos traços de caráter evidentemente patológicos: era de vai­ daquela humanidade primitiva que é a idade infantil. Con­
dade fabulosa, mais do que infantil, e sofreu de graves tudo, esse Homero é um homem duramente provado vivendo
acessos de hipocondria. Vestígios disso encontraram-se nos no século X I X ; e por mais idílico que o seu "Biedermeier"
seus romances aos quais a crítica literária presta hoje maior pareça, notam-se nos seus contos de fadas certas alusões
atenção. São bons romances, embora a maneira antiquada menos cómodas; às injustiças das princesas contra as me­
da composição e a preferência pelo ambiente meio exótico ninas pobres e aos sofrimentos dos bichos de madeira.
da vida dos artistas na Itália revele fraquezas típicas do Andersen, proletário parvenu como o seu contemporâneo
Dickens, tem algo da simpatia cordial do inglês pelos fracos
e injustiçados, e algo do seu humorismo caricatural. O
seu sentimentalismo mal dissimulado é o protesto de um
Edição crítica dos Eventyr por H. Brix e A. Jensen, 5 vols., Kjoe­
benhavn, 1919. coração sensível contra o materialismo implacável deste
R. N. Bain: Hans Christian Andersen, a Biography. London, mundo, coração de proletário perdido entre os ricos, cora­
1895.
V. Schmitz: Anãersens Maerchenãichtung. Leipzig, 1925. ção de criança perdida entre os adultos. Protesto, porém,
P. Rubow: Hans Christian Anãersens Eventyr. Kjoebenhavn, não é revolução. E Andersen venceu a vida, não pela eru­
1927. dição de Nureddin, mas pela sabedoria ingénua de Aladdin;
H. Helweg: Andersen, en psikiatrisk studie. Kjoebenhavn, 1927.
F. Boeoek: Andersen. Stockholm, 1939. de um Aladdin que ganha todos os tesouros do mundo, mas
S. Larsen: Hans Christian Andersen. Kjoebenhavn, 1949. é, enfim, um velho quebrado, de vaidade ridícula e sofrendo
K. Bredsdorff: Hans Christian Andersen og Charles Dickens.
Kjoebenhavn, 1952. de graves acessos de hipocondria. O mundo fantástico de
1854 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1855

Andersen não representa o idílio do "Biedermeier", antes Kierkegaard ( i e o ) era candidato da teologia luterana
o seu reverso; mas mesmo assim não deixa de fazer parte em Copenhague, candidato eterno porque escrúpulos reli­
daquele mundo halcyônico e frustrado. giosos e o gozo de uma considerável fortuna herdada nunca
o deixaram chegar a exercer funções ativas na igreja e na
A revolta acentua-se em Meier Aaron Goldsch- vida social. Razões semelhantes, acompanhadas das conse­
midt ( 1B9 ), porque era, como Andersen, um excluído da quências de uma neurose hereditária, motivaram o rompi­
sociedade, mas por motivo mais forte: era judeu, na época mento com a noiva, Regine Olsen; e desde então, tendo
antes da emancipação civil dos judeus. No seu primeiro sido atacado no Corsaren, Kierkegaard começou a produzir,
lomance, autobiográfico, En Joede (Um Judeu), descreveu com rapidez incrível, uma série de obras publicadas sob
as suas experiências dolorosas, manifestando o sentimen­ pseudónimos fantásticos: destinadas a explicar os motivos
talismo de um W e r t h e r ; nesse aspecto, é um pré-romântico daquele passo, e ao mesmo tempo, as suas objeções contra
atrasado. Sob outro aspecto, como jornalista radical, editor a vida burguesa dos pastores da Igreja oficial, contra a ate­
do jornal humorístico Corsaren, atacando com veemência nuação da doutrina evangélica para o efeito de um convívio
os poderes estabelecidos em Estado e Igreja, parece revo­
lucionário. Contudo, Brandes não o podia situar, no seu es­
160) Soeren Kierkegaard, 1813-1855.
boço da história espiritual da Dinamarca, entre Oehlens- OTO begrebet ironi (1841); Enten-Eller (1843); Frygt og Tlaeven
(sob o pseudónimo J o h a n n e s de Silentio, 1843); Gjentagelser
chlaeger e Ibsen, porque Goldschmidt tampouco era um (sob o pseudónimo C o n s t a n t t n Constantius; 1843); Opbyggclig»
revolucionário autêntico: voltou-se, na velhice, para o Taler (1843-1844); Filosofisk Smuler (sob o pseudónimo Johanneu
Climacus; 1844); Begrebet Angst (sob o pseudónimo Vlrgilius
conservantismo mais ortodoxo. Foi homem do "Bieder­ Hafniensis; 1844); Stadier paa Livets Vci (sob o pseudónimo
meier". Estrangeiro dentro do seu próprio mundo, que Hilarius Bogbinder; 1845); Tre Taler (1845); Afsluttende udvi-
áenskabelige Efterskrift (sob o pseudónimo J o h a n n e s Climacus;
não entendeu bem, atacara com veemência igual os resíduos 1846); Kristelige Taler (1847); Taler ved Altargangcn (1848-
1849; 1851:1852); Sygdommcn til Dorden (sob o pseudónimo
do passado e os germes do futuro. Só poupou o hegelia- Anti-Climacus; 1849); índoevclsc i Christcndom (1850); Oje-
nismo, porque, influenciado pelos "jovens hegelianos" ale­ blikket (1855).
Edição por A. B. D r n c h m a u n , I. L. Helbcrg e II. O. Lange, 14
mães, viu em Hegel já não o mediador entre o passado e o vols., Kjoebenhavn, 1901-1900.
presente, e sim o mediador entre o presente e o futuro. O. M o n r a d : Soeren Kierkegaard. Kjoebenhavn, 1909.
T. Bohlin: Soeren Kierkegaard. Stoekliolm, 1918.
Com isso demonstrou os "perigos" da mediação ambígua ao P. A. Heiberg: Soeren Kicrkeyaards religioese Udvikling. K j o e ­
inimigo mais feroz dessa mediação hegeliana, a uma pessoa benhavn, 1925.
E. Geismar: Soeren Kierkegaard. 2 vols., Kjoebenhavn, 1926-
cujas atividades literárias foram diretamente inspiradas 1928.
F . A. Voigt: Kierkegaard im Kampf mit der Romantik, der
pelas caricaturas e ataques violentos dos quais ela foi víti­ Theologie und der Kirchc. Leipzig, 1928.
ma no Corsaren: Kierkegaard. A. Vetter: Froemmigkeit ala Leidcnschaft. Leipzig, 1928.
H. Diem: Philosophie und Christentum bei Soeren Kierkegaard.
Berlin, 1929.
E. Przywara: Das Geheimnis Kierkegaards. Muenchen, 1929.
M. T h u s t : Soeren Kierkegaard, der Dichter des Religioesen.
160) Meier Aaron Goldschmidt, 1819-1887. Berlin, 1931.
En Joede (1845); Fortaellinger (1846); Hjemloes (1857); Ravnen L. Chestov: Kierkegaard et la philosophie existentielle. Paris,
(1807); Livs Erinãringer (1877). 1936.
O. B r a n d e s : Goldschmidt. Kjoebenhavn, 1900. J. W a h l : Êtudes Kierkegaardiennes. Paris, 1938.
II. K y r r e : Meier Goldschmidt. 2 vols. Kjoebenhavn, 1919. W. Lowrie: Soeren Kierkegaard. Princeton, 1938.
III.V. Oiro MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1857

cómodo do cristianismo com a sociedade moderna, e contra de Tertuliano: "Credo quia absurdum". E só esta fé seria,
li "IIUMIÍII^ÍIO" hegeliana que justificava tais processos. Es- segundo Kierkegaard, a verdadeira. Explicações psicoló­
NHH obras estão escritas numa mistura de estilo exaltada- gicas ou antes psicopatológicas não servem porém para
inente romântico e estilo abstrusamente filosófico, jargão desvalorizar o produto mental do cérebro neurótico. A
«los he^elianos, de modo que constituem leitura dificílima; doutrina de Kierkegaard é "existencialista"; quer dizer,
mas o leitor sente em toda linha — para empregar o título de ela rejeita, junto com a mediação hegeliana, toda e qualquer
uma dessas obras — Frygt og Baeven: Angústia e Tre­ especulação teórica fora da vida; não pode, teoricamente,
mor. Não se trata de poemas em prosa, de irresponsabili­ ser refutada. Por isso, fêz tremer nos fundamentos o como­
dade estética, nem de especulações no ar, mas de doutrina dismo cristão-burguês do "Biedermeier" dinamarquês; e
vívida e terrível que nos coloca em face de um Enten-Eller quando esse "Biedermeier" caiu sob o troar dos canhões
fatal: "Ou isto ou aquilo"; uma alternativa que não deixa prussianos, a "exigência integral" religiosa de Kierkegaard
saída "mediadora". É verdade que o próprio Kierkegaard ressuscitou na "exigência integral" moral de Ibsen. Havia,
evitou, enquanto possível, a solução radical; depois das noi­ porém, no pensamento de Kierkegaard, uma contradição
tes de trabalho intenso, passava os dias como gozador da mais evidente do que todas as outras: colocou os homens
vida, tornando-se popular nas ruas de Copenhague a sua em face da alternativa de voltar ao rigor ascético do cris­
figura algo grotesca, como de E.T.A. Hoffmann, exposta tianismo primitivo, inimigo irreconciliável da civilização
aos ataques cínicos do Corsaren. Enfim, quando morrera profana, ou então abandonar o cristianismo em favor dessa
o venerando bispo Mynster, homem cultíssimo e delicado, civilização; e Kierkegaard não previra a possibilidade de
protestante livre e "moderno" à maneira de Schleiermacher, os homens escolherem o segundo caminho. Mas era isso
e foi celebrado como "testemunha" do cristianismo, Kierke­ o que fizeram, tornando-se radicais, positivistas, cientistas.
gaard revoltou-se contra essa tradução da palavra grega Durante a segunda metade do século XIX, Kierkegaard
"martyr" a propósito de um burguês acomodado. Começou não passou de um escritor escandinavo esquisito e meio
o ataque violento contra a Igreja oficial, desperdiçando as
esquecido. Só a derrota da civilização europeia na guerra
suas últimas forças até a morte prematura.
de 1914 operou o milagre da sua ressurreição. Desde então,
O pensamento de Kierkegaard é difícil de definir; e Kierkegaard é o símbolo da resistência contra uma civili­
muita confusão foi criada por ele mesmo, atribuindo a zação meio teórica, meio mecanizada. Está contra todos
maior parte da sua obra a pseudónimos, que se contradizem os programas, quaisquer que sejam, contra todo progresso,
continuamente e pelos quais êle não quis assumir a plena em favor de quem quer que seja, exigindo a revolução
responsabilidade. Esse processo lhe serviu para justificar, integral, "existencial", da própria personalidade. É o mais
enquanto possível, a sua atitude de um neurótico abúlico, radical de todos os revolucionários. Por isso podia des­
incapaz de atos tão simples como casamento e escolha de prezar o revolução política; e ficar, em tempos agitados,
profissão, capaz só de decisões repentinas, abruptas e des­ um súdito submisso do rei da Dinamarca; um homem do
truidoras. Assim se explicam, psicologicamente, as doutri­ "Biedermeier".
nas do "ou isto ou aquilo", da incompatibilidade de cris­ Resta verificar — argumentos teóricos não adiantam
tianismo e cultura moderna, a exigência da fé paradoxal, nada — se a sua própria existência justifica as exigências
do salto para o absoluto, fosse mesmo o absurdo no sentido existencialistas; e aí é que surgem as dúvidas. Kierkegaard
ií:r>8 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1859

levou ótima vida de grande burguês sem trabalhar nada, ratura de Puchkins, Gogols, Tolstois e Dostoievskis só. Na
c o destino deu-lhe de presente o talento de escrever com história literária, os menores e os medíocres também con­
facilidade extraordinária, quase como um psicógrafo. Kier- t a m ; e os escritores russos mais típicos entre 1820 e 1850
kcgaard era um Aladdin, perturbado por angústias eróticas são aquele desprezível jornalista e renegado Tadeus Bul-
c religiosas, disfarçado em personagem hoffmannesco. É garin, autor do romance histórico Mazeppa e bajulador do
um grande romântico. Romântico é o seu estilo, cheio de tzar Nicolau I ; e, doutro lado, o liberal Polevoi ( 1 6 1 ),
colorido como o de Chateaubriand, de digressões fantásticas inimigo dos classicistas académicos e autor de tragédias
e espirituosas como o de Jean Paul, de música verbal como românticas, inimigo do conservador Karamsin e autor de
o de Keats — um dos maiores prosadores da literatura uma história da Rússia conforme princípios liberais; e
universal. Romântico é o seu ponto de partida — a sua conformando-se, afinal, com o tzarismo. O tzar Nicolau I,
primeira obra trata da Ironia — e romântica é a sua inca­ tão burocrata como autocrata, não era a toda hora o déspota
pacidade de decisão (que exigiu dos outros) para gozar que esmagara a revolução dos decabristas; nem todos os
esteticamente das volúpias da "repetição" eterna. Român­ russos eram decabristas. O tzar gostava da literatura: en­
ticos são o seu erotismo e a sua religiosidade, que êle corajou P u c h k i n ; e deu, contra o parecer dos censores, a
pretendeu ligar como "Stadier", "fases" da sua evolução, permissão para se representar o Inspetor-Geral, de Gogol.
mas nunca conseguiu separar. Daí, para evitar a aparência Essa síntese de liberdade estética e polícia política é bem
da insinceridade, a necessidade de dissociar sua própria "Biedermeier". Bielinski, no começo, e Gogol, no fim da
personalidade, atribuindo a pseudónimos suas ideias contra­ carreira, eram partidários do tzarismo, porque o tzarismo
ditórias, a ponto de êle fazer, enfim, o papel de si mesmo era instituição russa ou, como mais se gostava de afirmar,
— "romantismo de espelho" como numa comédia de Tieck "o regime tipicamente eslavo". Naqueles anos, o objeto
na qual o autor aparece no palco para discutir a peça com da discussão não era o regime político, mas outra questão:
os espectadores. E era preciso manter, a todo custo, essa europeizar ou não europeizar a Rússia? Os contendores
situação "estética" para continuar aquela "existência". Por não eram os absolutistas e os liberais, mas os "eslavófilos"
isso, o revolucionário integral Kierkegaard era inimigo e os "ocidentalistas", partidários da europeização. E o
feroz da revolução política e adepto do absolutismo mo­ primeiro grande ocidentalista "r* bastante rcacionário:
nárquico. Esse esteta revoltado que só pode existir no meio Tchaadaiev ( 1 6 2 ). Declarou-se abertamente discípulo de
da calma política, é a figura mais completa do "Bieder- De Maistre. Estavam todos de acordo em responsabilizar
meier". Para poder afirmá-lo, só é preciso substituir, na­ pelo atraso da Rússia principalmente a Igreja ortodoxa,
quele conceito estilístico "Biedermeier", o idílio satisfeito
pelo idílio insatisfeito, que levou os génios à neurose e ao
suicídio, simbolizando a crise iminente de uma civilização 161) Nikolai Alexeivitch Polevoi, 1796-1840.
Parescha (1840); História do Povo Russo (1829-1833).
inteira.
162) Peter Jakovlevitch Tchaadaiev, 1793-1856.
Nesse sentido, ninguém se admirará da existência de Lettres Philosophiques (1836); Apologic d'un fou (1837).
Edição por M. Gerschenson, 2 vols., Pctersburso, 1913.
um "Biedermeier" russo. Da literatura russa, o Ocidente M. Gerschenson: Peter Jakovlevitch Tchaadaiev. A Sua Vida e o
durante muito tempo só tomou nota dos acontecimentos Seu Pensamento. Petersburgo, 1908. (Em linp,ua russa.)
Ch. Quénet: Tchaadaiev et les Lettres philosophiques. Paris,
extraordinários e das figuras máximas. Parecia uma lite- 1931.
lfll.0 ( >TTO M A R I A CAKPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1861

pftciiivi/iid.i pelo Estado. Por isso, os eslavófilos quiseram as magníficas Elegias Tirolesas, nas quais Havlicek, per­
foilíilcit--la c os radicais aboli-la. Tchaadaiev, porém, re­ seguido pelo governo austríaco, contou em forma irónica
conheceu na abolição da Igreja o perigo da rebarbarização o seu desterro nas montanhas do Tirol. Apesar de tudo
«si/itica, de uma deseuropeização ainda maior; e por isso isso, Havlicek não era radical. Preferiu sempre uma ati­
exibiu a adesão à Igreja romana como o caminho mais tude moderada, para acomodar-se com a Áustria e fugir,
seguro da europeização. O conservantismo de Tchaadaiev desse modo, da sedução russa. No seu jornal Narodni No-
é fenómeno ambíguo: julgava-se discípulo de De Maistre; viny defendeu em brilhantes artigos a "Solução austro-es-
mas na verdade pretendeu substituir o tzarismo teocrático, lava", a autonomia das nações eslavas dentro do Império
muito ao gosto de De Maistre, por uma nova tradição austríaco, programa que inspirou mais tarde, durante muito
nacional. Era adepto de Burke contra o herderismo dos tempo, a política do seu admirador Masaryk. Essa atitude
eslavófilos. Nesse momento, por volta de 1830, os eslavó­ dos eslavos ocidentais impressionou muito os russos. O
filos eram os democratas e os ocidentalistas os reacionários. caminho de Havlicek é quase exatamente o mesmo de Bie-
Custou muito transformar o ocidentalismo em doutrina linski.
liberal e radical. Bielinski ( 164 ) é o pai da literatura russa moderna.
Contribuiu para isso a atitude dos outros povos eslavos Grande crítico literário, fortemente interessado na política
aos quais o tzarismo autocrático causava repulsa, inclusive e na questão social, condenou a poesia pura de Puchkin e
aos inventores e propagandistas do pan-eslavismo literário, o desespero estéril de Lermontov; no Capote, de Gogol,
aos tchecos. Havlicek ( 163 ) começara como adepto da "re­ reconheceu profeticamente o ponto de partida de uma lite­
ciprocidade literária entre as tribos da nação eslava"; mas ratura nova. Mas nem sempre Bielinski pensara assim;
um estágio na Rússia, entre 1843 e 1844, bastava para desi­ começara como eslavófilo reacionário, sonho do qual acor­
ludi-lo; e as Almas Mortas, de Gogol, que traduziu, pare- dou só sob a influência do hegelianismo; mas não aban­
ciam-lhe panfleto eficiente contra toda russofilia. Havlicek, donou de todo as ideias de Herder. Distinguindo-se dos
antigo seminarista, tornara-se voltairiano; os dois primeiros ocidentalistas radicais de mais tarde, Bielinski viu na euro­
livros dos seus duzentos Epigramas, entre os mais mordazes peização da Rússia não um rompimento com o passado, mas
da literatura universal, estão dedicados "À Igreja" e "Ao
rei". O poema satírico O Batismo de Santo Vladimir zomba
igualmente dos russos e do cristianismo. Todas essas obras 164) Vissarion Grigorovitch Bielinski, 1810-1848.
Sonhos literários (1834); Razão e Paixão (1839); Vida do poeta
foram publicadas, por motivo da censura, só depois da morte Kolzov (1844).
do autor; antes, circularam só em manuscrito, assim como Estudo sobre as obras ãe Polevoi (1846); Panorama da literatura
russa em 1846 (1847) ; etc.
Edição comnleta por Soldatenkov e Chtchepkin, 12 vols., Pe-
tersburgo 1900-1926.
A. N. Pypin: Vida e cartas de Vissarion Grigorovitch Bielinski.
163) Karel Havlicek, 1821-1856. 2 vols. 2.a ed. Petersburgo, 1908. (Fm língua russa.)
Elegias tirolenses (publ. 1868); Epigramas (publ. 1870); O ba­ A. Grigorjev: Bielinski e o critério negativo na literatura. Mos­
tismo ãe Santo Vladimir (publ. 1877). cou. 1915. (Em lín<rua russa.)
Edição por L. Quis e J. Jakubec, 3 avols., Praha, 1906-1907. N. O. Lerner: Bielinski. Berlin, 1922. (Em língua russa.)
Th. G. Masaryk: Karel Havlicek. 3. ed. Praha, 1920. (Em lín­ P. Lebedev-Poliansky: Vissarion Grigorovitch Bielinski. Mos­
gua tcheca.) cou, 1945. (Em língua russa.)
E. Chalupny: Havlicek. 3 a ed. Praha, 1930. (Em língua tcheca.) H. E. Bowman: Vissarion Grigorovitch Bielinski. A Stuãy in the
K. Nosovsky: Karel Havlicek. Praha, 1932. (Em língua tcheca.) Origins of Social Criticism in Rússia. Cambridge, Mass., 1955.
11N>2 OTTO MARIA CABPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL \M',\

uma mediação hegeliana entre a Rússia e a Europa, moder­ sequência, a atitude revolucionária. Gogol é o pai da
nizando a primeira e rejuvenescendo a outra. Contra essa "literatura de acusação"; criou-lhe até o estilo, a observação
mediação revoltou-se Gogol, que, sob esse aspecto, poderia implacável dos fatos e a sua apresentação em prosa realista.
ser definido como o Kierkegaard russo. Os últimos dias É tanto mais estranho que o próprio Gogol não se tenha
de Bielinski foram amargurados por essa viravolta brusca conservado fiel a esse programa: na sua última obra, Es-
do seu querido Gogol para o tzarismo ortodoxo. colha da Correspondência com Amigos, rebentou em visões
Gogol ( 1 8 s ) merece em mais do que um sentido ser com­ apocalípticas de fim da civilização e do mundo, ajoelhou-se
parado a Kierkegaard. Além do anti-hegelianismo, do ro­ perante o retrato do tzar e os ícones da Igreja ortodoxa.
mantismo inato, da forte angústia religiosa, do conformismo Gogol acabou em loucura religiosa. Não se deu muita
político, nota-se, em ambos os casos, a desproporção entre importância a esse fato — a loucura parecia explicação
a essência conservadora e evasionista da obra e as reper­ suficiente — até os críticos simbolistas descobrirem um
cussões revolucionárias. "Descendemos, todos nós, do Gogol diferente. Com efeito, Gogol, o pai da literatura i
Capote", disse Dostoievski; Gogol inspirou à literatura realista, não é realista; dá quase sempre caricaturas mons- \
russa do século XIX inteiro o intenso sentimento social, truosas ou burlescas da vida russa. Os seus "heróis" são, ;
a simpatia para com os ofendidos e humilhados, a indig­ todos eles, caricaturas; o falso inspetor Chlestakov e o i
nação contra as injustiças da vida russa e, em última con- comprador de almas mortas Tchitchikov são caricaturas ;
monstruosas da corrução política e da corrução social; e
até Akaki Akakievitch, o triste herói do Capote, é uma
165) Nikolai Vassiljevitch Gogol, 1809-1852.
Noites na fazenda perto de Dikanka (1831-1832); Taras Bulha caricatura burlesca e comovente dos humilhados da terra
(1834); Mirgorod (1835) ; Arabescos (1835); O capote (1835); russa. Tampouco é Gogol realista com respeito ao estilo: I
O inspetor-geral (1836); O nariz (1836); Contos petersburguen-
ses (1836); Almas mortas (1842); O retrato (1842); Escolha da em vez de descrever a realidade, deforma-a; e essas defor- j
correspondência com amigos (1846). mações fornecem o humorismo intenso da sua obra. Gogol t
Edições por N. S. Tichonravov e W. Schoenrock, 10.* ed.,a 7 vols.,
Petersburg, 1889-1896; e por N. V. Kallas, 10 vols., 2. edição, é um dos maiores humoristas da literatura universal — e \
Petersburg, 1915. desse humorismo nenhum dos outros grandes escritores rus- 1
D. S. Merejkovski: Gogol e o Diabo. Petersburgo, 1906. (Em lín­
gua russa.) sos do século XIX revela o menor traço. Na vida e na
R. Loewenthal: Gogol. Berlin, 1911. literatura, Gogol foi uma figura complicada, mistura de
O. Kaus: Der Fali Gogol. Berlin, 1912.
K. A. Kotljarevski: Gogol. 4.» edição. Petersburg, 1915. (Em lín­ satírico e de profeta, de humorista e de místico; mais do
gua russa.) que Kierkegaard parecia-se Gogol com E.T.A. Hoffmann, í
B. Eichenbaum: "Como foi feito o 'Capote'". (In: Poetika. Pe­
tersburg, 1919.) (Em língua russa.) ao qual admirava muito. A literatura russa do século XIX, \
M. Theiss: Nikolai Vassiljevitch Gogol und seine Buehnenwerke. filiando-se a Gogol, caiu num equívoco secular. A indig- \
Leipzig, 1922.
V. V. Vinogradov: Gogol e o Naturalismo. Leningrad, 1925. (Em nação social está certa; mas a conclusão, cm Gogol, não era
língua russa.) revolucionária. Era patriota russo. Os radicais não eram
J. Lavrai: Gogol. London, 1926. (2.a edição, 1952.)
B. Schloezer: Gogol. Paris, 1932. menos patrióticos, apenas pretenderam salvar a Rússia con­
A. Biely: A mestria de Gogol. Moscou, 1934. (Em língua russa.) forme um ideal diferente. A sátira também pressupõe um
VI. Nabokov: Gogol. Noríolk, Conn., 1942.
N. V. Vodowzov: Nikolai Vassiljevitch Gogol. Moscou, 1945. (Em ideal secreto, conforme o qual a realidade é julgada; e o
língua russa.) ideal de Gogol não era político nem social, mas nacional.
J. Lavrin: Gogol. 2.a edição. London, 1952.
IH64 O I T O MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1865

GOJJOInão é russo; é ucraniano, escrevendo em língua visão de louco. E o último dos Contos Petersburguenses é
ruHHn. Uma das suas primeiras obras é o romance histórico mesmo o "Diário de um Louco".
Ttirtis Hulha, panfleto do nacionalismo ucraniano contra os Petersburgo, para Gogol, é o mundo irreal. A reali­
poloneses. Na Ucrânia passam-se os seus primeiros contos, dade russa encontra-se lá fora, na província. Não que seja
uH Noites na Fazenda perto de Dikanka, em grande parte melhor ou mais p u r a ; ao contrário, é corruta, decaída, mise­
contos de fadas populares; Gogol era colecionador apaixo­ rável e lamentável. Mas é real. E o choque entre essa
nado de material folclórico; é o representante de ideias realidade e os mensageiros daquela Petersburgo irreal pro­
herderianas na Ucrânia. O seu interesse pelos assuntos duz o efeito cómico. Assim, o choque entre a corrução
populares é o de um filho da pequena aristocracia rural, muito real de todos os burocratas na cidade provinciana
que êle era, membro de uma classe dirigente decaída e em na qual se passa o Inspetor-Geral, e o falso inspetor Chles-
contato mais íntimo com o povo do que o Estado "moderno", takov que não é o que parece, porque veio de Petersburgo.
burocrático, lá em Petersburgo; parece que só o tzar Ni­ Assim nasceu uma das comédia mais geniais da literatura
colau I, permitindo a representação do Inspetor-Geral, adi­ universal. Aplicando o mesmo processo ao género "ro­
mance", em que é, desde Cervantes, tão essencial o contraste
vinhou os secretos motivos "reacionários" da atitude opo­
entre as aparências e a realidade, Gogol criou as Almas
sicionista de Gogol. Na capital russa, o jovem provinciano
Mortas: os donos dessas almas mortas são os provincianos,
era quase um estrangeiro, em cujos contos ucranianos o
muito reais, muito realmente imbecis ou malandros. Mas
público admirava o exotismo encantador. Em Petersburgo,
Tchitchikov que pretende comprar essas almas para fazer
Gogol sentia-se desambientado, esmagado pelas realidades
com elas negociatas no ar, irreais, este vem de Petersburgo.
poderosas do organismo estatal, da burocracia, máquina
A cidade diabólica, eis o inimigo.
enorme sem alma. Em vão Gogol tentou opor-lhe a imagem
pura da paisagem ucraniana, da sua história heróica. Então, Mas Gogol sabe que Petersburgo não é só o inferno
da burocracia e o paraíso dos charlatães e vigaristas. Tam­
a leitura assídua de E.T.A. Hoffmann ensinou-lhe o meio
bém é purgatório em que há almas penadas. E Gogol,
de "desrealizar" aquela realidade, transformando gente tri­
grande coração que riu muito para não precisar chorar
vial em espectros pavorosos ou burlescos. E n t r e todos os es­
muito, apiedou-se daquelas almas penadas. Empregou os
critores russos é Gogol o poeta "par excellence" da cidade
mesmos processos estilísticos que tanto nos fazem rir na
de Petersburgo, não por meio de descrições exatas, mas,
representação do Inspetor-Geral, para nos fazer chorar na
ao contrário, revelando o caráter artificial dessa cidade
leitura do Capote. É só um pequeno conto, essa pequena
que Pedro o Grande criou em meio de pântanos. Os grandes
tragédia burlesca do pequeno funcionário Akaki Akakie-
; e pequenos malandros de Gogol, os Tchitchikov e Chles-
vitch. Mas esse pequeno conto é a obra-prima da grande
' takov, são petersburguenses, pilhando a província. Lá, em
literatura russa.
i Petersburgo, os homens são meros espectros, "almas mortas"
Um choque convulsivo, entre riso frenético e lágrimas
(passeando e até voando por ruas fantásticas, "iluminadas
de desespero: eis a loucura de Gogol. Pois Gogol era louco.
i>cla mão do Diabo", bonecos na mão de um monstro de-
Na Escolha da Correspondência com Amigos sempre vol­
^noníaco, o Estado, que governa este mundo por meio de
tam, como um refrão, as palavras: "Meus amigos, sinto
um exército de pequenos diabos, os burocratas. É uma
medo". Gogol sofreu de acessos tremendos de angústia.
1866 OITO MAMA CARPEAUX

Viu dinbos cm toda a parte. E o significativo é que justa­


mente as pessoas mais triviais são, em Gogol, as mais
diabólicas: um comprador de papéis falsos; um pequeno
malandro que engana burocratas corrutos. A conclusão é
apocalíptica: a viagem de Tchitchikov pela Rússia anuncia
o fim da Rússia antiga; Chlestakov é a imagem do próprio
Anticristo, tão parecido com Cristo como o falso inspetor
CAPÍTULO III
com o verdadeiro que aparece no fim da comédia para anun­
ciar o Juízo Final. Essa maneira de ver o elemento fan­
tástico na trivialidade é romântica; é a maneira de E.T.A. ROMANTISMOS EM OPOSIÇÃO
Hoffmann, dos românticos de Iena e de Kierkegaard. E,
assim como em Kierkegaard, trata-se de uma revolta. Lá,
contra a Igreja do E s t a d o ; aqui contra o próprio Estado,
quer dizer, contra o Estado moderno, o "esqueleto raciona­
T RÊS poetas ingleses dominaram a literatura europeia
da primeira metade do século X I X : Shakespeare, Scott
e Byron. A influência de Shakespeare foi mais permanente
lista" conforme a definição de Goerres em Athanasius. É e a de Scott mais extensa e também, talvez, mais profunda
a revolta do nacionalismo místico, herderiano, contra o do que a de Byron. Mas pode-se afirmar, sem exagero,
racionalismo ocidental, que criou a burocracia russa. Mas que nunca um poeta impressionou tanto os seus contem­
como homem do "Biedermeier", é Gogol um "revolucio­ porâneos como o Lord excêntrico. Byron apareceu como
nário" entre aspas, um conservador. A sua loucura era um meteoro; e desapareceu como um meteoro.
fuga, evasão das responsabilidades sociais para a respon­
Em certo dia do ano de 1812, Byron ( ' ) , até então um
sabilidade mística de todos por todos, ideia essencial do
poetastro de versos classicistas, maltratado pela crítica,
cristianismo eslavo. A posteridade, porém, o século X I X
realista e positivista, não podia compreendê-lo de outra 1) George Gordon Byron, Lord Byron of Newstead, 1788-1824.
maneira do que como revolucionário da indignação social. Hours of Idleness (1807); English Bards anã Scotch Reviewers
(1809); Chiláe Harold's Pilgrimage (I/II, 1812; III, 1816; IV, 1818);
E assim Gogol se tornou o pai da literatura russa moderna. The Giaour (1813); The Bride of Abydos (1813); The Corsair
(1814); Lara (1814); Parisina (1816) ; The Prisoner of Chillon
(1816); Manfred (1817); The Lament of Tasso (1817); Beppo
(1817); Mazeppa (1819) ; Don Juan (1819-1823); Sarãanapalus
(1821); Cain (1821); Heaven and Earth (1821); The Deformed
Transformeã (1821); The Island (1823).
Edição por E. H. Coleridge e R. E. Brothero, 13 vols., London,
1898-1904.
A. C. Swinburne: "Byron". (In: Essays and Studies. London, 1875.)
A. Vesselovski: Byron. Moscou, 1902. (Em língua russa.)
E. Mayne: Byron. 2.a ed., 2 vols. London, 1924.
H. W. Garrod: Byron. Oxford, 1924.
W. A. Briscoe e outros: Byron the Poet. London, 1924.
M. Chastelain: Byron. Paris, 1931.
W. J. Calvert: Byron, Romantic Paradox. Chapei Hill, 1935.
Bertr. Russell: "Byron and the Modem World". (In: Journal of
History of Ideas, 1/1, janeiro de 1940.)
G. Wilson Knight: Lord Byron: Christian Virtues. London, 1952.
L. A. Marchand: Byron. 3 vols. London, 1957.
Illí.ll OTTO M A R I A CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1869
"monlou e encontrou-se famoso": saíram na véspera os
em favor da liberdade dos italianos; enfim, o grande me­
(IOÍH primeiros cantos de Childe Harold's Pilgrimage; e a
lancólico encontrou a saída do seu desespero na ação ge­
lon^ii meditação poética sobre uma viagem através da Es-
nerosa: armou uma expedição militar para ajudar a guerra
pnnlia, Grécia e Albânia, com descrições magníficas das
de libertação dos gregos contra os turcos; e morreu como
paisagens mediterrâneas, com o "eu" melancólico, revoltado
um herói. Nunca um poeta foi mais famoso do que Byron;
e misterioso do poeta no centro, encantou a Inglaterra e
mas como um meteoro aparecera essa glória, e como um
a Europa inteira. E n t r e 1812 e 1819 saíram onze edições
meteoro desapareceu. Byron continua um dos nomes mais
do poema, acompanhadas de três edições em francês e cinco
célebres da literatura universal; mas não continua lido. Os
edições em alemão; das traduções para outras línguas, a
volumes das suas obras completas, raramente abertos, em-
sueca e a polonesa eram das primeiras. A continuação do
poeiram-se nas estantes.
poema confirmou o sucesso literário e, ainda mais, o sucesso
É preciso distinguir. De início, a repercussão de Byron
pessoal. Nos poemas narrativos que se passam nas ilhas
foi diferente na Inglaterra e na Europa continental. Os
gregas do Mediterrâneo — The Giaour, The Corsair, Lara
ingleses assustaram-se da "depravação moral" do Lord,
— sempre voltou o personagem de um herói de passado
contra o qual se levantou uma verdadeira revolta do notório
desconhecido, lutando contra a melancolia funesta, talvez
"cant" inglês; mas admiravam-lhe tanto a poesia que os
consequência de um crime misterioso ao qual só se alude,
poetas mais diferentes, os Shelley, Keats, Tennyson, Brow-
desgraçando toda gente e sobretudo a mulher amada, e
ning lhe sacrificaram sem adotar seu estilo. No Continente
desaparecendo como aparecera. No sombrio drama lírico
deu-se antes o contrário: os inúmeros byronianos franceses,
Manfredo, o herói sinistro vai para o Inferno. Não era
alemães, italianos, espanhóis, poloneses são, todos eles, de­
difícil identificar esse personagem com o próprio poeta; e sesperados, pessimistas ou ironistas como o Lord, imitando-
ninguém se admirou quando em Cain se levantaram acusa­ Ihe os gestos poéticos; pois ninguém se indignou moral­
ções luciféricas contra o Criador e o seu Universo. By- mente. Para a Europa toda, fora da Inglaterra, criou Byron
ron, que sabia a fundo a arte de "se mettre-en-scène", fêz um novo tipo de poeta, até um novo tipo de homem, admi­
muito para manter a auréola lendária em torno de sua radíssimo e imitadíssimo. Com o tempo inverteu-se tudo
cabeça bela e pálida de um nobre Lord, rebelde contra as isso. Os ingleses perdoaram ao homem Byron, incluindo-o
convenções morais da sua terra, excluído da sociedade hu­ entre os grandes excêntricos de que a nação produziu tan­
mana por um crime misterioso, perpetrado no passado — tos exemplares magníficos. Mas esqueceram-lhe a poesia.
falava-se de relações incestuosas com sua meio-irmã. O Na poesia inglesa moderna e atual não há o mínimo vestígio
divórcio repentino, exigido por lady Byron, pareceu con­ da sua influência. Quando se discute sobre valores poéti­
firmar os boatos. Desde então, o poeta viveu na Itália, cos, o seu nome nunca é mencionado, senão às vezes para
entregando-se a orgias fabulosas que roubaram o sono às denunciar a falsa celebridade de um poeta de segunda or­
mulheres da Europa inteira. Mais uma vez, a sátira mordaz dem. Os europeus do Continente já não estão impressio­
c às vezes obscena do poema Don Juan encantou a todos, nados pela atitude de Byron: a melancolia patética e a
justamente porque fortaleceu aquela fama de devasso ilus­ devassidão desesperada nos parecem, a nós outros, falsi­
tre. Mas também já se soube do amor romântico do Lord dades do tempo romântico dos nossos bisavós, já ligeira­
a bela condessa Teresa Guiccioli, dos seus nobres esforços" mente ridículas. Em compensação, embora as obras de
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1871
11170 OTTO M A R I A CARPEAUX
tudo Childe Harold's Pilgrimage é uma espécie de Baedeker
Byron já não continuem lidas, conservaram a fama. Na
poético do Mediterrâneo, incoerente e desigual; Don Juan,
França, na Alemanha, Byron é sempre citado ao lado de
uma série de episódios espirituosos; Manfredo, antes a
Shakespeare, o que nenhum inglês admite.
cena final de um drama do que um drama. A Byron falta
A releitura não dá resultado tão desfavorável. Os dois
a qualidade máxima dos classicistas: a capacidade de cons­
primeiros cantos de Childe Harold já empalideceram; mas
truir. Por isso, a voga dos anos de 1920, revalorizando o
as descrições do Mediterrâneo em Giaour, Corsair, Lara
classicista Pope, não forneceu a revalorização de Byron.
ainda podem impressionar, mesmo quando os enredos se
Só ultimamente se admite que os poemas satíricos, Don
revelaram pueris e falsos. Alguns outros poemas, menos
Juan sobretudo, são obras-primas de um artista do verso.
pretensiosos, como Parisina, The Prisoner of Chillon e
Mas a poesia é mais do que isso. A inteligência poética
Mazeppa são sensivelmente superiores. Ninguém que esteve
de Byron não se eleva acima do nível do lugar-comum
na Itália esquecerá as descrições de Veneza, Ferrara, Flo­
descritivo e melancólico dos ossianistas. Não nos transmite
rença e Roma no Canto IV de Childe Harold's Pilgrimage.
uma visão da vida ou do Universo, mas só uma represen­
A atmosfera sinistra de Manfredo, a grande retórica de
tação retórica, às vezes bombástica, da sua própria pessoa.
Cain, o espírito brilhante de Don Juan revelam a multi-
Salva-se a poesia satírica de B y r o n ; condenou-se sem apela­
formidade de um grande poeta. Se os ingleses não querem
ção sua poesia pseudo-romântica. Bem disse Swinburne, êle
admitir isso, seria apenas efeito daqueles preconceitos hi­
mesmo tão perto da retórica de B y r o n : "Byron was su-
pócritas contra o nobre pecador. Os ingleses, porém, negam
preme in his turn — a king by truly divine right, but in
isso peremptoriamente. Alegam outra explicação. A poesia
a province outside the proper domain of absolute poetry".
inglesa autêntica consiste na reprodução de visões emocio­
Byron não é propriamente classicista nem propria­
nais pela música verbal; e Byron está fora dessa tradição.
mente romântico. É um classicista, contaminado pelo ro­
Na obra inteira de Byron não se encontra peça alguma de
mantismo. Romântica só é a sua personalidade, na qual
lirismo p u r o ; sempre se voltou para a poesia narrativa,
há muito Rousseau e mais Chateaubriand. É uma encarna­
na qual, aliás, os assuntos românticos não chegam a escon­
ção de René. É um romântico que só se sabia exprimir em
der a qualidade do verso byroniano: é classicista. Byron
versos classicistas, assim como Alfieri fora um pré-român-
preferia o heroic couplet de P o p e ; e pertence realmente
tico, só capaz de exprimir-se em tragédias classicistas; e
à escola de Pope, do qual foi grande admirador. Don Juan
ambos eram aristocratas rebeldes. Como poeta descritivo,
é um poema herói-cômico, no estilo e no espírito do século
fortemente ossiânico, Byron completou a obra do pré-ro-
X V I I I . Os românticos autênticos, Wordsworth, Coleridge,
mantismo, ampliando os horizontes poéticos, conquistando
restauraram a poesia inglesa; Byron atacou-os ferozmente,
as paisagens da Espanha, Itália, Suíça, Grécia para a poesia
chamando a Pope "the most faultless of poets". Mas se
que Wordsworth pretendera reduzir ao distrito dos lagos.
Byron fosse pelo menos um grande classicista! Como todos
Como aristocrata rebelde, criou um novo tipo de homem, o
eles, era em primeira linha poeta descritivo; as suas des­
individualista magnífico, lançando o desafio à sociedade
crições, realmente magníficas, constituem porém meros epi­
e até a Deus. Pela primeira vez na história, um poeta saiu
sódios, insertos numa corrente de versos sem visão ou emo­
para invocar o Diabo e lutar pela liberdade dos povos. By­
ção poéticas; e o próprio Byron definiu a sua poesia como
ron é o primeiro satanista e o primeiro poeta da revolução.
"a Btring of passages", quer dizer, sem coerência. Sobre-
1872 Oiro MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1873

Um epígono, criando na Europa uma nova atmosfera poé­ as atitudes de rebelde contra todas as leis da sociedade
tica. e de Deus, o libertinismo — tudo isso é Byron tão bem
A repercussão de Byron na Europa foi imensa ( 2 ). imitado que Larra acabou superando o modelo, terminando
Na época do "Biedermeier", de opressão policial, vida sua vida romântica pelo suicídio romântico. Zorrilla já só
pública inexistente, esteticismo retirado e vago, romantismo deve a Byron certos exotismos; mas ainda haverá reper­
aburguesado, Byron parecia encarnar na sua pessoa os cussões tão tardias como La última lamentación de Lord
sentimentos abismais e os ideais generosos do romantismo Byron (1879) de Nufíez de Arce. Um Byron erótico e ora­
autêntico. Na França ( 3 ), Nodier escreveu o prefácio das dor parlamentar é o português Almeida Garrett. Quanto à
traduções que Amédée Pichot e Eusèbe de Salle publicaram Itália ( B ), só certos críticos estrangeiros citaram Leopardi
entre 1814 e 1820. Lamartine formou nos moldes de Byron ao lado de Byron; é um grande equívoco. Mas poderia
sua própria personalidade poética de aristocrata melancó­ citar, com mais razão, os autores de poemas narrativos, o
lico que cantou Le Lac, Le vallon e L'Isolement; e imitou- patriota Berchet, o sentimentalão Tommaso Grossi, o ele­
lhe em La chute d'un ange a poesia cósmica; Hugo entu- gíaco Prati, e, mais, certos poetas de segunda e terceira
siasmava-se, como Byron, pelos gregos; Vigny lançou categoria: Giuseppe Campagna (Abate Gioachino, 1829),
desafio byroniano de pessimista à criação de Deus; Sten- Domenico Maura (Errico, 1845), Vincenzo Padula (Valen-
dhal, grande admirador de Byron, imitou-lhe os gestos e tino, 1845), que cultivam em versos byronianos o género
pretendeu em vão repetir-lhe as aventuras com belas italia­ "gótico" de incestos misteriosos e ladrões generosos. O
nas; Musset adotou o tom irónico, céptico, de gozador desa­ byronismo alemão ( 6 ) é pessimista até a loucura em Lenau,
busado; são tão byronianas como chateaubrianescas as via­ pessimista até o cinismo em Heine. Várias analogias com
gens orientais de Lamartine, Nerval e Flaubert. Na Es­ o inglês revelam-se no aristocrata liberal e italianófilo Pla-
panha ( 4 ), a primeira parte de vida do duque de Rivas, ten. Mas os byronianos alemães mais típicos são poetas
exilado político em ilhas do Mediterrâneo, é um poema menores como Wilhelm Mueller, cantando a guerra de
byroniano vivido, e seu Don Álvaro é um Byron espanhol, libertação dos gregos, e o austríaco Joseph Christian von
antecipação dramática do verdadeiro Byron ibérico, Es- Zedlitz, ao qual se deveu uma tradução magnífica de Ritter
pronceda. Mas a figura máxima do byronismo espanhol é Harolds Pilgerfahrt (1836).
Larra ( 4 " A ); ou então, o verdadeiro Byron espanhol seria De intensidade singular era a influência de Byron entre
Larra. O desespero, a ironia, o liberalismo aristocrático, os eslavos ( 7 ). A literatura tcheca moderna nasceu com

2) F. H. O. Weddigen: Lord Byrons Einfluss auf die europaeische 5) G. Muoni: La fama dei Byron e il Byronismo in Itália. Milano,
Literatur der Neuzeit. 2.a ed. Leipzig, 1901. 1903.
A. Farinelli: Byron e il byronismo. Bologna, 1924. A. Porta: Byronismo italiano. Milano, 1923.
3) W. J. Clark: Byron und die romantische Poesie in Frankreich. 6) R. Ackermann: Lord Byron, sein Leben, seine Werice, sein Einfluss
Leipzig, 1901. auf die deutsche Literatur. Heidelberg, 1901.
G. Dobosal: Lord Byron in Deutschland. Zwickau, 1911.
E. Esteve: Byron et le romantisme )'rançais. 2.a ed. Paris, 1929.
4) G. Diaz Plaja: Introducción ai estúdio dei Romanticismo espanai. 7) M. Zdziechowski: Byron e a sua época. Estudo de história lite­
Madrid, 1936. rária comparada. 2 vols. Kraków, 1894-1897. (Em língua polonesa.)
St. Windakiewicz: Scott e Byron e suas relações com a poesia
4 A) Cf. "Romantismos de evasão", nota 156. romântica polonesa. Kraków, 1914. (Em língua polonesa.)
III7I Oiro MAMA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITIÍUATUIIA OCIDIÍNTAI. 11171»

o hyruiiismo: o primeiro grande poema da língua, Slavy tar. Foi esse tipo que conquistou o mundo ("). Nilo ha
Dcrru. de Kollar, é intencionalmente byroniano nas des­ ideologia comum de Byron e Keats, Leopardi e Puchkin,
crições, na melancolia, na forma classicista; o maior poema Lenau e Musset; e, com exceção de Leopardi, que ora
da literatura tcheca, Maio, de Mácha, é obra de um byro­ discípulo dos materialistas do século X V I I I , não parece
niano que morreu com 26 anos de idade; imitaram-no os ter havido ideologia alguma nos poetas do "mal du siècle".
elegíacos Karel Sabina e Václav Nebesky, enquanto a Ma­ Naquela época admirava-se-lhes muito a "profundidade";
rina (1846), do primeiro poeta notável dos eslovacos, Ondrej nós outros, hoje, não somos capazes de descobri-la na»
Sládkovic, se inspirou diretamente na poesia do inglês. confissões orgulhosas e lamentações desperadas. O pes­
Os poloneses, sobretudo, são mais ou menos byronianos, simismo não é uma filosofia, e sim uma "Stimmung", utn
todos; Malczewsky, que descobriu a poesia das estepes "état d'âme": a insatisfação de indivíduos ávidos de sensa­
ucranianas; Mickiewicz, o byroniano patriótico e desespera­ ções e de ação, no ambiente calmo e passivo da Restauração;
do do grande poema Festa dos antepassados; Slowacki, ele­ ou então, o desespero de indivíduos abúlicos, incapazes
gíaco em Anheli, orientalista em O Pai dos pestíferos em mesmo de agir. Esta última distinção tem importância.
El Arish, satírico à maneira do Don Juan em Benjowski; É preciso destruir uma fable convenue com respeito à poesia
Krasinski, o aristocrata que continua heroicamente ao lado do "mal du siècle". No plano internacional, não é possível
da causa que sabe perdida. O byronismo dos russos Puchkin reunir sob a mesma etiqueta o classicista Leopardi e o
e Lermontov, que se revela nos enredos, no estilo e nas epígono romântico Lenau, o exaltado Espronceda e o
atitudes, é um axioma da historiografia literária ( 8 ), em­ "blasé" Musset. Dentro das literaturas nacionais, é pre­
bora sujeito a dúvidas. Na companhia daqueles dois grandes ciso desmembrar os conjuntos criados pela rotina historio­
também aparece o notável poeta elegíaco Baratynski; e gráfica: como "Byron — Shelley — Keats", só porque
tampouco está livre de espírito de revolta byroniana o fa­ Byron e Shelley eram amigos pessoais e todos os três
moso Tchatski, personagem principal da comédia de Gri- viveram na Itália; ou "Mickiewicz — Slowacki — Kra­
boiedov. Afinal, há byronianos em toda a parte do m u n d o : sinski", só porque todos os três eram patriotas poloneses,
o ucraniano Szewczenko, o húngaro Petoefi, o grego So-
de esperanças messiânicas; ou "Puchkin e Lermontov", só
lomos; e na América o argentino Estebán Echeverría e o
porque eram contemporâneos e admiradores do seu con­
brasileiro António Álvares de Azevedo.
temporâneo Byron. Excluem-se logo um evasionista como
O byronismo europeu não é um estilo: é uma atmos­
Keats, um conservador como Krasinski; e um Heine que
fera, uma mentalidade, uma atitude em face da vida e da
pertence a outro ambiente só "flertava" com o "Welts­
poesia. Fala-se em "mal du siècle" ou "Weltschmerz".
chmerz". No resto, distinguem-se claramente os classicistas
Ninguém ou quase ninguém pensava em imitar o estilo de
como Leopardi, Vigny, Platen, e por outro lado, os român­
Byron, admirador de Pope. Todos só pensavam em imitar-
ticos mesmo românticos como Lenau, Musset e Espronceda.
lhe o gesto, a fronte pálida reclinada na mão, o olhar para
A diferença dos estilos baseia-se em diferenças da situação
longe onde há mulheres a amar e corromper, povos a liber-
social e das atitudes decorrentes.

8) W. Spasovich: Byron, Puchkin e Lermontov. Wilna, 1911. (Em


HiiKuu russa.) 9) H. Kraeger: Der Byronische Heldentypus. Muencheri, 1808.
1876 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1877

Lendo-se hoje os escritos políticos de Adam Mueller, francesa apodera-se do Estado. Os vencidos são a aris­
causam estranheza as acusações do romântico ultra-reacio- tocracia e a democracia. Mas estas não têm em comum a
nário contra a burguesia, porque coincidem às vezes lite­ oposição contra o inimigo comum. Há aristocratas liberais
ralmente com expressões de Marx e dos seus primeiros que se revoltam; põem a serviço dessa revolta a filosofia
adeptos. O mesmo fenómeno observa-se nos escritos polí­ descrente, a poesia melancólica e a sátira mordaz do século
ticos do filósofo romântico Franz Baader, amigo de Schel- X V I I I . E há intelectuais democráticos, desesperados até
ling e Gotthilf Heinrich Schubert: foi o primeiro que viu a loucura e o suicídio, ou então construindo utopias. Antes
claramente a diferença entre a miséria do novo proletariado de revelar-se os verdadeiros motivos da situação do pro­
e o pauperismo dos pobres de todos os tempos. Os parla­ letariado, e democracia e o socialismo só podiam ser uto-
mentares católicos da época da Restauração na Alemanha, pistas. É portanto preciso distinguir: de um lado, os aris­
como Franz Joseph Buss, fazem discursos quase revolu­ tocratas rebeldes à maneira de Byron, e por outro lado,
cionários contra a burguesia industrial. Seria precipitada os democratas desesperados ou utopistas que se julgavam
a conclusão de um pré-marxismo dos conservadores cató­ byronianos porque a atitude espetacular de Byron se im­
licos. Na verdade, o "tertium comparationis" só é a atitude punha. A distinção é facilitada pela análise do estilo:
contra a nova burguesia, cá da parte de intelectuais a ser­ naqueles, classicista; nestes, romântico. A separação não
viço do proletariado industrial, lá da parte de intelectuais é, porém, absoluta; existem transições, entre as quais apa­
a serviço dos latifundiários feudais. A mesma distinção recem inesperadamente alguns sobreviventes do século
impõe-se com respeito aos poetas do "mal du siècle", com X V I I I como Stendhal, ou pré-românticos atrasados, entre
ligeira modificação do primeiro termo. Com exceção da os eslavos.
Áustria de Metternich, o regime da Restauração não é o
absolutismo do ancien regime; Luís X V I I I deu a "Carta" O primeiro grupo, o dos "byronianos autênticos", com-
à França; vários dos países pequenos da Alemanha dividida pôs-se de aristocratas revoltados, classicistas de formação
também receberam o presente de regimes representativos. do século X V I I I , mas de um classicismo modificado —
O regime da Restauração não é feudal, mas policial. A como o de Byron — por influências pré-românticas, ossiâ-
burguesia continuava ou foi novamente excluída da política. nicas; daí não se limitam ao mundo greco-latino, mas am­
Mas vencera socialmente. As Câmaras de maioria aris­ pliam o horizonte poético; são cosmopolitas. Essa atitude
tocrática na França não conseguiram a devolução dos lati­ tem um modelo anterior a Byron: Chateaubriand, também
fúndios, vendidos durante a Revolução, à nobreza expro­ aristocrata individualista, melancólico como Ossian e os
priada. A Prússia absolutista deixou vigorar na Renânia heróis de Byron, viajando na Itália e no Oriente, mas
o Code Napoleón, do qual também se aproximava muito meio classicista nos Martyrs. Nenhum dos byronianos teria,
o novo Código austríaco. A União Aduaneira Alemã, pro­ porém, escrito essa epopeia cristã, porque tinham perdido
movida pela mesma Prússia e tão indispensável às necessi­ a fé, ou antes, como homens do século X V I I I , nunca a
dades de expansão económica da burguesia, é o aconte­ tiveram. Sob a influência do romantismo, o anticristia-
cimento político mais ruidoso da história do "Biedermeier" nismo "filosófico" do século X V I I I mistura-se, naqueles,
Jilemão, quase coincidindo com a reforma do Parlamento com algo de repulsa instintiva ao dogma e à moral cristã.
Jia Inglaterra. Pela revolução de julho de 1830, a burguesia H á vários "satanistas" entre eles, assim como o autor de
IH7II OITO MAIUA CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1879
Caiu cm Hiit.iiiista; e essa atitude implica quase sempre
vida de estudos eruditos de grecista, exclamações ultra-
o |>OHHÍIIIÍH!IIO em face da Criação do Deus dos cristãos.
radicais contra os tiranos, e esquisitices de toda espécie
Mim uiio inevitavelmente, como revela o exemplo de Landor.
de um gentleman inglês, cheio de spleens. Há muita coisa
Hyron estava fora da tradição poética inglesa; e não de Byron em tudo isso. Landor mistura de maneira seme­
encontrou adeptos entre os poetas ingleses. A sua influên­ lhante as ideias racionalistas do século X V I I I e a atitude
cia sobre Shelley e Keats é superficial; só se exerceu sobre romântica do século X I X . Assim como Byron, Landor foi
poetas menores como Thomas Moore e Leigh H u n t ( 1 0 ) : classicista. Mas não à maneira de Pope. Voltou às fontes
este, um jornalista liberal, criador do "artículo de cos- gregas. As suas poesias já foram comparadas às elegias
tumbres" da vida de Londres, imitado depois por Dickens de Chénier e, com mais razão, aos epigramas da Anthologia
nos Sketches by Boz. Leigh H u n t é lembrado pelos his­ graeca; são pequenos quadros da vida grega, tão profun­
toriadores da literatura como autor de um poema narrativo damente sentidos que parecem autênticas poesias gregas,
de assunto italiano, à maneira de Byron, e lembrado por elaboradas com a arte consumada de um parnasiano, mas
todos os ingleses como autor de algumas poesias de inspi­ vivificados pela emoção vigorosa de personalidade inde­
ração feliz como Abou Ben Adhem e The Nile. E isso foi, pendente. Ao passo que a glória poética de Byron decaiu,
por enquanto, tudo. O único byroniano autêntico na In­ a de Landor não cessou de subir; e hoje lhe falta pouco
glaterra é um prosador: Landor ( n ) . E m vez do nascimento para ser incluído entre os poetas ingleses de primeira or­
aristocrático de Byron teve, pelo menos, a notável fortuna dem. Landor deve, porém, sua fama em círculos mais am­
herdada que lhe permitiu armar expedições militares em plos à sua obra em prosa, às Imaginary Conversations. O gé­
ajuda aos espanhóis contra Napoleão e aos italianos contra nero é antigo: é o dos Diálogos dos Mortos de Luciano, que
o governo austríaco; depois, viveu durante decénios na já servira de modelo a Erasmo, Fontenelle, Voltaire e
Itália, no seu magnífico palacete perto de Florença, uma tantos outros para submeter o seu mundo a uma crítica
irónica e implacável "sub specie aeternitatis", denunciando-
se os absurdos da ordem estabelecida em matéria de política,
10) James Henry Leigh Hunt, 1784-1859. sociedade e religião em face da Razão eterna. Nesse género,
The Story of Rimini (1816); Poetical Works (1844); The Auto- Landor, homem da Ilustração do século X V I I I , estava em
biography of Leigh Hunt (1850) ; The Olã Court Suburb (1855).
Edição das obras poéticas por H. S. Milford, London, 1923. casa; além dos recursos da sua vasta erudição, modificou
E. Blunden: Leigh Hunt, a Biography. London, 1930.
o género pelo notável talento de escolher situações críticas
11) Walter Savage Landor, 1775-1864 da história da humanidade, e pela ampliação do horizonte.
Jmaginary Conversations of Literary Men and Statesmen (1824-
1829); Péricles anã Aspasia (1836); Hellenics (1847); Imaginary O que Byron fêz para o espaço, fêz Landor para o tempo,
Conversations of Greeks and Romans (1853); Heroic Idyls, with caracterizando as civilizações de todos os tempos, tornando-
Aãditional Poems (1863).
Edição por T. E. Welby e S. Wheeler, 16 vols., London, 1927-1936. se, sobretudo, um dos primeiros profetas da grandeza da
L. Stephen: Hours in a Library, vol. II. London, 1876. Renascença italiana. Os personagens e temas das Imagi­
S. Colvin: Landor. London, 1881.
E. W. Evans: Walter Savage Landor, a Criticai Study. New York, nary Conversations são variadíssimos: Alexandre, o Grande,
1892. e o sacerdote do templo do Ammon, que dirige advertências
M. Elwin: Savage Landor. New York, 1941.
It. H. Super: Walter Savage Landor. A Biography. New York, audaciosas a todos os conquistadores; Annibal em conversa
1055. com o romano Marcellus, agonizante, que proclama a vitória
IHItO OTTO M A R I A CABPBAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL

moral dos vencidos; Chaucer e Boccaccio, discutindo sobre No modo a-histórico de pensar, também : r e s i d e f a r t e
da grandeza do poeta Giacomo Leopardi (i2\. só é p r e C l s o
pocHia italiana e inglesa; Fra Filippo Lippi, defendendo
interpretar essa sua atitude não como protesta 0 r o m ã , l t l c o
perante o Papa Eugênio IV o imoralismo dos artistas; os
contra o seu tempo, e sim como protesto con' t r a tod«í>s o s
heresiarcas Calvino e Melanchthon, entendendo-se sobre o
tempos. Leopardi não foi romântico: a sua f ' o r m a ç ã ^ e r a
direito de punir heréticos; Scaliger, o sábio erudito, e intensamente greco-latina; defendeu, como V»tfonti, o» u s o
Montaigne, o ignorante sábio; Essex, falando a Spenser da mitologia na poesia; detestava o subjetivisrrí 10 româí 1 * 100
sobre a condição miserável dos poetas; o rei Jaime I, con­ ("Cosa odiosíssima è il parlar molto di se."); censuro 1 1 o s
versando com Casaubonus sobre o direito divino dos reis; cinqiiecentistas porque teriam "romantizado" a Antté u l ~
e Cromwell, defendendo contra Walther Noble o direito dade. Mas êle mesmo também "romantizo u " e tão f<>rte"
divino dos povos de degolar os reis; Rousseau e Malesher- mente que deixou à posteridade uma imagem r p á l i d a à 1 " 3 "
bes, sobre a justiça; Pitt, no leito de morte, dando ins­ neira de Lamartine. É que o romantismo lhe ^0l * m P lÓStO '
truções políticas a Canning; o radical Romilly, demons­ pela vida. Leopardi foi um dos homens mais infelizes d e
trando ao abolicionista Wilberforce a necessidade de liber­ todos os tempos. Seu pai, aristocrata ultracc? n s e r v a c * í ' r C
tar antes dos escravos pretos os escravos brancos da indús­ clericalíssimo, empobrecido pelas vicissitud es ^nistóricaS " a
tria inglesa — é inesgotável o tesouro de graça, espírito, época, educou-o como numa prisão, transmitír^do-lhe °
poesia, sabedoria das Imaginary Conversations. O talento uma erudição greco-latina tão imensa qne ^ menin" Ja
dramático de Landor só falhou na arte de caracterizar os surpreendeu os especialistas mais famosos* e torno"' se
personagens pelo diálogo; todos eles, falam a mesma língua totalmente inadaptado à vida. Fugiu para R orn . a, não ar'an"
jou nada, voltou para a prisão paterna, C o n t ; i n u a n d o e i n
clássica e sentenciosa de Landor, que é o "poet's poet" da
prosa. A sua obra é um monumento de poesia erudita;
12) Giacomo Leopardi, 1798-1837.
ninguém é mais capaz do que Landor de erigir monumentos.
Canzoni (1818); Versi (1824); Operette morali ( 1 8 2 7 ) ; C
A si mesmo erigiu, quando tinha 88 anos de idade, o mo­ (1831); Canti (1835); Lettere (1845).
numento desses quatro versos: Edição por F. Moroncini, 6 vols., Bologna, 19°ig_i031.
F. D'Ovidio: Saggi critici. Napoli, 1878.
F. Montefredini: La vita e le opere di Giacomo recpardi. Mil"10
1881. 1885 (8
"I strove with none, for none was worth my strife. F. De Sanctis: Studio su Giacomo Leopardi. Nanolí-
p - -
Napoli, 1923.)
Nature I loved and, next to Nature, Art. G. Carducci: "Degli spiriti e delle forma nella p 0 eí^ ia cil Gilu'*tl
I warm'd both hands before the fire of life; Leopardi." (In: Opere, vol. XVI.)
A. Graf: Foscolo, Manzoni, Leopardi. Torino, 1898-
I t sinks, and I am ready to depart." G. Mestiça: Stuãi leopardiani. Firenze, 1901.
B. Zumbini: Stuãi sul Leopardi. 2 vols., Firenze 1902-1904.
K. Vossler: Leopardi. Muenchen, 1923.
G. Gentile: Manzoni e Leopardi. Milano, 1928,
Landor não era pessimista. Como homem do século X V I I I , G. A. Levi: Giacomo Leopardi. Messina, I93j
acreditava no progresso, e a sua viagem imaginária pela A. Tilgher: La filosofia di Leopardi. Roma, 1949,
G. De Robertis: Saggio sul Leopardi. 2.a ed. B-ireiií''e' 1946-
história inteira não conseguiu convencê-lo do contrário.
N. Sapegno: La poesia di Leopardi. Roma, 1946
O historicismo do século não atingiu a esse velho súdito W. Binni: La nuova poética leoparãiana. Firenze *947-
rebelde da rainha Vitória. E. Cozzani: Giacomo Leopardi. 2 vols. Milano í947/48.
A Frattini: Studi leopardiani. Pisa, 1956.
O I T O MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1881
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No modo a-histórico de pensar, também reside parte


moral dos vencidos; Chaucer e Boccaccio, discutindo sobre
da grandeza do poeta Giacomo Leopardi ( 1 2 ) ; só é preciso
poesia italiana e inglesa; Fra Filippo Lippi, defendendo
interpretar essa sua atitude não como protesto romântico
perante o Papa Eugênio I V o imoralismo dos artistas; os
contra o seu tempo, e sim como protesto contra todos os
heresiarcas Calvino e Melanchthon, entendendo-se sobre o tempos. Leopardi não foi romântico: a sua formação era
direito de punir heréticos; Scaliger, o sábio erudito, e intensamente greco-latina; defendeu, como Monti, o uso
Montaigne, o ignorante sábio; Essex, falando a Spenser da mitologia na poesia; detestava o subjetivismo romântico
sobre a condição miserável dos poetas; o rei Jaime I, con­ ("Cosa odiosíssima è il parlar molto di se."); censurou os
versando com Casaubonus sobre o direito divino dos r e i s ; cinqiiecentistas porque teriam "romantizado" a Antigui­
e Cromwell, defendendo contra Walther Noble o direito dade. Mas êle mesmo também "romantizou", e tão forte­
divino dos povos de degolar os reis; Rousseau e Malesher- mente que deixou à posteridade uma imagem pálida à ma­
bes, sobre a justiça; Pitt, no leito de morte, dando ins­ neira de Lamartine. É que o romantismo lhe foi imposto
truções políticas a Canning; o radical Romilly, demons­ pela vida. Leopardi foi um dos homens mais infelizes de
trando ao abolicionista Wilberforce a necessidade de liber­ todos os tempos. Seu pai, aristocrata ultraconservador e
tar antes dos escravos pretos os escravos brancos da indús­ clericalíssimo, empobrecido pelas vicissitudes históricas da
época, educou-o como numa prisão, transmitindo-lhe cedo
tria inglesa — é inesgotável o tesouro de graça, espírito,
uma erudição greco-latina tão imensa que o menino já
poesia, sabedoria das Imaginary Conversations. O talento
surpreendeu os especialistas mais famosos; e tornou-se
dramático de Landor só falhou na arte de caracterizar os
totalmente inadaptado à vida. Fugiu para Roma, não arran­
personagens pelo diálogo; todos eles, falam a mesma língua jou nada, voltou para a prisão paterna, continuando em
clássica e sentenciosa de Landor, que é o "poet's poet" da
prosa. A sua obra é um monumento de poesia erudita;
12) Giacomo Leopardi, 1798-1837.
ninguém é mais capaz do que Landor de erigir monumentos. Canzoni (1818); Versi (1824); Operette morali (1827); Canti
A si mesmo erigiu, quando tinha 88 anos de idade, o mo­ (1831); Canti (1835); Lettere (1845).
Edição por F. Moroncini, 6 vols., Bologna, 1929-1931.
numento desses quatro versos: F. D'Ovidio: Saggi critici. Napoli, 1878.
F. Montefredini: La vita e le opere di Giacomo Leopardi. Milaíio,
1881.
F. De Sanctis: Stuãio su Giacomo Leopardi. Nupoll, 1885. (8." cd.,
"I strove with none, for none was worth my strife. Napoli, 1923.)
Nature I loved and, next to Nature, Art. G. Carducci: "Degli spiriti e delle íorma ncllu poesia dl Giacomo
Leopardi." (In: Opere, vol. XVI.)
I warm'd both hands before the fire of life; A. Graf: Foscolo, Manzoni, Leopardi. Torino, 1898.
It sinks, and I am ready to depart." G. Mestiça: Studi leoparãiani. Firenze, 1901.
B. Zumbini: Studi sul Leopardi. 2 vols., Firenze, 1902-1904.
K. Vossler: Leopardi. Muenchen, 1923.
G. Gentile: Manzoni e Leopardi. Mllano, 1928.
Landor não era pessimista. Como homem do século X V I I I , G. A. Levi: Giacomo Leopardi- Messlna, 1931.
acreditava no progresso, e a sua viagem imaginária pela A. Tilgher: La filosofia di Leopardi. Roma, 1940.
G. De Robertis: Saggio sul Leopardi. 2." ed. Firenze, 1946.
história inteira não conseguiu convencê-lo do contrário. N. Sapegno: La poesia di Leopardi. Roma, 1946.
W. Binni: La nuova poética leopardiana. Firenze, 1947.
O historicismo do século não atingiu a esse velho súdito E. Cozzani: Giacomo Leopardi. 2 vols. Milano, 1947/48.
rebelde da rainha Vitória. A Frattini: Studi leopardiani. Pisa, 1956.
1882 OTTO M A R I A CABPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1883

condições de pauperismo, perturbado por amores sempre feito Foscolo. Aos biógrafos indiscretos, a poesia pessi­
infelizes, minado pela tuberculose; em Nápoles, no meio mista de Leopardi explicou-se como caminho de evasão
da Natureza exuberante que lhe parecia impiedosa, morreu de um doente, sofrendo de insuficiência sexual e decor­
com 39 anos de idade, deixando uma obra de tamanho rentes perturbações mentais, lamentando infinitamente
escassíssimo: um volume de diálogos e meditações filosó­ " . . . i tristi e cari
ficas e um pequeno volume de versos. É, porém, a obra Moti dei cor, la rimembranza acerba",
mais perfeita de uma literatura tão grande como a italiana.
Vida e morte definem Leopardi como um dos "génios encontrando numa poesia doce e musical o desejado ani­
malogrados" do "mal du siècle", ao qual êle deu a expressão quilamento como num Nirvana budista:
de um sistema filosófico, ou antes as aparências de um " . . . Cosi tra questa
sistema do pessimismo metafísico, ou melhor: antimeta- Immensità s'annega il pensier m i o :
físico. Aquele volume de versos abre com as canções "Ad E il naufragar m'è dolce questo maré".
Angelo Mai" e "All'Italia"; escolheu expressões tão con­
vencionais do classicismo como Assim, um dos maiores poetas de todos os tempos sobre­
vive na memória como poeta menor, como decadentista
"O pátria mia, vedo le mure e gli archi pálido e elegíaco. Foi nesse sentido que Benedetto Croce
E le colonne e i simulacri e 1'erme empreendeu distinguir, em Leopardi, a poesia e a não-poe-
Torri degli avi nostri, sia, eliminando os poemas filosóficos e mantendo só os
Ma la gloria non v e d o . . . " , grandes idílios.
— versos que lembram a Rodrigo Caro, Quevedo, Filicaja — Na verdade, Leopardi não foi poeta elegíaco-idílico e,
para lamentar a humilhação da Itália. Os contemporâneos muito menos, decadente. Doente, sim, mas os sofrimentos
só ouviram a lamentação; pensaram em Chateaubriand e físicos e as humilhações pessoais não lhe quebraram o
Lamartine. Doutro lado, o republicanismo radical e anti- espírito forte. Dão testemunho disso a dureza de pedra
cristão de Leopardi parecia aproximá-lo de Byron, e a do seu verso, a lucidez crítica dos seus diários (reunidos
reação política e clerical na Itália, reação que êle sofreu no imenso Zibaldone), e a força de elaborar, nas Operette
diretamente na casa paterna, parecia explicação suficiente morali, um autêntico sistema filosófico do pessimismo.
do seu desespero. Para os italianos de 1840, Leopardi era Pessimismo que não era, aliás, absoluto: pois, condenando
o poeta da desgraça antes de se levantar a aurora da liber­ como pensador as funestas ilusões de felicidade, Leopardi
dade. Por isso mesmo, a Europa não lhe prestou a atenção justificou, em sua poética, essas ilusões: porque produzem
devida. Francesco De Sanctis, no seu ensaio admirável a poesia consoladora; isto é, a poesia filosófica ou, melhor,
sobre a mocidade de Leopardi, foi o primeiro que ousou a poesia intelectual. Aquelas primeiras poesias patrióticas
duvidar do valor daquelas poesias patrióticas, que são real­ representaram um pensamento que o poeta logo superou.
mente inferiores; mais tarde, Croce eliminou também as Leopardi lamentou a glória desvanecida da Itália e de-
poesias de sabor arqueológico e filosófico. Mas então só clarou-se republicano, porque convinha assim ao discípulo
fica um Leopardi que "parla molto di se", um romântico da retórica latina. Com os patriotas e republicanos vivos
de formação grega que "romantizou" a Grécia como tinha não desejava comunidade, porque não participou das suas
Illlll Oiro MAHIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1885

«mppittiiçiiM utópicas; e eram, todos eles, românticos. Leo- "Di Capri la marina
pmtli «TII liberal na política e livre-pensador em matéria E di Napoli il porto e Mergellina"
«1«i i«-li|;ião, como tantos aristocratas do século X V I I I . "The
BKe of chivalry is g o n e . . . " , dissera B u r k e ; e Leopardi,
— com a tenacidade do modesto tojo, vivendo nos desertos
«ItMiiocrata fora dos partidos, não pretendeu opor-se a essa
em redor do Vesúvio, sob os quais dormem as cidades
transformação. Mas, continuara Burke, " . . . that of sophis-
mortas de Pompeia e Herculano. Leopardi não se satisfez,
ters, economists, and calculators has succeeded"; e o aris­
porém, com comparações líricas. No Dialogo di un ven-
tocrata Leopardi estava de acordo, porque adivinhou a
mentalidade burguesa atrás da atitude romântica dos pa­ ditore d'almanacchi e di un passeggere, a alegria insensata
triotas. O romantismo político causava-lhe náusea, e o de um homem simples no dia de ano novo é desmentida
patriotismo parecia ao cosmopolita à maneira do século por uma cadeia implacável de silogismos: não há motivo
X V I I I um egoísmo coletivo. Admitiu só um egoísmo co- algum para acreditar que o "ano novo" será um "ano bom";
letivo: aquele que nos inspira o sofrimento coletivo da toda a experiência humana contradiz a esse otimismo. Os
humanidade. E não acreditava que romantismo, patriotis­ silogismos que Leopardi apresenta são implacáveis, mas
mo e República pudessem abolir esse sofrimento de todos não dogmáticos; sempre só pretendem demonstrar a pro­
os tempos. babilidade máxima da desgraça, e a conveniência de se
As Operette morali abrem com uma pequena Storia dei prevenir contra tudo. O pessimismo de Leopardi é, por
genere humano cuja ideia se condensa no aforismo: "Gli assim dizer, utilitarista; pretende, enquanto possível, re­
uomini sono miseri per necessita, e risoluti di credersi duzir o sofrimento natural pela consciência inteligente. O
miseri per accidente." O "accidente" é o que muda, a fa­ probabilismo das suas deduções lembra imediatamente o
chada histórica da humanidade. A "necessita" é o que "pari" de Pascal, se bem às avessas. Com efeito, Leopardi
fica imutável, isto é, a Natureza, à qual êle acusou, no parece-se muito com Pascal, pela erudição precoce, pela
Dialogo delia Natura e di un Islandese, como madrasta ter­ insuficiência e sofrimento físicos, pela angústia perma­
rível do género humano. Leopardi pensava a-històrica- n e n t e ; mas é um Pascal sem Graça divina. Pascaliana é a
mente (e, por consequência, anti-românticamente); como sua inquietação; e isso confere à sua poesia a côr romântica,
os pensadores do século X V I I I deu mais importância aos bastante intensa. Daí a sua preferência pelas palavras que
fenómenos da Natureza do que ao "tableau des crimes et sugerem o vasto e o infinito, no Canto notturno de un
des malheurs" que se repetem invariavelmente. A atitude pastore errante neWAsia, e nos versos A se stesso — os
anti-histórica de Leopardi ter-se-ia manifestado no inte­ seus mais famosos — que constituem a Suma do seu pes­
resse pelas ciências naturais, como em Schopenhauer, se­ simismo :
não fosse a sua formação exclusivamente humanista. Co­
nhecia as ciências naturais só como objeto de estudos filo­
lógicos em Aristóteles e Plínio; e a sua visão de Natureza " . . . Al gener nostro il fato
e História exprimiu-se em lugares-comuns consagrados pela Non dono che il morire. Ormai disprezza
poesia clássica; na Ginestra, compara a vida alegre e febril Je, la natura, il brutto
«IOB vivos — Poter che, ascoso, a comun danno impera,
E 1'infinita vanità dei tutto."
HISTÓBIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1887
1886 OTTO MARIA CARPEAUX
gou a uma harmonia entre essa expressão e aquele seu
Este pessimismo é diferente, por completo, do "mal
pensamento que parece revelação da harmonia das esferas,
du siècle" e do "Weltschmerz". J á não se entristece em
se bem que fosse uma harmonia sinistra. Assim quando,
face das ruínas da pátria ou da sua vida particular, mas
no Dialogo di Federico Ruysch e delle sue mummie, os
pensa sempre no género humano, em vez de "parlar molto
cadáveres embalsamados no museu do famoso anatomista
di se". A base desse pessimismo não é o espiritualismo
holandês entoam o canto:
cristão de Lamartine nem o satanismo revoltado de Byron,
mas o materialismo do século X V I I I ; Leopardi está perto
"Sola nel mondo eterna, a cui si volve
dos enciclopedistas franceses, de Condillac, até de Lame-
Ogni creata cosa,
ttrie — apenas o poeta é mais céptico, mais pascaliano.
In te, morte, si posa
A sua ênfase com respeito à relação entre "Amor" e "Mor­
Nostra ignuda natura;
te" não é romântica, mas refere-se aos fenómenos bioló­
Lieta no, ma sicura
gicos fundamentais; e a verificação de que a Dor é a
Dali' antico d o l o r . . . "
condição própria da vida, tem o sentido de um fato psico-
fisiológico. A base do pessimismo de Leopardi não é "no­
Esse Coro di morti nello studio di Federico Ruysch é a
bre" à maneira dos espiritualistas; é o eudemonismo de
resposta moderna à Divina Commedia, na língua dela. "Ro­
um materialista que desejava o prazer e só encontrou a dor,
mântica" essa poesia só é no sentido de "moderno", rea­
portanto grita:
lizando a ambição de Chénier —
"È funesto a chi nasce il di natale."
"Sur des pensers nouveaux faison des vers
[antiques".
São palavras, quase literalmente, de Sófocles. No ma­
terialismo e no pessimismo, Leopardi é um grego; daquela
O que é uma definição da poesia permanente de Giacomo
Grécia porém que o idílio classicista ignorava e que só
Leopardi.
Buckhardt e Bachofen revelarão. Assim como Keats, com
o qual tem, aliás, poucos pontos de contato, Leopardi che­ Arthur Schopenhauer ( K! ) considerava certos versos
gou à Grécia através do romantismo, que o libertou do eru- de Leopardi como a expressão mais perfeita do seu sistema
ditismo dos seus estudos precoces — mas — e isso o filosófico; lamentou muito não ter conhecido pessoalmente,
distingue de Keats — o caminho grego não era, para Leo­ quando viajando pela Itália, o grande poeta. Talvez hou­
pardi, um caminho de evasão. Por isso não chegou à euforia vesse nisso certo equívoco, certa confusão entre a filosofia
do inglês, nem à sua música verbal. Leopardi não é um de Schopenhauer e as bases psicológicas dessa filosofia.
músico da língua. É clássico num sentido mais rigoroso,
emprega muito poucas imagens e metáforas, é o poeta do
substantivo bem escolhido do qual não existe sinónimo. 13) Arthur Schopenhauer, 1788-1860.
Die Welt ais Wille unã Vorstellung (1819); Parerga unã Para-
A prosa das Operette Morali é a mais "nua", a mais simples lipomena (1851) etc.
<la língua, feita para, eliminando-se o "accidente", só ex­ Edição por O. Weiss, 12 vols. Leipzig, 1920-1932.
J. Volkelt: Arthur Schopenhauer. 5.a ed. Stuttgart, 1923.
primir o essencial, o permanente. Às vezes, Leopardi che- R. Tengler: Schopenhauer unã ãie Romantik. Berlim, 1923.
1888 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1889

Como filósofo, Schopenhauer era romântico. O seu ateís­ Depois de uma interpretação mais acurada dos casos
mo naturalista não está tão longe do panteísmo de Schelling de Byron, Leopardi e Schopenhauer, não causará estra­
como êle mesmo pensava; Schopenhauer prestava máxima nheza o caso de Alfred de Vigny ( 1 4 ), verdadeiro "caso"
atenção à ciência romântica dos Ritter, Malfatti e Gotthilf da vida literária: começou sendo festejado como um dos
Heinrich Schubert — nos Parerga und Paralipomena re­ génios mais promissores do romantismo para cair, depois,
vela muita simpatia com o ocultismo — e o seu entusiasmo no desprezo absoluto dos seus contemporâneos românticos:
pelo budismo baseava-se nos estudos indianos de Friedrich não mudara; tinham descoberto que era um clássico. Mes­
Schlegel; enfim, o volutarismo de Schopenhauer lembra, mo depois das interpretações de Brunetière, que parecem
mais do que uma vez, a "magia" de Novalis. A grande até hoje a palavra definitiva sobre Vigny, a sua retirada
objeção contra o romantismo de Schopenhauer é o seu es­ para a "tour d'ivoire" é interpretada como evasão vergo­
tilo: um estilo diáfano, clássico, de lógica rigorosa, che­ nhosa. Vigny, porém, não fugira. Estava lá desde sempre.
gando ocasionalmente a uma elevação leopardiana, da qual Aristocrata da gentry rural, como Lamartine, mas sem o
a tradução só pode dar ideia aproximada: "Com a maior espírito de lamentação, antes com o orgulho desdenhoso
franqueza admitimos nossa fé: o que fica, depois da abo­ de Byron; oficial indisciplinado, assim como Leopardi não
lição total da Vontade, é, realmente, só o Nada; quer dizer, suportou a disciplina da casa paterna; enfim, eremita soli­
o Nada para estes que ainda estão cheios da vontade de tário, mudo durante 30 anos em face de uma Natureza
viver. Mas para aqueles nos quais a Vontade já se con­ muda e insensível como a de Leopardi ("Je n'entends ni
verteu ao ponto de negar-se, para estes todo esse Universo vos cris ni vos s o u p i r s . . . " ) — 30 anos de orgulho triste
tão real, com todos os seus sóis e vias-lácteas, também não como os 30 anos de espera de Schopenhauer, como de um
significa — Nada". Schopenhauer, classicista como Leo- Byron que sobreviveria a si mesmo. Vigny não se parece
pardi, é uma personalidade muito menos nobre do que o áe maneira alguma com os chamados românticos franceses,
poeta. Não era aristocrata de nascimento, pertencendo, po­ cheios de otimismo generoso — não tem nenhum ideal, nem
rém, à mesma aristocracia da inteligência; e viveu como sequer os ideais poéticos de Leopardi. É um fatalista som-
erudito sem obrigações de trabalho profissional, gastando
os juros da sua fortuna imensa. O eudemonismo materia­
lista, que era a filosofia do poeta Leopardi, aparece na 14) Alfred de Vigny, 1797-1863.
vida do filósofo Schopenhauer como epicureísmo bastante Poèmes antiques et moãernes (1826) ; Cinq-Mars (1826) ; Stello
(1832); Chatterton (1835); Grandeur et servitude militaires
baixo que o pessimista praticava. Êle também foi homem do (1835); Les Destinées (1864).
século X V I I I , dado às ciências naturais e de incompreensão Edição por F. Baldensperger, 10 vols. Paris, 1914-193G.
M. Paléologue: Alfred ãe Vigny. Paris, 1891.
absoluta pela história; daí o seu desprezo contra Hegel, F. Brunetière: Évolution de la pocsie lyrique au XIXe siècle,
filósofo da história. Assim o romantismo, todo histórico, vol. II. Paris, 1894.
P.-M. Masson: Alfred ãe Vigny. Paris, 1908.
não podia compreender a Schopenhauer, que tinha que espe­ E. Dupuy: Alfred de Vigny. Paris, 1913.
L. Séché: Alfred de Vigny. Paris, 1913.
rar mais de trinta anos até ser reconhecido como grande F. Baldensperger: Alfred ãe Vigny. Paris, 1929.
pensador. E então, a época do positivismo desilusionado B. de la Salle: Alfred de Vigny. Paris, 1939.
G. F. Bonnefoy: Le pensée religieuse et morale d'Alfred de Vigny.
intcrpretou-o como filósofo da evasão: como romântico. Paris, 1946.
E. Lauvrière: Alfred de Vigny, sa vie et son oeuvre. Paris, 1948.
1890 OTTO M A R I A C^RPBAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1891

brio, um ateu mais lúcido do que os materialistas do século não é romântico. Não é egoísta que se queixa; não gosta
X V I I I ; não é capaz de descobrir esperança alguma na Na­ de "parlar molto di se" — o poeta francês diz: "Souffre
tureza que fala ao poeta assim: et meurs san parler". Assim, a dedução de Brunetière é
irrefutável — só o próprio Vigny pretende desmenti-la.
"Je n'entends ni vos cris ni vos soupirs; à peine Acreditava ser romântico. Tinha escrito um romance his­
J e sens passer sur moi la comédie h u m a i n e . . . " . tórico, Cing-Mars. Escreveu poemas narrativos à maneira
de Byron, tingidos de melancolia ossiânica —
Lucrécio também viu assim a Natureza; e nenhum poeta
moderno está tão perto de Lucrécio como Vigny. Fora
"Tous les tableaux humains qu'un Esprit pur
esta a ambição de Chénier. Se as primeiras poesias de
[m'apporte
Vigny foram escritas sob a influência das de Chénier, jus­
tamente então descoberta e publicadas; ou se foram ante- L'animeront pour toi quand devant notre porte
teriores, como o próprio Vigny alegou: não importa. No Les grands pays muets longuement s'étendront".
segundo caso, a coincidência é tão notável como no pri­
meiro caso a segurança na escolha do modelo. Todos os No fundo, esse "Esprit pur' não é outra coisa senão o
românticos franceses admiravam a Chénier; mas Vigny génio poético, maltratado pelo destino e não reconhecido
foi o único que o entendeu. O único que adotou a filosofia pelos homens; e Vigny dedicara ao destino do génio român­
lucreciana, o único que defendeu tenazmente o uso da mi­ tico a tragédia Chatterton. Mas as atitudes diferem. Em
tologia poética, o único clássico entre os românticos capaz vez de sucumbir lamentando ou de se revoltar gritando,
de realizar versos como Vigny escolheu "ce haut degré de stoique fierté", da qual
fala na Mort du Loup. É um estóico, afinal mais perto do
"... Pleurant, comme Diane au bord de ses fontaines, aristocrata e oficial Vauvenargues do que do burguês e
T o n amour taciturne et toujours menacé". visionário Pascal. Do estoicismo veio-lhe a força de "se
mettre-en-scène" na solidão e o grande "souffle" retórico
Assim como Lucrécio, Vigny não suportava o conceito — como retórico, o pseudo-romântico Vigny está bem den­
de "comédie humaine", usando a expressão apenas de ma­ tro da tradição poética francesa. Quando saiu, como obra
neira irónica. Os dois grandes poetas sentiram com inten­ póstuma, o volume Les Destinées, em 1864, Vigny já pare­
sidade igual os horrores da condição humana; lembram-se ceu contemporâneo dos parnasianos, assim como Schopen-
as descrições do furor sexual e dos sofrimentos físicos hauer parecia então positivista. A "tour d'ivoire" de Vig­
em Lucrécio — em Vigny aparece o mesmo írisson como ny era uma casa mais permanente do que o castelo aris­
reminiscência de Pascal, talvez através de Vauvenargues. tocrático dos seus antepassados, perdido na Revolução.
Dá o colorido romântico de angústia à sua poesia. Assim A arte de Vigny é algo fria. De Brunetière até Benedetto
como se pensa nos "philosophes" e "idéologues" a pro­ Croce, sempre só foram os adeptos impenitentes da poesia
pósito de Leopardi, assim ocorre o pascalianismo de Maine clássica que gostavam de Vigny. Mas não se pode negar a
do Biran a propósito de Vigny. Apesar de tudo isso, Vigny alta qualidade da pureza ao seu "esprit pur".
1110(1 ( • I I II l \ l \ III \ ( ' A IIIT..MI \ lllSTÓMA DA LlTDIIATUHA OciDUNTAL 11(91

In iu, uni nirii inniri lúcido do (|iic os materialistas do século não é romântico. Não é egoísta que se queixa; não gosta
XVIII ; mio «• (ii|iíiz de descobrir esperança alguma na Na- de "parlar molto di se" — o poeta francês d i z : "Souffre
(llio/ti que lulu ao poeta assim: et meurs san parler". Assim, a dedução de Brunetière é
irrefutável — só o próprio Vigny pretende desmenti-la.
" J e n'entends ni vos cris ni vos soupirs; à peine Acreditava ser romântico. Tinha escrito um romance his­
j e sens passer sur moi la comédie h u m a i n e . . . " . tórico, Cing-Mars. Escreveu poemas narrativos à maneira
de Byron, tingidos de melancolia ossiânica —
Lucrécio também viu assim a Natureza; e nenhum poeta
moderno está tão perto de Lucrécio como Vigny. Fora
"Tous les tableaux humains qu'un Esprit pur
esta a ambição de Chénier. Se as primeiras poesias de
[m'apporte
Vigny foram escritas sob a influência das de Chénier, jus­
tamente então descoberta e publicadas; ou se foram ante- L'animeront pour toi quand devant notre porte
teriores, como o próprio Vigny alegou: não importa. No Les grands pays muets longuement s'étendront".
segundo caso, a coincidência é tão notável como no pri­
meiro caso a segurança na escolha do modelo. Todos os No fundo, esse "Esprit pur' não é outra coisa senão o
românticos franceses admiravam a Chénier; mas Vigny génio poético, maltratado pelo destino e não reconhecido
foi o único que o entendeu. O único que adotou a filosofia pelos homens; e Vigny dedicara ao destino do génio român­
lucreciana, o único que defendeu tenazmente o uso da mi­ tico a tragédia Chatterton. Mas as atitudes diferem. Em
tologia poética, o único clássico entre os românticos capaz vez de sucumbir lamentando ou de se revoltar gritando,
de realizar versos como Vigny escolheu "ce haut degré de stoique fierté", da qual
fala na Aíorf du Loup. É um estóico, afinal mais perto do
"... Pleurant, comme Diane au bord de ses fontaines, aristocrata e oficial Vauvenargues do que do burguês e
Ton amour taciturne et toujours menacé". visionário Pascal. Do estoicismo veio-lhe a força de "se
mettre-en-scène" na solidão e o grande "souffle" retórico
Assim como Lucrécio, Vigny não suportava o conceito — como retórico, o pseudo-romântico Vigny está bem den­
de "comédie humaine", usando a expressão apenas de ma­ tro da tradição poética francesa. Quando saiu, como obra
neira irónica. Os dois grandes poetas sentiram com inten­ póstuma, o volume Les Destinées, em 1864, Vigny já pare­
sidade igual os horrores da condição humana; lembram-se ceu contemporâneo dos parnasianos, assim como Schopen-
as descrições do furor sexual e dos sofrimentos físicos hauer parecia então positivista. A "tour d'ivoire" de Vig­
em Lucrécio — em Vigny aparece o mesmo frisson como ny era uma casa mais permanente do que o castelo aris­
reminiscência de Pascal, talvez através de Vauvenargues. tocrático dos seus antepassados, perdido na Revolução.
Dá o colorido romântico de angústia à sua poesia. Assim A arte de Vigny é algo fria. De Brunetière até Benedetto
como se pensa nos "philosophes" e "idéologues" a pro­ Croce, sempre só foram os adeptos impenitentes da poesia
pósito de Leopardi, assim ocorre o pascalianismo de Maine clássica que gostavam de Vigny. Mas não se pode negar a
de Biran a propósito de Vigny. Apesar de tudo isso, Vigny alta qualidade da pureza ao seu "esprit pur".
1IW2 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1893

O único byronista autêntico da Alemanha, o aristocrata transfigurações dos sentimentos rebeldes de uma alma no­
bávaro conde Platen ( 1 5 ), não quis saber de Byron porque bre e injustiçada. E nas peças líricas mais simples de
o considerava romântico; êle mesmo pretendeu ser o único Platen entende-se agora melhor a expressão de uma tristeza
e último discípulo de Goethe. Mas visto à luz intensa desse profunda e sincera.
sol, Platen é um poeta fraco. Os Ghaselen, sugeridos pelo A feição pessoal e de classe, nada romântica, do byro-
West-oestlicher Diwan, imitam os metros orientais com nismo autêntico torna-se mais evidente pela sua presença
tanta exatidão que, em alemão, se tornam involuntariamente num país sem tradições clássicas: na Rússia.
cómicos; as baladas históricas, de eloquência sonora são pe­ A língua poética russa fora, na verdade, criada pelos
ças para torturar a memória dos colegiais; os Sonette aus classicistas Lomonossov e Derchavin. Mas interveio logo
Venedig (Sonetos Venezianos), impecáveis na forma, pa- a influência do pré-romântico Chukovski. E depois, o novo
recem-se com notas marginais de um bom guia de Veneza. instrumento caiu nas mãos de românticos autênticos. Ba-
Platen era um mestre das formas complicadas: nas odes tiuchkov ( 16 ) fora poeta anacreôntico à maneira francesa.
que celebram os tesouros de arte, as ruínas e a vida popular Mas o estudo assíduo da poesia de Tasso transformou-o
da Itália, imitou com virtuosidade os metros greco-latinos em elegíaco de inspiração religiosa, algo parecido com o
mais difíceis, algo como um Banville alemão. É um par­ Lamartine da primeira fase. Antigamente, os críticos russos
nasiano avant la lettre. Essas odes entusiasmaram, não mui­ também pensavam em compará-lo a Hoelderlin; mas a única
to depois, um jovem poeta italiano que as traduziu e imitou semelhança é a noite da loucura na qual Batiuchkov tam­
— Carducci — e deste modo Platen tornou-se grande in­ bém passou a maior parte da sua longa vida. Já foi mais
fluência literária na Itália, no país em que vivera e morrera. clássico Baratynski ( 16 - A ), outro russo italianizado, algo
Os próprios alemães sentiram sempre ligeira estranheza parecido com Platen. Fora pré-romântico nas descrições
diante do culto absoluto que Platen dedicou à Beleza; e do poema Eda. Sacrificou ao byronismo no poema narrativo
o aristocrata orgulhoso que se deu por liberal e cantou a
liberdade dos gregos e poloneses foi muito satirizado. O
mais mordaz desses satíricos, Heine, prestando atenção a 16) Konstantin Nikolaievich Batiuchkov, 1787-1855.
Poesias (1817).
certas alusões nas poesias do conde, adivinhou a causa Edição por D. D. Blagoj, 2 vols., Moscou, 1934.
secreta das angústias do poeta: Platen era homossexual. L. N. Maikov: Batiuchkov, sua vida c suas obras. Petersburgo,
1887. (Em língua russa.)
Mas a anomalia tinha, no caso, efeitos inesperados. Foi a S. A. Vengerov: "Konstantin Nlkolaievltch Batiuchkov". (In: His­
paixão que lhe animava a arte fria. O classicismo de tória da Literatura Russa no Século XIX, edit. por D. N. Ovsiani-
Platen perdeu o ar de escola, vivificou-se; lidas assim, ko-Kulikovski, vol. I. Moscou, 1908.) (Em língua russa.)
16 A) Jevgeni Abramovitch Baratynski, 1800-1844.
aquelas odes e elegias italianas têm outro interesse: são Eda (1826); A Morte de Goethe (1832); A Cigana (1833); Poe­
sias (1835).
Edição crítica por M. L. Golfman, 2 vols., Petersburgo, 1914-
15) August Graf von Platen-Hallermuende, 1796-1835. 1915.
Ghaselen (1821-1824); Sonnette aus Venedig (1825); Gedichte M. N. Longinov: Jevgeni Abramovitch Baratynski. Moscou, 1874.
(Em língua russa.)
(1828) etc. M. L. Gofman: A Poesia de Jevgeni Abramovitch Baratynski.
Edição por M. Koch e E. Petzet, 12 vols., Leipzig, 1910. Estudo histórico-literário. Petersburgo, 1915. (Em língua russa.)
R. Schloesser: Platen. 2 vols. Muenchen, 1910-1913. M. Cajola: Eugénio A. Baratynski. Una pagina âi storia delia
O. Oubctti: August Platen e la bellezza come iâeale morale. Gé­ poesia russa. Roma, 1935.
nova, 1915.
1IW2 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1893

O único byronista autêntico da Alemanha, o aristocrata transfigurações dos sentimentos rebeldes de uma alma no­
bávaro conde Platen ( 1 5 ), não quis saber de Byron porque bre e injustiçada. E nas peças líricas mais simples de
o considerava romântico; êle mesmo pretendeu ser o único Platen entende-se agora melhor a expressão de uma tristeza
e último discípulo de Goethe. Mas visto à luz intensa desse profunda e sincera.
sol, Platen é um poeta fraco. Os Ghaselen, sugeridos pelo A feição pessoal e de classe, nada romântica, do byro-
West-oestlicher Diwan, imitam os metros orientais com nismo autêntico torna-se mais evidente pela sua presença
tanta exatidão que, em alemão, se tornam involuntariamente num país sem tradições clássicas: na Rússia.
cómicos; as baladas históricas, de eloquência sonora são pe­ A língua poética russa fora, na verdade, criada pelos
ças para torturar a memória dos colegiais; os Sonette aus classicistas Lomonossov e Derchavin. Mas interveio logo
Venedig (Sonetos Venezianos), impecáveis na forma, pa- a influência do pré-romântico Chukovski. E depois, o novo
recem-se com notas marginais de um bom guia de Veneza. instrumento caiu nas mãos de românticos autênticos. Ba-
Platen era um mestre das formas complicadas: nas odes tiuchkov ( 16 ) fora poeta anacreôntico à maneira francesa.
que celebram os tesouros de arte, as ruínas e a vida popular Mas o estudo assíduo da poesia de Tasso transformou-o
da Itália, imitou com virtuosidade os metros greco-latinos em elegíaco de inspiração religiosa, algo parecido com o
mais difíceis, algo como um Banville alemão. É um par­ Lamartine da primeira fase. Antigamente, os críticos russos
nasiano avant la lettre. Essas odes entusiasmaram, não mui­ também pensavam em compará-lo a Hoelderlin; mas a única
to depois, um jovem poeta italiano que as traduziu e imitou semelhança é a noite da loucura na qual Batiuchkov tam­
— Carducci — e deste modo Platen tornou-se grande in­ bém passou a maior parte da sua longa vida. Já foi mais
fluência literária na Itália, no país em que vivera e morrera. clássico Baratynski ( 16 - A ), outro russo italianizado, algo
Os próprios alemães sentiram sempre ligeira estranheza parecido com Platen. Fora pré-romântico nas descrições
diante do culto absoluto que Platen dedicou à Beleza; e do poema Eda. Sacrificou ao byronismo no poema narrativo
o aristocrata orgulhoso que se deu por liberal e cantou a
liberdade dos gregos e poloneses foi muito satirizado. O
mais mordaz desses satíricos, Heine, prestando atenção a 16) Konstantin Nikolaievich Batiuchkov, 1787-1855.
Poesias (1817).
certas alusões nas poesias do conde, adivinhou a causa Edição por D. D. Blagoj, 2 vols., Moscou, 1934.
secreta das angústias do poeta: Platen era homossexual. L. N. Maikov: Batiuchkov, sua vida c suas obras. Petersburgo,
1887. (Em língua russa.)
Mas a anomalia tinha, no caso, efeitos inesperados. Foi a S. A. Vengerov: "Konstantin Nlkolulovltch Batiuchkov". (In: His­
paixão que lhe animava a arte fria. O classicismo de tória da Literatura Russa no Sóculo XIX, cdit. por D. N. Ovsiani-
Platen perdeu o ar de escola, vivificou-se; lidas assim, ko-Kulikovski, vol. I. Moscou, 1908.) (Em língua russa.)
16 A) Jevgeni Abramovitch Baratynski, 1800-1844.
aquelas odes e elegias italianas têm outro interesse: são Eda (1826); A Morte de Goethe (1832); A Cigana (1833); Poe­
sias (1835).
Edição crítica por M. L. Golíman, 2 vols., Petersburgo, 1914-
15) August Graf von Platen-Hallermuende, 1796-1835. 1915.
Ghaselen (1821-1824); Sonnette aus Venedig (1825); Gedichte M. N. Longinov: Jevgeni Abramovitch Baratynski. Moscou, 1874.
(1828) etc. (Em língua russa.)
M. L. Gofman: A Poesia de Jevgeni Abramovitch Baratynski.
Edição por M. Koch e E. Petzet, 12 vols., Leipzig, 1910. Estudo histórico-literário. Petersburgo, 1915. (Em língua russa.)
R. Schloesser: Platen. 2 vols. Muenchen, 1910-1913. M. Cajola: Eugénio A. Baratynski. Una pagina di storia delia
O. Oubctti: August Platen e la bellezza come iãeale morale. Gé­ poesia russa. Roma, 1935.
nova, 1915.
1894 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1895

A Cigana. Mas é classicista em O último poeta, sua obra


cronológica na qual a Europa os tinha percorrido: clas­
capital. É poeta filosófico, lembrando pelo pessimismo a
sicismo francês, pré-romantismo anglo-alemão, romantismo
Leopardi e Vigny, nas poesias curtas que se caracterizam,
byroniano, para chegar a um novo classicismo sui generis.
porém, pelo hermetismo da expressão. Durante todo o
Contudo, não há evolução lógica nessa carreira, nem as
século XIX, Baratynski passou por ser muito harmonioso,
hesitações de um gosto inseguro, nem a virtuosidade de
mas incompreensível; só os simbolistas lhe descobriram a
um artista que sabe fazer tudo sem sentir nada; antes a
profundeza do pensamento atrás da musicalidade fasci­
vontade de criar uma literatura universal em língua russa.
nante.
A obra da mocidade — poesias ligeiras ou obscenas, poesias
Em A Cigana, de Baratynski, a descrição dos costumes
cómicas, epigramas — é voltairiana; naquela época, Puchkin
da aristocracia russa lembra vivamente ao Eugénio Onegin,
sabia melhor o francês do que o russo; as poesias em russo
escrito no mesmo tempo, do seu amigo Puchkin, admirador
só pretenderam demonstrar as possibilidades da língua. São
de Goethe ao qual Baratynski, por sua vez, dedicou um
brincadeiras literárias do aluno do Liceu dos Nobres em
necrológio poético. O próprio Puchkin é difícil de definir,
Zarskoie Selo; e a mesma mentalidade ainda inspirou-lhe
tão difícil como o Proteu da mitologia antiga; na sua obra
o poema narrativo Ruslan e Ludmila, lenda nacional, tra­
encontram-se todos os géneros, todos os estilos. Enfim,
tada de maneira meio irónica, assim como Wieland fizera
fica só um meio para verificar a sua tendência mais perma­
com os contos de fadas. A escolha do assunto russo já
n e n t e : a análise da sua linguagem poética; e esta é a do
revela, porém, a influência pré-romântica de Chukovski,
classicista Lomonossov.
que vira evidente nas baladas de estilo alemão, algumas
Puchkin ( 17 ) percorreu nos 20 anos de sua carreira lite­ muito parecidas com as de Buerger. Na poesia lírica, Puch­
rária todos os estilos, e mais ou menos na mesma ordem kin não renegou nunca de todo a sua formação classicista
e francesa: são, em grande parte, poesias ligeiras, de oca­
sião, "vers de société", obras de um improvisador genial.
17) Alexander Sergeievitch Puchkin, 1799-1837. Mas há também contos populares em versos à maneira de
Ruslan e Luãmila (1820); O prisioneiro no Cáucaso (1822); O
chafariz de Baktchisarai (1827); Os ciganos (1827); Poltava Wordsworth ("O Galo de Ouro", "O Tzar Saltan"), fanta­
(1829); Poesias (1829-1835); Boris Goãunov (1831); Mozart e
Salieri (1832); O convidado de pedra (1832); O cavaleiro de sias orientais à maneira de Coleridge ("O Chafariz de Bak­
bronze (1833); Eugénio Onegin (1833); Pique-Dame (1834); A tchisarai"), peças líricas simples, licds à maneira de Goethe
filha do capitão (1836).
Edições por A. Tomachevski e M. Chtchegolev, 5 vols., Moscou, e nada inferiores; e impressionantes rapsódias pindáricas
1939-1931, e por V. G. Oxman, 6 vols., Moscou, 1932. como "O profeta", a mais famosa poesia lírica de Puchkin.
E. Haumant: Pouchkine. Paris, 1911.
L. Chodassevitch: A Economia Poética de Puchkin. Moscou, 1923. "O Convidado de Pedra" lembra o teatro espanhol, embora
B. Tomachevski: Puchkin. Moscou, 1925 (Em língua russa.) visto através do romantismo alemão. Forma e espírito de
M. Gerschenson: Ensaios sobre Puchkin. Moscou, 1926. (Em lín­
gua russa.)
Puchkin e a Literatura Universal. Estudos editados pelo Instituto
de Literatura Comparada da Universidade de Leningrad, 1926.
(Em língua russa.) E. Wilson: "In Honor of Pushkin." (In: The Triple Thinkers.
D. S. Mirski: Pushkin. London, 1926. New York, 1938.)
M. Hofmann: Pouchkine. Paris, 1931. V. Vinogradov: O Estilo de Puchkin. Moscou, 1941. (Em língua
K. Simmons: Puchkin. Cambridge, Mass., 1937. russa.)
I*. Mlliukov: Puchkin vivo. Paris, 1937. A. Tyrkova-Williams: A Vida ãe Puchkin. 2 vols. Paris, 1948. (Em
língua russa.)
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1897
111% Oiro MAIUA CARPHAUX

Shakespeare ressurgem na tragédia histórica Boris Godu- como ele, um bom europeu. Mas também sentiu, como
nov, num das obras capitais do teatro russo. O romance his­ Gogol, o elemento fantástico no ar de Petersburgo, a capital
tórico, a maneira de Walter Scott, está representado por artificialmente criada no meio de pântanos e permanente­
A Filh:i do Capitão, a mais viva reconstituição do turbu­ mente ameaçada pelas enchentes e tempestades; como se
lento passado da Rússia. "Pique-dame" é um impressio­ fossem presságios de revoluções. Puchkin descreveu uma
nante conto "gótico", escrito sob a influência de E.T.A. catástrofe elementar assim, no poema O cavaleiro de bronze,
lloffmann. E há os grandes poemas narrativos no estilo cujo personagem principal é mesmo a famosa estátua eques­
pe Byron: O Prisioneiro no Cáucaso, Os Ciganos, Poltava. tre de Pedro o Grande à beira do rio Neva; como se o
Puchkin significa para os russos uma literatura inteira: monumento fosse o ponto firme na Rússia ameaçada pelas
sua obra é a literatura universal em língua russa. Mas o tempestades que Puchkin, o autor do Profeta, previu e nem
poeta também é a figura mais completa da literatura espe­ de todo desaprovou.
cificamente russa. A Filha do Capitão é como o primeiro Puchkin é czarista e revolucionário ao mesmo tempo.
esboço de Guerra e Paz, de Tolstoi. "Pique-Dame" é como É ocidentalista e eslavófilo ao mesmo tempo. É classicista
o primeiro esboço de Crime e Castigo, de Dostoievski. e romântico ao mesmo tempo. É uma enciclopédia literária.
Sabe-se que Puchkin inventou ou indicou os enredos de T u d o se encontra em sua obra; menos a atitude byroniana
Almas Mortas e do Inspetor-geral, de Gogol. Mas, antes ou pseudobyroniana. Durante muito tempo interpretava-se
de tudo, Puchkin escreveu o primeiro grande romance rus­ assim o pequeno drama Mozart e Salieri, em que, conforme
so, o primeiro exemplo do género em que essa literatura um boato da época, o músico de génio é envenenado pelo
produzirá suas maiores obras: Eugénio Onegin. Só com ambicioso que só tem talento. Mas essa obra-prima pre­
uma diferença: não está em prosa. É um romance em tende antes representar a diferença entre arte inspirada
versos. Parece, por isso, poema narrativo, à maneira de e independente e arte utilizada para qualquer outro fim.
Byron. Mas os versos são de objetividade goethiana; o Puchkin, aristocrata por nascimento e por instinto, era
assunto não é exótico, mas nacional e contemporâneo. De adepto do ' T a r t pour 1'art", o que o coloca, surpreenden­
força dramática é a caracterização dos personagens. É ad­ temente, fora da tradição literária russa. Está em relação
mirável a arte pela qual o caso profundamente sentimental com esse fato o outro de êle não ter adotado a linguagem
de Tatiana nunca perde os contornos firmes do mais firme poética de Chukovski, de tanta influência sobre os poetas
realismo. No personagem de Onegin criou Puchkin o tipo da época, nem a grandiloqúência pseudoclassicista de Der-
do aristocrata russo ocidentalizado, "blasé", o "homem inú­ chavin, mas o classicismo objetivo, de sabor popular, de
til" que será o personagem principal d«e tantas obras de Lomonossov. Este foi para Puchkin o que Pope foi para
Turgeniev, de Gontcharov, de Tolstoi e, enfim, de Tchekov, Byron e Chénier para Vigny. Neste sentido é preciso in­
com o qual a grande literatura russa do século X I X termi­ terpretar Eugénio Onegin como pendant de Mozart e Sa­
nará. Esse Puchkin nacional, nacionalíssimo, é o criador lieri: como protesto contra o romantismo sentimental, como
da Rússia literária. poema de renúncia ao mundo. Puchkin morreu em duelo,
Nesse sentido, Puchkin foi comparado ao criador do na aparência com a leviandade de um aristocrata iainêant;
Império russo: ao czar Pedro o Grande. O poeta dedicou na verdade, com o estoicismo de um génio que parecia
admiração ilimitada ao fundador da Rússia moderna; era,
111'MI O I T O MARIA CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1899

pcHHÍiniHta porque a realidade material já não lhe signifi­ ratura em torno de Napoleão ( 1 9 ), na qual convém dis­
cava nada. tinguir camadas diferentes. Reparam-se três fases. A pri­
Uin "caso Puchkin" existe afinal — abrindo-se um meira é a das maldições patrióticas contra o conquistador:
parêntese — na literatura neogrega: Solomos ( 1 8 ), neuro- Wordsworth, muitos espanhóis, os alemães Kleist, Koerner
pata, alcoólico, louco, deixando só fragmentos — mas esse e Arndt. A segunda fase começa com a lamentação mais
Solomos criou na verdade a literatura do seu país. Tem de ou menos sentimental da desgraça que derrotou o grande
t u d o : poemas patrióticos (Mesolongi), byronianos (Lam- herói, em II cinque maggio de Manzoni, em odes de Victor
bros), canções populares, poesias de estilo italiano, influen­ H u g o ; e na impressionante balada Naechtliche Heerschau,
ciadas por Dante, Tasso e sobretudo Foscolo, poesias de do austríaco Joseph Christian von Zedlitz, musicada — e
eloquência patriótica e poesias de "l'art pour l'art" keat- isso é significativo — por Glinka, o mais objetivo, o mais
siano. A tonalidade dominante é o byronismo falso; a ver­ puchkiniano dos compositores russos. O sentimento de
dadeira atitude é a do artista aristocrático, cuja arte resiste admiração por Napoleão torna-se popular entre os fran­
ao sentimentalismo dissoluto, quando o espírito já se es­ ceses: Auguste Barthélemy e Joseph Néry criaram no
curecera. É, na língua mais antiga da Europa, a poesia poema épico Napoleon en Egypte (1828) a famosa "legende
do "Esprit pur". napoleonienne", a do "petit caporal", do homem do povo
que humilhou os grandes da Terra, lenda da qual Beranger
Na obra dos byronistas aristocráticos é frequente a
foi o chansonnier. Esta lenda se dá ares de democracia e
poesia política. E m geral, são liberais — só Schopenhauer
jacobinismo. Na verdade, prepara a terceira fase, a do
é conservador, e justamente o democrata Leopardi deixou
napoleonismo liberal e burguês. Então, Heine, profunda­
de escrever poesia política. Mas esses liberais permitem-se
mente grato ao emancipador dos judeus, dedicou a Napoleão
ataques contra a estupidez das massas democráticas, como
a mais bela das suas baladas, Die beiden Grenadiere (Os
fizeram Landor e Vigny, ou excursões para o culto de
dois granadeiros); Hazlitt opôs à biografia rancorosa escri­
heróis, mesmo se fossem tiranos, como revela a admiração
ta por Walter Scott o seu Life of Napoleon (1828/1830), de
de Puchkin por Pedro o Grande. O grande gesto heróico,
tendência liberal; e Thiers erigiu o monumento historiográ­
eis o que empolga os byronistas aristocráticos e, sobretudo
fico ao reconstrutor da administração e legislação francesas.
a resistência heróica contra inimigos mais fortes, assim
E n t r e a segunda e a terceira fase está o culto do herói.
como eles mesmos a praticaram. Daí a simpatia desses aris­
Na ode A la degradación de Europa, Espronceda lamenta
tocratas para com o vencido Napoleão, simpatia muito
o fim do heroísmo na Europa depois da queda de Napoleão;
diferente da admiração dos burgueses pelo emancipador de
e em Byron encontram-se expressões semelhantes. Um
tanta gente e criador do Code Napoleon. Durante a época
passo mais adiante, e Napoleão é reconhecido como o Byron
da Restauração e mesmo depois apareceu uma vasta lite-
da política (ou Byron como o Napoleão da poesia). Essa
identificação só podia ser obra de byronistas autênticos,
mas não de aristocratas; a origem plebeia de Napoleão ter-
18) Dionysios Solomos, 1798-1857.
Edição das obras póstumas por K. Palamas, 2.a ed., Athenas, 1901.
II. J. H. Jenkins: Dionysios Solomos. Cambridge, 1940.
K. Lcvesque: Solomos. Atenas, 1945. 19) J. Deschamps: "La legende de Napoleon et la literature com-
1\ Iiiiscaris: Solomos. Paris, 1946. parée." (In: Revue de Literature Comparée. IX. 1929.)
1900 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1901

lhes-ia impedido isso. Aquela identificação é obra de ho­ guindo bem, escreveu análises psicológicas, clássicas. As
mens de origem burguesa que iriam ser membros da nova aparências iludem: o homem Beyle parece um filisteu frus­
aristocracia criada pelo imperador, se Napoleão ainda fosse trado, enfeitando-se a biografia com mentiras evidentes
vivo; continuando a ampliar, como Byron, os horizontes sobre façanhas heróicas, conquistas eróticas e o resto, ao
geográficos, conquistando a Espanha e a Itália, e abrindo passo que a obra literária de Stendhal dá ao leitor sem
perspectivas de ascensão social, fazendo oficiais de sar­ preconceitos literários uma impressão de romantismo muito
gentos e generais de oficiais subalternos — "Tout soldat forte.
français porte dans sa giberne le bâton de marechal de O romance mais elaborado, quer dizer, mais romanesco
France". Essa frase caracteriza o " E m p i r e " ; já não é ver­ de Stendhal é a autobiografia Vie de Henri Brulard; e os
dade sob Luís X V I I I , o rei da Restauração, na qual aquelas esforços dos beylistas mais devotados não conseguiram, em
perspectivas se fecharam. A expressão de resistência dos decénios de pesquisa, desemaranhar de todo o tecido de
aristocratas-plebeus napoleónicos é a obra de Stendhal, ro­ "rodomontades" e mentiras deliberadas em torno de uma
mântico italianizante como Byron, e não menos classicista vida bastante trivial de funcionário de retaguarda dos exér­
como o poeta inglês. citos napoleónicos, aproveitado depois no serviço consular
Stendhal ( 20 ) é o mais paradoxal dos autores: outros em cidadezinhas sem importância. Também é bastante ro­
levam uma vida burguesa, escrevendo sonhos românticos; mântico o romance "picaresco" de Julien Sorel, em Le
êle pretendeu levar uma vida romântica e, não o conse- Rouge et Le Noir, que pretende subir através das mulheres
e acaba, depois de um crime escandaloso, no patíbulo. E
não há nada mais romântico do que os amores de Fabrice
20) Henri Beyle, dit Stendhal, 1783-1842. dei Dongo, em La Chartreuse de Parme, as intrigas de corte,
Rome, Naples et Florence (1817); Essai sur Vamour (1822); Ra­
cine et Shakespeare (1823); Promenaães ãans Rome (1829); Le a salvação milagrosa, a paixão e a batina, a morte patética;
Rouge et le Noir (1830); La Chartreuse de Parme (1839); Chro- tudo isso está cheio de reminiscências de Manon Lescaut,
niques italiennes (1855); Vie de Henri Brularã (1890); Lucien
Leuwen (1895). da Nouvelle Héloise. Enfim, os crimes sinistros, nas Chro-
Edição por E. Champion e P. Arbelet, 34 vols., Paris, 1913-1936. niques italiennes, parecem passar-se na Itália fabulosa dos
Edição por H. Martineau, 77 vols., Paris, 1926-1937.
Edição de Rouge et Noir e Chartreuse por P. Jourda, 2 vols., Pa­ romancistas "góticos", do Castle oí Otranto e Mysteries of
ris, 1929-1933. Udolpho. Ninguém duvida, no entanto, da "classicidade"
E. Rod: Stendhal. Paris, 1892.
A. Chuquet: Stendhal-Beyle. Paris, 1902. da obra de Stendhal, que é mais do século das Liaisons
A. Paupe: La vie littéraire de Stendhal. Paris, 1914. dangereuses do que da época de Nòtre-Dame de Paris.
P. Hazard: La vie de Stendhal. Paris, 1927. *
A. Thibaudet: Stendhal. Paris, 1931. Nem sequer é classicidade no sentido "naturalista" do
a
A. Martino: Stendhal. 2. ed. Paris, 1934. "siècle d'or"; antes é o classicismo seco, um pouco esque­
Alain: Stendhal. Paris, 1935.
P. Jourda: Stendhal. L'homme et Voeuvre. Paris, 1935. lético, do século de Voltaire, justificando-se plenamente
F. C. Green: Stendhal. New York, 1939. a famosa frase: "En composant la Chartreuse, pour pren-
L. F. Benedetto: Arrigo Beyle, milanese. Firenze, 1943.
J. Prévost: La création chez Stendhal. Paris, 1945. dre le ton je lisais chaque matin deux ou trois pages du
II. Martineau: VOeuvre de Stendhal. Histoire de ses livres et de Code civil, afin d'être toujours naturel". Nas Chroniques
sa pcnsée. Paris, 1945.
M. Biirdòche: Stendhal, romancier. Paris, 1947. italiennes a sobriedade chega a ser artificial. Stendhal
II. Martineau: Le coeur de Stendhal. Paris, 1952. pretende sugerir que os acontecimentos mais extraordiná-
V. Hrombert: Stendhal ou la vue oblique. Paris, 1954.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1903
1902 OTTO M A R I A CARPBAUX
um crítico literário analisa um romance, e idolatrando a
rios são os mais comuns, dignos de serem narrados em arte — a música de Haydn, Mozart e Rossini, a escultura
estilo de Código civil ou de noticiário de jornal. H á nesse de Canova, a arte nas cidades e paisagens da Itália — com
raciocínio um equívoco. O Código Civil e o noticiário dos a paixão de um amante romântico e algo cego pelas ver­
jornais são se ocupam com a vida regular, e sim só com os dadeiras qualidades da amada. Não há, porém, contradição
incidentes a acidentes que a perturbam e lhe desviam os entre o imoralismo materialista e o esteticismo erótico de
caminhos normais. Justamente nesse sentido — "le style Stendhal. A contradição só existia enquanto Stendhal pre­
c'est 1'homme" — o estilo de Stendhal reflete a sua condição tendeu justificar a sua atitude com os argumentos da crí­
humana. A sua obra podia continuar na análise das paixões tica romântica, atacando Racine e elogiando Shakespeare.
que o século X V I I I iniciara; a sua alma podia ser a de Mais tarde, mais amadurecido, Stendhal reconheceu o ero­
um pequeno-burguês provinciano que pretende fazer, com tismo romântico em Racine e o ateísmo pessimista em
força, o papel de um Byron francês na Itália; mas a sua Shakespeare. Então, a fuga para a Itália, "país da beleza
vida era anormal e portanto romântica. e do amor" era a conclusão fatal para não sucumbir ao
A Revolução libertara-o da prisão moral da família pessimismo de uma religião da força que já não era pos­
e da província; a tantos outros provincianos franceses do sível praticar depois da queda de Napoleão. Entre os mui­
século X V I I I aconteceu o mesmo; mas sem as guerras tos exilados e emigrantes da época romântica é Stendhal
Stendhal teria ficado jornalista radical em Paris. Napoleão o único para o qual o exílio, na Itália, significava a felici­
tornou-se o seu destino. A Alemanha, Rússia, Itália não dade. A vida italiana de Stendhal é a continuação coerente
eão países que um francês do século X V I I I costumava vi­ da sua vida interrompida nos exércitos do imperador. In­
sitar. Stendhal visitou-os de maneira por assim dizer anor­ felizmente as aventuras eróticas de Stendhal eram tão
m a l : em função das guerras napoleónicas. E não chegou a insignificantes, senão imaginárias, como as suas vitórias
■"normalizar sua situação", porque Napoleão foi derrotado militares. O seu egoísmo teórico, elaborado como verda­
antes de Stendhal ter conquistado o "bâton de marechal". deiro sistema filosófico — o beylismo — tem algo de um
Dos ideais da Revolução só ficou a lembrança da força estado-maior sem exército. E r a preciso mentir para con­
material pela qual Napoleão os tinha levado através da servar a estima de si mesmo; mentir conforme todas as
Europa. Depois de Waterloo estavam os adeptos do impe­ normas da estratégia e tática e no estilo sóbrio, fidedigno,
rador derrotado em face de uma alternativa: entre um das proclamações do autor do Code Napoléon. Stendhal
•cepticismo letárgico, não acreditando em nada e descan­ começou a mentir em diários íntimos; continuou a mentir
sando em prazeres eróticos e estéticos, ou então a esperança em cartas, livros de viagem, autobiografia e — triunfo da
•de derrubar novamente, pela força material, o ptoder dos ficção — em romances, que são, conforme a expressão feliz
ineptos que constituem em todas as nações a grande maioria. de Léon Blum, as "autobiographies chimériques" de Sten­
E m Stendhal encontram-se vestígios desta e daquela solu­ dhal, homem nato para viver antes de 1789 e colocado na
ção: teoricamente, adotou o materialismo de Holbach e época da Restauração.
o pragmatismo imoralista de Helvétius, dedicando culto
A lucidez de espírito com a qual enfrentou esse destino,
especial à memória do herói que praticara essas teorias
é a raiz da sua arte psicológica: convicção maquiavelista
com a maior mestria; na vida, Stendhal aceitou o cepticismo
da permanência das reações humanas; condensação literária
vi ótico-estético, analisando a "cristalização" do amor como
1904 Orro MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1905

dos "pctits faits" de Leibniz e da psicologia associacionista serai compris vers 1880", tornando-se lugar-comum que vale
dos ingleses; uso dessa psicologia novelística para a apre­ a pena de uma análise. Quem foi que compreendeu a Sten­
ciação rnoral (no sentido dos "moralistas"), dos persona­ dhal "vers 1880"? Foram os decadentistas do "culte de
gens. Os romances de Stendhal são grandes experimentos moi", de cujo grupo sairá Barres, o professor da "énergie
de um behaviorista, estudando minuciosamente a conduta nationale". Aprenderam a ler Stendhal nos Essais de psy-
de homens e mulheres em situações extraordinárias. Do chologie contemporaine de Bourget, conservador que pre­
amoralismo de Maquiavel, através do pragmatismo imo- tendeu tonificar a burguesia decadente, recomendando-lhe
ralista de Helvétius, chega Stendhal a antecipar o imora- um tratamento de energia contra o evasionismo; com efeito,
lismo de Nietzsche que encontrará no romancista francês os romances de Stendhal, possibilidades vividas de uma
todas as suas descobertas psicológicas: o ressentimento, energia pote icial, não são evasionistas, mas tampouco ser­
a psicologia do homem-ator, o elemento dionisíaco na arte vem ao desejo de estabilidade do burguês tradicionalista.
— e as conclusões de conduta. É preciso confessá-lo: ape­ Stendhal é um homem contra o quietismo da Restauração,
sar de todas as proclamações idealistas e reservas mentais que seria o ideal de Bourget; é romancista de uma nova
da consciência religiosa ou laicista, o homem moderno, em burguesia em movimento, partindo da província, como o
geral, age assim como Stendhal representou o homem nos plebeu rousseauiano Julien Sorel, para conquistar Paris.
seus romances. A psicologia "estratégica" de Stendhal é Assim o compreendera Taine, como homem napoleónico
adaptação do maquiavelismo à vida moderna — e este é o contra a "société" do ancien regime, fugindo de Paris para
caminho "normal" para tornar-se burguês numa sociedade os acampamentos do exército imperial e, depois, para a
utilitarista. Stendhal não é apenas um espelho de moder­ Itália menos aristocrática, na qual um plebeu podia con­
nidade, mas também um espelho de normalidade. Os en­ quistar mulheres e obras de arte. A Chartreuse de Parme
redos românticos e sobretudo os desfechos românticos dos é a continuação de Le Rouge et Le Noir. Após ter "desro-
seus romances não desmentem essa tese. Os personagens mantizado" a Nouvelle Héloise, Stendhal transformou a
de Stendhal são naturezas excepcionais que acabam em Itália misteriosa dos romancistas "góticos" em campo de
mortes patéticas; isso quer apenas dizer que na época de manobras do novo homem do Code Napoléon e da estra­
Stendhal era extraordinário e acabou mal o que hoje é tégia psicológica. Fantasiou-se de Byron francês, mas não
normal e acaba bem. O romantismo desapareceu; mas o era aristocrata; do aristocratismo só tinha a lucidez clas-
Código Civil, seja desta ou daquela classe, sempre fica. sicista do século X V I I I que sobreviveu em plena reação
romântica nos oficiais, militares ou ideólogos, do burguês
Os romances de Stendhal são transfigurações do ma­
clássico Napoleão. Em Stendhal sobrevivem as ideias de
quiavelismo: inclusive a ambição do poder, polítieo ou
Napoleão, e os burgueses do "fin de siècle" só as redes-
erótico, e o desprezo da humanidade. O instrumento da
cobrirão para pressentir o novo homem do capitalismo mo­
transfiguração é a música. A atmosfera da Chartreuse de
nopolista que começou "vers 1880"; a época napoleônica da
Parme é a de Cosi fan tutte. Mas essa poesia musical não
burguesia. Neste sentido, Stendhal é muito mais moderno
podia ser compreendida durante o século de prosa, depois
do que Balzac, romancista da burguesia em ascensão. Veio
da morte de Stendhal.
diretamente do romance "gótico" e parece, por isso, mais
Os contemporâneos não o compreenderam; Stendhal romântico do que Balzac; na verdade é, no género burguês
íoi esquecido. É famosíssima a sua frase profética: "— J e
1906 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1907

do romance, um sobrevivente da época pré-burguesa. Sten- os essenciais — daí a substituição do romance pelo conto»
dhal é o único "clássico" do género moderno "romance". Deste modo, a ligação entre Stendhal e Mérimée é pura­
No romance, Stendhal não tinha, talvez não pudesse ter mente histórica. Como artista do conto — um dos maiores
sucessor; só no género menor da novela, já mais longe do do género — Mérimée é independente e sui geneiis; apenas,
"souffle épique" das campanhas de Napoleão. Mérimée ( 2 1 ) pagou por essa importância artística com certa deficiência
é o Stendhal menor do Napoleão menor, Napoleão I I I . É vital e poética. O Byron de salão do Segundo Império
o Stendhal da Espanha mas também da Córsega, e seria de é um grande escritor menor.
qualquer país em que as paixões são mais primitivas, em Os byronistas autênticos, por mais pessimistas que
que ainda há possibilidade para "conquistas". A sua atitude sejam, nunca são sentimentais. O sentimentalismo é o traço
em face da vida é mais calma do que a de Stendhal, mais característico dos byronistas falsificados, dos poetas do
a de viajante curioso ou de inspetor de museus — cargo "mal du siècle" ou "Weltscmerz". Aqueles são uns grandes
que desempenhou. É o bonapartista que viu a restauração indivíduos isolados; estes constituem a maioria compacta
do Império; mas como ditadura policial; daí ser êle o Sten­ dos poetas da época. Para compreender a divulgação enor­
dhal do conformismo político. O elemento "gótico" de me do equívoco com respeito à poesia de Byron, interpre­
Stendhal revela-se no autor de Carmem e Colomba pela tada como a de um Lamartine excêntrico, é preciso observar
disposição habilíssima dos efeitos trágicos, contrastados um fenómeno importante: não surgiu nenhum byronista
sabiamente com o fundo de uma narração seca, impertur­ sentimental na Inglaterra. São, todos eles, do Continente.
bável como o estilo do Code Civil. O pessimismo que Sten­ O fenómeno está ligado à diferença entre as fases da evo­
dhal evitou, aparece em Mérimée como fatalismo: os seus lução social. No Continente, a revolução industrial ainda
personagens não são sujeitos aos "petits faits" psicológicos, estava naqueles começos como na Inglaterra da segunda
mas bonecos de paixões absurdas. E m Stendhal, os desfe­ metade do século X V I I I ; em parte, na Europa oriental,
nem tinha começado. E a essa fase corresponde a melan­
chos trágicos são incidentes do destino adverso; em Méri­
colia pré-romântica, entre ossiânica e lamartiniana. A poe­
mée, julgamentos do Fado cego. Em Stendhal, a arte é a
sia do "Weltschmerz" ou "mal du siècle" é byronismo inter­
porta aberta para uma vida mais rica; em Mérimée, a arte
pretado à maneira pré-romântica. Os motivos íntimos são,
é um meio para fixar os momentos flutuantes da vida, e só
em parte, os dos poetas melancólicos de 1760. "But the
age of chivalry is gone. That of sophisters, economists,
21) Prosper Mérimée, 1803-1870. and calculators has succeeded; and the glory of Europe is
La Jacquerie (1828); Matteo Falcone (1829); La Chronique du extinguished for ever", disse Burke, explicando a situação
règne de Charles IX (1829) ; La vase étrusque (1830); Mcsaique
(1833); La vénus d'IUe (1837); Colomba (1840); Arsène Guillot de poetas que já não dispunham de mecenas aristocráticos;
(1844); Cármen (1845) etc. ficaram à mercê do público anónimo e do jornalismo. O
Edição das novelas e contos por H. Martineau, Paris, 1934.
H. Taine: "Prosper Mérimée". (In: Essais de critique et ã'hisioire. desespero desses pessimistas carece de fundamento filo­
5." ed. Paris, 1887.) sófico; é antes consequência do temperamento patológico,
Ch. Du Bos: Notes sur Mérimée. Paris, 1921.
) ' . Trahard: Prosper Mérimée et 1'art de la nouvelle. Paris, 1923. como em Lenau, ou então, de uma mentalidade blasée, como
!'. Trahard: La, vie de Prosper Mérimée. 4 vols. Paris, 1925-1931. em Musset, para a qual contribui a imitação da ironia
K,. líniuer: Der Stilwille Mérimée's. Genève, 1930.
K. .SrhiniUleiu-Lokis: Les dernières nouvelles de Prosper Méri­ aristocrática do século X V I I I , também sensível em Al-
mée. Iladen, 1949.
1908 OTTO M A R I A CABPBAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1909

meida Garrett. De maneira muito exterior imitam-se os •que todos os estilos modernos de poesia — do simbolismo
gestos de B y r o n : seu gosto paisagístico sobretudo entre até o surrealismo — encontraram no público, baseia-se na
os eslavos; o radicalismo satanista, em Musset, Lenau, Es- idolatria, dedicada àqueles supostos byronianos; e não
pronceda; e, em toda parte, o liberalismo político, bastante adianta a observação de que eles mesmos foram considera­
vago. O desespero por motivo político torna-se em certos dos, em sua época, como heréticos terríveis da poesia. O ve­
casos muito sério, constituindo estes poetas o grupo algo lho amor continua. A crítica literária do século XX preten­
diferente dos Berchet, Petoefi e Mickiewicz. Nos outros, de estirpá-lo: Musset e "tutti quanti" seriam pobres "rimai-
é antes a coincidência entre sofrimentos coletivos e dores lleurs", de uma trivialidade e sentimentalismo irremediá­
pessoais. Sendo a poesia do "mal du siècle" puramente veis, sem cultura do verso, "chansonniers" incapazes de um
subjetiva, não suporta outra classificação senão a psico­ pensamento sério; e quando tentaram poemas ambiciosos,
lógica conforme os temperamentos. Seria possível adotar narrativos ou filosóficos, teriam sempre revelado a banali­
a distinção entre "romantismo de lamentação" e "roman­ dade mais perfeita. Está certo que não são "poet's poets".
tismo de exaltação", proposta por Valbuena Prat a propó­ Na evolução da poesia moderna não desempenham o menor
sito de Espronceda, mas justamente em Espronceda encon- papel, e a história dessa poesia poderia ser escrita sem lhes
tram-se as duas modalidades juntas. E é frequente o caso citar os nomes. Não são pensadores nem artistas. Antes
de a melancolia e a excitação alternarem, à maneira da de tudo, não são B y r o n s : não têm nada de aristocrático
psicose maníaco-depressiva. Além disso, existem inúmeras nem de clássico. A sua poesia é plebeia — e aí está a
variações e nuanças, entre o cansaço da "jeunesse dorée", explicação do sucesso. O romantismo sério vive da poesia
d», Musset, e o satanismo afetado, de Lermontov. Prefere- popular que descobrira; mas o povo não gosta de poesia
se, por todos esses motivos, uma classificação puramente popular; exige poesia "nobre". Musset, Lenau, Prati, Es­
exterior, a geográfica, que tem a vantagem de demonstrar pronceda sabiam exprimir os sentimentos poéticos de "todo
a grande extensão desse movimento literário. Verifica-se o mundo", e acompanharam essa atividade com grandes
a existência de um "eixo" continental, composto de fran­ gestos, aprendidos no exemplo do nobre lorde inglês. Nesse
ceses, alemães e italianos, com repercussões na Escandi­ sentido é que a crítica justa não pode deixar de negar-lhes
návia; de uma ala ibérica, com repercussões na América o valor literário superior, reduzindo-os ao nível que lhes
Latina; e de uma ala eslava. convém; mas a justiça impõe acrescentar que nesse nível
E n t r e os poetas desse grupo encontram-se alguns dos existem outros valores poéticos, inferiores decerto, mas
mais famosos das suas respectivas literaturas: Musset, Le­ tão permanentes como certos valores superiores.
nau, Prati, Espronceda, Lermontov. Os meninos lêem-nos A personalidade literária de Musset (--) não apresenta
na escola; cultos e incultos sabem-lhes de cor uns versos; problemas artísticos nem filosóficos; só pessoais. É filho
formaram eles o conceito que o grande público tem de um
poeta, como sujeito idealista, generoso, boémio, pobre, me­
3,2) Alfred de Musset, 1810-1857.
lancólico e algo lunático, inútil na vida prática e objeto de Contes d'Espagne et ã'II:alic (1830); Namouna (1833); Rolla
comemorações póstumas. A divulgação enorme desse con­ (1833); A quoi rêvent las jcunes filies (1833); Les caprices de
Marianne (1833); Lorenzaccio (1834); Fantasio (1834); On ne
ceito é sem dúvida um grave prejuízo para a compreensão badine pas avec Vamour (1834) ; Premiares poésies (1835); Bar-
dos verdadeiros valores literários. Sobretudo a repulsa berine (1835); Le Chandclier (1835) ; II ne faut jurer de rien
(1836); Confession d'un cn/anl ãu siècle (1836); Un caprice
1910 OTTO M A R I A CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1911

da burguesia parisiense, vitoriosa em 1830; desde então, os-


o u a obra-prima da poesia de Musset, a balada Venise:
filhos dos banqueiros e industriais começaram a dar-se
ares de jovens aristocratas. Musset é o poeta da "jeunesse
"Dans Venise la rouge,
doréc". Das origens, da "ville", ainda conservam certa
Pas un bateau qui bouge,
ingenuidade na alegria e o gosto de zombar. Educação e
Pas un pêcheur dans l'eau,
autoconsciência criaram-lhes, porém, sensibilidade diferen­
Pas un f a l o t . . . "
te, nervosa, que se acredita de acordo com o sentimentalismo
inato do povo: "Vive le mélodrame ou Margot a pleuré".
O grande perigo dessa poesia fácil e encantadora reside na
Esse sentimentalismo, Musset sabe exprimi-lo com a faci­
falta de verdadeira ingenuidade; tornando-se intencional,
lidade de um "chansonnier" na esquina da rua, com tri­
torna-se falsa. Se a intenção é zombadora, resulta a poesia
vialidade semelhante talvez, mas não com vulgaridade;
para os jornais humorísticos, e desse modo, a Ballade à la
conserva o tom de causerie de moço bem educado. Desse
lune, que começa quase à maneira de Verlaine —
modo, sugere ao popular a ilusão de estar em companhia
da alta sociedade, e ao membro da sociedade, alta ou menos
"Cétait, dans la nuit brune,
alta, a ilusão de estar em contato com a alma popular de
Sur le clocher jauni
Paris. Nessa mistura, sui generis, de sentimentalismo e
La lune,
espírito mofador, de causerie e elegia, Musset é poeta, o
Comme un point sur un i . . . "
grande poeta de chansons que ficam como a parte mais
permanente da sua obra:
— perde-se, depois, em trivialidades. Quando, porém, a
intenção é sentimental, aparece a elegia, não menos falsa,
"Avez-vous vu, dans Barcelone, a do
une Andalouse au sein b r u n i ? . . . " ,
"Un souvenir heureux est peut-être sur terre
ou Plus vrai que le b o n h e u r . . . "

"Beau chevalier qui partez pour la guerre, ou, pior,


Qu' allez-vous faire
Si loin d ' i c i ? . . . " ; "Le seul bien qui nous reste au monde
E s t d'avoir quelquefois pleuré."
(1837); Poésies nouvelles (1852).
lídição por E. Biré, 9 vols., Paris, 1907-1908. Bastam esses versos, dos mais conhecidos, para caracterizar
A. Barine: Alfred de Musset. Paris, 1893. aquela poesia de Musset que sobrevive com a maior tena­
1,. Laioscade: Le théâtre d'Alfred de Musset. Paris, 1898.
1,. Sónhé: Alfred de Musset. 2 vols., Paris, 1907. cidade. Mas nem isso é injusto: essa poesia falsa é a
]■:. Ilenriot: Alfred de Musset. Paris, 1928. expressão adequada da vida falsa de Musset, jovem bon-
.1. Ohiirpcnticr: Alfred de Musset. Paris, 1938.
P. vau Ticghem: Musset, Vhomme et 1'oeuvre. Paris, 1945. vivant, adotando o grande gesto byroniano de aristocrata
II. I,cl'ebvre: Musset. Paris, 1955. desesperado, incapaz de manter-se no equilíbrio, perdendo-
1912 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1913

HC no jõ^o, no álcool e com prostitutas. Georges Sand,. elisabetiana, evidentemente superior ao Traitor de Shirley.
abníidonniulo-o, só executou o trabalho da "justiça poética" Musset é notável quando exprime, sem máscara, a sua
na irngédia; desta vez, um melodrama em que Musset "a verdade pessoal, "pequena, mas sua": "Mon verre n'est
plfiiró" em vez de Margot. pas grand, mais je bois dans mon verre."
Musset fêz várias tentativas de conferir um sentido Em geral, faltou-lhe para mais a personalidade. E r a
ao seu destino. Na Confession d'un enfant du siècle chegou máscara entre máscaras. Tornou-se grande quando ousou
a esboçar uma teoria "existencialista" do "mal du siècle",, representar a vida irreal de máscaras entre máscaras, nos
alegando vários motivos morais em vez dos sociais. Em "Proverbes". Peças como Barberine, Les caprices de Ma-
alguns poemas narrativos à maneira de Byron — Rolla, rianne, II ne íaut jurer de rien, On ne badine pas avec
Namouna, e no "drama" manfrediano La Coupe et les Lè- 1'amour, já foram caracterizadas como comédias eróticas de
vres — imitou os gestos titânicos e satânicos do inglês, Marivaux, representadas entre as decorações fantásticas de
mas nem sempre foi capaz de evitar o ridículo involuntário. Shakespeare. Síntese de Le jeu de 1'amour et du hasard e
O satanismo não era terreno propício para Musset; apa­ de As You Like It ou Twelfth Night. Convém acrescentar
recem trechos e desfechos vagamente moralizantes, vaga­ a atmosfera irreal dos contos de fadas dramatizados de
mente espiritualistas à maneira de Lamartine; e depois Cario Gozzi. A mistura fantástica de elementos trágicos
da grande crise com Georges Sand, Musset derramou-se e cómicos só era possível na irrealidade que significava
no sentimentalismo lamartiniano das Nuits, consideradas irresponsabilidade, a atmosfera própria de um homem como
como auge da sua poesia. Na história da poesia francesa, Musset. Essas peças, escritas sem a ambição de serem re­
as Nuits marcam antes uma fase reacionária, um recuo do presentadas e sem desejo de exibição narcisista, são as
romantismo. Em vez de dar estilo seguro e construção criações mais puras de Musset e das criações mais poéticas,
arquitetônica ao poema romântico — como Lamartine con­ mais perfeitas do romantismo europeu; a ironia meio trá­
seguiu nas Harmonies poétiques et religieuses — Musset gica dos "Proverbes" já está além do romantismo.
voltou ao espiritualismo vago dos classicistas-epígonos, sem Não é possível dizer muita coisa boa sobre a sucessão
restabelecer a solidez do verso clássico. As Nuits são pré- de Musset. Da sua poesia alimentar-se-á o sentimentalismo
românticas, poesia noturna, ossiânica; para serem grande de um século inteiro. Do seu teatro nascerá um romantismo
poesia, falta-lhes a "mensagem" — um crítico malicioso fantástico sem palavras, a opereta. Das novelas — a melhor
já observou que Musset é um "poete sans message". Só é Mimi Pinson — nas quais descreveu com certa veracidade
sabia fazer grandes "chansons". O seu pessimismo aris­ o seu ambiente, originar-se-á a vasta e falsa literatura de
tocrático e satanismo noturno são fantasias de carnaval "Bohème", de Murger até Puccini. No seu gesto, para
que se transformou em deboche e miséria moral. Não foi "épater le bourgeois", inspirou-se Petrus Borel ( 2 3 ), o
uma tragédia; só uma tristeza. Contudo, seria assunto para "lobisomem", visionário de falsidade evidente, leão da
uma tragicomédia; e Musset escreveu-a, simbolizando o "vida literária" mais vazia, precursor inofensivo dos Lau-
sru destino na transformação involuntária do idealista in-
cc-iiuo Lorenzino de' Mediei em traidor e devasso: é Lo-
ri'ii7.;iccio, chamado, com certa razão, a única peça shakes- 23) Petrus Borel, 1809-1859.
Rhapsodies (1832); Champavert (1833); Madame Putiphar (1839).
pc.ii iana do teatro francês, mas definido melhor como peça Edição (com biografia) por A. Marie, 5 vols., Paris, 1921.
E. Starkie: Petrus Borel, the Lycanthrope. London, 1954.
'"N' °'"''<> MARIA CARPBAUX HlSTÓBIA DA LlTERATUBA OCIDENTAL 1915
Irííimoiil c Jnrry. Mas justamente a existência e a lite- reza meio oriental, os costumes primitivos, e sobretudo a
intuiíi de Morei revelam que havia em Musset alguns ger- vida dos ciganos. Parece que Lenau introduziu os ciganos
nirH dii poesia noturna de Baudelaire. na literatura universal; possui algo da musicalidade da­
O "byronismo" alemão é um fenómeno difuso; é mais quele povo estranho. Eichendorff popularizou-se pela
fácil indicar influências ocasionais, em Platen, em Heine, música de Schumann, Moerike pela de Hugo Wolf, e até
até em Annette von Droste-Huelshoff, do que encontrar um Wilhelm Mueller recebeu a ajuda musical de Schubert.
byroniano completo. Só a atmosfera meio eslava da Áustria Lenau sobrevive sem isso; as suas poesias foram musicadas
era mais propícia. As Totenkraenze de Zedlitz ( 2 4 ), sile- com frequência menor, e quando foram, sem muito sucesso.
siano da fronteira com a Polónia, lembram, sem serem Porque a linguagem poética de Lenau é tão musical que
esmagadas pela lembrança, o Childe Haiold, do qual Zedlitz a música alheia só serve para perturbar-lhe os ritmos. Lenau
fêz uma tradução magistral. E Lenau (2B) nasceu na Hun­ tem algo de um cantor primitivo: grande é o seu poder de
gria. É um dos poucos poetas de língua alemã lidos em dar alma às paisagens, a lagos, florestas, montanhas, ventos,
toda a parte e traduzidos para todas as línguas. Essa sua ao mar; em toda a parte, na sua poesia, murmuram vozes;
popularidade baseia-se, em parte, em motivos semelhantes e o que se ouve quase sempre é o grande lamento da Na­
aos que causaram a popularidade de Musset: um recurso tureza que tem que morrer.
frequentíssimo da poesia universal — a coincidência entre
a Natureza e o "état d'âme" — é o único tema de Lenau, "Rings ein Verstummen, ein Entfaerben:
com preferência pela atmosfera melancólica do outono e W i e sanft den Wald die Luefte streicheln,
a correspondente melancolia do homem, melancolia que sein welkes Laub ihm abzuschmeicheln;
todo mundo sente e compreende imediatamente, sobretudo ich liebe dieses milde Sterben."
quando expressa em versos tão simples e acessíveis como
os de Lenau; versos desleixados, na verdade, mas o leitor Sempre o outono. Lenau, rico em vozes musicais, é pobre
comum não repara isso e na tradução o defeito desaparece. em símbolos: o Outono é o seu único recurso para simbo­
O outro motivo da popularidade de Lenau é o exotismo: lizar o "Weltschmerz", o "mal du siècle". Foi um Lamar-
nato na Hungria, descreveu com muita felicidade a natu- tine menor, mas pretendeu ser um Byron. Escreveu grandes
poemas narrativos — Savonarola, Die Albigenser; mas não
era capaz de manter a inspiração. O grande impressionista
24) Joseph Christian von Zedlitz, 1790-1862.
Totenkraenze (1827); tradução de Childe Harold (1836). cai continuamente em prosaísmos insuportáveis. Revela
O. Hellmann: Joseph Christian von Zedlitz, Dichterbilã aus dem toda a impureza da sua linguagem de improvisador musical.
vormaerzlichen Oesterreich. Leipzig, 1910.
Não existe quase nenhuma poesia de Lenau, nem das me­
25) 1802-1850.
Nikolaus Lenau (pseud. de Nikolaus Niembsch von Strehlenau), lhores, sem graves defeitos métricos ou até gramaticais.
Gedichte (1832); Faust (1836); Savonarola (1837); Neue Gedichte O leitor daqueles poemas narrativos não é recompensado
(1838-1840); Die Albigenser (1842). pela expressão feliz da tendência anticlerical e liberal. São
Edição por E. Castle, 6 vols., Leipzig, 1910-1923. artigos de jornal, penosamente rimados. Nem sequer a
E. Castle: Nikolaus Lenau. Leipzig, 1902.
L. Reynaud: Nicolas Lenau, poete lyrique. Paris, 1905. tendência é mantida: o liberalismo de Lenau é só livresco.
H. BLschoff: Lenau's Lyrik. 2 vols. Berlin, 1920-1921. Quando o pessimista, desiludido do mundo, fêz o gesto
I. Maione: La poesia di Lenau. Messina, 1926.
1916 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1917

chotcaubrianesco de emigrar para a América, voltou logo nhecendo em Prati o destruidor das tradições classicistas
decepcionado: em vez de encontrar índios românticos, pai­ da poesia italiana, o precursor da poesia sentimental e sen­
sagens majestosas, outonos americanos, encontrou uma sual de Pascoli e D'Annunzio. Neste sentido é Prati o único
jovem democracia, cujo utilitarismo comercial lhe causou romântico autêntico da literatura italiana do século X I X .
repugnância. Desde então, a melancolia de Lenau tornou-se, A semelhança de família entre os byronianos é tão
por assim dizer, profissional. Fez, intencionalmente, o papel grande que os mesmos elementos definem, em dosagem
de Byron americano. Chegou a fingir o louco. E este diferente, as personalidades mais diversas. O liberalismo
suicida da sua própria alma acabou, enfim, louco, no ma- patriótico de Prati, a poesia melancólica de Lenau, a ironia
nicômio. de Musset, tudo isso encontra-se em Almeida Garrett ( 2 7 ),
A grande tradição clássica da poesia italiana impediu o poeta lamartiniano das Folhas Caídas, o ironista sterniano
os excessos do falso byronismo. Prevaleceu na Itália o (ou heiniano) das Viagens na Minha Terra, o lutador e
lamartinianismo sentimental de Grossi e muitos outros, e orador do liberalismo português. Mas tudo isso não o
à mesma corrente pertence a Edmenegarãa de Prati ( 2 C ); define inteiramente. Garrett desempenha na literatura por­
o qual chegou, depois, a desempenhar as funções de poeta tuguesa o papel de Puchkin na russa: depois de um iso­
principal do patriotismo italiano, espécie de "poet laureate" lamento cultural de séculos, abriu as fronteiras, europei­
do Reisorgimento, nacionalista sem jacobinismo, liberal sem zando as letras e a política do seu país, criando uma obra
demagogia, o bardo da casa real da Savóia. Assim êle sobre­ multiforme, verdadeira enciclopédia de todas as tendências
vive, como poeta popularíssimo, nos livros de trechos se- literárias da sua época. Estava capacitado para isso por
letos para a leitura na escola. Prati, desprezado pelos certa ligeireza aristocrática, sem se preocupar muito com
intelectuais, é no entanto um "caso". Em estilo cada vez contradições. A primeira e principal arma de Garrett contra
mais byroniano tornou-se na velhice algo como um anti- o classicismo tradicional, petrificado, era o medievalismo:
byroniano. Em Armando, talvez o poema romântico mais escreveu um romance histórico à maneira de Walter Scott
importante da literatura italiana, chegou a criticar a atitude e — o que é mais importante — redescobriu a antiga poesia
sentimental e efusiva. Nas suas últimas coleções de poesias, portuguesa, de Bernardim Ribeiro e Gil Vicente. Mas foi
Psiche e Iside, mudou inteiramente. E m vez do patriota um bom liberal, se bem com atitudes de dandy, de Byron
sentimental aparece um idílico à maneira grega, revelando
sentimentos panteístas de pavor e de volúpia. A forma
27) João Batista da Silva Leitão de Almeida Garrett, 1799-1854.
mais sentida, mais clássica dessas últimas poesias, menos Camões (1825); D. Branca (1826); Lírica de João Mínimo (1829) ;
conhecidas, não podia iludir um crítico como Croce, reco- Um auto de Gil Vicente (1838) ; O Alfageme ãe Santarém (1842);
Frei Luís ãe Sousa (1844); Flores sem fruto (1845); O Arco de
—* SanVAna (1845-1851); Viagens na minha terra (184C); Falhas
caídas (1853) etc.
2G) Giovanni Prati, 1814-1884. Edição por Th. Braga, 28 vols., Porto, 1904.
Edmenegarãa (1841); Canti e oallate (1843); Armando (1868); Th. Braga: Garrett e o Romantismo. Porto, 1904.
Psiche (1876); Iside (1878). G. Le Gentil: Almeida Garrett, un grana romanl.iqne porlugais.
Edição das Obras escolhidas por G. Malagodi, 2 vols., Bari, 1916. Paris, 1927.
G. Gabetti: Giovanni Prati. Milano, 1911. O. Antscherl: Almeida Garrett und scine liezichungen zur Ro-
13. Croce: "II tramonto di Prati". (In: La Letteratura delia Nuova mantik. Heidelberg, 1927.
Itália, vol. I, 3.a ed. Bari, 1929.) J. Osório de Oliveira: O romance ãe Garrett. Lisboa, 1935.
1'. L. Manucci: Prati. Torino, 1934. A. Crabbé Rocha: O teatro ãe Garrett. Coimbra, 1944.
1918 OTTO M A M A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1919

de «alão. A flexibilidade do seu talento, que o tornou oposição da crítica: sobretudo os poetas espanhóis mo­
renovador universal da literatura portuguesa, só lhe per­ dernos reconheceram na popularidade de Espronceda um
mitiu realizar poucas obras de valor permanente — entre obstáculo às suas aspirações de uma poesia mais pura. Não
ns quais o drama romântico Frei Luís de Sousa. Só na é fácil ser justo para com o grande romântico espanhol,
poesia lírica chegou, nas Folhas Caídas, à expressão pessoal brutal, vulgar, retórico vazio e pretensioso, e contudo
e livre, continuando, depois de um intervalo de séculos, a
grande pela vitalidade indestrutível de poesias como "La
tradição sentimental da raça. Há muitos "vers de société"
canción dei pirata", "A la pátria", "A Jarifa en una orgia",
nas coleções de Garrett; mas o valor das suas melhores
" E l reo de muerte", "El canto dei cosaco". O começo de
poesias só se revela quando se pensa nos produtos dos seus
sucessores. uma apreciação mais justa encontra-se em Valbuena Prat,
distinguindo, em Espronceda, um romantismo de exaltação
A poesia de Almeida Garrett parece música de câmara,
e um romantismo de lamentação. Mas será preciso des­
suave e elegante, quando comparada com as ruidosas ma­
dobrar a distinção. Na exaltação de Espronceda, produto
nifestações poéticas de Espronceda ( 2 8 ) ; a violência da
do seu temperamento espanhol e da imitação do gesto dos
sua poesia é um traço especificamente espanhol, revelando-
românticos franceses, reside a força vital da sua poesia, e,
se também nas explosões de Larra. Mas Larra não é
ao mesmo tempo, a brutalidade de um boémio vulgar. As
byronista, senão nos gestos espetaculares; e o mesmo se
pode dizer de Espronceda. A sua vida confusa de revo­ lamentações de Espronceda encerram o seu tributo à época,
lucionário e herói de tragédias eróticas contribuiu para ao "mal du siècle"; ao mesmo tempo, revelam a substância
formar, a seu respeito, uma lenda que o tornou popularís- secreta, e permanente, da sua poesia. As comparações cómo­
simo. Espronceda encarnou os conceitos poéticos dos es­ das — com o satanista Byron, com os pessimistas Vigny
panhóis do século X I X de tal modo que os próprios cír­ e Schopenhauer, e até com o chansonnier político Béranger
culos académicos cederam, enfim, admitindo as suas poesias — não definem a poesia de Espronceda. O estudo minu­
nos livros didáticos, exaltando-se-lhe a memória como se cioso de Churchman já demonstrou a improcedência da
êle fosse superior a Goethe e Hugo. Não podia faltar a comparação com Byron: Espronceda não é um aristocrata
revoltado, e sim um democrata boémio. Tampouco é pos­
sível lembrar, a seu respeito, Béranger; o ideal político
28) José de Espronceda, 1808-1842. de Espronceda é menos definido, mais anarquista, e acaba
Sancho Saldaria o el eastellano ãe Cuéllar (1834); Poesias (1840);
El diablo mundo (1841); Blanca ãe Borbón (publ. 1870). na destruição de todos os ideais políticos, de
Edições /las poesias por J. Moreno Villa (Clásicos Castellanos,
vols. XLVII, L), e por J. Casales Mufloz, Madrid, 1923.
P. H. Churchman: "Byron and Espronceda". (In: Revue Hispani-
que, 1947). " . . . la quimera
J. Cascales y Munoz: José de Espronceda, su época, su vida y
sus obras. Madrid, 1914. Trás de que va la humanidad entera".
P. Salinas: "Revolt against Reality". (In: Reality and the Poet in
Spanish Poetry. Baltimore, 1940.)
.1. de las Cuevas: Génio e ingenio ãe José ãe Espronceãa. Madrid, Tampouco se compara o seu pessimismo ao de Vigny ou
I!I44.
K. Pujais: Espronceãa y Lorã Byron. Madrid, 1951. Schopenhauer. Distingue-se de Vigny pela confissão franca
1920 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1921

do desejo violento e desiludido como motivo da revolta Pastor Díaz ( 2 9 ), e no desespero tísico do português Soares
contra a realidade — de Passos ( 3 0 ), cujas baladas são algo como caricaturas da
balada pré-romântica. Do satanismo aparecem vestígios só
" . . . y encontre mi ilusión desvanecida do outro lado do Oceano, no brasileiro Álvares de Aze­
y eterno e insaciable mi deseo: vedo ( 3 1 ), em que há mais de Musset do que de Byron, e
palpe la realidad y odié la vida". no mexicano Acuna ( 3 2 ), que lembra, por instantes, a Bau-
delaire. Na península, o "byronismo" calmou-se, revelando
Tampouco existe no pessimismo de Espronceda o niilismo pelo conformismo político que nada o ligara, na verdade,
quietista, budista, de Schopenhauer; Espronceda é mestre ao aristocrata revoltado inglês. Na Espanha, Garcia Tas-
na descrição da realidade que amaldiçoa, e o valor dos seus sara ( 33 ) substituiu solenemente o modelo Byron pelo
poemas narrativos, "El estudiante de Salamanca" e " E l modelo Dante, que compreendeu como poeta da Europa
diablo mundo", reside na força de tornar visível até o católica e conservadora; pôs a sua poesia a serviço dos
invisível, de sugerir angústia pela descrição de cenas de ideais reacionários do seu amigo Donoso Cortês. Melhor
horror incrível, mas real. Onde, então, encontrar a fonte do que nas grandes odes retóricas aparece Garcia Tassara
dessa mistura esquisita de violência, desespero e fantasias na poesia erótica, intimista, de um último Don Juan, já
fúnebres? A violência de Espronceda, manifestada ainda burguêsmente moderado. Mesma moderação do indianismo
mais na vida do que na poesia, é a do antigo teatro espa­ romântico em Zorrilla de San Martin ( 3 4 ), orador e político
nhol; é êle como um herói trágico de Tirso de Molina ou
Mira de Amescua. O desespero do autor do "Diablo mundo"
29) Nicomedes Pastor Díaz, 1811-1848.
não é schopenhaueriano; é o dos grandes pessimistas espa­ Poesias (1840).
nhóis, de Quevedo, de Calderón, embora sem estoicismo J. Valle More: Nicomedes Pastor Díaz, su vida y su obra. Ma­
nem fé. E, com efeito, os modelos daquelas fantasias fúne­ drid, 1911.
bres, não convém procurá-los em Byron. A famosa cena 30) António Augusto Soares de Passos, 1826-1860.
Poesias (1856).
n a qual o herói do "Estudiante de Salamanca" vê em visão Edição por Th. Braga, Porto, 1908.
o seu próprio enterro, já se encontra na comédia El vaso 31) António Álvares de Azevedo, 1831-1852.
Obras (1853-1855).
de elección, San Pablo, de Lope de Vega e em Soledades Edição por H. Pires, 2 vols., S. Paulo, 1942.
de la vida y desenganos dei mundo, de Cristóbal Lozano, Hom. Pires: Álvares de Azevedo. Rio de Janeiro, 1931.
movelista popularíssimo ainda no século X V I I I . Espron- 32) Manoel Acufia, 1849-1873.
Poesias (1874).
iceda, espanhol autêntico, é o único romântico europeu que, Edição por F. Soldevilla, Paris, 1884.
em vez de se tornar medievalista, revivificou a tradição B. Jarnés: Manoel Acuna, poeta de su siglo. Móxico, 1942.
barroca. Daí a força dos seus símbolos. Mas para ser real­ 33) Gabriel Garcia Tassara, 1817-1875.
Poesias (1872).
mente poeta barroco faltava-lhe o espírito aristocrático; M. Méndez Bejarano: Tassara. Nueva biografia crítica. Sevilla,
daí a vulgaridade do seu romantismo. 1928.
34) Juan Zorilla de San Martin, 1855-1931.
No resto, o byronismo ibérico é pàlidamente elegíaco. Tabaré (1888).
A. Zum Felde: "Zorrilla de San Martin", (In: Crítica de la litera­
Assim na poesia noturna, quase pré-romântica, do espanhol tura uruguaya. Montevideo, 1921.)
1922 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1923

católico no Uruguai; o seu poema narrativo Tabaré, glo­ A obra do tcheco Karel Mácha ( 36 ) é a imagem mais
rificação do índio manso, representa, nos aspectos exterio­ completa do que os europeus continentais entenderam sob
res, o último espécime de um género tipicamente byroniano. "byronismo": um romance, Os ciganos, cheio de compli­
Em Portugal, Soares de Passos traduziu — e isso é sig­ cações fantásticas; e um poema narrativo, Maio, cujo herói,
nificativo — as poesias de Ossian; os pseudobyronianos um ladrão generoso que mata o sedutor da amada, é uma
figura "gótica", do tipo dos corsários de Byron. E morreu
revelam em toda a parte a tendência de voltar ao pré-
cedo. Pela ambiguidade — entre expressão romântica e
romantismo, que é a verdadeira raiz da sua poesia. Algo
cinismo na vida, Mácha lembra ao grande poeta sueco
de ossiânico também há num título como A lua de Londres
Stagnelius. Com respeito ao ternário poético, Mácha tem
(1858), do português João de Lemos, centro de um grupo
alguma semelhança com Lenau; mas supera-o muito pela
de "trovadores" católicos e partidários da monarquia abso­ luminosidade da linguagem poética; Ossian era, apesar
luta de D. Miguel. Veneraram como mestre a António de tudo, um modelo mais nobre do que a poesia jornalística
Feliciano de Castilho ( 3 5 ), considerado como o maior esti­ dos epígonos alemães; um modelo mais próprio para expri­
lista poético da língua portuguesa no século X I X e reco­ mir a melancolia eslava. Mácha exprimiu-a tão bem que
nhecido como poeta de um vazio absoluto. Tinham chegado o seu pessimismo — disposição de temperamento, forta­
a petrificar o romantismo como se fosse classicismo. lecido por convicções de filosofia neoplatônica e român­
tica — chegou a esconder o fundo social do tema "ladrão
O momento byroniano dos eslavos começa com uma
generoso". E m consequência disso, duas gerações de inte­
das expressões mais luminosas do pré-romantismo atrasado
lectuais tchecos desprezaram o "pessimista" cuja poesia
e acaba, já ao mesmo tempo, com uma das figuras mais
teria paralisado as energias nacionais; só os simbolistas,
sombrias da literatura universal. A diferença entre Mácha no fim do século, descobriram em Mácha o criador da
e Lermontov não é, no entanto, tão essencial como parece língua poética tcheca, o maior poeta dessa literatura nova.
à primeira vista. Dois desesperados que se exprimem no Hoje, o estudo intenso das suas metáforas e dos seus metros
mesmo estilo pré-romântico, próprio do byronismo dos revela em Mácha profundidades cada vez mais surpreenden­
eslavos, política e economicamente atrasados. Nem Mácha tes do pensamento e segredos de estilo poético que honra­
nem Lermontov deram-se conta da sua verdadeira condição; riam literaturas mais antigas e maiores.
escolheram a máscara byroniana para disfarçar o que devia
ser explicado. Em Mácha aparece mais a face melancólica,
ossiânica, de Byron, porque Mácha era plebeu; o oficial
36) Karel Mácha, 1810-1836.
Lermontov dá-se ares de aristocrata blasé e satânico. Os ciganos (1835); Maio (1836).
Edição por F. Krcma, 3 vols., Pinha, 1928-1929.
M. Zdziechowski: Mácha e o byronismo tcheco. Kraków, 1894,
(Em língua polonesa.)
F. Krejci: Mácha. Praha, 1907. (Em língua tcheca.)
UB) António Feliciano de Castilho, 1800-1875. K. Voborník: Karel Mácha. Praha, 1907. (Em língua tcheca.)
A Primavera (1822); Amor e Melancolia (1828) ; A Noite ão Cas- G. Mayer: Un poeta romântico cecoslovaco: Karel Mácha. Roma.
Irlo (1836) ; Traduções de Anacreonte, Virgílio, Ovídio, Molière 1925.
c Goethe, etc, etc. J. Mukarovsky: O "Maio" de Mácha. Praha, 1928. (Em língua
],. Kiimin d'Allard: La vie de Castilho. Paris, 1900. tcheca.)
\*i'2l OITO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1925

KNIÍIO semelhante, sempre em tom menor, serviu a poeta revolucionário, um servidor fiel do tzarismo. Antes
«i ÍHtc>i'i;il;is poloneses, perseguidos e expropriados na Ucrâ- é revoltado do que revolucionário; os seus choques com a
niii pelo governo russo, para exprimir a melancolia da sua Polícia do tzar, que o desterrou duas vezes para o Cáucaso,
(leciulència. O Mácha dessa "escola ucraniana" é Malcze- são explosões de um anarquista, pretendendo fazer o papel
wski ( 17 ) ; sua Maria, poema narrativo à maneira de Byron, do tzar no seu próprio ambiente. Nenhum dos byronianos
com elementos "góticos" e muita melancolia lamartiniana, do Continente europeu parece-se tanto com o próprio By­
significava o advento do romantismo polonês. O elemento ron. Em compensação, Lermontov só apresenta analogias
"gótico", exprimindo o pavor dos aristocratas expulsos, muito superficiais com seu contemporâneo Puchkin. Não
prevaleceu no Castelo de Kaniów (1828), de Seweryn adotou a linguagem classicista de Lomonossov, e sim a
Goszczynski, aproximando-se do romantismo vulgar. A linguagem pré-romântica, menos escultural e mais suges­
lembrança, transfigurada em idílio, eis a poesia "ucraniana" tiva, de Chukovski. Como poeta lírico é superior a B y r o n :
de Bohdan Zaleski ( 3 8 ) : os seus cossacos são nobres polo­ um poeta elegíaco, de musicalidade maior que a do próprio
neses disfarçados em trajes pitorescos; mas a poesia me­ Puchkin. Pré-romântica também é a sua preferência pelas
lancólica das estepes reconcilia com a falsidade do idílio. baladas populares. Pré-romântica é a sua grande descoberta
paisagística, a do Cáucaso. Do classicismo de Byron, ne­
O mesmo espírito apolítico domina os byronianos rus­
nhum vestígio. Em compensação é Lermontov um satanista
sos, pouco preocupados com a sorte tanto dos poloneses
consumado: talvez o único autêntico. De início estava
como dos ucranianos. Neste sentido é Lermontov ( 3 9 ), o
consciente dos maus instintos na sua alma, sem desapro­
37) Antoni Malczewski, 1793-1826. vá-los ou combatê-los. Retratou-se a si mesmo, com mestria
Maria (1825). absoluta, em Petchorin, o Don J u a n demoníaco e frio do
Edição por A. Brueckner, Warszawa, 1926. romance Um Herói do Nosso Tempo, ao ponto de antecipar
A. Przyborowski: Antoni Malczewski. Warszawa, 1877. (Em língua
polonesa.) na ficção o seu próprio fim em duelo. Lermontov, ro­
J. Ujejski: Antoni Malczewski. O poeta e o poema. Warszawa, mântico e pré-romântico na poesia, parece como homem
1921. (Em língua polonesa.)
um byroniano autêntico; e sempre foi interpretado assim.
38) Bohdan Zaleski, 1802-1886.
Poesias (1838); A Santíssima Família (1841); O Espírito da Es­ A crítica moderna, porém, dá muita importância ao drama
tepe (1841). O Baile de Máscaras, descoberto só em 1913 e levado à cena
J. Tretiak: Bohdan Zaleski. 3 cols., Kraków, 1911-1914. (Em lín­
gua polonesa.) por Meyerhold; tragédia grandiosa em estilo elisabetano,
39) Michail Jurievitch Lermontov, 1814-1841. revelando angústias à maneira de Beddoes. O byronismo
O baile de máscaras (1834); Balada do tzar Ivan Vasilievitch de Lermontov é a máscara de um tímido exacerbado. O seu
(1838); O Demónio (1838); O Noviço (1839); Um herói do nosso
tempo (1839); Poesias (1840). egoísmo demoníaco é um caso todo pessoal; mas é o caso
Edição por J. Abramovitch (com biografia), 5 vols., Petersburgo, de um grande poeta. Daí a realização admirável de Um
1911-1913.
E. Duchesne: Michail Jurievitch Lermontov, sa vie et ses oeuvres. Herói do Nosso Tempo, não um "homem inútil" como
Paris, 1910. Onegin e os heróis aristocráticos de Turgeniev e Tolstoi,
B. Eichenbaum: Lermontov. Leningrad, 1924. (Em língua russa.)
P. E. Chtchegolev: Estudo sobre Lermontov. Leningrad, 1929. mas um malfeitor consciente, antecipação do burguês ma­
(Em língua russa.) terialista do "nosso tempo", capaz de tornar-se fascista.
E. Piccard: Michail Lermontov, essai biographique. Neuchâtel,
1948. O tipo Lermontov é menos romântico e por enquanto mais
I. Andronikov: Lermontov. Moscou, 1951.
I'»l!(i (ti'i<> MAi(iA ("AHIMÍAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1927

ppiiiuiiiciiic (lo que os heróis pálidos de 1820. "Herói", n o com melancolia comovente a servidão dos gregos, até mor­
titulo <!<• Lvmioniov, é uma grande ironia. rer em desespero sem ter visto a liberdade grega nem um
A política é a questão crucial do romantismo byroniano. sabre turco. Mal libertados os gregos, chegou a vez dos
Sendo cie, no fundo, pré-romantismo, explica-se a indife- poloneses, derrotados na revolução de 1831, enchendo as
i CIH;;I política — ou antes incompreensão — da maior parte •capitais europeias com a miséria dos seus emigrantes.
dos byronianos, e as exceções confirmam a regra: o patrio­ A literatura "polonófila" é outro movimento internacio­
tismo de Prati é uma espécie de conformismo monárquico,, nal ( 4 2 ), no qual se alistaram Chamisso, Platen, Lenau, o
a excitação política de Espronceda é mais temperamental dinamarquês Hauch, e muitos franceses. O último amor
do que doutrinária, e entre os byronianos espanhóis e por­ dos diletantes do liberalismo será a Itália: de Byron e
tugueses há vários Conservadores. Um caso típico é a poesia Landor até os Browings e Swinburne, muitos poetas ingle­
política de Lenau: nos poemas narrativos manifesta pro­ ses, acompanhando a política da Inglaterra com respeito
gressismo anticlerical; no resto, só se apaixona pela liber­ à Itália, ao passo que os poetas dos outros países, inclusive
dade dos poloneses e outros perseguidos longínquos. O os mais liberais, só apreciaram na Itália os tesouros de
liberalismo dos byronianos é vago e indeciso, ocupa-se mais arte, as moças e o vinho.
de gregos e poloneses do que da própria nação. Sobretudo Muito diferente do diletantismo político dos român­
os gregos que naqueles anos lutaram heroicamente para ticos é a firmeza dos poetas de credo liberal, mas estilo
libertar-se da dominação turca, despertaram a mais viva sim­ conservador. Como contemporâneos dos românticos, muitas
patia, da qual o próprio Byron tinha dado o exemplo; vezes pessoalmente ligados a eles, esses "independentes"
simpatia, aliás, de pouca responsabilidade. Entre os par­ chegam a ser confundidos com seus amigos. É este o caso
tidários do "filhelenismo" ( 4 0 ), movimento europeu de en­ do dramaturgo húngaro Katona ( 4 3 ), cuja tragédia Bankbán
vergadura, encontram-se grandes nomes: o italiano Ber- trata o conflito, próprio da história húngara, entre a leal­
chet; Espronceda, com a poesia Despedida dei patriota dade para com a nação e a lealdade para com o rei que é
griego de la hija dei apóstata; Hugo, com várias peças das de dinastia estrangeira, o mesmo conflito que Grillparzer
Orientales (Canaris, Navarin); e muitos poetastros. O tratará, pouco depois, em Ein treuer Diener seines Herrn.
filhelenista mais característico e mais famoso, é o alemão A questão da cronologia é importante, porque a tragédia
Wilhelm Mueller ( 4 1 ) ; como poeta erótico e melancólico, d e Katona, esboçada em 1814 e publicada em 1821, é muitas
sabia acertar o tom popular em pequenos lieds inofensi­ vezes caracterizada como rebento do teatro romântico fran-
vos, inesperadamente monumentalizados, depois, pela mú­
sica de Schubert; e esse pequeno-burguês também cantou
42) R. F. Arnold: Geschichte der dculschcn Polcnlitcratur. Halle,
1900.
43) Jozsef Katona, 1791-1830.
40) B. F. Arnold: Der deutsche Philhellenismus. WiSh, 1896. Bankbán (1821).
41) Wilhelm Mueller, 1794-1827. Edição das obras e fragmentos por J. Abaíi, 3 vols., Budapest,
Lirder der Griechen (1821); Wanderlieder (1823) etc. 1880.
K(lição por J. T. Hatfield, Leipzig, 1906. P. Gyulai: Katona e o seu Bankbán. Budapest, 1883. (Em língua
1'h. fichuyler-Allen: Mueller and the German Volkslied. New húngara.)
York. 1891. E. Peterfy:0 "Bankbán" de Jozsef Katona. Budapest, 1887. (Em
H. Hukc: Wilhelm Mueller, sein Leben und Dichten. Berlin, 1909. lingua húngara.)
1928 OITO MAIUA CARPUAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1929

cês; ma» este só entrará na história literária em 1830, corra italianos (II re travicello), o espírito reacionário dos aris­
a "bataille d'Hcrnani". Na verdade, Bankbán é uma obra tocratas (Pretérito Pià che períetto dei verbo pensare), a
clnsHicisla, schilleriana, de grande força dramática, anteci­ versatilidade política dos caçadores de empregos públicos
pando a doutrina do liberalismo húngaro da segunda me­ (Brindisi di Girella) — o mesmo bom-senso toscano de
lado do século. Giusti revoltou-se contra a demagogia dos republicanos
Giuseppe Giusti ( 44 ) é o poeta do liberalismo italiano. (L'arruffa-popolo). Giusti era um moderado, na poesia ©
As suas poesias satíricas acompanharam a época triste na política.
da Restauração e o fracasso da revolução nacional e demo­ O verdadeiro romântico, em comparação com Giusti,
crática de 1848; Giusti morreu antes de ver a liberdade da fora Berchet ( 4 5 ), grande patriota sem aquele espírito de
pátria. Foi popularíssimo, como uma espécie de Béranger malícia, talvez sem muito espírito "san phrase", como revela
italiano; mas é muito mais fino, dispondo do estilo tradi­ a Lettera seminseria di Crisóstomo, na qual defendeu a s
cional e do espírito malicioso de um florentino nato. baladas de Buerger contra os classicistas; panfleto fraco
Quando a Itália estava livre e as suas sátiras tinham p e r d i d a e contraditório, mas de importância histórica como pri­
a atualidade, Giusti sobrevive nos livros didáticos como meiro manifesto do romantismo na Itália. Berchet deu o
modelo do "idioma gentil" da Toscana; e o gosto giustiano exemplo da sua doutrina, escrevendo "romanças", quer di­
tornou-se obstáculo à compreensão de uma poesia mais. zer, baladas de tendência patriótica. E é mesmo o maior
pura, não tendenciosa. Croce ousou atacar um tabu nacio­ poeta patriótico da Itália, superior a Giusti pela paixão
nal, caracterizando a Giusti como "poeta prosaico", abrindo e a Prati pela pureza do sentimento. Será fácil censurar-lhe-
exceção só para o poema Sant' Ambrogio, em que o patriota, cs lugares-comuns triviais; Berchet acertou, como Espron-
assistindo a uma missa em companhia de soldados austría­ ceda, o gosto popular, se bem um gosto popular diferente,
cos e eslavos, se eleva a uma visão dantesca da igualdade- mais elegíaco. A sua poesia descende, através de Buerger,
de todos os povos sob o jugo do despotismo; chegando a de Herder. E essa influência herderiana é decisiva na poe­
sentir simpatia com os inmigos da pátria. No resto, a sia romântica política, sempre quando a tendência torna
sátira de Giusti não tem a amargura de Berni nem o lirismo melhor definida: sobretudo entre os eslavos e outros povos
de Belli. Mas é superior pela sensibilidade moral. A forma da Europa oriental, que o popularismo herderiano desper­
clássica de Giusti não é acaso. O mesmo senso de disci­ tara, ensinando-lhes a diferença entre cidadania política
plina, harmonia e justiça, que se revoltou contra a hipocrisia e nacionalidade étnica.
dos Habsburgos (Ildies irae), as pretensões" dos régulos A influência de Herder entre as nações da Europa
oriental começara como folclorismo literário; transformou-

<l<1) Giuseppe Giusti, 1809-1850. 45) Giovanni Berchet, 1783-1851.


Vcrsi (1844); Scherzi (1845); Poesie (primeira edição completa Sul Cacciatore feroce e sulla Elconora di G. A. Buerger, lettera
por G. Carducci, 1861). semiseria ãe Crisóstomo (1816) ; / profughi di Parga (1824); Ro-
Ndição por F. Martini, Firenze, 1924. manzi (1826); Le Fantasie (1829).
A. Murasco: La sátira politica italiana e Giuseppe Giusti. Napoli, Edição por E. Bellorini, 2 vols., Bari, 1911-1912.
1!)07. A. Tolio-Campagnoli: Giovanni Berchet. Torino, 1911.
V. Murtini: Giuseppe Giusti. Firenze, 1909. E. Li Gotti: Berchet. Milano, 1933.
M. Croce: "Giuseppe Giusti". (In: Poesia e non poesia. 2.a ecL B. Croce: "Giovanni Berchet". (In: Poesia e non poesia. 2.a ed.
1 tiIll. 1 9 3 0 Bari, 1936.)
i<):io OITO MAMA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1931

Hf etn nacionalismo racial e, enfim, em nacionalismo polí­ O modelo era Béranger. No fim da vida, Petoefi já não
tico. Cclakovsky e o eslavo Kollar representam as duas foi nada byroniano, mas revolucionário nacionalista, ou
primeiras fases. O fato de o grande poeta húngaro Pe- antes nacionalista revolucionário. Também foi este, exa-
loeli ('"') ter sido eslovaco de nascimento — Petrovics tamente, o caminho do grande e infeliz poeta ucraniano
era o nome da sua família — talvez seja um motivo de Szewczenko ( 4 7 ), vítima da Polícia tzarista: do lied po­
predestinação; o destino tornou-o, porém, húngaro, quer pular, herderiano, através do poema narrativo byroniano,
dizer, membro de uma nação que, distinguindo-se nisso dos
à poesia conscientemente revolucionária. Poetas assim
tcheco-eslovacos, tinha tradições políticas bem definidas.
criam novas literaturas; e a glória nacional é fortalecida
O ponto de partida da sua poesia é o folclore, o lied po­
pela admiração dos estrangeiros, que apreciam mais a no­
pular húngaro; e à sua poesia folclórica deve Petoefi
vidade pitoresca. É difícil, senão impossível, avaliar o
a fama mundial. Nos seus lieds há a música dos ciganos,
o vinho de Tokaj, os pastores e ladrões de cavalos da valor absoluto dessa poesia.
puszta, da grande planície húngara, as montanhas da Ta- O nacionalismo literário dos eslavos sofreu o impacto
tra que a rodeiam e os grandes rios Danúbio e Tisza que da revolução de julho de 1830 com intensidade particular.
a percorrem, as cores de um Oriente pitoresco em meio É o momento em que o liberalismo russo se divide nos
da Europa, as danças apaixonadas, os amores furiosos ou
dois campos inimigos dos eslavófilos e ocidentalistas; o
elegíacos, e enfim a morte do soldado húngaro no campo
momento em que no nacionalismo tcheco desperta a cons­
de batalha. E Petoefi, o boémio, morreu realmente no
ciência política, primeiro no conservador Palacky, depois
campo de batalha pela liberdade da sua nação. É o poeta
no liberal Havlicek. A intensidade dessa repercussão era
nacional dos húngaros. O poema épico Herói János realiza
os ideais de Herder de uma poesia popular e primitiva, sobremaneira forte na Polónia, porque coincidindo com o
com autenticidade muito maior do que os produtos artifi­ fracasso da revolução polonesa de 1831 e seguida pelo con-
cias de Kollar e Malczewski. Até aí é Petoefi um pré- tato íntimo dos emigrantes com a França. Há um encontro
romântico. Um pré-romântico em outro sentido revela-se violento entre o popularismo de Herder e a democracia
na sua poesia erótica, algo ossiânica; e daí chega Petoefi cristã de Lamennais. Testemunha desse encontro é Hoene
imediatamente ao byronismo do Apóstolo e do romance
A Corda do Carrasco. Certo utopismo republicano não-é
alheio à sua poesia política; a ideologia não é a de Katona. 47) Taras Szewczenko, 1814-1861.
Kobzar (1840) ; Haiãamaki (1841); O sonho (1844); A grande
cova (1845); A criada (1845); Maria (1859); O artista (publ.
1887).
46) Sandor Petoefi, 1823-1849.
Versos (1844-1845); Herói János (1845); Ramos ãe Cipreste do Edição da Academia Ucraniana de Kiev (publicados os vols. II
Túmulo ãe Etelka (1845); Pérolas de Amor (1845); O Apóstolo e IV, 1927, 1932).
(1846); A Corda do Carrasco (1847). A. Jensen: Taras Szewczenko. Wien, 1916.
Edição por A. Haras, Budapest, 1894. S. Rieyckyj: Taras Szewczenko à luz da sua época. 2.a ed. New
Z. Fercnczy: Sandor Petoefi. 3 vols., Budapest, 1886. (Em língua York, 1925. (Em língua ucraniana.)
húngara.) A. Mijakovskyj: Taras Szewczenko e a sua época. 2 vols., Kiev,
V. Riedl: Petoefi. Budapest, 1923. (Em língua húngara.) 1925-1926. (Em língua ucraniana.)
J. Ilorvâth: Petoefi. 2.a ed. Budapest, 1924. (Em língua húngara.) D. Dorosenko: Szewczenko, le poete national ãe VUkraine. Praha,
Cl. Illye.s: Petoefi. Budapest, 1936. (Em língua húngara.) 1931.
W. K. Matthews: Taras Szewczenko. New York, 1951.
W\2 OITO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1933

Wrourtlcí ('"), matemático e filósofo meio louco, acredi­ no seu primeiro volume de baladas encontra-se uma versão
tando fino ;is reivindicações sociais de Lamennais e dos lituana da Lenore, de Buerger. Este pequeno poema, ao qual
ntopisiíis franceses se realizarão no império futuro que coube destino tão extraordinário na história da literatura
l l c n l e r prometera aos eslavos. Esse "messianismo" político moderna, também fora o ponto de partida de um W a l t e r
£ ;i úl lima esperança da aristocracia polonesa. A realização Scott, conservador, e de um Berchet, revolucionário. O
poética desses sonhos, eis o byronismo nacional de Mic- pré-romantismo do eslavo Mickiewicz evoluiu logo para o
kicwicz. pré-romantismo goethiano, quer dizer, wertheriano, dos
Os poetas poloneses preferem o "poet's poet" Slowacki; Dziady: título difícil de traduzir, significando o culto dos
Mickiewicz ( 40 ) não dispõe dessa música verbal, tampouco antepassados, dos lituanos pagãos: entre os espectros dos
do pensamento profundo de Krasinski. Contudo, o tradi­ mortos, na bruma da noite outonal, aparece ao poeta o
cionalismo literário consagrou-o o maior poeta da Polónia; espectro do suicida. O sentimento corresponde ao wer-
o Goethe polonês. O evidente exagero seria imperdoável, therismo patriótico de Foscolo; a ideia não está longe do
se Mickiewicz não tivesse escrito o poema épico Pan eslavismo de Kollar; o motivo é o desejo do aristocrata
Tadeusz, no qual o ideal goethiano de classicismo objetivo polonês, nascido na Lituânia, de identificar-se com o povo
está realizado. Mas justamente essa obra máxima do poeta da sua terra. O próximo passo é para o pré-romantismo
não é messianista, a não ser de maneira bastante remota. revolucionário de Schiller, cuja retórica patética enche o
A origem da poesia de Mickiewicz é o pré-romantismo; Konrad Wallenrod, espécie de Wilhelm Tell polonês. Ain­
da se trata, como em Schiller e em todo pré-romantismo,
de nacionalismo teórico; Mickiewicz não tomou parte ativa
48) Jozef Maria Hoene Wronski, 1778-1853.
na revolução polonesa de 1830. Nesse momento, o poeta
Prodrome du messianisme (1831); Document historique secret é byroniano do tipo dos "byronianos". Escreveu nesse es­
sur la révelation des destinées providentielles ães nations slaves tilo os pitorescos Sonetos da Criméia, seguidos pela terceira
(1851) etc.
S. Dickstein: Hoene Wronski. Kraków, 1896. (Em língua polo­ parte dos Dziady, toda byroniana; com a grandiosa des­
nesa.) crição de uma viagem invernal para a Rússia, com as fa­
49) Adam Mickiewicz, 1798-1855. mosas acusações contra Deus que abandonara a Polónia.
Baladas e Romances (1822); Dziady (p. II, IV; 1823); Sonetos
da Criméia (1826) ; Konrad Wallenrod (1828); O Livro do Povo O poema foi acompanhado do Livro do Povo Polonês e da
Polonês e da Emigração Polonesa (1832); Dziaãy (p. III; 1832V; Emigração Polonesa, no qual as esperanças democráticas e
Pan Tadeusz (1834).
Edição da Sociedade Mickiewicz, por J. Kallenbach, 12 vols., o estilo bíblico revelam a influência de Lamennais.
Lwów, 1911-1913.
P. Climielowski: Adam Mickiewicz. 2.a ed. vols., Warszawa, 1898. Até então, nada em Mickiewicz lembra ao classicista
(Em língua polonesa.)
M. Gardner: Adam Mickiewicz. London, 1911. Goethe. Críticos modernos aproximam o poeta polonês
M. Kridl: Adam Mickiewicz. Son role ãans la littérature polo- antes do "Sturm und Drang" de Lenz e, quanto às expres­
naise et sa place ãans la littérature monãiale. Paris, 1921.
S. Spotanski: Adam Mickiewicz e a sua época. 3 vols., Warszawa, sões fantásticas, de Zacharias Werner. Mas depois de 1831 r
1921-1922. (Em língua polonesa.) na retrospectiva, a pátria perdida começou a transfigurar-sc
S. Spotanski: Mickiewicz et le romantisme. Paris, 1923.
J. Kallenbach: Adam Mickiewicz. 4.a ed. 2 vols., Lwów, 1926. (Em A influência de Byron cedeu ao conservantismo democrá­
língua polonesa.) tico, patriarcalista, de Walter Scott; e para a expressão
M. C/.apska: La vie de Mickiewicz. Paris, 1930.
M. Wcintraub: The Poetry of Adam Mickiewicz. Hag, 1954. desses sentimentos nacionais ofereceu-se a forma do idílio
I<M OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1935

homérico, nssim como Goethe o renovara em Hermann und os utopistas. O utopista inglês é William Godwin ( B 0 ),
Dorothvn. Neste estilo, Mickiewicz escreveu o poema épico anarquista teórico, herdeiro das ideias de Helvétius e Hol-
P»n Tiulcusz, descrição da vida patriarcal na Polónia antiga. bach e companheiro de Paine; como este, foi de descendên­
í" "poesia ingénua" no sentido de Schiller; não sentimental, cia sectária, insuflando ao enciclopedismo francês o hálito
mas clássica. A obra mais objetiva que o século X I X criou. do sectarismo da "Terceira Igreja". Ao seu lado, sua mulher
Km Pan Tadeusz, Mickiewicz é realmente o Goethe da Mary Wollstonecraft Godwin ( 51 ) é a primeira feminista
Polónia. Aparece, porém, nesta epopeia homérica um per­ e partidária do amor livre, representando um anarco-comu-
sonagem indubitavelmente byroniano: o misterioso monge nismo sentimental, entendendo-se a palavra "sentimental"
Robak, em torno do qual se reúnem as energias nacionais no sentido de "instintivo", "irracional". Os motivos huma­
para a guerra nacional. Mas a ideia pela qual Robak é
nos e as expressões literárias do casal Godwin talvez não
movido, já não é o desespero byroniano; é a esperança
tenham sido dos mais elevados, mas quanto às ideias —
messiânica. Impõe-se, porém, uma distinção importante. Se
inclusive as ideias de liberdade sexual — é inconfundível
tivesse sido o messianismo teosófico de Towianski, ao qual
a relação com a poesia do seu contemporâneo Blake, na
Mickiewicz aderiu pessoalmente, o poeta ter-se-ia tornado
qual o coro celeste acompanha os sofrimentos dos míseros.
um Slowacki, teria escrito um Rei Espírito. Em vez disso,
Doutro lado existe nos Godwins um elemento vulgar que
Mickiewicz abandonou a poesia. Deu no Collège de France
não se podia exprimir senão em formas vulgares. O pró­
aulas sobre literatura eslava; morreu em Constantinopla
como conspirador político. Mickiewicz voltara ao nacio­ prio Godwin já gostava do romance "gótico" e sua filha
nalismo herderiano, mas num novo nível, superior: as Mary ( 52 ) escreveu um dos romances góticos mais famosos,
esperanças humanitárias, de Herder estavam substituídas Frankenstein, a história do herói "declassé", excluído da
pelas esperanças sociais do messianista Hoene Wronski. sociedade humana. A atmosfera de horrores encheu, aliás,
O fim de Mickiewicz era a utopia; e esse fato é de grande a casa dos Godwins: a história da família é a história de
significação. amores ilícitos e de suicídios. Suicidou-se a irmã de Mary,
A utopia dos românticos é um produto livresco. Não e Mary, por sua vez, tornou-se Mrs. Shelley após o suicídio
representa uma ideologia, uma racionalização da consciên­ da primeira mulher do poeta. Estão aí alguns elementos
cia de uma classe nova, mas o produto cerebral de uma para a compreensão de Shelley: aristocrata e humanista
camada "déclassée", aliada, só por isso, à classe nova. Assim "declassé", utopista generoso e fantástico, homem demo­
o messianismo polonês é uma religião livresca da aristo­ níaco e poeta celeste.
cracia polonesa, lutando ao lado da democracia contra o
nacionalismo eslavo que encontrara a sua primeira encar­
nação no tzarismo modernizado. Byron não é utopista, mas
no fundo um conservador, um membro da "chivalry" de 50) Cf. "Pré-Romantismo", nota 171.
líurke, em luta contra os "sophisters, economists, and cal- 51) Mary Wollstonecraft Godwin, 1759-1797.
A Vindication of the Rights of Women (1792).
culators". Os economistas e calculadores, isto é, a bur­ M. Linford: Mary Wollstonecraft. London, 1925.
guesia. Os sofistas, isto é, os intelectuais pequeno-burgue- 52) Mary Godwin Shelley, 1797-1851.
KCS, humanistas "déclassés", aliados do futuro proletariado, Frankenstein, or the Modem Prometheus (1818).
R. Glynn Grylls: Mary Shelley. Oxford, 1938.
I MO OITO MAMA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1937

Shelley (B!1) era uma natureza tão misteriosa e é um aos românticos. A sua Grécia é romantizada, modernizada;
poeta liio importante que a análise mais acurada se impõe. Prometheus Unbound revela — é difícil evitar o termo
O método as mais das vezes usado foi o biográfico; e os gasto — um classicismo dionisíaco. Shelley está continua­
rcMiiltados não são felizes. Deu-se atenção cada vez maior mente embriagado, de Grécia, Itália, arte, beleza, amor e
aos aspectos estranhos ou anormais da vida de Shelley, morte.
às revoltas, raptos, divórcios, suicídios em seu torno, uma
espécie de vagabundagem lírica e sexual ao ar livre da
"Make me thy lyre, even as the forest i s :
Itália clássica mas romantizada; a poesia de Shelley caiu
W h a t if my leaves are falling like its own!
nas mãos de admiradores extáticos e a sua vida nas mãos
de biógrafos profissionais, até sair a biografia famosa e T h e tumult of thy mighty harmonies
notória na qual já não se fala da sua poesia e só fica um Will take from both a deep, autumnal tone,
"Ariel", um anjo louco, ou antes um doido. Agora se reco­ Sweet though in sadness. Be thou, Spirit fierce,
menda o método tainiano: considerar a Shelley no seu My spirit! Be thou me, impetuous one!"
ambiente da Inglaterra cada vez menos humanista e cada
vez mais industrializada, um Shelley precursor poético da
Nenhum poeta antes ou depois sabia transformar assim
revolução social. É outro exagero. Mas é possível manter
as forças desregradas da Natureza em harmonia das esferas;
o ponto de partida: Shelley, que dispunha de considerável
e a mesma harmonia lírica desejava êle encontrar nas rela­
erudição grega, foi um humanista "déclassé". O seu classi­
ções entre os homens. Eis a raiz psicológica, lírica, do
cismo não pode ser comparado com o de Byron, admirador
utopismo de Shelley; mas a sua indignação contra as in­
de P o p e ; Shelley preferiu a "Spenserian stanza", cara
justiças sociais é menos autêntica. Shelley era um egoísta
encarniçado, usando e abusando dos homens e sobretudo
das mulheres; e na sua filosofia social prevalece o elemento
53) Percy Bysshe Shelley, 1792-1822.
Queen Máb (1813); Alastor or the Spirit of Solituãe, anã Other destrutivo, já desde o revolucionarismo confuso de Queen
Poems (1816); The Revolt of Islam (1818); Rosalina anã Helen, Máb, metrificação das idésias de Godwin em estilo de
with Other Poems (1819); The Cenci (1819); Prometheus Un-
oounã (1820); Epipsychiãion (1821); Aãonais (1821); Hellas "féerie" shakespeariana, com muito espinozismo mal com­
(1822); Poetical Pieces (1823); Posthumous Poems (1824).
Edição por R. Jungpen e W. E. Peck, 10 vols., London, 1926-1930. preendido e algo de teosofia swedenborgiana — "Intellec-
E. Dowden: The Life of Shelley. 2 vols., London, 1896. tual Beauty" e "Spirit of J o y " representaram-lhe deuses
A. Clutton-Brock: Shelley, Man anã Poet. 2.a ed. London, 1923.
O. W. Campbell: Shelley anã the Unromantics. London. 1924. vivos, longe do país dos puritanos. Shelley tinha, na poesia,
W. E. Peck: Shelley, His Life anã Works. 2 vols., London, 1927. pouca força plástica, tudo fica musical e nebuloso; mas
F. Stovall: Desire anã Restraint in Shelley. Durham N. C, 1931.
R. Bailey: Shelley. London, 1934. justamente por isso as suas criações informes parecem mitos
H. Read: In Defence of Shelley. London, 1936. que estavam esquecidos e agora ressurgem como fantasmas
C. H. Grabo: The Magic Plant. Chapei Hill, 1936.
E. Blunden, G. De Beer e S. Norman: On Shelley. Oxford, 1938. nas nuvens sobre o mar grego. Prometheus Unbound é um
N. J. White: Shelley. New York, 1941. mito assim, não indigno do título esquileano. Apenas, a
J. A. Notopoulos: The Platonism of Shelley. Durham, N. C, 1949.
K. N. Cameron: The Young Shelley. Génesis of a Raãical. New tragédia de Esquilo constitui a sanção dum fato social con­
Yiirk, 1950. sumado, e o drama lírico de Shelley é o manifesto de um
J Roo. The Last Phase. London, 1953.
N. Kocers: Shelley at Work. A Criticai Inquiry. Oxford, 1956. sonho utópico.
I9:ui O I T O MARIA CARPBAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1939

Jn está claro que um poeta assim não pode ter sido " . . . and hear the sea
o menino místico da lenda biográfica que os admiradores Breathe o'er my dying brain its last monotony."
tcciMíim. Em Shelley havia muito de um anjo, mas de um
«njo caído, de um demónio sinistro também, e isso em sen­ — como profetizando a sua morte, afogado nas ondas do
tido literal. Shelley é considerado como o poeta mais mu­ golfo de Spezzia.
sical da língua inglesa; e Nietzsche denunciará em toda Só se pode duvidar, na "intellectual beauty" que êle
música dionisíaca a falta de responsabilidade moral. Shelley cantou, do adjetivo. Evidentemente, Shelley era homem
não era "bom sujeito". A sua revolta na Universidade não de inteligência superior; mas até que ponto entrou essa
é um episódio meio engraçado, meio lamentável, mas sin­ inteligência no seu verso? Música — a essência da poesia
tomático da biografia dos psicopatas desajustados, dos de Shelley — está, por definição, fora dos critérios da
homens a-sociais. Shelley, aristocrata por nascimento e "Ratio". Alastor, o mais típico dos seus poemas pseudo-
homem rico, era "déclassé" por disposição mental, a-social filosóficos, transfiguração vaga de ideias da estética de
como o personagem Frankenstein que êle sugeriu a Mary Schelling, é de uma nebulosidade enervante; e o próprio
Shelley. O elemento "gótico" em Shelley está na sua bio­ Shelley definiu a sua poesia como "harmonious madness".
grafia; parece transfigurada na tragédia de estilo elisa- Um crítico malicioso falou de "Midsummer-night's dream
betano The Cenci, drama noturno, escrito por um descen­ revolucionário"; e T. S. Eliot atacou as expressões sobre
dente longínquo de John Webster. Shelley era demoníaco; amor e matrimónio, em Epipsychidion, como se fossem
pareceu angélico porque era belo e jovem — a sua vida imbecilidades perigosas. Com isso, o crítico não fêz outra
inteira foi o que em outros só é uma fase da adolescência; coisa senão voltar à opinião dos contemporâneos de Shelley,
e só a morte, que veio tão cedo, conservou em torno desse que se aborreceram com a sua vida dissoluta e violências
adolescente eterno o ar de pureza celeste, de céu italiano revolucionárias; consideraram, aliás, Byron muito mais im­
e "perpetuai Orphic song". Shelley não tem a pureza extra- p o r t a n t e ; e os byronianos do Continente até não tomaram
mundana de Blake; mas tem mais música humana. A sua conhecimento da existência do "Byron menor". A apoteose
inspiração é as mais das vezes só verbal e às vezes é vazia, de Shelley começou na época vitoriana. Depois, os sim­
sem sentido palpável; mas é inspiração. Em língua inglesa bolistas inverteram as posições: relegando Byron para o
não existem outros versos do encanto do Lament — segundo ou terceiro plano, endeusaram Shelley, o "poefs
poet". Hoje se dá este apelido com preferência a Keats,
"O W o r l d ! O Life! O T i m e ! cuja superioridade está firmemente — e, parece, definiti­
On whose last steps I climb, vamente — estabelecida. São sobretudo os críticos e lei­
Trembling at that where I had stood before; tores pós-vitorianos, os conservadores, que mantêm os
W h e n will return the glory of your prime? ideais da poesia romântica, que continuam a considerar
No more — O never more!" Shelley como auge do lirismo inglês, até como encarnação
do próprio espírito da poesia. Mas chegaram outros con­
servadores, T. S. Eliot, Leavis e os críticos americanos,
Em música transformou-se-lhe até o ruído das ondas que,
Cleanth Brooks, Blackmur, T a t e : estes falam, a propósito
nas Stanzas Written in Dejection near Naples, ouviu fe-
de Shelley, de sentimentalismo primitivo, música vazia sem
char-se sobre o seu corpo agonizante —
1 <M O Oiro MAIUA CARPEATJX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1941

inteligência poética, língua descuidada, ritmos falsos, e sentido a g u d o : foi estudante pobre, camponês improvisado,
enfim de "poesia de propaganda". São críticos reacionários, professor indisciplinado, jornalista suspeito, pastor militar
uentindo antipatia profunda contra o fogoso poeta da re­ de opiniões e conduta duvidosas. A formação humanista
volução. Eis o motivo por que os críticos socialistas dão e a revolta escolar de Shelley aparecem em Almquist na
ii|;oi n maior importância à poesia revolucionária de Shelley, epopeia cómica Foersoek till Hektors lefnad, quase blas­
sobretudo ao poema The Revolt oí Islam. Stephen Spender fema. O romantismo de Almquist é diferente, de origem
chegou a explicar a interpretação romântica de Shelley alemã e em parte francesa: o seu exotismo orientalista
como tentativa reacionária de eliminar a memória incómoda vem de Tieck e H u g o ; as novelas de Almquist são romances
do revolucionário que viveu as ideias de Godwin. Mas a "góticos", já parecidas com os contos de P o e ; a Tieck e a
situação de críticos como Spender é difícil, porque eles Hugo lembram os dramas líricos como Ramido Marinesco,
mesmos aprovam os critérios poéticos de Eliot. E, afinal, de uma musicalidade que justifica o apelido de "Shelley
Shelley não era marxista e sim utopista. da prosa". Ao mesmo tempo descreveu com realismo duro
a vida rural na Suécia, e esse realismo baseava-se em convic­
Na atitude revolucionária de Shelley há muito egoísmo ções sociais. Almquist, partindo de uma teosofia confusa,
de anarquista indisciplinado. J á se aludiu à opinião de swedenborgiana (Murnis), chegou, através da propaganda
vários de que Shelley, vivendo por mais tempo, não teria pelo amor livre (Det gar an), a opiniões avançadas, estu­
ficado tão angélico como parecia. Não se pode provar isso dando o pauperismo na Suécia e o pauperismo europeu,
senão muito indiretamente pelo exemplo de uma natureza aproximando-se de um socialismo pré-marxista. Foi mais
semelhante à qual o destino não concedeu o favor de uma longe. Na sátira Ormuzd och Ahriman esboçou uma visão
morte prematura. É o sueco genial Almquist ( 5 4 ), um dos maniquéia da história humana, tomando o partido das forças
personagens mais estrahos da história literária. Muito mais do Mal; e essa atitude "satanista", byroniana, não ficou
plebeu do que Shelley, plebeu mesmo e "déclassé" num teórica. Seguiram-se estudos sobre criminologia, entre os
quais se destaca um sobre o assassínio por veneno. Quando
Almquist fugiu, afinal, para a América, não foi por motivo
54) Cari Jonas Love Almquist, 1793-1866. de perseguição política; o usurário que costumava empres-
Foersoek till Hektors lefnad (1814); Murnis (1819; publ. 1845); tar-lhe dinheiro, morrera envenenado. O mistério em torno
Amorina (1823); Toernrosens Bok (1832-1835; contém as epo­
peias Schems-el-Nihar e Skoenhetens tarar; as novelas Urnen e de Almquist não foi nunca esclarecido por completo; inca­
Rcãan i Hermitaget; as tragédias Isidorus Tadmor, Ramido Ma- paz de viver em ambiente utilitarista, voltou para a Europa
rinesco, Drottningens juvelsmycke etc. etc.); Araminta May
(1838); Folklivsberaettelser (1838); Det gar an (1839); Ormuz sob nome postiço, morrendo miseravelmente num hospital
och Ahriman (1839); Amália Hillner (1840); Gabriele Mimanso de Bremen.
(1841-1842) etc. etc.
Edição por F. Boeoek, 33 vols., Stockholm, 1920-1923.
E. Kcy: Almquist. Stockholm, 1894. Aquele ambiente utilitarista da América em que um
K. Almquist: Cari Jonas Love Almquist. Stockholm, 1914.
í-í. Almquist: Cari Jonas Love Almquist. Stockholm, 1920. romântico como Almquist não podia respirar, contribuiu
A. WiTin: Cari Jonas Love Almquist, realisten och liberalen. decerto para tornar utópico o chamado movimento "trans-
M.ockholm, 1923.
II. Ol.vion: Almquist till 1836. Stockholm, 1937. cendentalista", entre os próprios americanos; e sua inspi-
I'M2 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1943

radora, Margaret Fuller ( 5B ), é uma figura shelleyana: mu­ dores. Quase messianistas, andavam profetizando um fu­
lher de formação humanista desambientada por isso mesmo; turo utópico da América; e a confusão aumentou com a
tradutora do Torquato Tasso, de Goethe, e das conversações influência de estudos místicos, do neoplatonismo e de
de Eckermann; juntando a essas influências classicista- Swedenborg. Todos esses elementos do transcendentalismo
idealistas alemãs a do idealismo revolucionário francês; são de origem europeia. Assim como a Renascença do
lutadora pela emancipação intelectual e social das mulhe­ mundo greco-latino renovou, no século XV, a vida espi­
res ; assim era Margaret Fuller que fundou em 1840 a revista ritual da Europa, assim a transplantação de filosofias e
Dial, órgão do transcendentalismo. Na Itália, terra de poesias europeias criou uma nova vida espiritual no am­
promissão dos shelleyanos, Margaret Fuller casou com um biente dos puritanos e comerciantes da Nova Inglaterra.
aristocrata revolucionário, o marquês Ossoli; e junto com Mas a Renascença do século XV também foi uma eclosão
êle encontrou a morte shelleyana nas ondas do golfo de de forças novas; e da mesma maneira o transcendentalismo
Livorno. A diferença está num certo realismo. Margaret dos europeizados significa ao mesmo tempo uma descoberta
Fuller escreveu um livro sobre os lagos entre os Estados da América, um realismo destemido, enfrentando as reali­
Unidos e o Canadá, a primeira grande reportagem do jor­ dades da vida no Novo Mundo e esperando, com otimismo
nalismo americano; colaborando no Tribune, sob a direção de utopistas, um futuro ilimitado. Uma Declaração de
do famoso Horace Greeley, tornou-se ela um dos maiores Independência espiritual.
jornalistas da época. Esse elemento realista é de grande
Os transcendentalistas eram românticos: panteístas
importância para compreender bem o "transcendentalismo"
sentimentais e estéticos que choravam e jubilavam com o
americano de 1840 e 1850 ( B 8 ). Os transcendentalistas de
Universo. O elemento americano neles é o otimismo entu­
Boston formaram um grupo fechado, um oásis no deserto
siástico que os levou a desprezar as autoridades teológicas
do comercialismo, utilitarismo e puritanismo intolerante.
do puritanismo, zombar do dogma funesto da predestinação,
Eram humanistas de formação, estudiosos de Goethe, meio
negar a verdadeira existência do Mal no mundo; já se
livres-pensadores antipuritanos, meio humanitários místi­
adivinha a "Christian Science", seita também domiciliada
cos. Impresisonados pelas doutrinas do socialismo utópico
em Boston, cujo grande jornal, The Christian Science Mo­
francês, fundaram em Concord, perto de Boston, uma coló­
nitor, defende até hoje os ideais culturais do transcen­
nia comunitária de anarquistas pacíficos e poetas sonha-
dentalismo. Boston, a cidade dos scholars, é a ilha na qual
os transcendentalistas se reuniram, no mar do materialismo
económico dos comerciantes americanos — esse ambiente
55) Margaret Fuller, marchesa Ossoli, 1810-1850. que Lenau e Almquist não suportaram. O transcendenta­
Woman in the Nineteenth Century (1844); A Summer on the
Lakes in 1843 (1844). lismo também tem sentido político: individualistas cultos
T. W. Higginson: Margaret Fuller Ossoli. Boston, 1884.
M. Wade: Margaret Fuller. Whetstone of Genius. New York, pretendem combater a deterioração da democracia ameri­
1940. cana de Jefferson pela plutocracia; até o agrarismo de
50) O. B. Frothingham: Transcendentalism in New England. Boston. Jefferson reaparece na pretensão de basear a sociedade
1903.
F. O. Matthiessen: American Renaissance. Art anã Expression futura em colónias de democracia rural. Os transcenden­
in the Age of Emerson and Whitman. New York, 1941. talistas são intelectuais "déclassés" pelo ambiente. São, to­
ir. A. Pochmann: New England Transcendentalism and St. Louis
llvfjclianism. Philadelphia, 1948. dos eles, uns esquisitões: o pastor William Channing, "o
I')ll O no MAHIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1945

IIONHO l)is|»o" no dizer de Emerson, pacifista e socialista festar tanta confiança no futuro espiritual dos Estados
«mi ifvolmiomirio; o educador Amos Bronson Alcott, Unidos, se não tivesse herdado algo do misticismo visio­
ii(lc|)to <lo Boehme e Swedenborg, que acredita na onipo- nário dos seus antepassados, que foram sectários meno»
tência da educação e cria o "culto da criança", tão tipi­ pacíficos; se não tivesse fortalecido o seu ideal de cultura
camente americano; o teólogo Theodore Parker, "o nosso individualista, aprendido em Goethe, e nas leituras de Plo-
Savonarola", ocultista, kantiano e apóstolo da abolição. tino e Swedenborg. Emerson está continuamente entusias­
Gcorge Ripley, outro teólogo, que abandonou a Igreja mado. O seu ponto de partida é a crítica da vida dos
unitarista, fundou em 1840, com Margaret Fuller e Emerson, americanos comuns, de uma vida sem ideais e sem sentido
o Dial, a revista do movimento, e, em 1841, a colónia espiritual; a eles dirigiu a famosa advertência: "Hitch
Brook Farm na qual se cultivaram o anarquismo agrário, your wagon to a star!" — e já está no reino celeste dos
a pedagogia pestalozziana e a música de câmara. Enfim astros, despreocupado das pequenas misérias lá embaixo,
veio Albert Brisbane que transformou a colónia em célula voando ao encontro de novos sóis na via-láctea do progresso
comunista conforme os princípios de Fourier. Todos eles espiritual infinito das almas. Essa fé no progresso é bem
herdaram dos antepassados puritanos o zelo apostólico de americana; e Emerson era bom americano: no meio das
pregar e agir. Na história da literatura americana conta suas visões extáticas nunca o abandonou o senso prático,
mais a sua atuação do que o que escreveram. Os escritores anglo-saxônico. Emerson considerava o mundo como muito
do transcendentalismo são os que renunciaram à ação: o jovem — os séculos do passado europeu perderam-se-lhe
individualista Emerson, o anarquista Thoreau. da vista em face dos séculos americanos por vir — e " T h e
experience of each new age requires a new confession, and
Emerson ( 57 ) é, antes de tudo, o grande educador dos
the world seems always waiting for its poet". No fundo,
americanos, "the friend and aider of those who would live
é esta a doutrina de Ranke de que todas as épocas estão
in the spirit" (M. Arnold). "Viver no espírito" não era
igualmente perto de D e u s ; o historiador alemão tira essa
porém fácil no ambiente americano, e o pastor unitarista
Emerson, suave e amável, precisava de muito otimismo para conclusão do profundo respeito ao passado; o pastor ame­
enfrentar o puritanismo obstinado e de coração duro da ricano chega a exigir "novas Bíblias". A revelação teísta
Nova Inglaterra. Talvez não tivesse sido capaz de mani- do cristianismo já não satisfaz, nem o deísmo seco dos
racionalistas; a "Over-Soul" do Universo é "which inspires
ali men", na religião da democracia americana. Haverá
57) Ralph Waldo Emerson, 1803-1882. uma nação de grandes homens, como Carlyle os sonhara —
Nature (1836); The American Scholar (31 de agosto de 1837); Emerson leu Goethe através de Carlyle — e eles transfigu­
Essays (1841, 1844); Poems (1847) ; Representative Men (1850);
Conduct of Life (1860); May Day and Other Poems (1868); So- rarão o progresso material; "Hitch your wagon to a star!",
ciety and Solituãe (1870). gritou o otimista Emerson, sem prever que nessa aliança
Edição por E. W. Emerson (Concord Edition), 12 vols., Boston,
1903-1904. os vagões podiam ser, v.m dia, mais poderosos do que os
n . Garnett: The Life of Ralph Waldo Emerson. London, 1888. astros. Emerson era um grande educador, mas não um bom
G. E. Woodberry: Ralvh Walâo Emerson. London, 1907.
M. Dugard: Ralvh Waldo Emerson, sa vie et son oeuvre. Paris, educador; arranjou uma boa consciência aos grandes capi­
1907. talistas, cheios de "ideais" e "estrelas". Um "friend a n d
O. W. Firkins: Ralph Waldo Emerson. Boston, 1915.
111. Perry: Emerson To-day. Princeton, 1931. aider", mas não um profeta.
U I.. Ilu.sk: The Life of Ralph Waldo Emerson. New York, 1949,
] <) 1(. O I T O MARIA CAPPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1947

No individualismo de Emerson havia muito egoísmo Natureza. Talvez a América não tenha tido poeta maior
<lc scliol.tr; foi homem fraco e sem paixões, livresco e do que esse poeta em prosa. Mas a sua prosa não é nada
condido IK~IO literato. "Ali men live by truth, and stand "poética"; é duma clareza absoluta (lembram-se as origens
in nccd of expression", dizia; e a expressão não era o seu francesas de Thoreau), de sabor epigramático. Visto assim
lado mais forte. Os seus Essays, antigamente tão famosos, é Thoreau o único escritor clássico do Novo Mundo. Ape­
são leitura atraente; mas são bastante confusos. As suas nas se pode objetar que um grego nunca teria pensado
poesias, às quais certos críticos modernos dão uma impor­ em abandonar a civilização e tornar-se bárbaro. Thoreau
tância evidentemente exagerada, são pálidas, sem vida na já foi comparado a um São Francisco, pregando aos bichos,
emoção, sem originalidade no pensamento, sem música no e a comparação estaria certa se Thoreau tivesse tido algo
verso. Não é poesia sugestiva. Mas Emerson é um homem da humildade de um santo católico. Mas Thoreau não era
sugestivo, e se já tem pouco que sugerir a nós outros, tinha humilde, nem santo, nem católico. Viveu nele o espírito
muito que sugerir aos americanos de 1840. O seu discurso rebelde do protestantismo, de um protestantismo extre­
tíe 31 de agosto de 1837, na Harvard University, "The Ame­ mado, protestando contra tudo, contra as convenções da
rican Scholar", chamado a "Declaração da Independência sociedade civilizada, contra as leis do Estado policiado,
da inteligência americana", é um documento histórico, tes­ pregando aos bichos e aos homens a desobediência civil,
temunho de uma alma nobre e sábia. Antes de tudo, Emer­ embora não violenta. Thoreau foi leitura preferida do
son como educador deu um exemplo de independência es­ Mahatma Gandhi. Todas as comparações malogram em face
piritual : foi um não-conformista sem sectarismo. dessa natureza proteica, sobretudo a comparação do anar­
Emerson pregou o não-conformismo; Thoreau ( 58 ) o quista Thoreau com o doutrinário da "volonté générale",
viveu. Retirou-se de Concord para a solidão completa, com Rousseau. Eles se parecem só no motivo íntimo da
vivendo com os bichos da floresta, os ventos da primavera, rebeldia: são dois inadaptados à vida. Rousseau evocou
com sol, chuva e neve, como um bárbaro ciclópico, alegre, todas as forças da Natureza para fundar uma nova socie­
exuberante, independente. Em Walden descreveu com gé­ dade na qual êle pudesse viver: e será a sociedade do
nio extraordinário de empathy, de sentir com a natureza, capitalismo. Thoreau retirou-se para as florestas por in­
e com bom-humor americano as suas experiências na flo­ capacidade de trabalhar e por aversão contra o pagamento
resta, experiências de um asceta jocoso e grande poeta da de impostos. Esse grande artista é um protesto vivo contra
as ordens estabelecidas do capitalismo.
Nota-se a impotência do protesto político de Thoreau,
58) Henry David Thoreau, 1817-1862. assim como a fraqueza vital do protesto religioso de Emer­
Essay on Civil Disobeãience (1849); Walden (1854); Excursious son. Os resíduos puritanos não permitem decisões kierke-
(1863); The Maine Woods (1864); Early Spring in Massachusetts
(1881) ; Summer (1884) ; V/inter (1888) etc. gaardianas. Ambos, Emerson e Thoreau, sabem evitar as
Walden Edition (com as cartas e diários), 20 vols., Boston, 1907. consequências extremas; devem a isso a paz das suas almas
F. B. Sanborn: Henry David Thoreau. 2.a ed. Boston, 1910.
M. Van Doren: Henry David Thoreau, a Criticai Study. Boston, e a aparência grega do seu estilo, escrevendo Emerson como
1916. um Píndaro em prosa e Thoreau como um Epicteto ameri­
J. 13. Atkinson: Henry David Thoreau, the Cosmic Yankee. New
York, 1927. cano. Com esse classicismo começou a famosa "genteel
II K. Canby: Thoreau. Boston, 1939. tradition" dos "brâmanes" de Boston e Cambridge: uma
J. I). Krutch: Henry David Thoreau. New York, 1948.
I')1ll Oiro MARIA CARPEATJX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1949

civilização de elite, fina e mais ou menos supérflua, como numa paisagem desolada, e em cima de tudo isso o olho
fiiduid.-i ou superestrutura de uma estrutura económica vigilante de Deus e da Igreja da predestinação. É um
menos fina. Um dos transcendentalistas, porém, pecou con­ milagre como o artista Hawthorne sabia transfigurar esse
tra a "genteel tradition", embora entrincheirando-se atrás ambiente em lembrança encantadora como de uma casa pa­
de um moralismo meio puritano, meio vitoriano: Natha- terna de todos nós. Mas resistiu ao poder de transfiguração
niel Hawthorne ( 5 a ). Era o puritano antipuritano. Na de Hawthorne o ar em torno das casas e dentro dos quartos
sua obra concentrou-se, como um foco, toda a herança psi­ fechados: o puritanismo, ao qual a Nova Inglaterra deve
cológica do puritanismo, a profunda consciência do pecado a honradez moral, a liberdade civil e a atmosfera irrespi­
recalcado; e a análise psicológica do romancista desvendou rável. Sempre há uma força sinistra, "gótica", no fundo
o segredo — " L o ! on every visage a Black Veil" — pre­ dos seus romances. Hawthorne é evidentemente antipuri­
parando assim a libertação futura. É este o papel histórico tano. É um moralista, buscando "casos de consciência",
de Hawthorne e a interpretação usual da sua obra; inter­ revelando motivos subconscientes. Mas não acredita na
pretação certa, mas incompleta. Os romances de Hawthorne libertação definitiva. É pessimista como os pastores da
conservam fielmente o aspecto da Nova Inglaterra na pri­ sua terra. O calvinismo não conhece o sacramento da Pe­
meira metade do século X I X : as casas sombrias com "sete nitência. A penitência é vitalícia como a da Hester Prynne
espigões", as modestas igrejas e escolas, pobres árvores em The Scarlet Letter. A vida inteira mal basta para espiar
a presença dos maus instintos na alma. E sempre es­
tão presentes, demonstra o Marble Faun, romance puri­
taníssimo, tanto mais puritano que a tragédia se passa em
59) N a t h a n i e l Hawthorne, 1804-1864.
Twice-Tolã Tales (1837, 1842) ; Mosses from an Old Manse (1846) ; Roma, descrita aliás com minuciosidade arqueológica. Para
The Scarlet Letter (1850); The House of the Seven GaVes (1851); onde Hawthorne olha, fosse mesmo para a Itália, descobre
The Snow-Image anã Other Twice-Tolã. Tales (1851) ; The Blit-
heãale Romance (1852); Transformation, or the Marble Faun êle os casos de consciência, irresolúveis.
(1860); American Note-Books (1868) etc.
Edição por G. P. L a t h r o p , 12 vols., Boston, 1883. Hawthorne era homem culto, grande conhecedor das
J . H a w t h o r n e : Nathaniel Hawthorne anã his Wife. 2 vols. Bos­
ton, 1884. literaturas estrangeiras; como contemporâneo do roman­
A. E. Schoenbach: "Beitraege zur Charakteristik Hawthornes". tismo, nada mais natural do que a escolha de formas român­
( I n : Englische Studien, VII, 1884.)
H. J a m e s : Hawthorne. 3. a edição. New York, 1887.
ticas para tratar aqueles assuntos americanos. Mas essas
M. D. Conway: Hawthorne. London, 1890. formas nem sempre serviram bem à intenção de Hawthorne.
G. E. Woodberry: Nathaniel Hawthorne. Boston, 1902.
P. E. More: Shelburne Essays, vols. I / I I . New York, 1904-1905. The Scarlet Letter é um romance psicológico; o caso tem
L. Dhaleine: Nathaniel Hawthorne, sa vie et son oeuvre. P a r i s , suas raízes no puritanismo do século X V I I ; então, Haw­
1905.
N. Arvin: Hawthorne. New York, 1929.
thorne escolheu a forma do romance histórico, à maneira
J. Lundblad: Nathaniel Hawthorne and the Tradition of Gothic de Walter Scott, para "enterrar definitivamente aquele
Romance. Cambridge, Mass., 1946.
R. S t e w a r t : Nathaniel Hawthorne. A Biography. New Haven,
passado"; mas sua arte evocou-o, revivificando-o para sem­
1948. pre. A maldição — "Maule's curse" no romance The House
M. Van Doren: Nathaniel Hawthorne. New York, 1949.
A S. Reid: The Yellow Ruff and the Scarlet Letter. Gainesville, of the Seven Gables — sobreviveu como angústia. É a
Fia., 1955. mesma angústia que inspira os melhores contos de Haw­
II. II. Waggoner: Hawthorne. A Criticai Stuãy. Cambridge, Mass.,
J!)55. thorne, moldados em E. T. A. Hoffmann, mas algo desfi-
i <>r.o O I T O MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1951

gurndoH pelo alegorismo. Os romances — crimes miste­ seriedade moral. Como Flaubert é Hawthorne um român­
riosos no fundo — renovam a tradição do romance "gó­ tico já além do romantismo. Pretendeu denunciar a som­
tico". Mas os dramas que se passam entre essas decora­ bra em seu redor e não conseguiu eliminá-la em si mesmo,
ções românticas, são dramas americanos — "something porque secretamente a amava. A arte — eis a sua utopia;
indigenous, something inescapably there", notou Trollope. mas êle a realizou.
Ilawthorne aproveitou-se da maneira "gótica" só para con­
Aos transcendentalistas faltava a força de agir, porque
seguir um recuo; o ambiente, seja a Nova Inglaterra do
a sua fé não era bastante firme. A tempestade idealista
século X V I I , seja a Roma dos turistas modernos, está des­
acabou em conversas eruditas e espirituosas dos "brâmanes"
crito com realismo consciencioso, ao passo que o mistério
de Boston e Cambridge, que enfim, resistindo à democra­
em torno do enredo serve para aliviar a pressão atmosférica
tização pela expansão económica e pelos imigrantes, se
— "These matters are delightfully uncertain", diz Hawthor-
tornaram cada vez mais conservadores. Mas fora das salas
n e ; a incerteza intencional é o "delight", o encanto dessas
universitárias e clubes "aristocráticos" reacendeu-se o idea­
obras sombrias em estilo grave, denso, ficando na memória
lismo dos puritanos, realizando o que aqueles tinham pre­
como lembranças de uma paisagem noturna, "déjà vu" de
gado. Como escritores, esses puritanos são muito menos
um sonho distante. The Scarlet Letter é, até Henry James,
importantes, até medíocres; como documentos humanos, as
a maior obra de arte da literatura americana.
suas obras ficam, e nem sequer se tornaram ilegíveis. Uncle
O fato de se tratar de obras de arte — coisa que o Tom's Cabin, de Mrs. Beecher-Stowe ( 60 ) dispensa o co­
puritanismo não admite — marca o fim próximo do puri­ mentário; cada um conhece o papel histórico, como arma
tanismo. Mas Hawthorne seria um escritor pobre, se a sua do abolicionismo, desse romance agressivamente sentimen­
importância se limitasse a esse papel histórico. Então, ele tal. Mas a autora se compreende melhor depois da leitura
seria só um romancista vitoriano de segunda ordem, obser­ dos contos nos quais descreveu, comovida, as cidadezinhas
vando atentamente a realidade, fazendo algumas descobertas da Nova Inglaterra puritana. Do mesmo modo, a poesia
menos agradáveis, e submetendo-se afinal ao "compromisso" tendenciosa do valente abolicionista W h i t t i e r ( 01 ) já não
moral que a "genteel tradition" impunha. Existem, porém,
os seus cadernos de notas, entre os quais se destacam os 60) Harriet Beecher-Stowe, 1811-1896.
Uncle Tom's Cabin (1852); Drcd (1856); The Ministcr's Wooing
American Note-Books. Ali é possível acompanhar a ela­ (1859); Olãtown Folks (1869).
boração dos seus esboços, as observações iniciais, a trans­ G. Bradford: "Mrs. Beecher-Stowe". (In: Portraits of American
Women. New York, 1919).
formação imaginativa, a condensação em símbolos que afinal C. Gilbertson: Harriet Beecher-Stovic. New York, 1937.
se tornam mars importantes do que as realidades psicoló­ F. Wilson: Crusader in Crinolinc: The Life of Harriet Beecher-
Stowe. Philadelphia, 1941.
gicas. Com um projeto de conto ou romance, tratando a
61) John Greenleaf Whittier, 1807-1892.
procura de um elixir que confere a imortalidade, com esse Poems (1838); Voices of Freedom (1846); Poetical Works (1850);
projeto ocupou-se Hawthorne durante anos sem encontrar Snow-Bounã (1866); Ballads o/ New England (1870).
Edição das obras poéticas por H. E. Scudder, Boston, 1894.
n forma definitiva. É um símbolo da arte. Hawthorne é, S.a T. Pickard: The Life and Lettcrs of John Greenleaf Whittier.
cxcetuando-se Henry James, o artista mais consciente da 2. ed. 2 vols., Boston, 1907.
A. Mordell: Quaker Militant: John Greenleaf Whittier. Boston,
literatura americana, o Flaubert da América. The Scarlet 1933.
t.vttcr é a Madame Bovary americana; mas de muito maior W. Bennett: Whittier, Barã of Freedom. Chapei Hill, 1941.
J. A. Pollard: John Greenleaf Whittier. Boston, 1949.
1%2 OITO MAMA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1953

intercHsn; ns suas poesias simples e simplistas da vida representou, na Comédie Française, Hernâni. Foi preciso
nova-inglcsa, a crítica moderna não é capaz de matar essas mobilizar toda a mocidade romântica para quebrar a resis­
peça» "antológicas", nem sequer pelo silêncio deliberado, tência dos "crânios académicos". O jovem Gautier apareceu
porque constituem parte integral da consciência americana. na plateia, vestindo o famoso "colete rubro" para "épater
Mas no momento da Abolição W h i t t i e r já estava refutado les bourgeois". A vitória foi ruidosa e completa. Não há,
pelo verdadeiro vencedor da Guerra da Secessão: o capi­ na história do romantismo alemão ou inglês, nada que se
talismo foi o herdeiro do abolicionismo. A utopia idealista possa comparar a essa "bataille d'Hernani". Em vez de
não morreu por isso. Encontrou outro "déclassé", prole­ subir ao céu uma lua romântica, levantou-se o sol do roman­
tário — "The world seems always waiting for its poet" — tismo francês.
que foi Whitman. O romantismo francês (° 2 ) distingue-se do romantismo
O estilo poético de Whitman, mesmo abstraindo-se da anglo-germânico como se distinguem dia e noite: Lamar­
sua forma métrica, já difere essencialmente de toda poesia tine, Hugo, Musset, por mais "românticos" que sejam, são
americana anterior; assim como o estilo poético de Swin- "claríssimos" — "Ce qui n'est pas clair, n'est pas français"
burne difere do seu modelo Shelley. A influência que — em comparação com os "Lake Poets" ou os estudantes de
operou essa modificação é a mesma, no inglês e no ameri­ Heidelberg. Os românticos ingleses e alemães são, em geral,
cano: a de Victor Hugo. Dentro da poesia de língua in­ evasionistas; os românticos franceses são, em geral, re­
glesa são casos isolados, assim como não há muitos hugo- volucionários que se conservam mais perto da realidade
nianos germânicos e eslavos. Em compensação, a poesia social. Em compensação, os românticos franceses entre-
de Hugo conquistou todas as literaturas neolatinas, domi- gam-se com volúpia a excessos da imaginação mais arbi­
nando-as inteiramente durante decénios e em parte até hoje. trária, até frisando o absurdo, sem consideração dos limites
Mas quem diz Hugo, diz romantismo francês. Aquelas do elemento fantástico, impostos aos ingleses e alemães pe­
diferenças nacionais só constituem um sintoma, entre ou­ las tradições medievais e folclóricas que cultivaram. Em re­
tros sintomas, do fenómeno de que o romantismo francês lação com essas particularidades do romantismo francês
é coisa totalmente diferente do romantismo anglo-germâ- deve estar um fato da cronologia. As datas decisivas do ro­
nico. mantismo francês são a publicação das Méditations poéti-
ques, de Lamartine, em 1820, e a primeira representação de
A diferença logo se revela pelo duplo começo do mo­
Hernâni, de Hugo, em 1830. Quer dizer, o romantismo
vimento: em 1821 e em 1830. O primeiro volume de poesias
francês está separado por decénios dos seus precursores
de Lamartine, de 1820, pertence a uma corrente literária
"pré-românticos" Rousseau e Chateaubriand; parece de­
que também existe na Inglaterra dos Lake Poets e na Ale­
pender principalmente de influências estrangeiras. Mas
manha dos medievalistas. É um romantismo conservador,
essas influências estrangeiras não estão muito certas. Os
catolizante e melancólico. Também é conservadora e ca-
inimigos modernos do romantismo na França gostariam de
tolizante a primeira fase de Victor Hugo. Mas esse mesmo
Victor Hugo já é, só nove anos depois, o chefe de um
movimento oposicionista, ao qual Lamartine também ade­
rirá. A data decisiva, a da independência do romantismo 62) J. Marsan: La bataille romantique. 2 vols. Paris, 1912-1925.
M. Souriau: Histoire áu romantisme en France. 3 vols., Paris
francês, é a noite de 25 de fevereiro de 1830, quando se 1927-1928.
I<).r)1l OITO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1955

CBli^nintizá-lo como produto de importação, alheio ao espí­ 1830, tanto mais desaparecem as diferenças entre os român­
rito nacional. Mas o que é que eles provam? ( 63 ) Que o ticos franceses e os clássicos do século X V I I . A poesia
romantismo anglo-germânico tem a prioridade cronológica, conservou a rima e o alexandrino, modificando-o de uma
c que, considerando-se as relações literárias internacionais, maneira — no alexandrino ternário de Hugo — que nos
n literatura francesa não podia deixar de acompanhar certas parece pouco importante. A língua poética torna-se mais
modas e aceitar certos assuntos. O byronismo de Hugo metafórica, isso é verdade; mas a eloquência não desapa­
e Musset é bastante duvidoso; e nota-se a feição puramente rece, quase ao contrário. Uma leitura sem preconceitos
pitoresca do romance histórico francês, alheio às intenções da poesia romântica francesa, depois de uma leitura de
de Scott. Atribui-se grande importância ao livro De 1'Alle- versos clássicos, não repara diferenças muito grandes da
magne, de madame Staèl; mas o único romântico francês entonação e modulação. Nas antologias e nos manuais mo­
que é romântico no sentido anglo-germânico, Nerval, des­ dernos, a poesia clássica convizinha pacificamente com a
cobriu na Alemanha e em si mesmo um romantismo do qual poesia romântica ( 6 5 ). A guerra literária de 1830 parece
madame de Staèl não tinha percebido nada. Os outros, hoje, sobretudo ao estrangeiro, como uma briga em família.
Lamartine, Vigny, Hugo, Musset, não sabiam a língua
O romantismo francês é bem francês. Mas onde se
alemã; e Les Burgraves, de Hugo, revelam, a respeito da
encontram as suas fontes francesas? Chateaubriand deu-lhe
Alemanha, conceitos tão estranhos como Hernâni e Ruy
muito, mas justamente êle era realmente um intermediário
Blas quanto à Espanha. Das literaturas estrangeiras fala-
com a literatura inglesa, se bem que o tipo de René tenha
se muito nos manifestos do romantismo francês. Mas as
a prioridade cronológica sobre os heróis byronianos. O
doutrinas estéticas do mais famoso desses manifestos, do
elemento romântico original de Chateaubriand já está, no
prefácio de Cromwell, de Hugo, são bem particulares: a
germe, em Rousseau. Mas o romantismo francês não é
teoria da mistura de "le grotesque et le sublime" — intei­
ramente diferente do "double plot" elisabetano — não tem rousseauiano, senão em um ponto: no radicalismo político
antecedentes no estrangeiro ( 6 4 ). Os românticos aplaudi­ e social. Parece que esse radicalismo é a diferença essen­
ram quando Stendhal opôs Shakespeare a Racine; mas cial que distingue o romantismo francês do romantismo
Hugo, Vigny e Dumas père não imitaram o teatro elisabe­ anglo-germânico. Só o romantismo francês criou utopias
tano; e a comédia shakespeariana de Musset, intimamente socialistas; e Hugo foi utopista durante a vida inteira. O
afrancesada aliás, é um caso individual sem consequências utopismo romântico, que existe em outra parte como seita,
literárias. Nem a luta espetacular contra as três unidades é na França um movimento literário tão grande que quase
pseudo-aristotélicas levou a liberdades cénicas excessivas; se identifica com o romantismo inteiro ( 6 6 ). Uma das cau­
quando muito, as inovações consistiram em maior fidelidade sas do utopismo literário na França é a falta de tradições
histórica das decorações e costumes, coisa que Voltaire já medievais e folclóricas, destruídas não pela Revolução mas
pedira timidamente. Quanto mais tempo passa depois de pelo classicismo do século X V I I . Chateaubriand tinha lem­
brado a Idade Média; mas dela só existiam as catedrais.

(!3) L. Reynaud: Le romantisme. Ses origines anglo-germaniques. 65) P. Moreau: Le classicisme ãu romantisme. Paris, 1932.
1'urls, 1926. 66) R. Picard: Le romantisme social. New York, 1944.
(14) M. Souriau: La Préface de Cromwell. Paris, 1897. D. O. Evans: Social Romanticism in France. Oxford, 1952.
i •):.() OITO MAIIIA C.AHPIÍAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1957

Nflu /• < imviíKente ;i tese de Jacoubet, conforme a qual a Michelet são, ao mesmo tempo, os grandes utopistas. Apli-
«idlçrto diiíi poesias provençais por François Raynouard cando-se a famosa distinção de Coleridge entre "fancy" e
(IHKi IH.M) e a reedição das versões de romances de ca- "imagination", pode-se afirmar que os chamados "excessos
vnlin i.i do eomte de Tressan (1823) teriam exercido influên- arbitrários" do romantismo, sobretudo em Hugo e Michelet,
< in decisiva sobre o romantismo ( 6 7 ) ; e da suposta influên- os dois grandes utopistas e representantes da "fancy", são
cin de Joseph Michaud, autor de uma Historie des Croisades mais raros em Lamartine, que se dedica à política só depois
(1812/1825), não vale a pena falar. A "Idade Média" dos de ter publicado as suas obras poéticas mais importantes, e
românticos franceses é uma deformação, às vezes carica­ nos apolíticos Vigny, byroniano autêntico, e Musset, pseu-
tura, dos medievalismos estrangeiros; é mera moda literária. dobyroniano, que deu vivas ao "mélodrame ou Margot a
Nesta altura já é possível fazer uma distinção mais pleuré", mas não escreveu melodramas. Essa distinção des­
exata entre as diferentes influências estrangeiras. Um cri­ mente a unidade do romantismo francês. O que geralmente
tério é fornecido pelo teatro. Lamartine, que era um "Lake é chamado assim, é obra de Hugo e Michelet e dos que lhes
Poet" francês, fêz só uma tentativa dramática: mas o seu seguiram o caminho; Lamartine, Vigny, Musset pertencem
Saul (1818) estava inspirado na tragédia classicista de Al- a outras correntes; e Nerval, do ponto de vista da história
fieri. O treatro de Vigny, admirador sincero de Shakespea­ literária, não é francês.
re, foi outro fracasso; menos Chatterton, que é um drama-
Ihão tendencioso, embora não sem valores líricos. Musset O romantismo francês, nesse sentido mais estreito, é
não escreveu para o teatro real; o êxito mais tarde, dos utopista como o de Shelley, de Almquist e dos transcen-
"Proverbes" pertence à história da poesia, se bem que poesia dentalistas americanos; Almquist estava diretamente sob a
em prosa. Hugo e Dumas père, assim como os seus atôres influência de Hugo, e os descendentes poéticos de Shelley
principais, Frédérick Lemaitre ( 67_A ), Bocage, madame Dor- e Emerson também eram hugoanos: Swinburne e W h i t -
val, não tinham aprendido a arte cénica em Shakespeare, man. Mas na Inglaterra e América trata-se de pequenos
mas no "mélodrame", isto é, no dramalhão dos teatros dos grupos. Na França, os utopistas "déclassés" constituem uma
subúrbios parisienses, nas peças menos românticas do que classe da sociedade. Com efeito, a utopia francesa de antes
romanescas de Guilbert de Pixérécourt e Ducange ( 6 8 ). Aí de 1848 é pré-socialismo pequeno-burguês. Contra a Restau­
está a fonte nacional do "pitoresco" e "arbitrário" no teatro ração burbônica, a burguesia liberal e a pequena-burguesia
romântico francês, e até a da teoria do "grotesque et subli­ democrática ainda estiveram unidas; mas a vitória da bur­
me". Nota-se o elemento pitoresco e melodramático na his­ guesia liberal pela revolução de julho de 1830 já significou
toriografia de Michelet. E esses melodramaturgos Hugo e ao mesmo tempo a derrota da pequena-burguesia democrá­
tica. Desfez-se a aiiança. E no mesmo ano de 1830, o
(57) H. Jacoubet: Le comte de Tressan et les origines du genre trou- romantismo, até então pàlidamente católico e monárquico,
badour. Paris, 1923.
H. Jacoubet: Le genre troubaãour et les origines de romantisme. desfralda a bandeira da revolução: da literária e da política.
Paris, 1929. Eis o sentido social da "bataille d'Hernani", que precedeu
(17 A) B. Baldick: La vie de Frédérick Lemaitre. Paris, 1961. de quase meio ano o acontecimento político; fenómeno
(IU) P. Ginisty: Le mélodrame. Paris, 1911. frequente na história das "superestruturas" que não obe­
A. l,iioey: Pixérécourt anã the French Romantic Drama. Toron­ decem ao toque do relógio político.
to, 1928.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1959
jijf.ll OTTO M A R I A CARPEATJX

A grande figura da transição é Michelet ( 6 8 ), o Hugo Viço, que Michelet traduziu. A História de Michelet é
<ln prosa. Michelet é um escritor de primeira ordem, um fenómeno coletivo, visto através de um temperamento ro­
do» maiores da literatura francesa. Viu os acontecimentos mântico, melodramático, de um descendente de jacobinos.
A evolução é exatamente a de Hugo — do medievalismo à
do passado como numa visão ou alucinação, como cenas
Terceira República — e coincide, no ponto crítico, com a
simbólicas do grande drama da história francesa, e descre-
apostasia de Lamennais ( 7 0 ), abandonando a Igreja e trans­
veu-as não como testemunha, mas como visionário, com
formando o tradicionalismo, quer dizer, o coletivismo reli­
muita imaginação e algo de "fancy". A "résurrection inté-
gioso, em coletivismo democrático e socialista. Mas será
grale" do passado, esse objetivo das suas atividades histo­
um socialismo romântico, utópico.
riográficas, não é um resultado acessível à ciência; exige
mesmo a colaboração da poesia; e Michelet era sobretudo Victor Hugo ( 71 ) é um colosso que desafia as defi­
um poeta sincero, apaixonado pelos seus ideais democrá­ nições.
ticos de um pequeno-burguês parisiense, filho de um pro­
prietário de oficina tipográfica, arruinado pelas leis da
ditadura napoleônica. Michelet não era capaz de mentir. 70) Cf. "Os pontos de p a r t i d a do romantismo", n o t a 48.
Por isso é significativo que conseguiu a "réssurrection 71) Victor Hugo, 1802-1885. (Cf. "Romantismos de evasão", n o t a 58.)
intégrale" só naquela parte da sua obra que trata da Idade Han d'Islande (1823); Odes et ballades (1826); Cromwcll (1827);
Les Orientales (1829) ; Le ãernier jour ã'un condamné (1829);
Média; a partir de 1789, transforma-se em "história polí­ Hernâni (1830); Les Feuilles d'automne (1831); Marion Delorme
tica", isto é, vira tendenciosa e até panfleto. Em certo (1831); Nôtre-Dame de Paris (1831; Le Roi s'amuse (1832);
Lucrèce Borgia (1833); Marie Tudor (1833); Les Chants ãu cré-
sentido, muito particular, Michelet é medievalista. Mas puscule (1835); Angelo (1835); Les Voix intérieures (1837); Ruy
a sua Idade Média não é a pitoresca dos discípulos de Blas (1838); Les Rayons et les ombres (1840); Les Burgraves
(1843) ; Douze discours (1851); Les Châtiments (1853); Les Con-
Walter Scott, nem a Idade Média feudal-católica dos ro­ templations (1856); La Legende des Siccles, I (1859) ; Les Misé-
rables (1862); Les Chansons des rues et des bois (1865); Les tra-
mânticos reacionários, e sim a época na qual o povo da vailleurs de la mer (1866); UHomme qui rit (1869) ; VAnnée
França estava unido em torno de ideais comuns — uma terrible (1872); Quatre-vingt-trcize (1873); La Legende des Siè-
cles, II (1877); L'art ã'être grand-prre (1877); Lc Pape (1878);
Idade Média das grandes massas populares, da "volonté La Pitie suprême (1879); L'Anc (1880); Les Qualre vcnt.s de
générale" rousseauiana Uma Idade Média heróica e de­ Vesprit (1881) ; Torquemada (1882) ; La Legende des Siccles, III
(1883); Toute la lyre (1888-1893).
mocrática, como a época dos heróis na Scienza nuova de Edição por E. Testard, 43 vols., Paris, 1884-1890.
Edição por P. Meurice, G. Simon e C. Doubray, 42 vols., Paris,
1904-1952.
A. Barbou: Victor Hugo et son temns. Paris, 1881.
C9) Jules Michelet, 1798-1874. (Cf. "O fim do romantismo", n o t a 90.)
E. Biré: Victor Hugo. 4 vols., Paris 1883-1894.
Histoire de France, ãepuis les origines jusqu'à la Renaissance L. Mabilleau: Victor Hugo. Paris, 1893.
(1833-1844); Le Peuple (1846); Histoire de la Révolution françai- E. Rigal: Victor Hugo, poete épique. Paris, 1900.
se (1847-1853); Histoire de France, depuis la Renaissance jusqu'á P. Stapfer: Victor Hugo et la grande poésie lyrique en France.
la Révolution (1855-1867); VAmour (1858) ; La Femme (1859); Paris, 1901.
La Mer (1861); La Bible de Vhumanité (1864); La Montagne P. e V. G l a c h a n t : Essai critique sur le thêàtrc de Victor Hugo.
(1868) etc. 2 vols., Paris, 1902-1903.
a
Edição (2. ed. da edição original, publicada por m a d a m e Miche­ R. Glotz: Essai sur la psychologie des variantes des Contempla-
let) , 47 vols., Paris, 1897-1903. tions. Paris, 1924.
Cl. Monod: La vie et la pensée de Jules Michelet. Paris, 1924. D. S a u r a t : La religion de Victor Hugo. Paris, 1929.
J.-M. C a r r é : Michelet et son temps. Paris, 1926. A. Bellessort: Victor Hugo. Essai sur son oeuvre. Paris, 1929.
J. (Juóhenno: Vtvangile éternel. ttude sur Michelet. Paris, 1927, F . G r e g h : L'oeuvre de Victor Hugo. Paris, 1933.
I.. Febvrc: Michelet. Paris, 1946.
I %0 OTTO M A B I A CARPBAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1961

"ICst-ce le Dieu des desastres, fácil porque a Obra de Hugo é um Universo literário,
Lo Sabaoth irrite, compreendendo todos os géneros. Mas Hugo parece sempre
Qui lapide avec des astres poeta lírico. E basta a simples enumeração das principais
Quelque soleil revolte?" peças líricas para armar-se com admiração contra aversões
e idiossincrasias: "La captive", "Les Djinns", "Navarin",
Colosso indefinível, isso não quer dizer que Hugo seja nas Orientales; "Ce qu'on entend sur la montagne", "La
o maior de todos os poetas nem o maior dos poetas fran­ pente de la rêverie", "Pour les pauvres", "La prière pour
ceses, embora muitos gostassem desses superlativos. Hugo tous", nas Feuilles d'automne; "Dicté après juillet 1830",
é o maior mestre da língua; com os seus recursos inesgo­ "A la colonne", "Dans 1'église de***", nos Chants du crépus-
táveis de imagens, crescendos, antíteses, trocadilhos, ono- cule; "A Virgile", "La vache", "Soirée en mer", "A Olym-
matopéias, sonoridades, êle sufoca, hipnotiza o leitor, que só pio", nas Voix intérieures; "Tristesse d'01ympio" e "Ocea­
depois da leitura, como depois de um sonho, se lembra que no Nox", em Les Rayons et les ombres; "La statue", "A
não sabe bem de que o poeta falava. É uma arte puramente Villequier", "Paroles sur la dune", "Ibo", "Ce que dit la
emocional, que não pode ser definida por meio de fórmulas bouche d'ombre", nas Contemplations; "Ordre du jour de
de conteúdo lógico. A arte de Hugo é capaz de arrancar Floreai", "Le chêne du pare détruit", "Saison des semailles",
admiração e repulsa ao mesmo tempo. "De beaux vers' "Célébration du 14 juillet dans la forêt", "Au Cheval", nas
d'admirables v e r s . . . d'une extreme beauté — et même de Chansons des mes et des bois. Esta poesia não será ao
qualité particulièrement rare, mais d'une beauté presque gosto dos que amam a poesia popular em lieds curtos, nem
uniquement verbale et sonore. On n'imagine rien de plus ao gosto dos que amam a poesia da inteligência. Hugo
creux, de plus absurde, ni de plus splendide", julga André não dispõe do lirismo de Villon nem do lirismo de Bau-
Gide; e em outro lugar confessa, com respeito às Orien­ delaire. A sua poesia é "lírica" no sentido de Píndaro,
tales: "Mon ravissement rejoint celui de mon enfance; il poeta da "grande inspiração", até na sátira; nunca a ins­
me suffit de relire nombre de ces poèmes pour les savoir piração de Hugo foi mais imediata do que na sátira política
encore par coeur". dos Châtiments, onde encontrou as expressões e as rimas
mais pungentes. O nosso conceito de poesia lírica, hoje,
Hugo é especificamente francês. Com exceção de cer­
é algo diferente; exclui o elemento narrativo, a eloquência,
tos grupos e de certas nações, das quais será preciso inter­
pretar a adesão, o mundo fora da França adotaria a defi­ a fábula, o epigrama, o panfleto rimado. A poesia moderna
nição de Hugo, dada por Nietzsche: "Um farol no mar do é mais p u r a ; mas também é mais estreita. Hugo é poeta
absurdo". Nesse mar, é preciso orientar-se, e isso não é duma época na qual ainda não havia aquelas distinções rigo­
rosas. Em compensação, é sempre lírico, em todos os gé­
neros, até nos discursos políticos; e os grandes discursos
da jornada parlamentar de 1849 mereceriam ser tão conhe­
P. Berret: La Legende des siècles. Paris, 1935.
A. Viatte: Victor Hugo et les illuminés de son temps. Paris, 1943 cidos como aquelas poesias. Assim como o lirismo de Hugo
K M. Grant: The Career of Victor Hugo. Cambridge, Mass., 1945. lhe invade a eloquência, assim a sua eloquência invade-lhe
O. Froment-Guyesses Victor Hugo. 2 vols., Paris 1948.
.1. B. Barrère: La fantaisie de Victor Hugo. 3 vols., Paris, 1949- a poesia, abolindo, mais uma vez, todas as fronteiras entre
1!)(!(). os géneros.
IV Souchon: Victor Hugo, Vhomme et Voeuvre. Paris, 1952.
1*H>1! OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1963

Quanto à abolição dos géneros, a praxe francesa ia foi expressão da alma coletiva da França, assim como Mi-
mnis loiíf.e do que a teoria dos românticos alemães, de modo chelet a viu em alucinações historiográficas.
que nem os elementos principais e contraditórios da poesia
de Ilu«o — o elemento pitoresco e o elemento intimista — "Mon âme aux mille voix, que le Dieu que j'adore
estão bem separados. Com isso se toca a questão das even­ Mit au centre de tout comine un écho sonore."
tuais influências estrangeiras em Hugo. Existem; mas são
de importância reduzida. De Walter Scott veio o gosto Hugo é a voz dos franceses. Aplica-se-lhe o verso que êle
do pitoresco, em Nôtre-Dame de Paris; e este romance, dizia, embora em situação diferente:
com seu vivíssimo panorama da Paris medieval, é mesmo
mais pitoresco do que qualquer obra do escocês; mas é " E t s'il n'en reste qu'un, je serais celui-là!"
tanto menos histórico; é cinematográfico. Nos grandes ro­
mances "sociais", o pitoresco, quase "gótico", está ligado A harmonia entre a voz de Hugo e a voz da França
ao sentimentalismo, que descende do romancista Rousseau. não é um fenómeno racial e de todos os tempos. Conforme
as definições já dadas do romantismo francês, aquela har­
O produto foi mesmo nos Misérables, o maior romance
monia entre o poeta e a nação deve ter raízes na ordem
cinematográfico: a história de Jean Valjean nunca deixará
(e na desordem) social da França do seu tempo. Os sin­
de empolgar os leitores semicultos; para os outros, a ge­
tomas disso são frequentes na obra de Hugo. A poesia
nerosidade dos sentimentos e a abundância de "grandes
intimista de família não é a única coisa que o liga à lite­
cenas" não chega a fazer esquecer a imensa ingenuidade
ratura burguesa do século X V I I I . O seu teatro, sublime
do grande escritor, que parece ignorar a realidade. De
e grotesco, bombástico e careteante, vem da mesma fonte,
Byron vieram certos "états d'âme" passageiros; o gesto de através do melodrama de Pixérécourt e Ducange; e acabou
Byron, Hugo só o adotou para transformá-lo em atitude logicamente na ópera: Hernâni, Le Roi s'amuse e Lucrécia
muito diferente, de tribuno. Doutro lado, o intimista Hugo, Bórgia sobrevivem pela música de Verdi e Donizetti. Fala-
o poeta da família e da criança, tem fontes exclusivamente se sempre das belezas líricas do teatro de Hugo. Mas na
francesas, no idílio e drama burgueses do século X V I I I , representação da atmosfera histórica — anacrónica mas
em Diderot, na pintura de Greuze. Francês é o humanismo eficiente — em Ruy Blas e sobretudo nos Burgraves, essas
poético de Hugo, poeta virgiliano — relacionar-lhe a poesia belezas são de um grande poeta épico; e a análise desse
com a da Plêiade foi o golpe de mestre do crítico Sainte- fato servirá para continuar a discussão das bases sociais da
Ecuve; e se este se recusou a acompanhar a evolução pos­ literatura de Hugo.
terior da poesia de Hugo, foi porque Hugo evoluiu, con­ Quase sempre as poesias líricas de Hugo se ressentem
sequentemente, da poesia renascentista para outra da qual do defeito de um tamanho excessivo; revelam a tendência
não existia exemplo na tradição francesa. A grande poesia para a epopeia. La Legende des Sièclcs é sem dúvida a obra
de Hugo é barroca; encheu, de uma vez, a lacuna que existe principal de Hugo, o Michelet da poesia e o único poeta
na história da poesia francesa entre a Plêiade e Chénier. épico autêntico em língua francesa — mais uma vez, en­
Hu,",o representa, por si só, épocas inteiras da literatura chendo uma lacuna da história literária da França. Ste-
francesa. O seu imenso monólogo lírico durante 60 anos venson interpretou-lhe também os romances — que não
I<)(>4 O I T O MAIUA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1965

Mito romances no sentido moderno da palavra — como epo- pris dans ceei: Âme grossiere de barbare energique et rusé
|)éÍH cm prosa; realmente, as qualidades de Nôtre-Dame qui a passe par le Bas Empire". O Império pelo qual Hugo
dr Puris são principalmente poéticas. Hugo, poeta épico, passara fora o de Napoleão I I I , e o seu caminho levou-o
é uni poeta "primitivo" em pleno século X I X , poeta da para a Terceira República da qual êle se tornou poeta
época homérica, na qual todos os géneros literários se con­ oficial. É um grande plebeu; com êle, a literatura francesa
fundiram na epopeia. Até o elemento de "frescura virgi- começa de novo. É um ricorso no sentido de Viço, uma
liana" na sua lírica é mais espontâneo, mais "primitivo", do rebarbarização, mas
que no romano requintado e algo decadente. No mesmo
sentido, Hugo transformou o grande gesto aristocrático de "L'humanité se leve, elle chancelle encore,
Byron em atitude menos aristocrática de vate, inspirado Et, le front baigné d'ombre, elle va vers 1'aurore."
para "faire flamboyer 1'avenir". Não era pose de literato
vaidoso. Sabe-se que Hugo era ocultista convencido —
A "aurore" é tão significativa como o verbo "chance-
"Ce que dit la bouche d'ombre" é um poema teosófico; mui­
ller". Hugo, poeta da democracia republicana, da pequena
to do que parece absurdo na poesia de Hugo precisa ser en­
burguesia parisiense, é utopista jacobino, como Michelet.
carado como consequência da fé do poeta na realidade
"Les utopies cheminent sous terre", diz Hugo nos Misé-
transcendental das suas metáforas.
rables, romance que é a epopeia meio sublime, meio sub-
literária do radicalismo populista e: "Ajustez mathémati-
"Ebloui, haletant, stupide, épouvanté, quement le salaire au t r a v a i l . . . démocratisez la propriété
Car il avait au fond trouvé 1'éternité." non en 1'abolissant, mais en 1'universalisant". É a lin­
guagem de Proudhon, ou antes da democracia pequeno-
Hugo é um vate autêntico; daí a distância enorme, como burguesa da futura Terceira República. Hugo encontrou
de milénios, que o separa da "poésie p u r é " moderna. O uma ressonância enorme: os franceses, em geral, conside-
"primitivismo" de H u g o em pleno século X I X é um fenó­ ram-no como o maior dos poetas. A crítica não é tão
meno social. Diz-se que êle democratizou a língua da poesia unânime, e Thibaudet observou bem que Hugo tem mais
francesa — "situation" do que "présence". Contudo, Hugo está sempre
presente na França: na poesia pitoresca ou intimista dos
"Le m o t . . . parnasianos; no frisson de Baudelaire perante as "corres-
N'était que caporal, je l'ai fait colonel"; pondances" místicas no Universo; no modernismo alucinado
de Verhaeren; na poesia social e nos novos "Misérables"
a literatura de Hugo é a nova literatura de uma nova so­ de Romains; na poesia visionária e ocultista dos surrea­
ciedade na França. Se o seu estilo poético é barroco, é listas. Fora da França, adoram-no os retóricos como
um Barroco do século X I X , um Barroco democrático que Swinburne e os utopistas como W h i t m a n ; e sobretudo os
não pode ser definido melhor do que pelas restrições crí­ "latinos", no sentido mais amplo da palavra, os povos de
ticas de Sainte-Beuve em Mes poisons: "J'appelle les estrutura social parecida com a da França no século X I X ,
puissances de Hugo des puissances à la fois puériles et industrialmente atrasados e lutando pela democratização
t i t a n i q u e s . . . Tous les défauts de Victor Hugo sont com- pequeno-burguesa: daí a presença de Hugo entre os ita-
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1967
I •><>(■ OTTO MARIA CARPEAUX
heróis viram poetas: isto é, poetas hugonianos. A figura
liiiiidn de Cnrducci, os espanhóis de Nunez de Arce, os
mais hugoniana da Europa por volta de 1850 era Mazzi-
|KH iii|',ii('scs de Guerra Junqueiro, e entre os latino-ameri- ni ( 7 5 ), o fundador da "Giovane Itália" e lutador incansável
«unos ,itc hoje. Para todos eles, a poesia de Hugo continua pela República Federativa Italiana; o seu lema "Dio e
Popolo" é tão hugoano como o seu gesto profético e o
"Cette faucille d'or dans le champs des étoiles." estilo das suas proclamações. Todos os seus partidários,
Guerrazzi sobretudo, eram hugonianos; mas o maior entre
Não é fácil descrever a influência de Hugo, porque eles, Carducci, tornou-se clássico e parnasiano, sem renegar
ela se mistura com influências byronianas; e porque revela nunca a admiração por Victor Hugo.
tendências em parte para o parnasianismo, em parte para
a poesia revolucionária. Os franceses seguiram, em geral, Na Espanha, o romantismo fora introduzido pelos libe­
o caminho de Gautier ( 7 2 ) ; começando com o romantismo rais que se exilaram na França e voltaram com novidades
ferozmente byroniano de Albertus; recebendo as influências literárias. A poesia pitoresca do duque de Rivas já estava
da poesia pitoresca de H u g o ; e moderando-se cada vez algo influenciada pela primeira fase de H u g o ; e a leitura
mais, até o portador do famoso colete rubro na noite da das Oiientales perturbou por completo a cabeça de Aro-
"bataille d'Hernani" chegar ao parnasianismo dos Êmaux las ( 7 0 ), padre que se dedicou a descrições voluptuosas de
et Camées. Assim Bouilhet ( 7 3 ), poeta parnasiano "cien­ haréns orientais; mas é preciso admitir a originalidade
tífico", e amigo de Flaubert; mas ainda em 1856 dera uma relativa desse hugoano, distinguindo-se pela sensualidade
tragédia romântica em estilo de Hugo, para se dedicar afro-ibérica. Depois veio a nota patriótica, o hugonianis-
depois ao "1'art pour l'art". mo de "panache", em Ruiz Aguilera ( 7 7 ) ; os seus Ecos
nacionales são um dos livros de poesia mais populares em
O romantismo no mundo latino inteiro, que é em grande língua espanhola, e nas Elegias pela morte de seu filho fêz
parte um romantismo hugoniano ( 7 4 ), é antes revolucio­ poesia intimista à maneira de Hugo, pai de família. Mas
nário. Agora, os patriotas já não são sofredores passivos o maior hugoniano da Espanha, Nunez de Arce, já é par­
como foi o infeliz Silvio Pellico ( 74 ~ A ), dramaturgo menor
nasiano. Um observador tcheco mencionaria, nessa altura,
que deve a glória poética aos 8 anos de dura prisão, nos
o nome do grande parnasiano tcheco Jaroslav Vrchlicky,
cárceres austríacos. Agora, os poetas viram heróis, e os
que traduziu para a sua língua quase toda a obra poética
de Hugo.
72) Cf. "O Fim do Romantismo", nota 32.
75) Giuseppe Mazzini, 1805-1872.
73) Louis Bouilhet, 1829-1869. A. Lúcio: Mazzini. Milano, 1905.
Les Fossiles (1854) ; Madame ãe Montarcy (1856); Dernières G. Salvemini: La formazionc áel pcnsicro mazziniano. Firenze,
chansons (eã. por Flaubert, 1872). 1910.
L. Letellier: Louis Bouilhet, sa vie et ses oeuvres. Paris, 1919. N. Sapegno: Mazzini. Roma, 1945.
74) A. Farinelli: II romanticismo nel mondo latino. Torino, 1927. 76) Juan Arolas, 1805-1849.
74 A) Silvio Pellico, 1789-1854. Poesias caballerescas y orientales (1840).
Francesca da Rimini (1814); Le mie prigioni (1832). J. R. Lomba: El padre Arolas, su vida y sus versos. Madrid, 1898.
Kdicão por M. Scherillo, 3.a ed., Milano, 1910. 77) Ventura Ruiz Aguilera, 1820-1881.
.T. Riniere :Z)eZZa vita e delle opere ãi Silvio Pellico. 2 vols., Ecos nacionales (1849); Elegias (1862); Leyenda ãe Nochebuena
Torino, 1898-1899. (1872).
lt. Buibiera: Silvio Pellico. Milano, 1926.
I')fill Oiro MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1969

Km «iiiiiHo todos esses poetas coexiste a influência de universal em traduções alemães encontrou nele um colabo­
llyri)ii m m a de Hugo. Sobretudo na poesia das nações rador infatigável e virtuoso. Spenser, Burns, Tennyson,
InlimiN n i t r e 1830 e 1880, a competição entre Byron e Hugo Longfellow e Byron eram os seus favoritos; e traduziu todo
é um fenómeno geral, e o antagonismo é significativo: o Hugo. As suas primeiras poesias, cheias de desertos, leões
Hrmonto byroniano, aristocrático, corresponde a atitudes e sultões são uma cópia das Orientales; mas recusou-se
i racionarias em matéria política, enquanto o elemento hu- expressamente a tomar partido nas lutas políticas do dia,
j;oano exprime reivindicações revolucionárias. Apenas é atitude pela qual o "Hugo alemão", como lhe chamaram, foi
preciso observar que muitos byronianos não sabiam a língua muito atacado. Quanto mais se aproximava, porém, a tem­
inglesa, recebendo Byron através das poesias byronianas pestade de 1848, o "Hugo alemão" tornou-se realmente um
de Laniartine, Musset e do próprio Hugo na sua primeira pequeno H u g o ; as suas poesias políticas, de tendência radi­
fase. A luta entre Byron e Hugo manifesta-se na emigra­ calmente democrática, são a poesia mais eloquente em lín­
ção polonesa em Slowacki, byroniano como poeta evasivo, gua alemã. Freiligrath pagou caro; esteve exilado durante
hugoano como radical e visionário. A luta continua na 20 anos. Era um intelectual alemão, e conforme os destinos
alma do grande poeta húngaro Voeroesmarty ( 7 8 ), pessi­ da história alemã o Estado resolveu por êle o problema.
mista profundo e patriota extático. Os seus poemas narra­ Bismarck conseguiu realizar a unidade nacional, que os
tivos distinguem-se da poesia byroniana pelo brilho musical democratas não conseguiram em 1848, e o velho "Hugo
da língua. Influência francesa também se manifesta no alemão" voltou para a Alemanha como poeta patriótico.
colorido espanhol da sua comédia lírica Csongor e Tuende, A luta secreta entre as influências de Byron e de Hugo
que lembra os "Proverbes" de Musset. Mas nas poesias tornou-se manifesta na Noruega, então ligada pela língua
patrióticas é o húngaro um grande orador lírico, como literária à Dinamarca e pela dinastia à Suécia. A famosa
Hugo. E m Voeroesmarty havia lutas íntimas, complicações Constituição do 17 de maio de 1814, "a mais democrática
trágicas; e não chegou a ver a libertação da sua pátria. na Europa", era na verdade muito liberal, mas nada demo­
Um caso semelhante na Alemanha resolveu-se de maneira crática; deu o poder inteiro às duas classes dos funcionários
tipicamente alemã: Freiligrath ( 79 ) era romântico nato, públicos e dos grandes comerciantes, fortemente apoiados
e a tendência do romantismo alemão para reunir a literatura na união dinástica do país com a Suécia. Os democratas
exigiram o poder para os pequenos intelectuais e os cam­
poneses e a independência completa, uma Noruega livre
78) Mihályi Voeroesmarty, 1800-1855.
A Fuga de Zalan (1825); Cserhalom (1827); Csongor e Tuende das influências políticas suecas e das influências literárias
(1831); Os Castelos Vizinhos (1831); O Velho Cigano (1854); etc. dinamarquesas; enquanto para os liberais essa indepen­
Edição por P. Gyulai, 2.a ed., 8 vols., Budapest, 1884.
P. Gyulai: Voeroesmarty. Budapest, 1886. (Em língua húngara.) dência teria significado um desastre cultural: a Noruega,
I. Kont: Un poete Hongrois, Michel Voeroesmarty. Paris, 1903. separando-se da Europa. O chefe intelectual dos liberais
7!)i Ferdinand Freiligrath, 1810-1876. era Welhaven ( 8 0 ), romântico à maneira dinamarquesa e
Gedichte (1838); Ein Glaubensbekenntnis (1844); Ça ira (1846);
Neuere politische unâ sociale Gedichte (1849-1850); Gesammelte
Dichtungen (1870). 80) Johan Sebastian Welhaven, 1807-1873.
Edição por L. Schroeder, 2.a ed., 6 vols., Leipzig, 1926. Digte (1839); Nyere Digte (1845); Reisebilleder og Digte (1851);
l\ Bnsson: Ferdinand Freiligrath. Paris, 1899. Skildringer (1860).
K. O. Gudde: Freiligraths Entwicklung ais politischer Dichter. G. Gran: Johan Sebastian Welhaven. Oslo, 1922.
Ilcilín, 1922.
I. Handagard: Johan Welhaven, liv og digtning. Oslo, 1926.
/

P»,'!! OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1971

«Irniii, pi)cta descritivo da paisagem nórdica, autor de bala- mo socializante. Assim o italiano Giovanni Bovio ( 8 2 ), pen­
»lan c "romanças" no estilo de Schiller. Só uma crítica sador confuso e orador vigoroso, autor de dramas filosóficos
muito penetrante descobriu nesse burguês de costumes aris­ nos quais cada frase é uma "visão histórica". A ala posi­
tocráticos os vestígios de intensa leitura de Byron; a sua tivista está representada pelo polígrafo português Teófilo
balada mais famosa, Eivind Bolt, é uma versão nórdica Braga ( 8 3 ), poeta de Folhas Verdes e Torrentes, historiador
do Mazeppa de Byron. O seu grande adversário Werge- literário mais volumoso do que exato, grão-mestre do
land ( 81 ) é, entre todos os poetas da época fora da França, positivismo português e duas vezes presidente da Repú­
a figura que mais se parece com Victor H u g o : partidário blica. Nas Miragens Seculares pretendeu melhorar a Le­
gende des Siècles, pouco sistemática na verdade, por meio
entusiasmado dos princípios de 1789, pretendeu escrever
de um esquema positivista. O que não se pode negar em
uma Epopeia da Humanidade, uma Bíblia Republicana.
Guerra Junqueiro ( 84 ) é o domínio da língua portuguesa,
Viveu num estado de inspiração permanente; falava, como
manejada com eloquência torrencial e recursos de rimador
o seu adversário, de Byron e Schiller, interpretando-os,
inesgotáveis. A coleção lírica Os Simples é menos popular
com equívoco evidente, como poetas jacobinos. Mas a lín­ do que pretende e parece; antecipa a música verbal sim-
gua, pouco culta, não dava para poesia hugoniana; W e r g e - bolista e não é nada desprezível. Mas os famosos poemas
land escreveu em metros livres, torrenciais e abundantes, narrativo-tendencioso-didáticos, hugonianíssimos, são obras-
aproximando-se estranhamente de Whitman. A luta paté­ primas de confusão retumbante, e por isso mesmo acertaram
tica entre Wergeland e Welhaven com respeito aos pro­ o gosto das massas. Nem a crítica implacável de António
blemas máximos do país colocou a literatura no centro da Sérgio conseguiu destruir a fama do poeta que causou ao
vida nacional, assim como Hugo o teria desejado. Girava gosto literário em Portugal prejuízos incalculáveis. Além
toda a vida pública em torno do teatro e das casas editoriais.
Eis a chamada "poetocracia" na Noruega, preparando o
advento de uma grande literatura. Os sucessores imediatos 82) Giovanni Bovio, 1837-1903.
Sommario delia sloria dei ãiritto in Itália (1884); Socrate (1902) ;
de Welhaven e Wergeland serão Bjoernson e Ibsen. Opere ãrammatiche (Cristo alia fcsla di Purim, San Paolo, Le-
viatano; 1904) etc.
Mais uma feição característica do hugonianismo latino A. Carlini: La mente di Giovanni liovio. Bari, 1914.
merece atenção: o anticlericalismo furibundo, aliado ao 83) Teófilo Braga, 1843-1924.
Folhas Verdes (1859) ; Visão dos Tempos (18(S4) ; Tempestades So­
republicanismo, ou ao positivismo político, ou ao anarquis- noras (1864); Torrentes (1869); Miragens Seculares (1884); His­
tória da Literatura Portuguesa (20 vol.s., 1870-1892) ; As Moder­
nas Ideias na Literatura Portuguesa (1892), e t c , etc.
A. do P r a d o Coelho: Tco/ilo Draga. Lisboa, 1921.
81) H e n r i k Arnold Wergeland, 1808-1845. 84) Abílio G u e r r a Junqueiro, 1850-1923.
Digte (1829); Skabelsen, Mennesket og Messias (1830); Nyere A Morte de D. João (1874) ; A Velhice do Padre Eterno (1885);
Digle (1883); Joedinden (1844); Den engelske Lods (1844) ; Os Simples (1892).
Mennesket (1845) etc. Ant. Sérgio: "O Caprichi.smo Romântico n a Obra do Sr. J u n ­
Edição por H. Lassen, 6 vols., Kjoebenhavn, 1882-1884. queiro". ( I n : Ensaios, vol. I. Rio de Janeiro, 1920).
II. K o h t : Henrik Wergeland. Oslo, 1908. Fid. de Figueiredo: História da Literatura Realista (cap. I I I ) .
II. Moeller: Henrik Wergeland. Kjoebenhavn, 1915. (2. a edição, Lisboa, 1924.
1!)47.) P. Hourcade: Guerra Junqueiro et le problème des influences
71. llrycr: Henrik Wergeland. Oslo, 1946. françaises dans son oeuvre. Paris, 1932.
1972 OTTO MARIA CARPEATJX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1973

da fronteira portuguesa, o galego Curros Enríquez (8B) era versão livre, Oración por todos. E o poeta católico José
da mesma estirpe, êle também poeta apreciável quando sem António Calcaíio (1827-1894), membro de uma grande famí­
arcH de apóstolo. Em língua castelhana e em prosa, o ro­ lia de políticos venezuelanos, imitou com certa felicidade
mancista Blasco Ibanez era o último hugoniano ibérico. a poesia intimista, familiar, de Hugo. Mas essas coisas
Mas "último" refere-se só à península. Na América Latina encontraram-se melhor em Zorrilla e outros espanhóis; e
o utopismo poético de Victor Hugo continua, e não se sabe para o verniz romântico bastava um pouco de Espronceda e
quantas vezes ressuscitará de novo, porque é a expressão um pouco de Byron em tradução francesa; quanto à poesia
de problemas sociais ainda não resolvidos. No caso não erótica, enfim, foi completa a vitória de Bécquer. A in­
se trata de uma classe "déclassée", mas de nações inteiras, fluência da literatura espanhola, apoiada pelas classes
continuando-se a luta da democracia pequeno-burguesa conservadoras, era o grande obstáculo da repercussão de
contra oligarquias mais ou menos liberais. O romantismo Hugo. No entanto, discípulo de Hugo foi o colombiano
hugoniano na América Latina desempenha uma função his­ José Eusébio Caro ( 8 7 ), homem austero e de formação
tórica. classicista, que se revela romântico pelos temas ("En boca
Apesar de a influência de Hugo na América Latina ser dei último Inca", "La liberdad y el socialismo", "El hacha
enorme, maior do que em qualquer outra parte, hugonianis- dei proscrito") e pela virtuosidade métrica.
mo e romantismo latino-americanos não são idênticos ( 8 8 _ A ). "El nido de condores" do hugonianismo americano era
Durante decénios preferiam-se Byron, Espronceda, Zorrilla a Argentina, ou antes uma Argentina fora da Argentina,
— Byron evidentemente em tradução francesa — e Hugo a famosa "generación de los proscriptos": os intelectuais
só era o ídolo dos românticos mais avançados. O seu do­ exilados em Montevideu e no Chile, combatendo a ditadura
mínio tornou-se absoluto quando o hugonianismo cessara de de Rosas ( 8 8 ). O iniciador do movimento era Esteban
constituir um perigo para a ordem estabelecida; quando Echeverría ( 8 0 ), que fundou em 1837 a Asociación de Mayo,
os intelectuais pequeno-burgueses se podiam aliar, como escrevendo-lhe o programa, as Palabras simbólicas. Custou-
funcionários e diplomatas, à classe dirigente. Então, Hugo
foi promovido a poeta oficial do "modernismo". 87) José Eusébio Caro, 1817-1853.
Poesias (publ. por Mig. Ant. Caro, 1873).
No começo, a literatura da "direita" podia apresentar 88) Ric. Rojas: Los proscriptos (vols. V/VI de: La literatura argen­
um Hugo apolítico: o religioso, o intimista, eventualmente tina. Vols. XII-XIII de Obras de Ricardo Rojas. Buenos Aires
1924-1925).
o erótico como o tinha visto o Padre Arolas e como o viu 89) Esteban Echeverría, 1805-1851.
o mexicano Manuel Maria Flores (Pasionarias, 1822). O Elvira o la novia de la Plata (1832); Los consuclos (1834); Ri­
ditador da instrução pública no Chile, o grande humanista mas (1837); Palabras simbólicas (1837); El dogma socialista
(1838); El matadero (c. 1838) ctc.
Andrés Bello ( 8 6 ), deu da Prière pour tous uma famosa P. Groussac: "Echeverría". (In: Crítica literária. Buenos Aires
1924).
115) Manuel Curros Enríquez, 1851-1908. M. Menéndez y Pelayo: Antologia de poetas hispanoamericanos,
Aires da mina terra (1880); O divino sainete (1888). vol. IV, 2." ed., Madrid, 1928.
C. Barja: "En torno ai lirismo gallego dei siglo XIX". (In: Smith A. Yunque: Echeverría en 1837. Contribución ai estúdio de la
College Stuâies in Modem Languages, VII/2-3, 1926.) lucha de clases en la Argentina. Buenos Aires, 1937.
A. J. Bucich: Esteban Echeverría y su tiempo. Buenos Aires,
115 A) K Carillo: O Romanticismo en la América Hispânica. Madrid, 1938.
1959. J. Notta: Echeverría. Letra y espiritu en su obra. Buenos Aires,
IKD Cí. "O último classicismo", nota 83. 1951.
I'>71 OTTO M A R I A CABPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1975
lhe sair do lamartinianismo e byronianismo sentimental de
Elvira, Consuelos e do famoso poema La cautiva. Mais foi nada disso — o poeta de Prometeo e Atlântida foi pelo
tarde, o doutrinário do Dogma socialista, manual de política menos o mais completo de todos os hugoanos latino-ame-
jacobina e democrática sem socialismo, cultivou a poesia ricanos, ao ponto de dedicar ao mestre o monumento poético
"filosófica" à maneira de H u g o ; e numa hora rara escreveu Victor Hugo. Poesia dessas, de retórica tonitruante, é hoje
o conto "El matadero", de um naturalismo surpreendente, indigerível; mas não se pode duvidar da influência enorme
em que antecipou o passo de Hugo a Zola. Com Eche- que exerceu, transfigurando a América em Nova Atlântida,
continente da democracia. Um poema de Olegário Andrade,
verría começa o declínio da influência do romantismo espa­
El Nido de Condores, forneceu o apelido da escola de poetas
nhol na América Latina, substituído pelo romantismo fran­
hugonianos, grandiloqúentes: os "condoreiros", altivos
cês; e isso quer dizer, Hugo. O famoso romance Amália,
como a grande ave dos Andes. A prioridade do condoreísmo
meio wertheriano, meio patriótico-democrático, de Már-
cabe porém aos brasileiros, entre os quais também surgiu
mol ( 00 ) é algo como o Jacopo Ortis dos proscritos argen­
o maior dos condores, o patético Castro Alves ( 9 3 ), cantor
tinos; as poesias políticas de Mármol são os Châtiments
da abolição dos escravos pretos; por mais que se apreciem
desses exilados, matando moralmente a Rosas. O Hugo,
as suas Vozes d'África, não se podem desprezar as suas
Thiers e Gambetta em uma pessoa da "generación de Mayo"
poesias descritivas da natureza tropical e as poesias eróti­
é o grande Sarmiento (!>1), natureza indómita de castelhano
cas, menos retóricas. Castro Alves é sobretudo importante
de velha estirpe e grande inimigo da influência espanhola
como poeta de uma transição social; do feudalismo escra­
reacionária; o seu Facundo é um livro sui generis: análise
vocrata ao liberalismo burguês. O estilo da sua poesia não
sociológica da situação argentina, romance realista e fan­
podia deixar de ser o de Victor Hugo.
tástico do caudilhismo bárbaro, programa da recivilização
democrática da Argentina; e esse programa foi, mais tarde, A morte de Hugo marca o primeiro apogeu do seu
realizado pelo próprio Domingo Faustino Sarmiento, quan­ prestígio na América Latina. Em 1889, José António Soffia
do presidente da República. O "vate" veio logo depois; e e José Rivas Groot publicaram em Bogotá um livro de
se Olegário Andrade (° 2 ) não foi um grande poeta — não homenagem, Victor Hugo en America, coleção de traduções
de poesias de Hugo pelos poetas mais notáveis da América;
90) José Mármol, 1817-1871. no prefácio, Rivas Groot celebra Hugo como poeta idílico
Cantos dei peregrino (1846) ; Armonias (1851) ; Amália (1851-1855).
St. C u t h b e r t s o n : The Poetry of José Mármol. Boulder City, Col., e poeta épico e até como "poeta americano", porque a
1935. América realizou as epopeias da luta contra a Natureza
91) Domingo F a u s t i n o Sarmiento, 1811-1888. e contra a opressão e realizará o idílio da Paz e Justiça
Civilización y barbárie; Vida de Juan Facundo Quiroga (1845) ;
Recuerdos de província (1850) etc. universais. O hugonianismo latino-americano começa a
Edição de Facundo por J. V. González, Buenos Aires, 1925. tornar-se eloquência vazia, satisfeita com grandes palavras;
I. P. Paz Soldan: Domingo Faustino Sarmiento. Buenos Aires,
1911.
A. W. Bunkley: The Life of Sarmiento. Berkeley, 1952. 93) António de Castro Alves, 1847-1871.
92) Olegário Andrade, 1841-1882. Espumas Flutuantes (1871) ; A Cachoeira de Paulo Afonso (1876).
Kl nido de condores (1877); Prometeo (1877); .San Martin (1878) ; Edição por Afr. Peixoto. 2 vols., S. Paulo, 1944.
Victor Hugo (1881); Atlântida (1881). Afr. Peixoto: Castro Alves, o Poeta e o Poema. S. Paulo, 1942.
.J. Valera: Cartas americanas. Madrid, 1890. (Obras Completas, H. Ferreira Lima: Castro Alves c Sua Época. S. Paulo, 1942.
vuls., X L I — XLII.) P. Calmon: História de Castro Alves. 2. a edição. Rio de Janeiro,
1956.
1'íVfi OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1977

o IH iijjnnio Carlos Roxlo (1860-1926) é um exemplo terrível. tir". A ênfase sobre a produção revela um saint-simonismo
I I I I J ; » celebrou, porém, resurreição surpreendente no "mo- bem compreendido.
clrrnismo" hispano-americano. " J e me suis interne dans A doutrina do comte de Saint-Simon ( 96 ) acentuou
rimmense forêt de Hugo", dizia Ruben Darío, o maior poeta igualmente a produção e a distribuição das riquezas; o
modernista, todo afrancesado ( 9 4 ) ; a influência de Hugo saint-simonismo era uma religião de banqueiros e indus­
eslava terminando a obra do afrancesamento da América triais assim como ou mais do que de proletários; vários
espanhola, quer dizer, do aburguesamento. Mas já era uma chefes saint-simonistas tornaram-se depois grandes homens
burguesia diferente, menos liberal do que temendo o movi­ de negócios: Émile Péreire que fundou o banco Crédit
mento socialista. Em pleno século XX, as Américas Latinas Mobilier; Prosper Enfantin que construiu os Chemins de
tremeram com a eloquência fulminante e ôca do peruano Fer de L y o n ; Ferdinand Lesseps que perfurou o canal de
Santos Chocano ( 9 5 ), companheiro poético de vários caudi­ Suez. Saint-Simon é precursor do socialismo moderno prin­
lhos e ditadores. cipalmente pelo reconhecimento claro da divisão da socie­
O resultado da análise da influência hugoniana na dade em classes; mas o seu ideal teria sido a aliança das
América Latina confirma as análises do hugonianismo fran­ classes "úteis", dos industriais e dos operários, contra os
cês : Hugo é o poeta da pequena-burguesia jacobina, demo­ feudais ociosos. Essa tendência, revolucionária no sentido
crática; até certo ponto exprime desejos utópicos de revo­ da Revolução de 1789, ligou o saint-simonismo ao roman­
lução social; mas depois descobre a sua repulsa liberal tismo; e com efeito, quase todos os poetas e escritores
contra o socialismo proletário. Esteban Echeverría defen- românticos ou eram saint-simonistas ou simpatizaram tem­
deu-se vivamente contra a acusação dos rosistas de ter feito, porariamente com a seita. O próprio Saint-Simon, bastante
no Dogma socialista, propaganda de ideias saint-simonistas; lunático, fora um personagem romântico, julgando-se des­
e Hugo que tinha cantado a "Republique universelle" — cendente de Carlos Magno, ouvindo vozes celestes como
Swedenborg, cultivando a psicografia como Hugo. O estilo
"O Republique universelle, dos seus escritos é enfático, retórico, derramando-se em
T u n'es encor que 1'étincelle, sentimentalismos. No entanto, e talvez por isso mesmo, a
Demain tu serás le soleil!" influência da seita sobre o romantismo social na França
foi muito grande. Em determinado momento, todos os ro­
— advertiu nos Misérables com respeito às "utopies qui mânticos parisienses, de Saint-Beuve e Hugo até Georges
cheminent sous terre". O seu programa social era algo Sand e Heine, foram saint-simonistas. Esses discípulos
simples: " E n deux m o t s : sachez produire et sachez répar- aprofundaram, por assim dizer, o sentimentalismo român­
tico do mestre, retomando a velha ligação entre sentimen­
94) E. K. Mapes: VInfluence française dans 1'oeuvre de Ruben Da­ talismo e libertinismo, que fora tão característica do século
río. Paris, 1925. X V I I I , existindo secretamente em madame Guyon e Zin-
05) José Santos Chocano, 1875-1934.
Iras Santas (1895); Canto dei Siglo (1901); Alma América (1906);
Ayacucho y los Andes (1924); Primícias de oro de índias (1934).
I. Goldberg: "Chocano". (In: Studies in Spanish American Lite- 96) Comte Henri de Saint-Simon, 1760-1825.
rature. New York, 1920.) Le Système industriei (1821); Catcchisme ães industrieis (1824).
li. A. Sanchez: Aladino o vida y obra de José Santos Chocano. M. Leroy: Le Socialisme des produeteurs. Henri de Saint-Simon.
Míxico, 1960. Paris, 1925.
1978 OTTO M A R I A CARPKATJX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1979

zendorf, Samuel Richardson e Rousseau, e sobretudo em calvinista; a da saint-simonista George Sand é progressista
Crébillon fils e Restif de la Bretonne. A simpatia com os como a dos aristocratas liberais do século X V I I I , mas já
humilhados e ofendidos estendeu-se, além ou dentro da com conclusões que servem à mobilização industrial, inclu­
doutrina social, às mulheres, humilhadas pelos homens e sive das mulheres, quer dizer, aos fins da burguesia. O
ofendidas pelas leis injustas. A emancipação da mulher emocionalismo sentimental de Rousseau é masoquista;
lornou-se postulado socialista; os advogados desse postu­ George Sand sabe dominar os homens e a vida. Pessoalmen­
lado adotaram o estilo de viver anticonvencional da Bohè- te, Rousseau é um plebeu, e George Sand é uma grande
me literária; mais um motivo para atacar as bienséances dama, permitindo-se algumas licenças. Mais do que "filie
do classicismo. A aliança entre jacobinismo e feminismo de Rousseau" ela é "soeur de Byron". Com ela, aquelas cor­
tem uma precursora em Mary Wollstonecraft Godwin. A rentes sentimentais, que sempre foram algo suspeitas, per­
ligação entre feminismo e literatura feminina tem uma dem o aspecto plebeu, fornecendo a atmosfera de grande
precursora em Madame de Staêl. A americana Margaret literatura. Os romances antigamente famosíssimos de Geor­
Fuller já está sob a influência de George Sand. ge Sand — Indiana, Lélia, Jacques, Mauprat — com as suas
heroínas desesperadas e heróis elegantes e pálidos, já não
George Sand ( 97 ) encarnava em sua pessoa o feminismo
são lidos. Os personagens, artificiais até o ridículo; o
libertino e revolucionário. Na sua obra notam-se vagamente
diálogo, retórico ou choroso; os ideais, mais romanescos
correntes pseudo-místicas de conduta e de política do sé­
do que ideológicos; a ocupação quase exclusiva dos perso­
culo X V I I I , o que justifica o apelido de "filie de Rousseau".
nagens com questões de amor, abstraindo-se de outros pro­
Mas existem diferenças importantes. O moralismo liber­
blemas, mais "triviais", da vida: tudo isso cria uma atmos­
tino de George Sand é modificado pelo estilo de viver da
fera de irrealidade "idealista" que o leitor moderno já não
Bohème literária do século XIX, enquanto o estilo de viver
suporta. Neste sentido, a obra de Sand é mais antiquada do
de Rousseau era o do literato-vagabundo da época pré-
que a própria Nouvelle Héloise. Mas apesar de tudo isso,
burguesa. A mística política de Rousseau é de origem
ninguém teria a coragem de falar, a propósito de George
Sand, em subliteratura; é grande literatura, nobre e sin­
97) George Sand (Aurore Dupin), 1804-1876. cera. O que parece falso e artificial a nós outros — o
Indiana (1832); Valentine (1832) ; Lélia (1833); Jacques (1834);
Mauprat (1837) ; Spiriãion (1839); Le Compagnon du tour de byronismo feminino — era verdade vivida para George
France (1840); Consuelo (1842-1843) ; La Comtesse de Ruãolstadt Sand. Deste modo, não é muito injusto que a sua glória
(1843-1845) ; Le Meunier d'Angíbault (1845) ; La Maré au ãiable
(1846); François le Champi (1847); La Petite Faãette (1849); Le póstuma decorra menos dos romances que George Sand
Marquis de Villemer (1861) etc. escreveu do que daqueles romances que ela viveu: com
Edição Calmann-Lévy das Obras Completas, 105 vols., Paris, 1862-
1883. Musset, com Chopin.
Wl. Karénine: George Sand, sa vie et ses oeuvres. 4 vols., Paris,
1889-1926. O mesmo argumento da veracidade ainda se pode alegar
A. Devaux: George Sand. Paris. 1894.
R. Doumic: George Sand. Paris, 1909. com respeito às conclusões que George Sand tirou do seu
li. Vincent: George Sand et le Berry. 2 vols., Paris, 1919. humanitarismo e popularismo; fiel à doutrina de Rousseau,
Ti. Soillicre: George Sand, mystique de la passion, de la politique
ri de Vamour. Paris, 1920. voltou-se para a natureza e os campos, tornando-se a roman­
.1. (Uiarpentier George Sand. Paris, 1936. cista dos camponeses da sua região natal, do Berry. La
M. Toe.scu: Une autre George Sand. Paris, 1952. Maré au ãiable, François le Champi, La Petite Faãette, tão
M.-li. Puilleron: George Sand et les hommes de 48. Paris, 1953.
1980 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1981

famosos na época, também já são, hoje, menos lidos: são Branco ( 9 0 ). Duas opiniões defrontam-se com respeito a
algo fastidiosos, muito sentimentais, elegantes demais em esse romancista, tão famoso em Portugal e quase desco­
relação ao ambiente descrito com realismo — sempre se nhecido no estrangeiro. Os admiradores tradicionais de
revela na autora a proprietária do castelo de Nohant. Mas Camilo ficam insensíveis quando a crítica hostil lhes objeta
são bons romances. A originalidade não é tão grande como as analogias do seu ídolo novelístico com exemplos menos
se pensava: George Sand tinha um modelo, os contos rús­ recomendáveis nas literaturas estrangeiras: Os Mistérios
ticos do alemão Berthold Auerbach, que ela conheceu por de Lisboa, uma cópia de Sue; os romances históricos, imi­
intermédio do seu secretário, o alemão Mueller-Struebing. tações do lado pior de Walter Scott. Camilo é romancista
Mas só essa grande dama naturalizou o romance rústico na "gótico", e quando não é gótico é sentimental e choroso até
grande literatura: George Sand foi a intermediária entre o ridículo, muito pior do que George Sand, da qual também
o provinciano Auerbach e, doutro lado, Bjoernson e T u r - imitou os contos rústicos; e a sua ideologia é vacilante
geniev, escritores de ressonância universal. entre liberalismo e clericalismo, como a do espanhol con­
temporâneo Pedro Alarcón. Mas os admiradores ficam
Esta última repercussão, de tão grandes consequências, insensíveis: pois Camilo significa-lhes uma literatura in­
não é a única influência que George Sand exerceu. Com a teira, a literatura novelística do século X I X em língua por­
sua arte sentimental e algo fácil de verdadeira fabricante tuguesa; e justamente a língua de Camilo, riquíssima até
de romances, criou o romance "idealista", sobretudo femi­ a afetação, é objeto de um culto supersticioso. A crítica
nino, que dominou os leitores da segunda metade do século de Camilo percorreu várias fases contraditórias. Os parti-
X I X ; e o seu feminismo criou outro ramo novo da litera­ diários do naturalismo, da "escola de Coimbra", pretende­
tura. E entre todas essas influências, tão diferentes, existe ram destruir a fama do "Balzac português", por lhe faltar
uma relação secreta. todo senso da realidade, apresentando êle uma caricatura de
Portugal. Depois apostasiariam os tradicionalistas: Antó­
O romance idealista está hoje em descrédito absoluto. nio Sardinha viu em Camilo a degeneração da tradição por­
Ninguém já lê ou confessa ter lido os romances de Feui- tuguesa. A crítica moderna de João Gaspar Simões, obe­
llet ( 0 8 ) ; mas as tiragens de Georges Ohnet continuavam decendo a critérios da crítica de poesia, prefere o senti-
enormes mesmo depois das críticas destruidoras de Anatole
France e Lemaitre. O romance idealista continua mesmo
em Henry Bordeaux; e em Bourget, o género incorporou-se 99) Camilo Castelo Branco, 1825-1ÍS90.
à psicologia stendhaliana e à doutrina tradicionalista. Num Os Mistérios de Lisboa (líM.r>> ; A Filha do Arcediago (1855);
Amor de Perdição (1802); O Judeu (18(i6) ; A Queda dum Anjo
caso particular, o romance idealista conservou mesmo a (1866); Novelas do Minho (187&-1U77) ; Eusébio Macário (1879);
popularidade porque representando traços permanentes do A Brasileira de Prazins (18!i2), etc, ele.
Paulo Osório: Camilo, a Sua Vida, o Seu Génio, a Sua Obra. Por­
caráter de uma nacionalidade: no português Camilo Castelo to, 1908.
S. de Castro: Camilo Castelo Branco. Tipo e Episódios da Sua
Galeria. 3 vols., Lisboa, 1914.
J. G. Simões: "Eça c Camilo ou o Problema do Romance Portu­
l»l) Octave Feuillet, 1821-1890. guês". (In: Caderno de um Romancista. Lisboa, 1943.)
hv roman d'un jeune homme pauvre (1858) etc. Jac. do Prado Coelho: Introdução ao Estudo da Novela Camiliana.
li. Derics: Octave Feuillet. Paris, 1902. Coimbra, 1946.
I'»II2 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1983

mental Camilo ao irónico Eça de Queirós; reconhece em sua pureza nos romances de Eugène Le Roy ( 10 °), descre­
Camilo a suma novelística das qualidades da raça. A crítica vendo e um pouco idealizando a gente dura do Périgord.
estrangeira considerava a popularidade de Camilo em Por- Os romances rústicos de George Sand talvez não tives­
iu/.;al antes como um caso de psicopatologia social; mas se sem exercido a influência internacional que exerceram real­
isso pode estar certo quanto a Amor de Perdição, não está mente sem a influência simultânea do escritor alemão que
certo quanto a romances como A Brasileira de Prazins e inspirara o tema à romancista francesa. Auerbach ( 101 ) é
A Queda de um Anjo. Não por acaso Camilo começou hoje um escritor esquecido. Era um judeu, que passara a
imitando a Sue; em forma algo abstrusa o seu "cosmos meninice entre os lavradores e lenhadores da Floresta Ne­
literário" fixa os aspectos de uma transição social que ainda gra, adquirindo conhecimento íntimo da alma do camponês.
não acabou. Os contos rústicos, enfim, as Novelas do Minho, Mas nunca foi realmente "deles", ficou sempre "estran­
são apreciáveis sem ou com considerações de ordem so­ geiro"; e o leitor moderno sente a falsidade. É significativo
ciológica. que a explosão do anti-semitismo alemão, por volta de 1880,
lhe quebrou o coração; e isso literalmente. O Auerbach
E n t r e o romancista idealista à maneira de George Sand
de 1850 era algo como mais tarde um Bret H a r t e : tinha
e o romance moderno há um abismo: aquele não vê a rea­
descoberto um ambiente desconhecido, de atração irresistí­
lidade, porque não quer vê-la. É romântico num sentido
vel para leitores ingénuos porque alheio à questão social.
bem reacionário; mas é ao mesmo tempo oposicionista.
Mas amplitude e profundidade da sua repercussão em todos
Existe, com efeito, um "romantismo de oposição" que é
os círculos, depois da desilusão de 1848, evidenciam-se,
reacionário, refratário ao tempo. O "Biedermeier" revol-
lembrando-se dois escritores que partiram do conto rústico
ta-se contra os novos aspectos da vida. Foge das classes
à maneira de Auerbach; Bjoernson e Turgeniev. É indício
que realizam nas grandes cidades o progresso industrial,
de que esse género menor será capaz de despertar o talento
para as classes atrasadas, a gente do artesanato nas cida­
de grandes escritores.
dezinhas de província; ou então, foge da cidade, de qualquer
cidade, para os campos. Repete a reação bucolista do pré- O maior entre êlcs é o suíço Gotthelf ("'"). O fato
romantismo em face da revolução industrial. A própria é uma descoberta relativamente recente. Até não faz muito
George Sand, abandonando a capital para viver entre os
camponeses "inocentes" do Berry, tinha dado o exemplo 100) Eugène Le Roy, 1837-1907.
de uma retirada assim. Le moulin du Frau (1895); Jacquou le Croquanl (1899); Lcs
gens ã'Auberoque (1906).
M. Ballot: Eugène Le Roy, écrinaiit riwliquc. Paris, 1949.
Na França, o exemplo foi pouco imitado; o papel cen­
101) Berthold Auerbach, 1812-1882.
tralizador da capital, absorvendo a vida literária inteira, Schwarswaelder DorlaescMchl.cn (1843-1853); Barfuessele
impediu isso. O romance provinciano tomou entre os fran­ (1857); Joseph im Schnev <18(>0>, et.c.
A. Bettelheim: Berthold Auerbach, der Mann, sein Werk, sein
ceses outra direção, em Ferdinand Fabre e Flaubert, até Nachlass. Stuttgart, 1907.
em Daudet que teria sido o sucessor legítimo de George 102) Jeremias Gotthelf (pseud. de Albert Bitzius), 1797-1854.
Sand se não fosse para Paris, e se não tivesse tido muito Leiãen unã Freuãen cinca Schulmeisters (1838-1839); Uli der
Knecht (1841); Wie Baebi Jowaeger haushaltet (1843-1844);
<lo temperamento retórico dos seus conterrâneos meridio­ Kaethi die Grossmutler (1847) ; Uli der Paechter (1849); Die
nais. Só no fim do século, o motivo rústico reapareceu em Kaeserei in der Vehfreuãe (1850); Elsi die seltsame Maga (1850)
etc.
I')|l! O rio MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1985

tempo, Goltheif foi considerado como regionalista, e a em língua alemã. Pretende dar um idílio; mas a paixão
HIOMHOI i;i das suas descrições da vida rústica não podia ser das suas convicções reacionárias arrasta-o para regiões que
apreciada pelos simbolistas e decadentes; doutro lado, natu­ não pretendera abordar e de repente o vigário ortodoxo
ralistas c modernistas não acharam graça na sua ortodoxia revela primitivismos inesperados, chega a "mitologizar" os
protestante e política reacionária. Gotthelf era pastor no seus assuntos, lembra-se, com nitidez cada vez maior, dos
cantão de Berna, homem da velha estirpe entre gente da deuses pagãos da pré-história germânica. Os seus perso­
velha estirpe; assustaram-no os progressos do "espírito nagens crescem até tamanhos inverossímeis, os enredos
moderno", a democracia, a indústria. Chegou a odiar e transformam-se em mitos, enfim o verdadeiro herói é a
perseguir uns pobres alfaiates, sapateiros, carpinteiros, que Terra, Mãe dos deuses e homens. Gotthelf tem sido objeto
conforme o costume do tempo viajaram pelas aldeias em de estudos psicanalíticos; talvez fosse só a prodigiosa saúde
procura de trabalho, falando aos paroquianos de Gotthelf física e mental desse vigário de aldeia que preservou o
sobre socialismo e outras obras do Diabo. Os sermões de grande realista do perigo de perder o chão firme sob os
domingo não bastavam para combater o mal. Era preciso pés e cair no abismo da loucura. O didatismo, em parte
dar aos suíços outra leitura do que os jornais subversivos. insuportável, dos seus romances era a defesa da sua razão
Para esse fim começou o pastor a escrever romances de contra o romantismo fantástico dos seus sonhos de ima­
tamanho enorme, descrevendo, em torno de histórias sim­ ginação atávica. Em toda a literatura europeia do século
ples, a vida quotidiana do camponês suíço com a minúcia X I X só existe mais um exemplo de primitivismo compa­
de um sociólogo, enchendo os intervalos da narração com rável: Alexis Kivi ( 1 0 3 ), o primeiro grande escritor fin­
digressões sobre política, religião, construção de estábulos, landês que não escreveu em sueco e sim na língua dos
adubo artificial e tudo o que um camponês direito tem camponeses primitivos da sua terra. Os Sete Irmãos é uma
que saber. É literatura popular no sentido mais estreito espécie de robinsonada: homens que fogem para o deserto
da palavra, sem intenções literárias. Por isso, falham todas nórdico, criando uma aldeia. Nesse grande romance ressus­
as comparações já tentadas: com Scott, com Balzac, com cita o espírito selvagem da Kalevala; mas Kivi acabou louco.
Hamsun. Gotthelf é um escritor primitivo; e só uma com­ O caso de Gotthelf, sobretudo, que passou durante
paração pode estar certa, uma comparação muito grande: •decénios por mero regionalista suíço e é hoje reconhecido
com Homero. A crítica moderna não recuou disso. A obra como um dos grandes escritores da literatura universal, é
do suíço é uma enciclopédia da vida rural, assim como prova suficiente das possibilidades surpreendentes que en­
Homero fora a enciclopédia dos gregos: Gotthelf é capaz cerra aquela literatura provinciana e rústica; seu valor não
da elevação mais sublime e do naturalismo mais grosseiro;
é o escritor mais primitivo, talvez o escritor mais vigoroso
103) Alexis Kivi, 1834-1872.
Kullevo (1864); O Sapateiro nos Campos (1864); Leia (1869);
Edição por R. Hunziker e H. Bloesch, 24 vols., Muenchen, 1911- Os Sete Irmãos (1870).
1916. V. Tarkiainen: Alexis Kivi. 3." cd. Helsinki, 1916. (Em língua
R. Hunziker: Jeremias Gotthelf. Fraueníeld, 1927. finlandesa.)
K. Muschg: Jeremias Gotthelf. Zuerich, 1931. V. A. Koskenniemi: Alexis Kivi. Helsinki, 1943. (Em língua fin­
landesa.)
W. Guenther: Jeremias Gotthelf. Muenchen, 1936.
TI. M. Waidson: Jeremias Gotthelf. Oxford, 1953. P. El: A personalidade de Alexis Kivi. Helsinki, 1950. (Em lín­
Kr. Soobnss: Jeremias Gotthelf. Giessen, 1954. gua finlandesa).
I«)flí) OTTO M A B I A CARPEAUX HISTÓBIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1987

se limita à descoberta de novos ambientes. Outro caso as­ sem a profundidade deste, evidentemente. Essa profun­
sim, num pólo oposto do mapa geográfico e do mapa geoló­ didade encontra-se naquelas peças de ambiente comercial
gico, é o de Ostrovski. da região do Volga: A Tempestade, a tragédia de uma pobre
As comédias de Ostrovski ( 104 ) só foram tarde tradu­ moça quebrada pela tirania da família supersticiosa, egoísta
zidas para idiomas ocidentais. Surpreenderam os leitores e fechada, é uma das grandes obras da dramaturgia uni­
assim como tinham surpreendido os contemporâneo russos versal. E em certas horas, escrevendo peças históricas e
do comediógrafo: pela descoberta de um ambiente inteira­ fantásticas, Ostrovski também foi poeta.
mente novo, o mundo desconhecido dos comerciantes da Mas o génio do provincianismo russo é Lesskov ( 1 0 5 ) :
Rússia oriental, homens imundos e supersticiosos, em tra­ escritor didático, de tendências reacionárias nacionalistas
jes meio asiáticos, tiranizando a família, roubando os fre­ e religiosas, mas sem a agressividade de Dostoievski. Em
gueses, confiando só nos padres da Igreja russa que eram, compensação: um grande poeta em prosa. Lesskov é na
naquela região do Volga, homens da mesma estirpe. Nem verdade o que Turgeniev parecia nos seus começos: o
todas as comédias de Ostrovski passam-se nesse mesmo especialista da vida rural russa antes da abolição da ser­
ambiente. Outras têm por assunto a vida em Moscou e vidão dos camponeses. Na literatura russa, tão rica em obras
Petersburgo por volta de 1860, os funcionários subornáveis, de simpatia para com os pobres e humildes, nada existe de
os prestamistas, os policiais violentos, os estudantes que tão comovente como os sofrimentos do servo maltratado
discutem problemas filosóficos e políticos durante noites em "O Cabeleireiro"; em outro conto, "Lady Macbeth no
inteiras, as mulheres emancipadas e os niilistas teóricos distrito de Mzensk", aparece com nitidez terrível a per­
— todo esse mundo que o público ocidental já conhecia versão dos caracteres e paixões, pervertidas pelo direito
através dos romances russos. Falava-se em "théâtre de ilimitado do proprietário de escravos de mandar e matar.
moeurs russes". Hoje, Ostrovski ocupa lugar honroso no
repertório internacional. Em comédias ligeiras e nem sem­
pre ligeiras, como Pobreza não é Vergonha, Chegaremos a 105) Nicolai Semionovitch Lesskov, 1831-1895.
um Entendimento, Um Bom Emprego, esse crítico sagaz da Sem Saída (1864) ; Lady Macbclh no Distrito de Mzensk (1865) ;
Até as Últimas Consequências (1870) ; Os Clérigos (1872) ; O An­
sociedade russa não é muito inferior a Molière, embora jo Selado (1873) ; O Romeiro Encantado (1873) ; Uma Família
em Agonia: Crónica dos 1'ríncipcs Prolosanov (1874); O Justo
(1877) ;0 Cabeleireiro (1878) ; O Exorcismo (1880) ; A Pulga de
Aço (1881); O Charlatão Panfalão (1887); A Bela Asa (1890);
104) Alexei Nikolaievitch Ostrovski, 1823-1886. Edição por R. J. Scmcntkov.sk!, 12 vols., Petersburgo, 1902-1903.
Chegaremos a um Entendimento (1850) ; A Noiva Pobre (1853); R. J. Sementkovski: Lesskov. Estudos críticos. Petersburgo, 1897.
Pobreza não é Vergonha (1854); Um Bom Emprego (1856) ; A (Em língua russa.)
Tempestade (1860); Dias Difíceis (1863); O Falso Demétrio N. O. Lesner: "Lesskov". (In: História da Literatura Russa no
(1867); A Floresta (1871); Lobos e Ovelhas (1875). Século XIX, edit. por D. N. Ovsianiko-Kulikovski. Vol. IV. Mos­
Edição por M. Pisarev, 10 vols., Petersburgo, 1904-1905. cou 1910.( (Em língua russa.)
J. Patouillet: Ostrovski et son théâtre ães moeurs. Paris, 1912. A. Volynski: Lesskov. 2." edição. Leningrad, 1923. (Em língua
N. K a s i n : Estudos sobre Ostrovski. 2 vols., Moscou, 1812-1813. russa.)
(Em língua russa.) A. Kovalevsky: Nikolai Semionovitch Lesskov, peintre méconnu
N. E. Eíros: Ostrovski. Petersburgo, 1922. (Em língua russa.* de la vie nationalc russo. Paris, 1925.
N. Dolgov: Ostrovski. Vida e obras. Petersburgo, 1923. (Em lín- B. E i c h e n b a u m : "Lesskov c a prosa moderna". (In: Literaturi.
Kiiu russa.) Leningrad, 1927.) (Em língua russa.)
N. Piksanov: Ostrovski. Literatura e Teatro. Ivanovo, 1923. (Em E. Reisser: "Die Lesskov-Forschung der letzten J a h r e " . ( I n :
IÍIIKUU russa.) Zeitschrift fuer slavische Philologie, VI, 1929.)
I')ftí! OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDJ;
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Ao mesmo tempo, Lesskov, de imparcialidade olímpica, e todos esses personagens falam uma língu^
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recem em Gogol e Turgeniev, nem em Tolstoi e Dostoievs- de uma imensa epopeia russa: fragmento* /'
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humorísticos, mas cheio de personagens inesquecíveis — mas solidamente construídas. Podia esperar T^ ^> /t
1988 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1989

Ao mesmo tempo, Lesskov, de imparcialidade olímpica, e todos esses personagens falam uma língua saborosa, meio
quase goethiana, sentia simpatia igual para com os senhores, arcaica, meio gíria, a língua autêntica do povo russo e que
cujo poder estava condenado a desaparecer; e no romance tampouco se encontra nos outros grandes escritores russos
Uma Família em Agonia: Crónica dos Príncipes Proto- do século X I X ; língua que Lesskov enriqueceu com neolo­
sanov, erigiu ao antigo sistema social da Rússia um mo­ gismos deliciosos e uma sintaxe toda pessoal. Pela lingua­
numento. gem e o estilo, esse reacionário Lesskov é o maior realista
Até aí, Lesskov não é muito diferente da chamada da sua literatura, mais "do povo" do que qualquer outro.
"literatura dos senhores rurais", à qual Turgeniev e Tolstoi Lesskov também é "povo" pela maneira de narrar, imparcial,
também pertencem. Mas Lesskov não era, como eles, um imperturbável, seco, sem lirismo; um narrador de histórias
senhor rural; nem era um intelectual. Era um pequeno- populares, sentencioso e moralista. Dá só o enredo nu,
burguês, caixeiro-viajante a serviço de uma firma inglesa; sem explicações psicológicas, assim como fizeram os nar­
e como pequeno-burguês, era reacionário. Não ignorava a radores de histórias de todos os tempos. A não ser naqueles
necessidade de reformas; ao contrário, pretendeu contribuir romances políticos, bastante inferiores, Lesskov não revela
ao progresso russo por meio de vasta atividade didática, nunca tendências; tampouco há tendência na novela O Ro­
escrevendo brochuras e folhetos sobre o comércio de livros, meiro Encantado, que durante muito tempo foi considerada
a iluminação a gás e o uso de adubos artificiais, como um como um Gil Blas russo, mas que tem sentido diferente:
Gotthelf. Mas o progresso político inspirava-lhe medo, e é a romaria do homem russo, através de todas as misérias
quando a agitação política dos estudantes revolucionários do seu país, em busca de si mesmo, da sua alma imortal,
rebentou em conspirações e atentados contra o sistema presa no corpo imperfeito. A simpatia de Lesskov para
tzarista, Lesskov escreveu dois romances ultra-reacionários, com aqueles sectários foi mais profunda do que se pensava.
denunciando e advertindo. A consequência foi um artigo Êle mesmo ocupava-se de literatura eclesiástica bizantina,
violento do crítico radical Pissarev, pedindo o ostracismo aderindo intimamente a teses heréticas de Orígenes, escre­
de Lesskov; e assim foi feito. Durante vinte anos, Lesskov vendo enfim vidas de santos, nas quais o sacro e o profano
continuou a escrever, mas sempre "fora da literatura". Via­ se encontram de maneira maravilhosa, até se revelar aquela
java pela Rússia inteira, conheceu o país como nenhum doutrina dostoievskiana, tão cara à alma russa: o pecado
outro dos grandes escritores da sua época, descobriu e como caminho para a salvação.
imortalizou classes e camadas do povo russo que não apa­ Os contos de Lesskov constituem algo como fragmentos
recem em Gogol e Turgeniev, nem em Tolstoi e Dostoievs- de uma imensa epopeia russa: fragmentos da obra que
k i : os comerciantes sujos e meio asiáticos de Moscou e das Gogol pretendera escrever e não escreveu. Em meio dessa
cidades da região do Volga (O Exorcismo); os artesãos epopeia movimentam-se inúmeros caracteres dramáticos,
provincianos, orgulhosos do seu métier (A Pulga de Aço); modelados como pela mão de um Shakespeare popular —
os sectários de credos heréticos e costumes e superstições Lady Macbeth no Distrito de Mzensk já inspirou uma ópera
medievais (O Anjo Selado); e sobretudo o clero russo, ao trágica de Chostakovitch — e regidos todos pelo sereno
qual dedicou o grande romance Os Clérigos, incoerente senso de justiça de Lesskov, que criou esse mundo. A sua
como uma coleção de contos, em parte trágicos, em parte obra tem algo de permanência de velhas casas, modestas
humorísticos, mas cheio de personagens inesquecíveis — mas solidamente construídas. Podia esperar. Durante decê-
I <)«)() OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1991

niim, Lesskov ficou no ostracismo; hoje, é considerado cracia rural, como Turgeniev; mas era espanhol, católico
mino o narrador autêntico do povo russo e um grande e fundamente reacionário. O seu talento poderoso de obser­
nriista. Lesskov está firmemente integrado no seu espaço; vador de costumes regionais estava a serviço de uma sau­
m.iH está fora do tempo, como um escritor de todos os tem­ dade romântica dos bons velhos tempos patriarcais, nas
pos russos, permanente. Escenas montanesas e no romance Sotileza. Mas neste
romance, a descrição do porto de Santander revela em Pe­
Fundo religioso, embora de menor profundidade, não
reda um talento extraordinário que nenhum outro dos "rús­
c raro nos narradores rústicos e constitui a base de um
ticos" possuía: era um grande paisagista. Em Penas arriba,
movimento literário inteiro na Dinamarca: a chamada "li­
a própria paisagem é o herói do romance que se compõe
teratura dos mestres-escolas", homens que devem a sua
de cenas incoerentes, sendo os destinos dos homens como
cultura às Universidades populares do grundtvigianismo.
que fragmentados pelo poder da terra montanhosa e do mar
Neles há a oposição do camponês da Jutlândia contra a
lá fora. Pereda, como caso isolado, é um grande romancis­
capital insular Kjoebenhavn, a oposição do "homem do
t a ; apenas não podia ter sucessores. Um Palácio Val­
povo" contra os intelectuais. Entende-se que os romances
dês ( 1 0 8 ), muito mais lido fora e dentro da Espanha, só é
e contos realistas dos Christian Thyregod, Anton Nielsen,
um narrador hábil, um aristocrata reacionário que resolveu
Zakarias Nielsen e dos seus discípulos noruegueses Kris-
viver — e viver bem — da sua pena fértil, cedendo ao
tofer Janson e Hans Aanrud não estão em nível literário
gosto do público burguês. Os seus romances são idílios
muito alto. O maior entre eles era o pastor Jakob Knud-
no ambiente do exotismo de uma Astúria ou Andaluzia
sen ( 1 0 6 ), que com algo de exagero poderia ser chamado
algo falsificada. O fato de que um bom romance seu,
de "Gotthelf da Dinamarca".
Hermana San Sulpicio, conseguiu eclipsar a Pereda e até
Um centro da novela rústica é a península ibérica; lá, a Pérez Galdós, constitui o seu pecado, que pagou, como
o romance reacionário de Fernán Caballero e o "costum- Lesskov, com o ostracismo exigido pela crítica. Mas o
brismo" dos "articulistas" tinham preparado o terreno para público lhe ficou fiel; e não sem razão. O motivo principal
Pereda ( 1 0 7 ), o grande regionalista, admiração máxima de da literatura rústica, a luta entre os velhos costumes e a
Menéndez y Pelayo. Pereda pertencia à pequena aristo- industrialização, encontrou em La aldca perdida realização
notável. E em Tristán chegou a escrever notável romance
10G) Jacob Knudsen, 1858-1917.
Den gamle Praest (1899); Gaering (1902); Afklaring (1902);
Sind (1903); Angst (1912); Moã (1914). 108) Armando Palácio Valdês, 185:!-19:!!!.
C. Roos: Jacob Knudsen, era Aandspersonligheã. 2.a edição. Kjoe­ José (1885); Riverita (1886); Maximino (1887); El cuarto poder
benhavn, 1924. (1888); Hermana San Sulpicio (1889); T,a cupuma (1891); La fé
(1892); Los majos de Cádis (1896) ; ha alegria dei capitán Ribot
107) José Maria de Pereda, 1833-1906. (1899); La aldeã perdida (!!)():!) ; Tristán o el pesimista (1906);
Escenas montanesas (1864-1871); Sotileza (1884); La Montálvez Papeies dei ãoctor Angélico (1911) ; Novela de un novelista
(1887); La Puchera (1888); Penas arriba (1894) etc. (1921).
Edição da Academia Espaííola, 17 vols., Madrid, 1899-1907. L. Bordes: "Armando Palácio Valdês". (In: Bulletin Hispanique,
M. Menéndez y Pelayo: Prólogo da edição citada. I, 1899.)
1.. Pfandl: Pereda. Muenchen, 1920.
J. M. Cossío: La obra literária de Pereda. Santander, 1934. A. Garcia Rueda: Armando Palácio Valdês. Madrid, 1925.
.]. Cump: José Maria de Pereda, sa vie, son oeuvre et so7i temps. I. A. Balseiro: "Palácio Valdês". (In: Novelistas espanoles mo­
Piu-is, 1937. dernos. New York, 1933.)
U. Gullón: Vida de Pereda. Madrid, 1944. M. Rios: Armando Palácio Valdês. New York, 1947.
1992 OTTO MABIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1993

psicológico. O reacionarismo dessa "corrente rural", que tido, é mais espanhol do que o intelectual Sarmiento com
continua, fica evidente em Concha Espina ( 1 0 9 ), espécie o seu idealismo anglo-saxônico de educador e civilizador.
de George Sand clerical e anti-socialista, escritora predileta Unamuno considerava mesmo a Hernandez como o mais
das ditaduras espanholas. espanhol de todos os poetas hispano-americanos, chamando
Na América, o saudosismo rústico tinha um modelo a atenção para um motivo arquiespanhol, a "soledad", em
na atitude de Cooper; o recuo doloroso do meio-selvagem Martin Fierro, sendo que começa assim o poema:
perante a civilização agressiva. O caso se deu na Argentina,
quando os intelectuais da geração de Sarmiento e Mitre "Aqui me pongo a cantar
tinham derrubado a ditadura do caudilho Rosas, desenvol­ ai compés de la vigúela,
vendo a capital Buenos Aires e colonizando o interior que el hombre que lo desvela
com imigrantes europeus. A vítima era o gaúcho. Sempre una pena extraordinária,
esse homem primitivo tivera uma poesia a seu gosto, melan­ como la ave solitária
cólica e satírica, sentenciosa e jocosa, a "poesia gauchesca" con el cantar se consuela...";
dos Hilário Ascasubi (Santos Vega, 1851/1872) e Estanislao
dei Campo (Fausto, 1866), revelando a tendência de reunir seis versos de simplicidade "extraordinária" — mas o novo
fragmentos rapsódicos em poemas narrativos até formarem sentido emocional que Hernandez arranca a essa palavra
espécie de epopeias: tendência bem primitiva. Quando trivial já basta para autenticar um grande poeta, o último
a tragédia do gaúcho se consumia, nasceu-lhe o grande poe­ da sua raça.
ta'épico, grande mesmo: José Hernandez ( 1 1 0 ). Martin Saudosismos semelhantes produziu o capitalismo norte-
Fierro é hoje considerado como poema revolucionário, seja americano. Bret Harte ( n i ) , que tinha assistido ao "gold
exprimindo a resistência nacionalista contra o imigrante rush" na Califórnia, pretendeu erigir um monumento aos
europeu, seja a resistência do homem livre dos campos seus camaradas, homens rudes e meio selvagens, debatendo-
contra o policiamento que só serve ao capitalismo. Martin se em condições perigosas; no sertão tinham criado cam­
Fierro, caçado pela civilização, é um anarquista; neste sen- pos, aldeias e cidades, submetendo-se à lei que só a sua
própria vontade lhes impôs. Essa história robinsonesca
parece um tema permanente da alma anglo-saxônica, feita
109) Concha Espina, 1877-1955. para fundar colónias, impérios e parlamentos. Na época,
La esfinge maragata (1913); El metal de los muertos (1920);
Altar mayor (1926). Bret Harte encantou o mundo inteiro pela mistura hábil
I. Boussagol: "Madame Concha Espina". (In: Bulletin Hispani- de rudeza e sentimentalismo. Não era um artista, mas um
que, XXIV, 1923.)
R. Cansino Assens: La obra de Concha Espina. Madrid, 1924. grande técnico do conto: a posteridade não sabe bem se
110) José Hernandez, 1834-1886.
Martin Fierro (1872); La vuelta de Martin Fierro (1879).
Edições por E. F. Tiscornia, Buenos Aires, 1925, e por Ric. Rojas,
Buenos Aires, 1937. 111) Francis Bret Harte, 1836-1902.
C. O. Bunge: Martin Fierro. Buenos Aires, 1915. Tales of the Argonauts (1875); Gabriel Conroy (1876).
L. Lugones: El Payaãor. Buenos Aires, 1916. G. R. Stewart: Bret Harte, Argonaut and Exile. New York,
J. M. Salaverría: El poema de la Pampa. Madrid, 1918. 1931.
K Martínez Estrada: Muerte e transfiguración de Martin Fierro J. B. Harrison: Prefácio de: Bret Hart: Representative Se-
2 vols., México, 1948. lection. New York, 1941.
I')')l Oiro IVIAHIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1995

Iriu (|iic abençoar ou amaldiçoar a memória do inventor da época, sucesso bem merecido, pelo extraordinário talento
"MIIOI I Htory"; tnas Bret Harte não é responsável pelos seus narrativo e pelas magníficas descrições da Natureza. Mas
112
MIHTNMIIVS. O elogio custa menos no caso de Cable ( ), só recentemente o descobriu a crítica norte-americana, reco­
porque a sua repercussão era menor. Imortalizou outro nhecendo nele um crítico sagaz das convulsões políticas,
inundo agonizante, os bairros de negros e mulatos de New das lutas raciais e da industrialização.
Orlcans, que conservam, com um francês meio africanizado,
meio anglicisado, os costumes e sentimentos da época colo­ O conto rústico não encontrou muitos imitadores na
nial francesa, do século X V I I I . Cable tampouco era um Alemanha de Auerbach, rapidamente industrializada. O
grande escritor; mas um dos poucos que conseguiram, como coração da resistência, sej"a sentimental, seja social, estava
Washington Irving, romantizar uma paisagem dos Estados na pátria de Sealsfield, na Áustria, atrasada economica­
Unidos, comunicando ao norte-americano médio o senti­ mente, mas possuindo tradição ininterrupta. E o próprio
mento de uma tradição cultural. Esse saudosista do mais caráter da literatura austríaca, alheia ao titanismo alemão,
antigo "Old South" é uma "pièce de résistance" do patri­
é antes elegíaco; e é menos intelectual do que popular.
mónio espiritual da América.
Diferenças linguísticas e até o nacionalismo antiaustríaco
O que falta aos saudosistas Bret Harte e Cable é a dos eslavos não impediram a comunidade da atitude lite­
compreensão sociológica, então talvez ainda inacessível aos
rária, "rústica", nas diferentes literaturas do Império mul­
americanos natos. Teve-a um imigrante de génio, o ex-
tinacional. A tcheca Bozena Nemcová ( 1 1 3 ), patriota es­
padre austríaco Karl Postl, que fugira do convento para
procurar na América a liberdade e a aventura. Encontrou lava, admiradora de George Sand, adquiriu algo como fama
a aventura, mas não a liberdade: o Sul dos Estados Unidos mundial pela novela sentimental A Avó; as suas obras
ainda era escravocrata. Tampouco encontrou fortuna. Para principais tratam da vida camponesa. O sentido da sua
viver, escreveu, em língua alemã, romances e contos que literatura modesta é social: doeu-lhe o destino dos pobres
mandou aos editores europeus, assinando-os com o pseudó­ rapazes e garotas de aldeia que emigraram para Viena,
nimo anglo-saxônico Charles Sealsfield ( 1 1 2 _ A ). Teve, na tornando-se operários e criadas. Mas deviam emigrar; o
motivo revela-se no conto "No Castelo e Embaixo do Caste­
112) George Washington Cable, 1844-1925. lo", no contraste violento entre a vida dos aristocratas aus­
Old Creole Days (1879); The Granãissimes (1880); Madame tríacos de língua alemã e a miséria dos camponeses tchecos,
Delphine (1881).
L. L. C. Biklé: George W. Cable. New York, 1928. meio servos, na aldeia. O mesmo motivo inspirou, porém,
112 A) Charles Sealsfield (pseud. de Karl Postl), 1793-1864. a literatura de uma senhora daquela aristocracia feudal,
Der Virey unã ãie Aristokraten (1835); Lebensbilãer aus zwei
Hemisphaeren (1835-1837); Das Kajuetenbuch (1840).
Edição de Obras escolhidas por O. Rommel, 8 vols., Leipzig,
1919-1921.
A. B. Faust: Charles Sealsfield, der Dichter beider Hemis­ 113) 'Bozena Nemcová, 1820-1862.
phaeren. Weimar, 1897. Contos e Lendas Nacionais (1846-1847); A Avó (1855); A Al-
W. P. Dallmann: The Spirit of America as interpreteã in the deia nas Montanhas (1856).
Works of Charles Sealsfield. St. Louis, 1935. A. Lelek: Bozena Nemcová. Praha, 1920. (Em língua tcheca.)
K. Castle: Der grasse Unbekannte. Das Leben von Charles V. Tille e M. Novotny: Bozena Nemcová. 5.a edição. Praha, 1939.
Sealsfield. Wien, 1952. (Em língua tcheca.)

A
19% OTTO M A R I A CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1997

Mário von Ebner-Eschenbach ( 1 1 4 ), nos contos da coleção são magistrais, se bem melodramáticas. Mas isso parece a
Dorfund Schlossgeschichten (Contos da Aldeia e do Cas­ tentação de toda literatura popular, e tampouco lhe escapou
telo). No conto "Er laesst die Hand kuessen", a nobre baro­ o seu amigo Rosegger ( 1 1 8 ), narrador inesgotável das lem­
nesa chegou a lançar violenta acusação contra os seus pares, branças da sua mocidade nas florestas da Estíria. Este era
tratando aliás um assunto que Lesskov também tratara. um camponês autêntico, o mais autêntico entre todos os
Marie von Ebner-Eschenbach apiedava-se do povo, mas não contistas rústicos da Europa. Daí a sinceridade comovente
só do povo, e sim de todos os que sofrem, sobretudo das que conquistou aos seus contos modestos uma fama mundial,
vítimas da hipocrisia religiosa entre os seus pares. Contudo, imerecidamente efémera.
apesar das suas fortes convicções humanitárias, a baronesa Ao conto rústico de todas as regiões são comuns certos
ficou conservadora e católica; gestos revolucionários ou elementos estilísticos, ao ponto de constituir um estilo
espetaculares teriam sido contra as leis da boa educação p r ó p r i o : sentimentalismo idílico com forte iluminação hu­
literária, e o seu gosto fora formado, como o de seu patrício morística ("sorriso entre lágrimas"), saudosismo reacioná-
Stifter, por Goethe. Nunca ela perdeu o equilíbrio emo­ rio dos bons velhos tempos patriarcais, e simpatia viva,
cional. O sentimento mais forte encontrou em Marie von entre indignada e revoltada, para com os pobres e humildes.
Ebner-Eschenbach expressão calma, "emotion recollected Esses elementos estilísticos e ideológicos encontram-se en­
in tranquillity". Alguns dos seus contos são perfeitos como tre 1830 e 1880 em toda a parte da literatura novelística.
poesias de Wordsworth. O espanhol Pedro António de Alarcón ( 11T ), "costumbrista"
O "populismo" austríaco apresenta-se plebeu e agressi­ pitoresco nos seus bem conhecidos contos regionais, parece
vo em Anzengruber ( 1 1 5 ), realista duro nos seus romances realista; revela a alma romântica do seu folclorismo no
rústicos, enquanto as peças dramáticas revelam o vienense grande romance "à thèse" O escândalo, de tendência idea­
nato, intelectual pequeno-burguês, anticlerical apaixonado. lista, quer dizer, católica e até clerical. E "romantismo
Da grande tradição teatral da sua cidade herdou o senso em disfarce realista" é bem uma definição daquele estilo.
infalível do efeito cénico — algumas das peças em dialeto Mais romântico do que parecia, também era o português
J ú l i o Dinis ( 1 1 8 ), autor para moças em que uma crítica

114) Marie von Ebner-Eschenbach, 1830-1913. 116) Petri Kettenfeier Rosegger, 1843-1918.
Bozena (1876); Lotti die Uhrmacherin (1883); Oversberg (1883); Die Schriften des Waldschulmeistcrs (1875) ; Ais ícli jung noch
Dorf-unã Schlossgeschichten (1883-1886); Das Gemeindekinâ war (1895), etc.
(1887); Unsuehribar (1890); Die Poesie das Vnbewussten (1893); A. Vulliod: Pierre Rosegger, Vhovime. et Vovuvrc. Paris, 1912.
Das Schaeãliche (1894); Rittmeister Brand (1896) etc. R. Plattensteiner: Peter Rosegger. T.oipzlu, 1!>25.
Edição por A. Bettelheim, 12 vols., Leipzig, 1928. R. Latzke: Peter Rosegger. Sein Lcben und Sclia/fen. Graz,
A. Bettelheim: Marie von Ebner-Eschenbach. Berlin, 1900.
E. 0'Connor: Marie von Ebner-Eschenbach. London, 1928. 1953.
J. Muehlberger: Marie von Ebner-Eschenbach. Eger, 1930. 117) Pedro António de Alarcón, 1833-18!) 1.
El sombrero de três picos (1874); Kl escândalo (1875).
115) Ludwig Anzengruber, 1839-1889. I. Romano: Pedro António de Alarcón, cl novelista romântico*
Der Pfarrer von Kirchfeld (1870); Der Meineidbauer (1871); Madrid, 1933.
Die Kreuzelschreiber (1872); Der Gwissenswurm (1874); Das
vier te Gebot (1877); Der Schanãfleck (1878); Der Sternsteinhof 118) Júlio Dinis, 1839-1871.
(1885). As Pupilas do Senhor Reitor (1866) ; A Morgadinha dos Cana­
viais (1868); Uma Família Inglesa (1868); Os Fidalgos da Casa.
A. Bettelheim: Ludwig Anzengruber. 2.a ed. Dresden, 1898. Mourisca (1871).
A. Kleinberg: Ludwig Anzengruber. Stuttgart, 1921. Eg. Moniz: Júlio Diniz e a sua obra. 2 vols., Lisboa, 1924.
I«)<)l! OITO MABIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1999

benevolente pretende descobrir simpatias pela sociologia é o Dickens austríaco; Júlio Diniz é o Dickens português;
pnlriarcíilista de Le Play. O sentimentalismo sufoca todo Neruda é o Dickens tcheco etc. A comparação não está
o resto no Cuore, do italiano de Amicis ( 1 1 9 ), que também de todo errada: o grande humorista inglês também é muito
é o populista da Carroza di tutti, quer dizer, do ônibus, sentimental, e a sua simpatia com os pobres,, a sua revolta
do veículo democrático; De Amicis aderiu, enfim, ao so­ contra as injustiças sociais, não chegam a reivindicações
cialismo. A mistura de sentimentalismo e humorismo chega revolucionárias; ao contrário, as suas últimas conclusões
a um equilíbrio feliz no tcheco J a n Neruda ( 1 2 0 ), cronista eram anti-socialistas, ou pelo menos antitrabalhistas. Aque­
encantador da "Kleinseite", do bairro de Praga em que les "rústicos" são realmente dickensianos; e não só eles.
a pequena burguesia mora entre palácios barrocos da aris­ O exemplo era irresistível. Contudo, entre os imitado­
tocracia. Mas em certas horas contemplativas, o folheti­ res e o imitado existe mais do que uma diferença de ní­
nista engraçado descobriu em si mesmo profundezas de vel e valores. Há quem despreze a Dickens; mas a relei­
misticismo arquieslavo, cantando Canções cósmicas. O hu­ tura das suas obras, que temos lido pela primeira e última
morismo saboroso de- um contador de anedotas prevalece vez na mocidade, é uma surpresa: Dickens, que já parecia
no húngaro Mikszáth ( 1 2 1 ) ; mas também conhece os pro­ autor para crianças, moças e velhas damas, é um escritor
blemas da gentry, da pequena aristocracia rural, já agoni­ de força demoníaca, criando como um Shakespeare ou
zante, do seu país, dedicando-lhes um romance sério, O Balzac uma floresta de criaturas. Ninguém entre aqueles
negócio do jovem Noszty com Maria Tóth, quase um estudo "rústicos" se lhe compara. Há quem explique a diferença
sociológico e, em todo caso, uma obra notável. pelo método de T a i n e : o ambiente de Dickens não era a
Para caracterizar aqueles elementos comuns em escri­ calma província espanhola ou austríaca, mas a enorme ci­
tores tão diferentes, os historiadores e críticos das respec­ dade de Londres, cheia de fumaça das fábricas, sacudida
tivas literaturas escolheram unanimemente a mesma com­ pela agitação revolucionária dos Chartistas; e Dickens se­
paração: Palácio Valdês é o Dickens espanhol; Rosegger ria o romancista dessa época selvagem da industrializa­
ção ( 1 2 2 ). Então Dickens seria realista como Balzac: assim
como nos romances de Balzac aparece a Paris de 1840, assim
119) Edmondo De Amicis, 1846-1908
La vita militare (1868): Cume (1886): La carrozza di tutti nos romances de Dickens, a Londres de 1830 ou 1850. Esse
(1889) etc. "realismo", porém, é o próprio problema da crítica dicken-
C. Corradini: De Amicis. Milano, 1909. siana.
,120) Jan Neruda, 1834-1891.
Livro de versos (1867); Histórias ãa Kleinseite (1878); Canções Os contemporâneos engoliram os romances de Dic­
cósmicas (1878); Canções a de Sexta-feira (1896).
A. Novak: Jan Neruda. 3. ed. Praha, 1921. (Em língua tcheca.) kens ( 1 2 3 ). Reconheceram neles todos os horrores do seu
121) Kalman Mikszáth, 1847-1910.
Nossos irmãos eslovacos (1881); Os senhores fidalgos (1884); 122) J. L. e B. Hammond: The Age of lhe Chartists. London, 1930.
O assédio de Besztercze (1895); O guarãa-Chuva milagroso
(1895); O negócio do jovem Noszty com Maria Tóth (1908). 123) Charles Dickens, 1812-1870.
M. Rubinyi: A vida e as obras de Kalman Mikszáth. Budapest, Sketches by Boz (1834-18:S(>) ; Posthumous Papers of the Pick-
1917. (Em língua húngara.) wick Club (1836-1837) ; Adoentares of Oliver Tvoist (1837-1839);
F. Zsigmond: A individualidade literária de Mikszáth como Life anã Aâventures of Nicholas Nickleby (1838-1839); The Old
documento histórico. Budapest, 1923. (Em língua húngara.) Curiosity Shop (1840-1841) ; Barnaby Rudge (1841); A Christmas
A. Schoepflin: Kalman Mikszáth. Budapest, 1941. (Em língua Carol in Prosa (1843) ; Life anã Adventures of Martin Chuzzle-
luiiiKura.) urit (184S-1844); The Chimes (1844); The Cricket on the Hearth
2000 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2001

tempo, c encontraram neles todas as esperanças do seu rível cárcere dos devedores insolventes; experimentou de­
tempo. Dickens parecia-lhes o primeiro e maior realista; pois o trabalho de crianças na época da revolução industrial,
nohrct urio parecia assim àqueles que não conheciam Balzac. frequentou as horríveis escolas para pobres, trabalhou no
MCNIIIO aos leitores de Balzac o realismo dickensiano afi- escritório de um advogado, tornou-se repórter, conhecia
}>urava-se tão mais poderoso como a Londres industrial era a cidade inteira, todos os distritos, das prisões até aos
mais barulhenta e vigorosa do que Paris, meio aristocrática, nobres bairros residenciais, para os quais voltou como escri­
meio pequeno-burguesa. E até hoje, o leitor de Bleak House tor consagrado e rico, quase como um dos lordes aos quais
recebe uma impressão inesquecível da cidade enorme nas o avô servira, até ser recebido como rei das letras inglesas
névoas; a descrição do "fog" que invade a metrópole é pela rainha da Inglaterra. Os seus romances também são
tão impressionante, tão "moderna", como a dos ruídos inin­ como grandes cidades, cheias de pessoas de todas as cama­
terruptos e sinistros do porto de Londres em Our Mutual das: assim como o pré-romantismo descobrira a paisagem
Friend. Com efeito, ninguém conhecia melhor a cidade industrializada, assim Dickens descobriu a cidade indus­
do que Dickens, neto de um "butler" da casa do nobre Lord trial, e assim como os pré-românticos Dickens se indignou,
Crewe, filho de um pequeno-burguês que passou pelo ter- se revoltou; após a morte da pobre criança tuberculosa
Jo, morta pelo trabalho, em Bleak House, Dickens dirige
uma apóstrofe patética ao mundo, digna de todas as revoltas
(1845); Dombey anã Son (1846-1848) ; David Copperfielã (1849-
1850); Bleak House (1852-1853); Hard Times (1854); Little sentimentais de 1770. A sua indignação de homem pobre
Dorrit (1855-1857); A Tale of Two Cities (1859); Great Expec- contra a gente grã-fina exprime-se às vezes de maneira tão
tations (1860-1861); Our Mutual Friend (1864-1865).
Edição por A. Waugh, W. Dexter, T. Hatton e H. Walpole, 23 intensa que Shaw chamou a Little Dorrit "um livro mais
vols., London, 1937-1938. subversivo do que Capital de Marx"; a prisão, nesse grande
J. Forster: The Life of Charles Dickens. 1872-1874. (19.a ed.,
London, 1928.) romance, é o símbolo da sociedade inteira. T. A. Jackson
G. K. Chesterton: Charles Dickens. London, 1906. pretendeu demonstrar que Dickens era um "radical", um
F. Coenen: Charles Dickens en de Romantiek. Amsterdam, 1911. daqueles propagandistas que apoiaram as reivindicações
W. Dibelius: Dickens. Leipzig, 1916.
R. E. Burton: Dickens, How to aKnow Him. Indianópolis, 1919. revolucionárias dos Chartistas, dos precursores do socia­
G. Gissing: Charles Dickens. 2. ed. London, 1926. lismo. E num sentido mais imediato e prático, Dickens
I. B. Van Amerong: The Actor in Dickens. London, 1927.
E. Wagenknecht: The Man Charles Dickens. Boston, 1929. teria sido mesmo um grande "reformer": as descrições das
St. Leacock: Charles Dickens. London, 1933. prisões, escolas e asilos nos seus romances teriam contri­
T. A. Jackson: Charles Dickens. The Progress of a Literary
Radical. New York, 1938. buído muito para se conseguir a reforma dessas instituições.
E. Wilson: Dickens. (In: The Wound anã the Bow. New York, Até há pouco, todo mundo aceitou sem hesitações esta
1941.)
H. House: The Dickens World. Oxford, 1941. última afirmação. Humphry House pôde, porém, verificar
U. Pope-Hennessy: Charles Dickens. London, 1945. que a repercussão dos romances de Dickens foi puramente
H. Pierson: Dickens. His Character, Comeãy anã Career. New
York, 1949. sentimental, sem exercer a menor influência sobre a legis­
R. J. Cruikshank: Dickens anã Early Victorian England. Lon­ lação inglesa. Aquelas reformas precedem em parte a lite­
don, 1949.
E. Johnson: Charles Dickens. His Tragedy anã Triumph. 2 vols., ratura de Dickens; em parte, foram obra de parlamentares,
New York, 1952. intelectuais com os quais o repórter pouco culto não estava
.1. Symons: Charles Dickens. London, 1952.
H. Monod: Dickens romancier. Paris, 1953. em relações. Não sendo um intelectual, Dickens nunca se
C IMO : Autobiografismo ãi Charles Dickens. Venezia, 1954.
2002 OTTO M A R I A CARPEAUX ■ * HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2003

i)iii|(oii com os grandes problemas políticos, filosóficos, social; mas só conhece, só admite uma solução: a caritativa,
religiosos do seu tempo; os seus personagens ignoram, como está preconizada em A Christmas Carol em Prosa —
como cie mesmo, os nomes de Newman e Huxley, Mill e um maravilhoso conto de fadas, criação de uma verdadeira
Darwin; não pôde pertencer ao grupo dos "radicais". O mitologia de Natal que se gravou profundamente na cons­
seu otimismo côr-de-rosa, tão característico, até exclui a ciência anglo-saxônica.
ideologia radical. O mais famoso dos seus romances, David Em vez de ideologia, Dickens dá melodrama. O seu
Copperfield, é mero quadro doméstico, se bem de poesia romance não descende, como se afirmou, de Walter Scott,
encantadora — dizem os leitores, enquanto os escritores e sim do romance "gótico"; "góticos" são os seus villains,
profissionais o negam peremptoriamente. J á há muito que malandros e criminosos, "góticos" são os mistérios de famí­
Dickens não exerce influência alguma sobre o romance lia ou de crimes inexplicados em muitos romances seus.
inglês; é leitura popular, mas não um "novelisfs novelist". Influenciou-o muito o transformador do romance "gótico"
Escritores que se prezam não escrevem best sellers; e os em romance policial, seu amigo e discípulo Wilkie Col-
romances de Dickens eram e continuam os best sellers lins ( 1 2 4 ), sem Dickens chegar jamais a igualar a arte de
de maior sucesso em língua inglesa. A crítica marxista, composição desse romancista menor. Com efeito, Dickens,
discordando de Shaw, explica o êxito geral da obra justa­ criador prodigioso de atmosferas e caracteres, personagens
mente pela falta de uma ideologia definida em Dickens. e caricaturas, não sabe dirigir bem os seus enredos, sempre
Martin Chuzzlewit não combate abusos sociais, e sim um algo confusos e incoerentes. Costuma-se explicar isso pelo
vício particular, por assim dizer, um vício teológico, o método de trabalho de Dickens: escreveu com rapidez, e
egoísmo; o personagem Pecksniff encarna menos a hipo­ a publicação seriada, em revistas ou em fascículos, começou
crisia, o "cant" inglês, do que o aproveitamento dele para já antes de o autor ter acabado a obra. Sempre Dickens
fins egoísticos. E m Oliver Twist, o mais vivido e mais ficou o jornalista, o repórter dos seus começos, o autor
sinistro dos seus romances, o destino individual da criança dos Sketches by Boz; os Pickwick Papers compõem-se só
infeliz preocupa mais o autor e o leitor do que o fado social de cenas humorísticas sem muita coerência entre o começo
que a persegue; e, em consequência, o sentimentalismo su­ e o fim. Mas essa maneira de composição também pode ter
foca o sentimento de revolta. Dickens é o romancista de outras origens. Dickens, que gostava do teatro, possuía
desgraças pessoais, se bem infligidas pelas instituições in­ grande talento de ator; desde Otto Ludwig, muitos críticos
justas; mas não é o romancista da Situação do operariado observaram que os personagens de Dickens se caracterizam
na Inglaterra que Friedrich Engels descreveu naqueles pelos gestos, por tiques, pela modulação da voz, como se
mesmos anos, no famoso estudo deste título que precede o fossem representados por atôres no palco. A fragmentação
Manifesto comunista. Até Hard Times, a questão social, dos romances de Dickens em cenas seria consequência de
propriamente dita, não aparece na obra de Dickens, e neste uma visão dramática dos acontecimentos. Pode-se acres­
último romance, dedicado ao medievalista Carlyle — e, por centar que os tipos principais de Dickens — malandros
sinal — o melhor construído, o mais artístico dos romances monstruosos e malucos divertidos — correspondem aos
do autor — es sindicatos dos operários são tratados com tipos do teatro elisabetano: o villain e o clov/n. A mis-
ÍI mesma hostilidade manifesta que Dickens dedica aos
industriais e capitalistas. Dickens não ignora a questão
124) Cf. "Romantismos de evasão", nota 65.
2001 OITO MAMA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2005

turn de elementos trágicos e cómicos é autenticamente a do Tamisa, em Our Mutual Friend. Foi isso que êle
cliMiihctnno; e um romance sinistro como Bleak House já aprendeu em Walter Scott. Não se costuma apreciar muito
foi comparado às tragédias melodramáticas de John Webs­ o único romance scottiano de Dickens, Barnaby Rudge;
ter. O elemento melodramático, tão forte em Dickens, mas este romance, descrevendo distúrbios populares em
provém antes do teatro do que do romance gótico. Londres ao fim do século X V I I I , é uma das obras mais
O caráter teatral da arte de Dickens explica, antes importantes para a compreensão do romancista. Está cheio
de tudo, certas reticências, sobretudo a eliminação total •de reminiscências autobiográficas. É o único romance de
da sexualidade; pois no palco há limites do que se pode Dickens no qual se refletem, sob o disfarce histórico, os
apresentar ao público. Dickens era muito menos hipócrita movimentos social-revolucionários do seu próprio tempo.
do que se pensa. Só em 1934 revelou Thomas W r i g h t os Mas a conclusão não é revolucionária. O neto do "butler"
fatos pouco vitorianos, que os biógrafos oficiais tinham de Lord Crewe acreditava, como todos os ingleses médios,
silenciado: o repúdio da esposa, pelo romancista, e seu na invariabilidade eterna da hierarquia social. E em outro
convívio quase público com uma atriz de passado duvidoso. romance, Great Expectations — um dos melhores de Dic­
Mas podiam coisas dessas entrar em romances, cujos per­ kens, senão o melhor — o romancista condensou no destino
sonagens e acontecimentos o público acreditava ver como de Pip a sua própria experiência, os perigos de uma as­
no palco de um teatro? Seria possível, sim, no teatro eli- censão social demasiadamente rápida. Dickens não é rea­
sabetano de Ben Johnson e John Ford. Mas no tempo de lista nem revolucionário; é romântico como Gogol. Apenas
Dickens já não estava vivo o teatro elisabetano; represen- .não se evadiu da realidade; pretendeu melhorá-la, defor-
tavâ-se apenas A New Way to Pay Old Debts, de Mas- mando-a romanticamente. É antes um pré-romântico mais
singer, em que Sir Giles Overreach é um personagem dic- .moderno, por isso, aliás, tão sentimental. Mas "pré-roman-
kensiano. O teatro do qual o romancista gostava tanto foi tismo moderno" é uma definição do romantismo social, do
o teatro popular dos subúrbios de Londres: dramalhões que "'romantismo de oposição".
eram descendentes plebeus do drama burguês do século Por isso, a atitude social de Dickens parece-se muito
X V I I I , de Lillo a Cumberland; e farsas grosseiras. Uma mais com a de George Sand do que com a atitude de
série incoerente de cenas de uma farsa genial, eis os Pos- Mrs. Gaskell ( 1 2 5 ), sempre classificada como discípula sua,
thumous Papeis oi the Pickwick Club. Os caracteres e -mas que representa uma fase já mais avançada, ideològi-
tipos cómicos de Dickens são, todos eles, caricaturas de ■camente, do romance inglês. A propósito de Dickens, os
um grande farsista, deformações monstruosas da realidade. termos "romantismo social" e "romantismo de oposição"
No cómico e no sério, Dickens deforma sempre. Não é revelam conteúdo dialético; a "contradição" liga-se ao
realista, assim como não é realista aquele outro grande fenómeno da separação progressiva entre liberalismo e
deformador da realidade também misturando elementos ■democracia, entre a burguesia e, do outro lado, a pequena-
trágicos e cómicos: Gogol. Este é o único autor com o burguesia e o proletariado. Os progressos políticos da
qual Dickens, seu contemporâneo, se parece. íburguesia significam desgraças económicas do proletariado.
Dickens também é romântico. Admiram-se, nesse es­ Até os progressos sociais da época entre 1840 e 1870 —
critor popular, numerosos trechos de estilo genuinamente
poético; a descrição da névoa londrina, em Bleak House; 125) Cf. "O Fim do Romantismo", nota 14.
200<> O rio MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2007

diminuição do pauperismo, começos da legislação traba­ vigorosa, pensadora de coragem. O seu papel histórico na
lhista na Inglaterra — servem aos interesses da burguesia, "poetocracia" norueguesa revela-se pelas suas relações pes­
racionalizando os métodos do trabalho e melhorando a capa­ soais e literárias: Camilla, irmã do romântico revolucio­
cidade de trabalhar do operariado. Mas a pequena-burguesia nário Wergeland, fora noiva do romântico conservador
c recompensada, por enquanto, pelos progressos políticos. Welhaven, separando-se dele por incompatibilidade de gé­
Os protagonistas do progresso aparentemente democrático nios e casando com um pastor de opinões radicais. Expe­
e na verdade liberal são mesmo os pequenos-burgueses; riências do noivado inspiraram-lhe o romance Amtandens
Dickens não é liberal nem socialista, mas democrata. E por doettre (As Filhas do Prefeito), que teve por sua vez a
motivos especiais colaboram assiduamente nessa luta demo­ honra de fornecer vários pormenores para o enredo de
crática as feministas — é aí que reaparece a influência de Kjaerlighedens Komedie (A Comédia do Amor), a primeira
George Sand. comédia moderna, anti-romântica, de Ibsen.
O feminismo de George Sand perdeu, fora da boémia O papel histórico da literatura feminista é anti-român-
literária de Paris, os aspectos libertinos; ficavam só as- t i c o ; destruindo os conceitos românticos sobre amor e
reivindicações de uma educação mais prática das filhas, de casamento. Naquela comédia de Ibsen, uma moça prefere
maior igualdade de direitos jurídicos, de acesso a diversas ao amor de um poeta lírico o casamento com um burguês
profissões para as mulheres. As mais das vezes, essas rei­ pouco poético e muito rico. É um símbolo. O feminismo
vindicações não aparecem como programa político, mas. servia à burguesia. O grande documento doutrinário do fe­
como aspirações de ordem moral, sobretudo na Escandi­ minismo foi o tratado On the Subjection oí Women (1869)
návia; e esses romances feministas suecos e noruegueses de John Stuart Mill, filósofo liberal e utilitarista. A eman­
também foram traduzidos e muito apreciados na Inglaterra, cipação da mulher fazia parte da evolução que destruiu a
onde Elizabeth Barrett Browning, Elizabeth Gaskell e família proletária para arranjar aos industriais operárias de
George Eliot deram o exemplo de mulheres cultas e inde­ salários baixos. A pequena-burguesia democrática colaborou
pendentes. Os romances de tendência feminista da sueca. mesmo, pelo menos literariamente, nesse proesso; o libe­
Fredrika Bremer ( 126 ) tinham repercussão internacional tão ralismo venceu, arrasando economicamente a pequena-bur­
prolongada que a sua ressonância ainda constituirá o pesa­ guesia. A separação inevitável entre liberalismo e demo­
delo de Strindberg. Algo mais radical era a norueguesa cracia, separação realizada no desfecho da revolução de
Camilla Collett ( 12T ), escritora menos "dickensiana", mais- 1848, significou o fim do romantismo.

12fi) Fredrika Bremer, 1801-1865.


Presidentens ãottrar (1834); Striã och frid (1840); En Dagbok
(1834); / Dalarne (1845) ; Hertha (1856); Faãer och dotter
(1858) etc.
H. Ek: Fredrika Bremer. Stockliolm, 1912.
K. K l e m a n : Fredrika Bremer. Stockholm, 1925.
i:!7> Oiimilla Collett, 1813-1895.
Ani/mandens doettre (1855); Fortaellinger (1861), etc.
K Hebcr: Camilla Collett. Oslo, 1913.
K. Kl.cen: Digtning og virkelighet, en stuãie i Camilla Collets.
Jor/allcrskap. Oslo, 1947.
CAPÍTULO IV

O FIM DO ROMANTISMO

R O M A N T I S M O inglês não acabou; esgotou-se. By-


0 ron, Shelley, Keats morreram quase ao mesmo tempo;
Wordsworth e Coleridge estavam transformados em ídolos-
ou múmias, conforme o ponto de vista, mas, em todo caso,
mudos há muitos anos: poetas sem poesia. A literatura
assim como a vida inglesa iam ao encontro de uma época
da prosa. Não foi ouvido o protesto revolucionário dos
últimos discípulos de Shelley, porque esse protesto estava
envolvido, mais do que o de Shelley, em nuvens românticas,
dando como resultado uma poesia de esquisitões. O roman­
tismo inglês acabou num espetáculo de gestos violentos ou
absurdos ( x ), como uma pantomima de surdos-mudos loucos
num entremês de Middleton; e custou descobrir atrás dos
sons inarticulados a poesia desses neo-elisabetanos. Está
aí Beddoes ( 2 ), que em outro sentido do que Keats pertence
aos neo-elisabetanos; era um homem anormal e por conse­
quência a-social, que escolheu as expressões da morbidez
do teatro jacobéio para exprimir os seus instintos irre­
primíveis e dissimular-lhes o efeito destruidor. A mesma
máscara escondeu, até a perfeição, o sentido da poesia de

1) F. L. Lucas: The Decline and Fali of the Romantic Ideal. Cam­


bridge, 1936.
J. Heath-Stubbs: The Darkling Plain. London, 1950.
2) Cf. "Romantismos de evasão", nota 144.
'(III! • I I K IWAIUA ('. A I U - I ; A I X HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2011

Dntlry ( ' ) , «•in vida publicou pouco, dramas em estilo eli- "I saw old Autumn in the misty morn
Mtiltriiiiiii, era ritos críticos, uma edição de Beaumont e Flet- Stand shadowless like Silence, listening
« liei ; c luaiicis Turner Palgrave, encontrando-lhe numa To s i l e n c e . . . " —
rrvisla, sem assinatura, a poesia It is not Beauty I de-
m.iiul. . ., tomou-a por obra anónima de um "cavalier poet" a personificação é evidentemente keatsiana; mas o efeito
desconhecido do século X V I I , incluindo-a assim na sua é muito diferente. O pré-romantismo de Hood deve estar
famosa antologia The Golden Treasury (1861). Só meio em relações com a condição do poeta, paupérrimo, teste­
século depois descobriu-se a identidade com o autor do munha da terrível agitação social que acompanhou a intro­
esquecido poema narrativo Nepenthe em estilo de Shelley, dução da grande indústria na Inglaterra. Poesias conheci­
explosão violenta de uma alma inibida, com todas as cores díssimas de Hood, como The Song of the Shirt, lembram
de um sonho romântico à maneira de Kubla Khan. Beddoes aquela agitação. Em outros casos, Hood alude à situação
e Darley dão a impressão de edições mórbidas, até realmente social de maneira jocosa, quase como um "metaphysical
patológicas, de Keats. Pelo menos um poema de Hood ( 4 ), poet":
Lycus the Centaur, pertence ao mesmo estilo keatsiano e
é da mesma mentalidade mórbida. Nas suas maiores poesias "O God, that bread should be so dear
sérias Hood revela grande poder verbal que lembra, de And flesh and blood so cheap!"
longe, a Hugo. Mas isso é o aspecto "reacionário" da sua
poesia, no sentido de "ligado ao passado" romântico; e só E as mais das vezes, só é um humorista de versos ligeiros,
recentemente chamou-se a atenção para isso. A poesia de tão popular na Inglaterra que esqueceram o lado "noturno"
Hood revelou só pouco a pouco as suas várias faces; e desse grande e último poeta romântico.
aquele aspecto "cósmico" é o recém-descoberto. Também O romantismo de Hood não é a única herança que
não faz muito tempo que se descobriu um Hood pré-român- recebeu do passado. O seu humorismo tem relações com
tico, lembrando a Wordsworth pelo poder de evocar e per­ a poesia satírica do século X V I I I ; e mais outros herdeiros
sonificar a Natureza; no primeiro verso de — do espírito do século X V I I I colaboraram na decomposição
do romantismo inglês. Só assim será possível situar histo­
3) George Darley, 1795-1846. ricamente o curioso Peacock ( r '), um dos escritores mais
Nepenthe (1835); Poems (1890). estranhos da literatura inglesa. Humanista erudito, cos-
Edição por R. Colles, London, 1908.
C. C. Abbott: The Life and Letters of George Darley, Poet anã
Critic. Oxford, 1928. 5) Thomas Love Peacock, 1785-1866.
4) Thomas Hood, 1790-1845. Headlong Hall (1816); Nightmarc Abbey (1818); The Misfortunes
Odes and Addresses to Great People (1825); Whims and Oãdities of Elfin (1829); Crotched Castlc (1831).
(1826-1827); The Plea of the Miãsummer Fairies, Hero anã Lean- Edição por H. F. P. Brett-Smith c C. E. Jones, 10 vols., London,
der, Lycus the Centaur anã Other Poems (1827); The Dream of 1924-1934.
Eugene Aram (1829). C. Van Doren: The Life of Thomas Love Peacock. London, 1911.
Edição por W. Jerrold, 2.a ed., London, 1917. G. Saintsbury: "Thomas Love Pcacok". (In: Collecteã Essays anã
W. Jerrold: Thomas Hood, His Life anã Times. London, 1907. Papers, vol. II. London, 1923.
P. E. More: "The Wit of Thomas Hood". (In: Shelburne Essays, J. B. Priestley: Thomas Love Peacock. London, 1927.
vol. VII. New York, 1910.) J. J. Mayroux: Thomas Love Peacock, un épicurien anglais. Pa­
J. H. Swann: "The Serious Poems of Thomas Hood". (In: Man­ ris, 1933.
chester Quarterly, LI, 1925.) O. W. Campbell: Thomas Love Peacock. London, 1953.
2012 OITO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2013

mo|)olitn, satírico, inconformista, escrevendo romances que de figurar ao lado do seu contemporâneo Coleridge; mas
apcntiH são, no fundo, séries de conversas espirituosas — a atenção do romântico Coleridge foi dedicada mais à
tudo isso lembra a Landor. Mas Peacock não tem nada de estrutura das peças, enquanto o individualista Hazlitt se
harmonia grega nem renascentista, é um inglês jocoso da ocupava mais com a análise psicológica dos personagens.
estirpe de Fielding e Sterne, criando as caricaturas mais Contudo, as contradições são inegáveis. Hazlitt, nas con­
incríveis — é fundamentalmente inglês, um tory de ten­ ferências sobre os poetas ingleses, pretendeu destruir o
dências destrutivas ou um liberal de tendências anticon- falso classicismo poético do século X V I I I ; mas ninguém
tinentais, enfim um niilista na poltrona do clube aristo­ revelou mais penetração e sensibilidade do que êle na aná­
crático. A luta romântica contra o romantismo é o signo lise de William Collins e Gray. O grande amor de Hazlitt
da época. Hazlitt ( 6 ), o grande ensaísta, é definido, em — um amor produtivo — era a literatura inglesa. Fielding
geral, como romântico na literatura e radical na política. e Sterne, os humoristas, eram os seus companheiros per­
Com efeito, as suas preferências literárias são as do ro­ manentes; reabilitou, seguindo o exemplo de Lamb, a co­
mantismo: Spenser, Shakespeare, os outros dramaturgos média amoral da Restauração. Mas a maior das suas rea­
elisabetanos; e os seus artigos políticos são duma franqueza bilitações críticas é a de Chaucer, transfiguração poética
e coragem admiráveis, ao ponto de celebrar Napoleão como do bom-senso anglo-saxônico. Hazlitt, o radical, o discípulo
herói da democracia, numa época na qual o nome do im­ de Helvétius e dos jacobinos, é o primeiro grande liberal
perador dos franceses foi constantemente amaldiçoado na inglês.
Inglaterra, como do maior tirano. Na veneração de Hazlitt f O liberalismo inglês não destruiu o romantismo; de-
por Napoleão já existe, porém, algo do culto dos heróis formou-o. E conservou, por sua vez, vestígios românticos.
de Carlyle; e esse traço é romântico. Doutro lado, Hazlitt Bentham ( 7 ), o doutrinário do utilitarismo — doutrina tão
foi coerente, denunciando a detração da memória de Napo­ inglesa como é inglesa a crítica de Hazlitt — é um racio­
leão pela biografia do tory Walter Scott; Hazlitt já tinha nalista do século X V I I I ; mas não deixa de ser romântico,
acerbamente criticado o passadismo reacionário do roman­ na esquisitice da sua personalidade. E Mill ( H ), o grande
cista. Como intérprete de Shakespeare, Hazlitt é indigno liberal, economista, livre-pensador, chefe do positivismo
inglês, não pôde dissimular certos romantismos, deformados
pela educação duríssima que o pai lhe impusera. Foi par­
6) William Hazlitt, 1778-1830. tidário de um feminismo meio romântico, e na sua filosofia
Characters of Shakespeare's Plays (1817) ; The Round Table descobriram-se traços estranhos de um maniqueísmo que
(1817) ; Lectures on the English Poets (1818); Lectures on the
English Comic Writers (1819); Politicai Essays (1819); Lectures
on the Dramatic Literature of the Reign of Queen Elizabeth
(1820); Table Talk (1821-1825); The Spirit of the Age (1825); 7) Jeremy Bentham, 1748-1832.
The Plain Speaker (1826); The Life of Napoleon Bonaparte (1828- A Fragment on Government (1770; nova ed., 1822).
1830). C. M. Atkinson: Jeremy Bcntharn. London, 1905.
Edição por A. R. Waller e A. Glover, 12 vols., London, 1902-1906.
G. Saintsbury: "Hazlitt". (In: Essays in English Literature. Lon­ 8) John Stuart Mill, 1806-1873.
don, 1890.) A System of Logic, ratiocinalive anã inãuctive (1843); Principies
A. Birrell: William Hazlitt. London, 1902. of Politicai Economy (1848); On Liberty (1859); Utilitarianism
P. P. Howe: The Life of William Hazlitt. 2 a ed. London, 1928. (1863) ; On the Subjection of Women (1869); Autobiography
C. M. Maclean: Bom under Saturn. A Biography of William Haz­ (1873).
litt. London, 1943. S. Saenger: John Stuart Mill. London, 1901.
2014 OITO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2015

o liga ao maniqueísmo do céptico neobarroco Bayle, e géneros encontram-se na obra de Charles Reade ( 1 0 ). A u ­
talvez n Blake. Chega-se às portas do famoso "compro- tor profissional de romances sensacionalistas sobre questões,
mÍ8no vitoriano" com Elizabeth Barrett Browning ( 9 ) : atuais, o escritor pretendeu, em The Cloister and the
não faz muito tempo que a autora dos Sonnets írom the Hearth, exibir a sua erudição; e conseguiu transformá-la
Portuguese era considerada como a maior poetisa inglesa; em grande panorama da época de Erasmo de Roterdão. É ,
e assim sempre foi mencionada ao lado de seu marido Ro- surpreendente, nessa obra, a riqueza da documentação his­
bert Browning, o maior poeta da época vitoriana. Na ver­ tórica, reunida com a meticulosidade e até com os métodos
dade, um fato biográfico não pode ser critério da classi­ de Zola. Com efeito, neste romance histórico, Reade é mais
ficação literária. Elizabeth Barrett Browning já perdeu, realista do que nos seus romances de vida contemporânea,
em favor de Christina Rossetti, o lugar da maior poetisa nos quais tomou reivindicações de reformas administrativas
inglesa; já se admite a franqueza de epígono do seu roman­ à maneira de Dickens como pretexto para exibir o pior
sensacionalismo. A força dramática da narração, em The
tismo, julgamento que se estende, mais do que aos Sonnets
Cloister and the Hearth, não reside, porém, na veracidade
írom the Portuguese, contudo apreciáveis, ao ambicioso
dos pormenores e sim na veracidade dos desejos recalcados
poema filosófico Aurora Leigh. Na última fase da sua
de uma vida livre, desenfreada — e nota-se que esse ro­
vida e poesia, Elizabeth Barrett Browning entusiasmou-se
mance, um dos mais extraordinários da literatura inglesa,
pela causa da liberdade italiana: o interesse dos "byro-
é uma das poucas obras trágicas na era do "compromisso
nianos" pela liberdade de povos longínquos voltou na época
vitoriano". O resto da produção desse autor secundário
vitoriana, como parte do "compromisso" entre moderação de uma obra genial são romances policiais; mas sempre
na vida pública e romantismo na poesia. Vinte anos antes, ocorre uma ou outra página surpreendente, "incómoda".
Elizabeth Barrett Browning ainda fizera poesia social em O caso de Reade ajuda a compreensão do caso, colocado
vez de poesia política: The Cry of the Children é fraco em nível muito superior, das irmãs Brontê. No caso de
como poesia, mas significativo como documento da crise Reade: força dramática num escritor fora da literatura
social, assim como The Song of The Shirt, de Hood. séria. No caso das irmãs B r o n t ê : força dramática e espí­
O romantismo, esgotado na poesia, refugiou-se na pro­ rito visionário em romancistas fora de literatura profissio­
sa. Um asilo ofereceu-lhe o romance histórico à maneira nal. Neste último caso, romantismo é tão completo, apa­
d e Bulwer; outro, o romance "gótico", agora transformado rentemente romantismo de evasão, que nada revela o
em romance policial à maneira de Wilkie Collins. Os dois ambiente real dos autores; e tudo isso disfarçado de ro-

:!)) Elizabeth Barrett Browning, 1806-1861. 10) Charles Reade, 1814-1884.


Poems (1844); Sonnets from the Portuguese (1850); Casa Guiai It Is Never Too Late to Menã (1856) ; The, Cloister and the
Windows (1851); Aurora Leigh (1856); Poems before Congress Hearth (1861); Hard Cash (1863); Gri/filh Gaunt, or Jealousy
(1860). (1867); A Terrible Tem.ptal.ion (1871) ctc.
Edição por F. G. Kenyon, London, 1897. Edição de Cloister and Hearth por C. B. Wheeler, Oxford, 1915.
G. M. Merlette: La vie et les oeuvres d'Elizabeth Barrett Brown­ M. Elwin: Charles Reade, a Biography. London, 1931.
ing. Paris, 1905. A. M. Turner: The Making of The Cloister anã The Hearth-
1.. S. Boas: Elizabeth Barrett Browning. New York, 1930. Chicago, 1938.
1). Hewlett: Elizabeth Barrett Browning. A Life. London, 1952. L. Rives: Charles Reade, sa vie, ses romans. Toulouse, 1940.
2016 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓBIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2017

mancc realista, de tal modo que as Brontê foram consi­ cante de peças sentimentais, Charlotte Birch-Pfeiffer,
deradas, durante decénios, como contemporâneas legítimas transformou o romance em versão dramática, Die Waise
de Mis. Gaskell, que lhes escreveu a primeira biografia. von Lowood (1855), à qual se abriram os teatros do mundo
Mas "wuthering heigsts" não se encontram em nenhuma inteiro. Na verdade, Jane Eyre já é uma obra bastante
parte da Inglaterra, e assim como a obra Wuthering Heights dramática. Mas o estilo é o do realismo moderado da época;
está fora do espaço, assim se encontra ela fora do tempo e a psicologia, da estirpe da psicologia sentimental de Sa­
cronológico da história da literatura. Até os romances de muel Richardson, parecia produto legítimo da alma de uma
Charlotte Brontê, mais realistas, são expressões de um ro­ pobre professora de recalcados instintos de felicidade; pois
mantismo recalcado. a própria Charlotte Brontê também levou a existência de
Os filhos do vigário de Haworth, lugar perdido no uma professora pobre. Os outros romances, menos famosos,
Yorkshire, tinham todos, ao que parece, capacidade geniais. girando em torno de temas parecidos, confirmaram essas
Mas Anne, a autora do comovente romance Agnes Grey impressões. Sobretudo sabiam os biógrafos explicar o ro­
(1847), extinguiu-se cedo demais para revelar a sua medida, mance Villette pelas experiências eróticas, pouco felizes,
e o filho, Branwell, êle mesmo personagem romântico de de Charlotte Brontê com o diretor de um educandário em
"génie maudit", encontrou o fim sinistro sem ter dado nada. Bruxelas, onde ela lecionava. Hoje se dá importância es­
De Emily, o mundo não tomou conhecimento durante muito pecial aos três romances posteriores à estreia: Shirley,
tempo. Fica Charlotte Brontê ( n ) , que deveu a um equí­ Villette e The Professor. Admite-se que a atmosfera si­
voco um sucesso surpreendente. Jane Eyre é a história nistra da escola de Lowood, em Jane Eyre, é menos instru­
da escola terrível na qual duas irmãs da autora morreram mento de "literatura social" do que resíduo livresco do
de tuberculose. Alguns consideraram a obra como "lite­ romance "gótico"; o próprio Rochester é um herói byro-
ratura de acusação", denúncia de sofrimentos de crianças niano. Todos os romances de Charlotte Brontê, que pare­
como em Dickens; outros estavam fascinados pela continua­ ciam tão modestamente realistas, são dum romantismo ex­
ção da história escolar, as aventuras da pobre aia com o cessivo, de uma intensidade de expressão visionária. E
romântico Rochester, como se Charlotte Brontê fosse um afinal as pesquisas biográficas deram o resultado de que
Richardson moderno; e todos choraram. Uma alemã, fabri- Villete não se baseia de modo algum nas experiências com
o professor Héger em Bruxelas. Escrevendo romances sen­
timentais ao gosto das leitoras da época, Charlotte Brontê
11) Charlotte Brontê, 1816-1855. notou as suas visões singulares, indissoluvelmente ligadas
Jane Eyre (1847); Shirley (1849); Villette (1853); The Professor às visões de suas irmãs.
(1857).
Edição (com as obras de Emily Brontê) por T. J. Wise e J. A. O caso de Emily Brontê ( l 2 ) é análogo: o romantismo
Symington, 15 vols., Oxford, 1932-1942.
M. Sinclair: The Three Brontês. 2.a ed. London, 1914. noturno de Wuthering Heights é tão impressionante que
I. Green: "Charlotte Brontê and Her Sisters". (In: Virgínia Quar-
terly Review, V, 1929.)
E. F. Benson: Charlotte Brontê. London, 1932. 12) Emily Brontê, 1818-1848.
T. J. Wise e J. A. Symington: The Brontês. 4 vols. Oxford, 1932 Wuthering Heights (1847).
I). Cccil: Early Victorian Novelists. London, 1934. Edição: cf. a edição de J. J. Wise e J. A. Symington, referida
I'h. E. Bentley: The Brontês. London, 1948. em nota 11. (Os vols. XIV e XV contém as poesias.)
i,. Tlinkley: The Brontês. London, 1948. C. P. Sanger: The Structure of Wuthering Heights. London,
I.. c E. M. Hanson: The Four Brontês. Oxford, 1949. 1926.
20 III OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2019

ntnhumn explicação psicológica o podia diminuir. O herói, vigário de Haworth notaram, desde muito cedo, poesias,
llntlulí 11, "the damned soul", é, mais uma vez, um Byron meditações e esboços de novelas. Na imaginação dessas-
pálido, bom para assustar e seduzir moças provincianas — crianças existiam as histórias de dois reinos imaginários,
mau nesse grande romance até os espectros têm vida real Angria e Gondal, verdadeiras mitologias particulares como
como numa tragédia de Shakespeare. O enredo é de inve- as de Blake; e todos os romances de Charlotte e E m i l y
rossimilhança extrema; a narração sugere, no entanto, a Brontê baseiam-se naquelas fantasias infantis. O caso é
impressão de experiências reais. Sanger pretendeu demons­ todo singular. Por isso, tampouco tem muito sentido falar
trar a exatidão das descrições geográficas e sociais em da "influência" das irmãs Brontê na evolução do romance
Wuthering Heights, a regularidade clássica da composição inglês, no qual elas teriam introduzido a introspecção psi­
como de uma tragédia raciniana; o romance seria uma obra cológica e as paixões românticas. Essa influência não exis­
de arte, bem deliberada, transfiguração do ambiente da te. Em 1850, os romances das irmãs Brontê não pertenciam
autora. Outros chamaram a atenção para o movimento me­ ao futuro, mas ao passado, assim como a poesia romântica
todista, muito forte no Yorkshire naquele tempo, para "loca­ de Beddoes e Darley. Mas estes eram literatos de alta
lizar" o temperamento visionário da romancista. Mas as cultura literária. Um caso mais parecido de romantismo
poesias de Emily Brontê, poucas e extraordinárias, não são recalcado nota-se nas poesias do paupérrimo John Cla-
metodistas, se bem religiosas; entendidos no assunto con- re ( 1 3 ), inquilino de um manicômio, do Northampton Asy-
sideram-nas como expressões de autênticas experiências lum, poesias simples de uma alma perplexa em face da
místicas; e isso não está em contradição com o panteísmo natureza; durante muito tempo não se percebeu nesses ver­
feroz das descrições da natureza noturna no romance nem sos uma surpreendente força visionária, de "romantismo
com as alusões inconfundíveis a instintos recalcados e ex­ de profundidade"; mas depois de importante ensaio de
plosivos. Wuthering Heights, obra de dramaticidade in­ Middleton Murry, muitos críticos já estão dispostos a
tensa — Swinburne falou, a propósito, de Macbeth e Du- incluir o pobre Clare entre os poetas ingleses da primeira
chess oí Malfy — é e será considerada por muitos como categoria.
o maior romance da literatura inglesa. O proletário Clare era vítima daquela situação social
O problema dessas obras-primas estranhas, escritas por que as irmãs Brontê ignoravam e que foi cantada por Hood
moças sem experiência literária nem experiências vitais, e Elizabeth Barrett Browning. Construir uma relação entre
nunca será provavelmente resolvido por completo. Mas uma estas angústias sociais e aquelas angústias místicas signi­
solução parcial foi oferecida pelas pesquisas de Fanny ficaria criar um artifício desnecessário; basta verificar, sem
Ratchford, examinando os cadernos nos quais os filhos do conclusões, a coexistência do romantismo recalcado e da

Ch. Simpson: Emily Brontê. London, 1929. 13) John Clare, 1793-1864.
T. J. Wise e J. A. Symington: The Brontes. 4 vols. Oxford, 1932. Poems Descriptive of Rural Life anã Sccnery (1820); The Shep-
I). Cecil: Early Victorian Novelists. London, 1934. herã's Calenãar (1827).
I1'. S. Dry: The Sources of Wuthering Heights. Cambridge, 1937. Edição por J. W. Tibble, 2 vols., London, 1935; edição dos poe­
F. E. Ratchford: The Brontes Web of Childhood. New York, mas escritos no manicômio por G. Grigson, London, 1949.
11)41. J. W. e A. Tibble: John Clare. A Life. London, 1932. (2.a edição,
M. Kpurk o D. Stanford: Emily Brontê; Her Life anã Work. 1956.)
I dou, 1953. J. M. Murry: John Clare anã Other Stuãies. London, 1951.
2020 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2021

«^ilação social. E essa coexistência é evidente, assim como ►que esse romance podia ser escrito antes de Dickens per­
cm Ilood, em Elizabeth Gaskell ( 1 4 ), um dos escritores in­ ceber os problemas do operariado. Mrs. Gaskell era admi­
gleses que o estrangeiro, até há pouco, menos conhecia e que radora de Dickens; mas seria injusto classificá-la como
gozam, com toda razão, do maior apreço na Inglaterra. A "dickensiana". É uma grande escritora, grande e indepen­
sua fama baseia-se principalmente no romance social Mary dente. Até era mais "radical" do que Dickens, e isso tam­
Barton, por motivo do qual ela é considerada como discípu­ bém vale, naquele momento, como sintoma a-vitoriano ro­
la de Dickens. Os connaisseurs preferem Cranford, todo di­ mântico.
ferente, ao ponto de falarem de "duas Mrs. Gaskells". Na Mary Barton é, assim como The Song oí the Shirt e
verdade, há três. A primeira Mrs. Gaskell é a autora de The Cry of the Children, um dos reflexos do primeiro
contos de espectros e mistérios, nos quais ela acreditava movimento revolucionário dos operários ingleses, do Char-
seriamente; tinha "realmente" visto um fantasma. É esta tismo ( 1 5 ). O movimento não produziu uma literatura; mas
Mrs. Gaskell que escreveu a primeira biografia de Charlotte repercutiu difusamente em quase todos os escritores da
Brontê. O elemento melodramático desses contos reaparece época. A repercussão mais forte, igualmente hostil ao so­
em Ruth, que pertence à segunda, Mrs. Gaskell: história cialismo revolucionário e ao liberalismo capitalista, veio
chorosa de uma mulher caída, muito ao gosto da época. A do lado dos tories, então regenerados como "partido con­
terceira Mrs. Gaskell é a observadora implacável de Cran­ servador". Graças à atuação do Primeiro-Ministro Peei,
ford, suma da vida das pessoas de classe mais elevada numa o partido abandonou a política protecionista com respeito
aldeia inglesa; obra concebida e realizada no espírito de ao trigo, sacrificando os interesses dos latifundiários e
Jane Austen, uma obra clássica do romance inglês. O mes­ melhorando o padrão de vida dos operários. Na consequên­
mo espírito de observação, aplicado às misérias incríveis cia dessa nova política estava uma aliança entre a aristo­
da revolução industrial na Inglaterra deu um romance, cracia conservadora e o operariado industrial contra a bur­
escrito com a força melodramática da segunda Mrs. Gaskell, guesia, talvez na base de uma doutrina patriarcalista, de
autora de Ruth, e com a angústia intensa da primeira, da entendimento entre as duas classes. Disraeli realizará essa
contista: eis Mary Barton; e assim se explica muito bem política. A doutrina foi obra de Carlyle ("'). A sua for-

14) Elizabeth Cleghorn Gaskell, 1810-1865. 15) J. L. e B. Hammond: The Age of the Charlists. London, 1930.
Romances: Mary Barton (1848); Ruth (1853); Cranford (1853); 16) Thomas Carlyle, 1795-1881.
North anã South (1855); Sylvia's Lovers (1863). Sartor Resartus (1836); The French Revolulion (1837); Chartism
Contos: Libbie Marsh's Tree Eras (1850); The Grey Woman (1839); On Heroes, Hero-Worship and lhe Heroic in History
and Other Tales (1865); Cousin Phyllis and Other Tales (1865); (1841) ; Past anã Present (1843) ; Olivcr CromwelVs Letters anã
The Life of Charlotte Brontè (1857). Speeches (1845); Latter-Day Pamphlcls (1850); History of Fre-
Edição por C. K. Shorter, 11 vols., London, 1906-1919. ãerick II of Prússia, called lhe Greal (1858-1865).
J. J. Van Dullemen: Mrs. Gaskell, Novelist and Biographer. Edição por H. D. Traill, 30 vols., New York, 1896-1901.
Amsterdam, 1924. J. A. Froude: Thomas Carlyle. 4 vols. London, 1882-1884.
A. Stanton Whitfield: Mrs. Gaskell, Her Life and Work. Lon­ L. Cazamian: Carlyle. Paris, 1913.
don, 1929. D. A. Wilson: Life of Carlyle. 6 vols. London, 1923-1934.
0 . W. Sanders: Elizabeth Gaskell. Newhaven, 1930. E. C. Neff: Carlyle. London, 1932.
1. Fírench: Mrs. Gaskell. London, 1949. V. Basch: Carlyle. Paris, 1938.
A. B. Hopkins: Elisabeth Gaskell. Her Life and Work. London, J. Symons: Thomas Carlyle. The Life and Iãeas of a Prophet.
1952. London, 1952.
2022 O I T O MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2023

maçflo fôrn das mais contraditórias: puritano escocês, d a um visionário. Não foi nunca outra coisa senão um puri­
volhn estirpe combativa, um futuro Cromwell da literatura, tano escocês, furioso contra a civilização profana dos in­
perdeu Carlyle cedo a fé dogmática; recuperou, na A l e - fiéis; mas um puritano herético entre os heréticos porque
nmnliR, outra fé, o idealismo de Goethe ao qual êle não tinha as suas revelações particulares. Os contemporâneos
compreendeu bem, lendo-o através dos óculos de um admi­ já explicaram a rebeldia de Carlyle contra a época como
rador de Jean Paul. De Goethe veio-lhe a fé na superiori­ fruto do seu "second-sight": aos camponeses da Escócia
dade dos valores espirituais; de Jean Paul, a fé no povo, atribui-se a capacidade de prever o futuro; e a obra de
nos pobres. Carlyle sabia assimilar as influências mais Carlyle está cheia de visões apocalípticas. A sua apocalipse
diferentes: descobriu o revolucionarismo social na poesia era a Revolução, consequência do egoísmo danado dos ricos
de Burns, e baseava o sonho medievalista de Novalis n o e poderosos. Na maior das suas obras, evocou com elo­
passadismo patriarcalista, solidamente regional, de W a l t e r quência torrencial a Revolução francesa corno advertência
Scott, pretenso remédio dos males que produziram a revolta terrível; nos Latter-Day Pamphlets, ameaçou a Inglaterra
daquele poeta da Escócia. Burns e Jean Paul juntos afir- com a revolução social dos Chartistas. Em Past and Pre-
maram-lhe o amor pelo povo humilde e sofredor, ensinando- sent, a Revolução é a consequência fatal dos maus trata­
lhe o humorismo bizarro dos seus ataques à ordem social mentos, infligidos pela burguesia inglesa aos pobres e
estabelecida; Novalis e Scott juntos forneceram-lhe a ima­ humildes — muitas vezes, Carlyle fala como Marx no
gem duma Idade Média idealizada, feliz pela hierarquização Capital e Engels na Situação do operariado nu Inglaterra;
dos poderes, com o poder espiritual em cima. Só de Goethe, Past and Present é de 1843; e a obra de Engels de 1844. Mas
que êle venerava tanto, não há nada na sua obra; Carlyle Carlyle não é um economista político, e sim um romancista
é romântico. O resultado do seu romantismo foi, porém, nos moldes do passadista Walter Scott. No fundo de Past
dos mais paradoxais: o furor romântico do ataque contra and Present aparece como imagem de contraste a vida tra­
a burguesia liberal transformou-se em crítica quase socia­ balhosa, feliz e pia nos mosteiros ingleses medievais; Car­
lista da sociedade inglesa, e o medievalismo patriarcalista lyle cita a Crónica de Bury St. Edmunds, de Jocelin de
do seu programa político transformou-se em exaltação da Brakelonde, romanceando-a. Os condes e bispos da Idade
força bruta, dos conquistadores dos tiranos e dos escravo­ Média não maltrataram crianças num dia de trabalho de
cratas. Carlyle representaria uma mistura curiosíssima de
14 horas, porque estavam conscientes dos seus deveres pe­
Bernard Shaw e Rudyard Kipling. Parece uma confusão
rante Deus. Então havia Ordem, mesmo sem leis democrá­
enorme, refletindo-se no seu estilo violento, abrupto, pito­
ticas; depois, só havia a Desordem legalizada. Tem que
resco de um dos oradores mais impressionantes, mais per­
vencer, outra vez, a lei de Deus sobre a lei dos homens que
suasivos da literatura universal.
é do Diabo. A História Universal é uma luta perpétua
Não é difícil esclarecer a confusão aparente. Carlyle entre Deus e o Diabo — Carlyle é maniqueu declarado,
combateu o utilitarismo liberal, como sendo herança do mas este maniqueísmo é a última forma do dogma puritano
intelectualismo francês do século X V I I I ; o idealismo ale- da Predestinação, da eleição irresistível de alguns e da
IIKKJ, mal compreendido, só lhe serviu de arma contra a ati- reprovação implacável dos outros.
ludc imoral dos "egoístas inteligentes" da burguesia. Como Aqueles poucos eleitos são os que interessam especial­
imtiintclcctualista e antiulitarista, Carlyle é um místico, mente a Carlyle. "Naquele tempo, Deus acordou um herói
2024 OTTO MARIA CABPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2025

em Inracl", assim começam, no Velho Testamento, os capí­ Essa combinação de reformas sociais e imperialismo
tulo» do livro dos Juízes. Como todos os puritanos, Carlyle inescrupuloso encontrou a primeira realização pela política
é inaiH do Velho Testamento do que do Novo; e aquela. romântica de Disraeli ( 1 7 ), o primeiro-ministro aristocrático
finMc encerra, para êle, o sentido da História. De vez em de origem judaica, o chefe do partido dos "jovens conser­
quando, sendo já insuportável a desordem profana, Deus vadores"; deu a liberdade da organização sindical e o sufrá­
acorda um herói, um juiz, que julga a Humanidade em gio universal aos operários ingleses, e deu à rainha Vitória
nome daquele outro juiz terrível no céu, o Deus dos puri­ a coroa imperial da Índia. Disraeli estava tão cheio de
tanos; "Deus absconditus" que se revela pelas obras dos orgulhos como Carlyle estava cheio de ressentimentos. Os
grandes homens, dos heróis. O "hero-worship" de Carlyle heróis dos seus romances políitcos, hoje pouco lidos, são
é um conceito complicado. Há nisso algo do carrasco de auto-retratos de um jovem aristocrata de palidez byroniana,
direito divino de De Maistre, cujo providencialismo está destinado a desempenhar o papel de herói histórico. "Pa­
perto da fé de Carlyle; também há naquele conceito algo pel", porque Disraeli era menos o herói do que o ator dos
de literário — Cromwell e Napoleão são heróis das Revo­ seus ideais de uma política espetacular.
luções assim como há "heróis" nos romances de Walter Espetáculo teatral — há muito disso na política de
Scott; e os heróis de Carlyle, orgulhosos, terríveis, satâ­ Disraeli e na doutrina de Carlyle, dissimulando-se assim
nicos, são como que irmãos dos heróis de Byron. Enfim, uma incoerência gravíssima. O patriarcalismo é uma forma
o herói de Carlyle é o descendente direto do "génio" dos* do medievalismo; não há medievalismo sem catolicismo; e
pré-românticos e do "Sturm und D r a n g " : não precisa de nem o puritano Carlyle nem o judeu batizado Disraeli
origem dinástica ou aristocráticas para ficar autorizado a pensaram em voltar à Igreja de Roma. Pagaram caro por
julgar o mundo. É o herói de um literato furibundo. Car­ isso: a sua política não recebeu consagração eclesiástica;
lyle, o puritano, não tem dificuldades em adotar a ordem tornou-se culto da força bruta. Mas em vão Carlyle e Dis­
hierárquica dos valores medievais, na qual o clero católico raeli teriam pedido o apoio da Igreja anglicana, que não
ocupava o lugar mais alto; o puritano substitui o clero era capaz de apoiá-los nem quis fazê-lo. Durante o século
pela Igreja invisível dos heróis literários, dos poetas e dos X V I I I , a via media entre catolicismo e protestantismo
historiadores proféticos; e duplamente profeta é o histo­ transformara-se em espécie de indiferença religiosa; por
riador poético e poeta visionário Carlyle. Daí a força da: volta de 1800, a Igreja anglicana era só um ramo da admi­
sua historiografia, o poder de evocar e o poder de julgar. nistração pública, sem conteúdo religioso. Fora dos muros
Carlyle é um Michelet conservador. É um romântico. Ro­ dessa Igreja oficial nasceram os movimentos sectários, todos
mântica é a sua desconfiança com respeito à inteligência
racional; romântica é a sua fé nos instintos, criados e bati-
zados por Deus. É o romântico da Força e até da Violência,,
17) Benjamin Disraeli, Earl of Boacon.sfield, 1804-1881.
o precursor indireto do imperialismo inglês, melhorando as Coningsby (1844); Sybil (1845); Tancred (1847); Lothair (1870);
condições de vida do operariado inglês pela subjugação de Enãymion (1880).
Edição dos romances por Ph. Guedalla, 12 vols., London, 1926-
pníscs e continentes estrangeiros. A visão de Carlyle im­ 1927.
plicou a realização dos ideais de Shaw pelas armas de: L.a Stephen: "Disraeli's Novéis". (In: Hours in a Library. Vol. II..
2. edição. London, 1892.)
Kipling. M. E. Speare: The Politicai Novel. New York, 1924.
D. L. Murray: Disraeli. London, 1927.
2(12(1 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2027

de côr mais ou menos protestante. Enfim, esses "Evange- romances Yeast e Alton Locke foram chamados "romances
HCHIH" acabaram invadindo a Igreja, eliminando os últimos problemáticos" porque trataram com a intensidade de ser­
vestígios do caráter católico da Igreja de Andrews e Laud. mões do problema social. Mais tarde, em romances "filo­
Quando surgiram, depois da reforma parlamentar de 1832, sóficos" e históricos, sem a ajuda poderosa do assunto atual,
governos liberais, nomeando bispos liberais e violando a Kingsley revelou as fraquezas de um escritor medíocre; e
autonomia eclesiástica das velhas Universidades, a Igreja não escaparia ao esquecimento final sem o incidente his­
já não era capaz de defender-se. Mas tampouco quis defen- tórico que lhe imortalizou o nome: em 1864 denunciou
der-se. Assim como as classes baixas estavam invadidas publicamente como "hipócrita" e "insincera" a conversão
pelas seitas protestantes, assim estava o clero contaminado do professor Newman ao catolicismo romano, e Newman,
pelo liberalismo teológico ( 1 8 ). Teológico liberal, no sen­ defendendo-se, respondeu com a Apologia pio Vita Sua,
tido do protestantismo alemão, era Thomas Arnold (1795- a maior autobiografia em língua inglesa e, "vue à travers
1842), o grande educador de Rugby, um dos homens que un tempérament", a história autêntica do Oxford Move-
criaram e formaram o espírito da época vitoriana. Liberal ment.
no sentido de Schleiermacher era Benjamin Jowett (1817- O Oxford Movement ( 21 ) nasceu em 1833, na Universi­
1893), tradutor clássico de Platão e editor principal da dade de Oxford à qual deve o nome, com um sermão On
coleção Essays and Reviews (1860), introduzindo a exegese National Apostasy, do professor John Keble ( 2 2 ), já famoso
crítica da Bíblia, à maneira alemã, na Igreja anglicana. como poeta cristão; Keble chamou "apostasia nacional" à
Liberal era Richard Whately, o influente arcebispo angli­ protestantização e liberalização da Igreja anglicana, que
cano de Dublin. E o liberalismo teológico encontrou um não é uma seita protestante, e sim um ramo da Igreja cató­
protetor poderoso, embora algo hesitante, no mais alto dig­
lica, embora separado de Roma por motivos que Keble
nitário da Igreja anglicana, em Archibald Tait, arcebispo
julgou justos. Mas reconheceu como motivos assim só as
de Canterbury. Uma ala menos radical e mais prática do
pretensões políticas do Vaticano e algumas superstições
liberalismo estava constituída pelos "cristãos-sociais", ba­
populares, toleradas pelo clero romano; no resto, Keble
seando no Evangelho e apoiando pelo trabalho pastoral as
acentuou mais os elementos que unem as Igrejas do que
reivindicações sociais durante e depois do Chartismo ( 1 9 ).
aquilo que as separa. Exigiu a volta ao dogma ortodoxo,
John Frederick Denison Maurice (1805-1872) era o chefe
sem heresias calvinistas ou liberais, reivindicou o resta­
desses "socialistas cristãos", mais sociais do que liberais,
belecimento do rito católico, embora em língua inglesa, o
uma espécie de Carlyle anglicano e portanto suave. O
restabelecimento da autoridade episcopal na base da su-
escritor prominente do grupo era Kingsley ( 2 0 ), cujos
21) P. Thureau-Dangin: La renaissance catholique en Angleterre
IH) V. F. Storr: The Development of English Theology in the Ninet- au XIX e siècle. 2.a ed., 3 vols., Paris, 1912.
eenth Centrury, 1800-1860. London, 1913. W. Ward: The Oxford Movement. London, 1913.
W. L. Knox: The Catholic Movement in the Church of Englanã.
1») C. E. Raven: Christian Socíalism, 1848-1854. London, 1920. London, 1923.
20) Charles Kingsley, 1819-1875. 22) John Keble, 1792-1866.
Ycast (1848); Alton Locke (1850); Tracts by Christian Socialists The Christian Year (1827); Tracts for the Times (com J. H.
(1851); Hypatia (1853); Westwarã Ho! (1855) etc, etc. Newman e E. B. Pusey, 1833-1841).
W. H. Brown: Charles Kingsley. Manchester, 1924. Edição do Christian Year por J. C. Shairp, London, 1914.
U. Popc-Hennessy: Canon Charles Kingsley. London, 1949. E. F. L. Wood Viscount Halifax: John Keble. London, 1909.
202» OTTO M A R I A CARPF.AUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2029

cessão apostólica, e, para garantir tudo isso, a indepen­ meiro grande escritor católico na Inglaterra desde a época
dência da Igreja anglicana do Estado. O Oxford Move- da Reforma; pois o catolicismo de Pope não influiu sensi­
mcnt, alastrando-se rapidamente, encontrou inimigos fero­ velmente na sua poesia. Na história da civilização inglesa
zes e adeptos entusiasmados, entre estes últimos o jovem moderna, a conversão de Newman ao catolicismo romano é
Kichard Hurrell Froude (1803-1836), convertido ao medie- um acontecimento de primeira ordem: com isso se alude
valismo pela leitura dos romances de Walter Scott. Foi menos aos poucos teólogos anglicanos e aos numerosos
Froude que revelou a Newman as belezas da arquitetura estetas, literatos e artistas que lhe acompanharam o passo,
medieval e do rito romano e lhe sugeriu a fé na presença até aos poetas decadentistas da "fin du siècle" e até aos
real na Eucaristia; seu irmão, o historiador James Anthony Chesterton, Graham Greene e Evelyn W a u g h de hoje. A
Froude, serviu como espécie de oficial de ligação entre os importância inglesa de Newman reside mais na repercussão
oxfordianos e Carlyle, do qual escreverá mais tarde a bio­ fora do catolicismo romano: nasceu, de um lado, o "anglo-
grafia. Como órgão do movimento publicou-se uma série catolicismo", poderoso movimento de recatolização dentro
de tratados teológicos, os Tracts for the Times, escritos por da Igreja anglicana, e do qual o representante literário
Keble, o erudito Edward Bouverie Pusey (1800-1882) e é hoje T. S. Eliot; e doutro lado, o idealismo religioso
o próprio Newman, que se tornou a figura principal entre de Newman agiu subterraneamente em todos os movimentos
os oxfordianos; mas só para abandonar o movimento, en­ de reação idealista contra o materialismo económico da
trando na igreja romana. época vitoriana. Mas essas repercussões são fenómenos de
Newman ( 2 3 ), o maior escritor da Igreja anglicana des­ 1860 quanto ao idealismo, e de 1880 e 1900 quanto ao anglo-
de a época de Andrewes e Donne, é ao mesmo tempo o pri- catolicismo. Em 1845, no ano da conversão de Newman,
os efeitos eram quase contrários. Desde 1833, os Tracts
23) J o h n Henry Newman, 1801-1890. for the Times tinham sacudido o clero anglicano e a cons­
The Arians of the Fourth Century (1853); Parochial anã Plain
Sermons (1834-1843); Tracts for the Times (com J. Keble e E. B. ciência religiosa da nação; as acusações hostis de "popery"
Pusey, 1833-1841); Oxford University Sermons (1843); An Essay não conseguiram sufocar o movimento. Em 1841, o Tract
on the Development of Christian Doctrine (1845) ; The Iãea of
a University (1852); Apologia pro Vita Sua (1864); Essay in Aid 90, escrito por Newman, já foi tão abertamente "romano"
of a Grammar of Assent (1870). que a Universidade o desaprovou oficialmente. Keble e
Edição por J. Rickaby, 40 vols., London, 1874-1921; (numerosas
edições das obras avulsas). Pusey retiraram seu apoio a qualquer passo que podia levar
Ch. Blennerhassett: John Henry Newman. Berlin, 1904. a Roma. Newman demitiu-se como professor e como pároco.
H. B r e m o n d : Newman. 2 vols. Paris, 1905-1906.
Ch. Sarolea: John Henry Newman. Edinburg, 1908. Seguiram-se quatro anos de sérias lutas íntimas. Quando,
P. E. More: "Newman". ( I n : Shelburne Essays, vol. VIII. New em 1845, se espalhou a notícia da conversão, as acusações
York, 1913.)
J. J. Reilly: Newman as a Man of Letters. New York, 1925. anteriores pareciam justificadas: o Oxford Movement teria
W. P. W a r d : The Life of Cardinal Newman. 3. a ed. 2 vols. L o n ­ sido um pérfido ataque jesuítico por dentro; e acabou
don, 1927.
J. Lewis May: Cardinal Newman. London, 1929. (2. a edição, 1945). logo, esmagado pela deserção do seu chefe. A denúncia
J. E. Ross: John Henry Newman. Anglican Minister, Catholic de Kingsley, vinte anos depois, só lembrou a um caso já
Priest. Roman Cardinal. London, 1933.
S. D a r k : Newman. London, 1934. julgado.
I. F . Cronin: Cardinal Newman. His Theory of Knowleãge.
Washington, 1935. O protestantismo e liberalismo ingleses consideravam
Ch. F. Harrold: John Henry Newman. An Expository and Criticai
Sludy of his Mina, Thought, anã Art. New York, 1945.
a conversão de Newman como uma abdicação da sua inte-
2o:io OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2031

licencia; teria sido, como muitos convertidos, um falido, glish" — desmente a suspeita de uma fé só romântica. The
refwgiando-se ao seio da Mãe Igreja. Mas Newman não Idea of a University é um dos documentos mais nobres do
era um homem dado a falências, nem homem sentimental humanismo inglês, e o classicista anglo-católico T. S. Eliot
cm sentido algum. Fora o teólogo mais célebre da Igreja não tem motivos para renegar o mestre; antes o mestre
Anglicana justamente pelo duro senso dos fatos nos seus renegaria o discípulo, porque Newman ficou sempre o que
trabalhos de história dos dogmas, senso bem inglês; e guar­ não quis ser nunca: um típico liberal inglês. Apenas mais
dou esse bom-senso, às vezes ligeiramente irónico, como coerente do que os outros liberais, ou digamos, menos insu­
padre católico e membro do Oratório, a ponto de tornar-se lar, mais europeu. O grande documento do seu estado de
suspeito aos seus novos correligionários. Achara a fé em espírito é a Apologia pro Vita Sua; autobiografia tipi­
Roma, mas não a paz. Na ocasião do concílio do Vaticano, camente inglesa, escondendo com pudor as lutas íntimas
em 1870, opôs-se à definição da infalibilidade papal; o car­ que foram duras. Houve quem se decepcionasse com a
deal Manning hostilizou-o durante 30 anos, fazendo-lhe frieza da exposição que não revela as menores "angústias
fracassar o projeto de uma Universidade católica na In­ pascalianas"; parecem ter sido só argumentos de história
glaterra. Sempre se fala em "cardeal Newman"; mas é dos dogmas e direito eclesiástico que motivaram a con­
preciso notar que só Leão X I I I o nomeou cardeal, em 1878, versão. Enquanto é assim, é mais uma prova do caráter
isto é, 33 anos depois da conversão, quando Newman tinha a-romântico dessa conversão.
78 anos de idade; só 12 anos antes da sua morte. E no ponti­
Na verdade, foi o golpe de graça do romantismo inglês.
ficado de Pio X recomeçaram as hostilidades contra o car­
Gladstone, então conservador e anglicano ortodoxo, quando
deal m o r t o : na sua doutrina da evolução dos dogmas e
ouviu a notícia da conversão do mais famoso teólogo da
na sua poderosa obra de apologia pascaliana, a Grammair of
sua Igreja, exclamou: "A Igreja treme nos fundamentos".
Assent, descobriram as raízes da "heresia das heresias", do
"modernismo". Mas o modernismo, tentativa de apologia Quem tremeu e caiu mesmo foi o Oxford Movement que,
pragmatista, é portanto irracionalista; e Newman nunca revelando a sua tendência, se tornou intolerável aos ingle­
foi isso. Ao contrário, êle parece quase racionalista em ses. A conversão de Newman significou o fim do Oxford
relação aos subterfúgios irracionais do "compromisso vi­ Movement, do último movimento romântico na Inglaterra.
toriano" entre a religião e o mundo. Fica a acusação da O campo ficou aberto, quase indisputado, ao liberalis­
"insínceridade". A pedagogia pastoral de Newman é às mo. Acontecimento comparável só é a revolta de Kieke-
vezes sutilíssima, dizendo sempre a verdade, mas nem sem­ gaard ( 23_A ) contra a igreja oficial da Dinamarca, acabando
pre a verdade inteira, conforme a capacidade de compreen­ com o romantismo dinamarquês e abrindo as portas ao
são dos que o ouviram. Tampouco é simpático certo roman­ liberalismo de Brandes.
tismo estético de Newman na sua mocidade, impressionado Na França, o liberalismo já tinha vencido em 1830. À
pelo medievalismo pitoresco de W a l t e r Scott. Mas a im­ conversão de Newman corresponde aí, em sentido inverso,
pressionante coerência de pensamento entre os sermões da
a apostasia de Lamennais. Ao Oxford Movement corres-
fase anglicana e os sermões da fase católica já basta para
desmentir a acusação de insínceridade; assim como o seu
estilo perfeitamente clássico — o seu famoso "royal en-
23A) Cf. "Romantismos de evasão", nota 160.
2032 OTTO MAIUA CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2033
ponde na França o movimento da renovação religiosa, ini­ que Thierry descobrira na história francesa; mas do outro
ciado pelos discípulos de Lamennais, que ficaram fiéis à lado do canal, anglo-saxões e normandos, burgueses e aris­
Igreja: Lacordaire ( 2 4 ), Dom Guéranger, abade de Solesme tocratas já estavam fundidos, duma maneira que dispensava
e defensor, como Keble, da liturgia, Montalember ( 2 5 ), e as revoluções. E Guizot é homem do progresso pacífico,
Ozanam (- u ), alma de apóstolo, entusiasta da poesia me­ orgânico. Tem algo de B u r k e ; e a ocupação contínua com
dieval assim como fora Richard Hurrel Froude. Mas os Shakespeare, ao qual dedicou uma grande obra, revela um
oxfordianos travaram a última luta contra o liberalismo, resíduo de romantismo literário. O seu adversário perma­
enquanto os antigos discípulos de Lamennais eram mesmo nente Thiers ( 2 8 ), já não tem nada de romântico; é um
liberais; o seu órgão, a revista Correspondam, defendeu "latino", de simpatias jacobinas e napoleónicas, nacionalista,
o catolicismo liberal contra os ultramontanos. A vitória do dando-se como chefe da democracia pequeno-burguesa. Está
liberalismo já estava decidida; o próprio Balzac, monar­ desmentido pelo seu estilo, que é classicista e quase liviano
quista e católico por espírito de rebeldia, não fêz outra coisa nas obras historiográficas e de sobriedade comercial na
senão criar o maior monumento da burguesia liberal, a eloquência parlamentar. Thiers é outro grande burguês,
Comédie humaine. Tinha começado a época dos "sophisters, o representante da burguesia numa fase já mais avançada
economists and calculators" que Burke profetizara. Os da industrialização. O romantismo está, na política, li­
homens do dia são Guizot e Thiers, campeões das grandes quidado.
batalhas oratórias na Câmara dos Deputados. Guizot ( 2 7 ), Na literatura, também. Só 13 anos tinham passado
representante da grande burguesia conservadora, mais do desde a "bataille d'Hernani", e no dia 7 de março de 1843
progresso económico do que do político, era protestante, sofreram Les Burgraves, de Hugo, uma derrota ruidosa;
mas duma outra espécie de protestantismo do que Carlyle: no 22 de abril do mesmo ano, Lucrèce, tragédia neoclássica
calvinista de espírito genebrino, homem austero, reservado, de Ponsard ( 2 9 ), é recebida com aplausos não menos rui­
orgulhoso; as suas simpatias marcadas para com a Ingla­ dosos. Lemaitre, Bocage, Madame Dorval, os grandes atôres
terra inspiraram-se no conservantismo inglês. Na Ingla­ do teatro romântico, estão decadentes, vencidos pela famosa
terra encontrara Guizot o mesmo conflito de raças e classes Rachel; os românticos, que detestaram Racine, assistiram
aos triunfos da atriz nos papéis de Iphigénie e P h è d r e ;
e o próprio Musset juntou-se ao círculo dos admiradores
24) Cf. "Pontos de partida do romantismo", nota 59. da grande atriz ( 3 0 ). Mas Racine ficou reservado para os
25) Cf. "Pontos de partida do romantismo", nota 60. dias de festa; nos dias úteis, o teatro francês estava domi-
26) Antoine Frédéric Ozanam, 1813-1853.
Dante et la philosophie catholique au XlIIe siècle (1839); Les
poetes franciscains en Italie au XlIIe siècle (1852).
G. Goyau: Ozanam. 2.a ed. Paris, 1931. 28) Adolphe Thiers, 1797-1877.
F. Méjecaze: Ozanam et les lettres. Paris, 1932. Histoire de la révolution française (1823-1827); Histoire du Con-
27) François Guizot, 1787-1874. sulat et de 1'Empire (1845-1855).
P. de Rémusat: Thiers. Paris, 1890.
Histoire de la révolution ã'Angleterre (1826, 1854, 1856); Histoire G. Lecomte: Thiers. Paris, 1933.
Í/C la civilisation en France (1830); Shakespeare et son temps
< 1K52) etc. 29) Cf. "O último classicismo", nota 85.
J. Uardoux: Guizot. Paris, 1894.
30) A. de Faucigny-Lucinge: Rachel et son temps. Paris, 1910.
2034 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2035

nado pela habilidade cénica de Scribe ( 3 1 ), virtuose das pelo teatro" para divertir a gente. Gautier ( 32 ) percorreu
complicações engenhosas e desfechos satisfatórios, redu­ caminho análogo, se bem às avessas. Na noite de 25 de
zindo a História, nas suas comédias "históricas", a mero fevereiro de 1830, noite da "bataille d'Hernani", assustou
jogo de intrigas e acasos entre indivíduos ambiciosos, um as "cabeças académicas" da plateia, exibindo o famoso co­
"Shakespeare burguês" sem poesia nem arte nem outra lete rubro; e toda a poesia romântica de Gautier terá o
inteligência do que de herói da bilheteria. mesmo fim de "épater le bourgeois", demonstrando-lhe que
os "génios" da Bohème, os "Jeune-France", fazem a histó­
Brunetière chamou a atenção para um trecho curioso ria, pelo menos a história literária. Gautier acabou, porém,
no Discours de réception (1836) de Scribe na Académie renunciando deliberadamente a essa tese, retirando-se para
Française, no qual o comediógrafo afirmou a independência o "1'art pour 1'art". E as inegáveis qualidades artísticas da
do teatro com respeito aos costumes da época; Brunetière poesia de Gautier já não podem iludir ninguém com res­
reconhece nessa afirmação a teoria do "1'art pour 1'art". O peito à inutilidade perfeita dessa arte que fora romântica
dramaturgo comercializado Scribe escreveu peças só para e será parnasiana. Inútil porque tão independente dos "cos­
fazer teatro; o poeta boémio Gautier fêz poesia só para tumes da época" como Scribe pretendera ser, mas sem a
fazer poesia. São contemporâneos. Há entre eles a dife­ permanência da autêntica grande arte, que não é possível
rença entre a habilidade e o artifício, mas os motivos sociais produzir intencionalmente. Declarando "fora do tempo"
são os mesmos. A tese do teatro romântico fora a superio­ a sua arte, Gautier estava de acordo com Francois Buloz,
ridade do génio, no Chatterton de Vigny, no Kean de Du­ o fundador da Revue des Deux Mondes ( 3 3 ), o grande jor­
nalista literário da burguesia: Buloz e os seus leitores
mas Père, no Ruy Blas de H u g o ; tese que ofende à burgue­
toleravam os últimos românticos contanto que estes renun­
sia, como tese "antidemocrática". Scribe respondeu, de­
ciassem à posição pública da poesia. É o fim do roman­
monstrando que os acontecimentos históricos não se rea­
tismo francês.
lizam pela genialidade dos atôres da História, mas por meio
de pequenas intrigas e acasos, os mesmos como na vida 32) Théophile Gautier, 1811-1872. (Cf. "Romantismos de oposição",
doméstica de todos os burgueses; atitude anti-romântica nota 72, e "Advento da burguesia", nota 31.)
Poésies (1830); Albertus ou Vâme et le péché (1833) ; Les Jeune-
e anti-heróica, que será, 50 anos depois, a de Bernard Shaw. France (1833); Mlle. de Maupin (1835-1836) ; La comêdie de la
Depois, Scribe chega à peça sem tese alguma, ao "teatro mort (1838); Espana (1845); Emaux et Camf.cs (1852) ; Le Ca-
pitaine Fracasse (1863); Poésies nouvelles (1863); Histoire ãu
romantisme (1874) etc.
Edição crítica de Emaux et Camées por V. Pommier e G. Matoré,
Paris, 1947.
Ch. Spoelberch de Lovenjoul: Histoire ães ocuvrcs de Théophile
31) Eugène Scribe, 1791-1861. Gautier. 2 vols., Paris, 1887.
Bcrtmnã et Raton (1833); La camaraãerie (1837); Le verre ã'eau Max. du Camp: Théophile Gautier. Paris, 1890.
(1840); Une chaíne (1841); Aãrienne Lecouvreur (com Ernest A. Boschot: Théophile Gautier. Paris, 1933.
Lcgouvé; 1849); La bataille des ãames (com Legouvé; 1851); etc. L. Larguier: Théophile Gautier. Paris, 1948.
J. Rolland: Les comédies politiques d'Eugène Scribe. Paris, 1912. V. Tild: Gautier et ses amis. Paris, 1951.
F. Brunetière: "Scribe et Musset". (In: Les époques ãu théâtre 33) M.-L. Pailleron: Francois Buloz et ses amis. (Vol. I: La vie litté-
/rançais. 5." ed. Paris, 1914.) raire sous Louis-Philippe. Paris, 1914; vol. I I : La Revue des Deux
N. C. Arvin: Eugène Scribe anã the French Theatre. Cambridge, Mondes et la Coméãie Française. Paris, 1920; vol. III: Les der-
MHNN., 1924. niers romantiques. Paris, 1923.)
•j;o:u» OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2037
O pruccsso do romantismo foi feito, porém, por um renovou a crítica literária pelo método psicológico, a in­
plebeu — sintoma de que a liquidação do romantismo con­ terpretação da obra pela interpretação da personalidade;
taste na separação entre a burguesia liberal, que já não a crítica está, portanto, autorizada para aplicar-lhe o mesmo
precisa do romantismo, e a pequena-burguesia democrática, processo; e em sua incompreensão por Stendhal e Baudelai­
que já precisa de outras armas. Por acaso, aquele plebeu re encontrar-se-á a chave da interpretação de Sainte-Beuve.
era uin grande crítico, o maior crítico da literatura francesa. Sainte-Beuve é, antes de tudo, o crítico do passado
Sainte-Beuve ( 34 ) era agudíssimo como crítico dos seus literário da França. Descobriu ou redescobriu Ronsard e
contemporâneos, até quando errava; e errou muito. Des­ Chénier, as fontes esquecidas da poesia francesa, estabele­
cobriu e explicou, em palavras que contam até hoje, a sig­ cendo uma tradição literária que incluiu, como fase final,
nificação da primeira poesia romântica, de Lamartine e o romantismo. Depois, abandonando o romantismo, o hu­
H u g o ; e com a mesma agudeza denunciou, depois, as fra­ manista erudito que Sainte-Beuve era, voltou aos valores
quezas formais e intelectuais da mesma poesia romântica. da tradição à grande prosa do século X V I I , aos "mora-
Não compreendeu Balzac; mas tinha algo de razão, quando listes" dos quais êle mesmo era o último; analisando psi­
denunciava o romancista monárquico e católico como re­ cologicamente os literatos assim como aqueles tinham ana­
presentante da "littérature industrielle" da burguesia. Tam­ lisado os cortesãos e as grandes damas. Mas, formado pelo
bém com razão denunciou o parnasianismo em Flaubert. romantismo, Sainte-Beuve já não podia compreender os
Só não é possível desculpar a indiferença contra Stendhal e clássicos do século X V I I só como expressões da "Raison",
a incompreensão com respeito a Baudelaire. Sainte-Beuve como inteligências analíticas. Descobriu "le romantisme
«des classiques"; fêz a revisão geral de todos os valores
literários da tradição francesa; e como o grande jornalista
34) Charles-Augustin Sainte-Beuve, 1804-1869. que era, deu a esses valores o interesse de uma atualidade
Tableau historique et critique ãe la poésie française et ãu théâ- nova e no entanto permanente, salvando-os numa época
tre français au XVIe siècle (1827-1828); Poésies ãe Joseph De-
lorme (1829) ; Volupté (1834); Pensées ã'Aout (1837); Histoire ãe pouco propícia às tradições. Deste modo tornou-se Sainte-
Port-Royal (1840-1848) ; Portraits littéraires (1844); Portraits ãe Beuve o maior "homme de lettres" do século XIX, um
femmes (1844); Portraits Contemporains (1846); Causeries ãu
Lundi (1851-1862); Chateaubrianã et son groupe littéraire sous tipo e símbolo. Aquele "romantisme des classiques" culmi­
VEmpire (1861); Nouveaux Lunãis (1863-1870); Mes Poisons na em Pascal; e Sainte-Beuve era sobremaneira capaz de
(publ. por V. Giraud, 1926).
Edição da Histoire ãe Port-Royal por R.-L. Doyon e Ch. Mar- compreender Pascal, porque êle mesmo, o epicureu de
chesné, 8 vols., Paris, 1925-1932. formação jacobina e meio materialista, era uma natureza
Edição das Causeries du Lundi e Portraits, 16 vols., Garnier
(com índice analítico por Ch. Pierrot), Paris, s. d., edit. como pascaliana, sofrendo na mocidade de angústias religiosas,
Les granas écrivains français, por M. Aliem, 22 vols., Paris, 1926- •depois dificilmente superadas. Tinha tido fases e crises
1933.
Edição de Volupté por P. Poux, Paris, 1927. religiosas; fora saint-simonista e amigo de Lamennais; e
L. Séché: Mudes ã'histoire romantique. Sainte-Beuve. 2 vols.. a sua apostasia do romantismo e da democracia ligara-se
Paris, 1904.
L. Séché: Le cénacle ãe Joseph Delorme. 2 vols, Paris, 1912. snesmo à apostasia religiosa de Lamennais, embora em sen­
Ii.-F. Choisy: Sainte-Beuve, Vhomme et le poete. Paris, 1921. tido inverso. Assim chegou a ver em Pascal a maior figura
O. Michaut: Sainte-Beuve. Paris, 1921.
A. Bcllessort: Sainte-Beuve et le XIXe siècle. Paris, 1927. do século X V I I ; em Port-Royal, o centro da história da
W. F. Giese: Sainte-Beuve. Madison, 1931. literatura francesa; e tão profundamente êle nos inculcou
A. Billy: Sainte-Beuve, sa vie et son temps. 2 vols., Paris, 1952.
2<>:ui OTTO M A R I A CABPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2039
eHHii ideia que já a manejamos sem perceber que fora então t i c o " no século XVIII. Romances "góticos", são, no con­
uniu ideia nova, revolucionária. O classicismo do século teúdo e na técnica, os romances de Sue ( 3 B ); apenas o
de laiís XIV fora considerado como expressão do con­ novo ambiente literário, entre a Revue des Deux Mondes
formismo político e religioso; mas Sainte-Beuve colocou n o «m cima e os baratos jornais populares embaixo, deu-lhes
centro daquele século a casa de Port-Royal, a oposição. a nova forma do "roman-feuilleton", de publicação seriada
O próprio Sainte-Beuve era oposição. Distinguiu-se do nos rodapés dos jornais. É possível determinar exatamente
aristocrata rural Lamartine, do filho do general Hugo, do a posição de Sue na história do romance francês: Thibaudet
burguês parisiense Musset, pela origem plebeia. Daí, o seu situou Les Mystères de Paris entre Nôtre-Dame de Paris
romantismo era diferente do romantismo dos outros. Daí, e Les Misérables. A tendência social já é mais importante
a poesia de Sainte-Beuve também é diferente; é conside­ d o que o elemento pitoresco. Na Histoire d'une famile de
rada, hoje, como precursora da poesia de Baudelaire; e prolétaires, Sue antecipa a ideia de Zola. J á "les utopies
estava realmente mais perto de Nerval do que de H u g o . cheminent sous terre". A revolução industrial na França
É uma poesia de aparências realistas e fundos místicos. fêz entre 1830 e 1848 progressos notáveis. O romantismo
Mas Sainte-Beuve deixou de ser poeta; suprimiu e recalcou pequeno-burguês torna-se romantismo proletário. O herói
a poesia em si mesmo, como uma aventura indecente da Jean Valjean substitui os heróis byronianos. A expressão
mocidade; e por isso mesmo não quis compreender a Bau­ pseudocientífica do romantismo social são os socialismos
delaire. Abandonou o romantismo que não lhe tinha cum­ utópicos, de Cabet, Fourier, Leroux, utopias tipicamente
prido as promessas: não o tinha elevado socialmente. pré-românticas, imaginadas para resolver a questão social,
Sainte-Beuve é da geração napoleônica de Julien Sorel; mas motivadas pelo desejo da pequena-burguesia de escapar
a sua própria aventura com Madame Hugo é como um às consequências da revolução industrial.
capítulo de um romance de Stendhal; e foi motivo do
A afirmação de relações entre o romantismo social
recalque que lhe impediu a compreensão do romancista.
francês e o progresso da revolução industrial na França
Sainte-Beuve experimentou pessoalmente as derrotas do
seria uma trivialidade, quase uma tautologia, se não fosse
romantismo; e completou a derrota. Ao aburguesamento
possível alegar argumentos de ordem literária, estilística.
preferiu o "ralliement" ao cesarismo pseudodemocrático de
Com efeito, o estilo que corresponde à revolução industrial
Napoleão III, que lhe garantiu o bem-estar de epicureu.
é o pré-romatismo; e os dois elementos principais do estilo
Sainte-Beuve é a figura mais anti-romântica do século; na
pré-romântico, o sentimentalismo e o popularismo, reapa­
retrospectiva, parece um clássico, o último clássico.
recem na França entre 1830 e 1850: no nível literário,
O romantismo ainda não acabara por isso; apenas j á na poesia de Hugo e no romance de George Sand; no
não constituiu a vanguarda da literatura. Experimentou nível da subliteratura, na poesia de Béranger e no romance
a sorte de tantos outros movimentos revolucionários n a de Sue.
história literária: caiu para um nível inferior, fora dos
valores estéticos, mas de importância tanto maior na histó­ 35) Eugène Sue, 1804-1857.
ria social das formas literárias. Nasceu um romantismo Les Mystères de Paris (1842-1843); Le Juif errant (1845); Les
Mystères ãu Peuple ou Histoire d'une famille de prolétaires à
vulgar, subliterário, para o uso das grandes massas de lei­ travers les ages (1849-1857).
tores, comparável ao romantismo vulgar do romance "gó- P. Ginistry: Eugène Sue. Paris, 1929.
N. Atkinson: Eugène Sue et le roman feuilleton. Paris, 1930.
2040 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2041

" A mesma analogia observa-se com nitidez maior na rando a Geschichte der Hohenstaufen de Raumer, escre­
Alemanha, porque lá faltavam as fortes imposições tradi­ vendo tragédias históricas em versos brancos lamentáveis.
cionalistas que deram aparências "clássicas" à poesia de Nos seus momentos lúcidos exibiu Grabbe força dramática
Bcranger. Aos começos da revolução industrial na Ale­ considerável: adotou a prosa e a ordem incoerente das
manha, por volta de 1770, correspondia o pré-romantismo cenas, elementos típicos do "Sturm und D r a n g " ; e o seu
do "Sturm und Drang"; ambos desapareceram nas guerras culto pueril do génio transformou-se em culto do génio
napoleónicas, que causaram o atraso económico e produ­ coletivo, do povo. O povo de Paris e o povo alemão são
ziram o último classicismo e o romantismo de evasão. E n t r e os verdadeiros heróis dos seus dramas Napoleon oder die
1820 e 1830, a revolução industrial começa de novo, sobre­ hundert Tage (Napoleão ou Os Cem Dias) e Die Her-
tudo na Renânia e Westfália; depois de 1830, com a cons­ mannsschlacht — sobretudo o primeiro é uma obra notável.
trução de estradas de ferro e a União Aduaneira Alemã, Em momentos menos lúcidos, Grabbe ainda teve forças
o progresso económico acelera-se. E o "Sturm und Drang", para escrever uma comédia satírica, de humorismo macabro,
que já constituiu lembrança longínqua, meio esquecida, da que André Breton incluiu entre as obras-precursoras do
história literária, voltou de maneira surpreendente, justa­
"humour noir" do surrealismo.
mente na Westfália e Renânia, onde naqueles mesmos anos
Mas Grabbe só é um grande talento fracassado. Há
o jovem Friedrich Engels podia observar a proletarização
100 anos costuma-se mencionar, ao seu lado, como se fosse
progressiva ( 3 e ).
outro dramturgo menor, o nome de Georg Buechner. Mas
Grabbe ( 37 ) era proletário, filho de um carcereiro, este foi, no sentido alto da palavra, um génio.
crescido entre criminosos, loucos e bêbedos; e o estágio O povo, o de Paris nos dias do terror jacobino, é o
do estudante na boémia literária de Berlim completou-lhe herói de Dantons Tod, de Georg Buechner ( 3 8 ) ; drama
essa educação. O fracasso das suas tentativas literárias típico do "Sturm und Drang", embora já revelando influên­
encheu-o de ressentimentos contra a mocidade revolucio­ cias da dramaturgia melodramática do romantismo francês.
nária; produziu um pequeno-burguês física e moralmente Dantons Tod é uma obra-prima de força elementar; um
sujo, nacionalista furioso, continuamente alcoolizado. P r e ­ Grabbe não teria sido capaz disso. Contudo, Grabbe, infeliz
tendeu fazer o papel do Schiller da história alemã, explo-
38) Georg Buechner, 1813-1837.
36) H. H. Houben: Jungãeutscher Sturm und Drang. Leipzig, 1911. Der hessische Landbote (1834) ; Dantons Tod (1835); Lconce anã
Lena (publ. 1850); Woyzcck (publ. 1H79).
:S7) Christian Dietrich Grabbe, 1801-1836. Edições por P. Landau, 2 vols., licrlin, 1909, e por F . Bergemann,
Herzog Theoãor von Gothlanã (1822); Don Juan und Faust Leipzig, 1922.
(1829); Barbarossa (1829); Heinrích VI- (1830); Napoleon oder M. Zobel von Zobeltitz: Georg Huc.chners Leben und Schaffen.
rize hunãert Tage (1831); Hannibal (1835); Die Hermannssch- Berlin, 1915.
lacht (publ. 1838). H. L i p m a n n : Buechner und die Iimnantik. Berlin, 1923.
Kdição por P. Friedrich, 4 vols., Weimar, 1923. A. Zweig: Lessing, Kleist, Buechner. Berlin, 1925.
A. Ploeh: Grabbes Stellung in der ãeutschen Literatur. Leipzig, A. Pfeiffer: Georg Buechner. Vom Wesen der Geschichte, ães
l!)05. Daemonischen und Dramalischen. Frankfurt, 1934.
O. Nieton: Grabbe, sein Leben und seine Werke. D o r t m u n d , 1908. H a n s M a y e r : Georg Buechner und seine Zeit. 2. a edição. Wiesba-
K. J. Selmeider: Christian Dietrich Grabbe. Persoenlichkeit und den, 1946.
Wcrk. Muenchen, 1934. K. Vietor: Georg Buechner. Die Tragoeãie ães heldischen Pessi-
K. Dickuiiinn: Christian Dietrich Grabbe. Der Wesensgehait sei- mismus. 2. a edição. Bern, 1949.
iirr Dichtung. Detmold, 1936. A. H. J. K n i g h t : Georg Buechner. Oxford, 1952.
2042 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2043

por culpa própria, foi muito mais encorajado do que Buech­ und Drang", a tragédia em prosa Woyzeck: o herói é um
ner, ficando tão desconhecido que as suas obras mais im­ proletário, o herói anónimo da massa anónima. Cenas
portantes se publicaram só decénios depois da sua morte. abruptas, seguindo-se com velocidade febril, prosa lacónica
Uma injustiça revoltante do destino quis que seu irmão, em sintaxe incoerente e gíria grosseira, iluminada pelas
o materialista vulgar Louis Buechner, se tornasse famosís­ involuntárias citações da Bíblia luterana como convém ao
simo no mundo inteiro, enquanto este mundo não tomou homem do povo protestante — assim Woyzeck acerta o tom
conhecimento de Georg Buechner, que morreu com vinte de uma balada trágica com longínquas reminiscências ro­
e quatro anos de idade e foi um dos grandes génios dramá­ mânticas; a obra está cheia de uma poesia do inefável que só
ticos da literatura alemã. Veio do romantismo; como estu­ a música de Alban Berg nos desvendará. Vida e obra de
dante, entusiasmara-se pela natureza, chorou nas florestas Buechner passaram como um sonho de febre. Na Alemanha,
como um discípulo de Klopstock, sonhava com a revolução só os revolucionários socialistas de 1919 reconhecerão o
democrática, sendo perseguido pela polícia como conspi­ valor desse génio precursor. Hoje é Buechner, pelas repre­
rador perigoso. Então idolatrava os génios da Revolução, sentações das suas obras na França e pela ópera Woyzeck,
Danton, Robespierre — mas em Dantons Tod (A Morte de Alban Berg, uma das grandes figuras da literatura uni­
de Danton) já nega peremptoriamente o valor do heroísmo versal.
individual; representa a História como tragicomédia terrí­ Pode-se afirmar que foi principalmente a alta qualidade
vel na qual demónios jogam com os destinos humanos para da obra de Buechner que impediu o reconhecimento do
fins desconhecidos. É tragédia profundamente pessimista seu valor, numa época da mais grave decadência da litera­
no qual as forças demoníacas, próprias da História, inflin- tura alemã; porque aquela obra era bem um sinal dos
gem derrota definitiva ao heróico idealismo humano. Atrás tempos. Os anos depois de 1830 são os anos mais decisivos
da força dramática sente-se o "mal du siècle". Mas Buech­ da história alemã: a antiga Alemanha dos pastores e huma­
ner venceu a desilusão. Na comédia espirituosa Leonce nistas transforma-se em Alemanha de políticos e indus­
und Lena já zomba do romantismo que vive num "país de triais. A Revolução de julho repercutiu profundamente,
fadas sem relógios"; faz o processo satírico ao tédio "Bie- despertando em toda a parte as reivindicações do libera­
dermeier". Começa a exigir a ação apoiada em ideologia lismo. Em 1831 morreu Hegel. Em 1832 morreu Goethe.
definida. Separa-se dos seus camaradas democráticos para Em 1834, a União Aduaneira Alemã criou o terreno para
lançar entre o povo a primeira brochura socialista em língua a expansão económica através dos pequenos Estados ale­
alemã, Der hessische Landbote. Agora se revela mais outro mães; e em 1839 construiu-se a primeira importante estrada
motivo daquele pessimismo histórico: Buechner desespera de ferro, entre Leipzig e Dresden. "Biedermeier" começou
da revolução burguesa, porque adivinha o advento de outra. a passear entre usinas e chaminés. Em 1832 reorganizou
Fugindo para a Suíça, vive como estudioso da zoologia Gustav Kolb o Augsburgische AUgemeine Zeitung, o jor­
em Zurique; fêz descobertas biológicas importantes, ante­ nal mais considerado da Alemanha meridional, enviando
cipando ideias de Darwin. O antigo entusiasta da Natureza correspondentes para o estrangeiro. O editor Campe, apro-
é agora materialista consciente. Rompe definitivamente veitando-se do liberalismo da censura em Hamburgo, inun­
com os idealistas democráticos. Antecipa ideias marxistas. dou o país inteiro de livros subversivos. Depois do huma­
Escreve, em estilo autêntico de Lenz, Klinger, do "Sturm nismo, o jornalismo. E os novos jornalistas eram antigos
21) I I OTTO MARIA CARPEUAX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2045

lumwiiiiHtíis, discípulos de Hegel, interpretando a filosofia encontrou lá. Após a morte de Boerne chegou a escrever
do mostre em sentido revolucionário: os "jovens hege- um livro contra êle, espécie de justificação ideológica da
liniios". inimizade entre eles; e achou para esse fim uma fórmula
O primeiro correspondente de um jornal alemão em de sabor lírico: Boerne teria sido um "nazareno", conta­
Paris foi Louis Boerne ( 3 9 ), pseudónimo de Loeb Baruch, minado pelo puritanismo moral da religião da Cruz; e êle,
judeu de Frankfort que conhecera, sob o governo de Na­ o próprio Heine, seria um "heleno", um goethiano, um pa­
poleão, a liberdade e igualdade perante as leis, para voltar gão de sentidos satisfeitos. E cita a frase que ocorre em
depois, na época da Restauração, ao "ghetto". Desde então, Twelfth Night de Shakespeare: "Dost thou think, because
odi ava o absolutismo alemão, adorando a França e a ideia thou art virtuous, there shall be no more cakes and ale?"
republicana. Mas era, ao mesmo tempo, nacionalista alemão, Causa estranheza essa pergunta na boca de um poeta que
desejando ardentemente a unificação de uma Alemanha li­ cantou incansavelmente os seus sofrimentos e lágrimas; e
bertada. Detestava a Goethe, para ele o símbolo da literatu­ o próprio livro contra Boerne, magistralmente escrito, mas
ra aristocrática e apolítica, e idolatrava Jean Paul, o escritor bastante pérfido, não dá a impressão de um escritor muito
sincero. Mas é difícil e até perigoso fazer restrições a
dos humildes. O humorismo prolixo e difícil de Jean Paul
Heine. Fazendo-as, o crítico parece colocar-se ao lado dos
transformou-se na pena de Boerne em "esprit" picante;
inimigos estupidíssimos de Heine, dos anti-semitas alemães,
Boerne, criador de um novo estilo de artigo de fundo, é
que pretenderam aproveitar-se das pequenas fraquezas hu­
um dos escritores mais espirituosos em língua alemã. Mas
manas do poeta para destruir-lhe a poesia. Não consegui­
esse jornalista era um homem austero, de conduta puritana;
ram. Heine não é, evidentemente, um Goethe; e até o se­
e na sua indignação moral havia o grande pathos de Lessing
gundo lugar na poesia lírica alemã está hoje ocupado por
ou de um orador da Roma da República.
O segundo correspondente de um jornal alemão em
A. Strodtmann: Heines Leben unã Werke. 3.a ed. Berlin, 1884.
Paris foi Heine ( 4 0 ), e não se deu bem com o confrade que W. Boelsche: Heine. Versuch einer aesthetisch-Jcritischen Ana-
lyse seiner Werke. Leipzig, 1887.
J. Legras: Henri Heine poHe. Paris, 1897.
39) Louis Boerne, 1786-1837. O. Zur Linde: Harry Heine unã ãic ãeutsche Romantik. Frei-
Die Wage (1821); Briefe aus Paris (1830-1833) etc. burg, 1899.
Edição por L. Geiger, 12 vols., Berlin, 1912-1913. H. Lichtenberger: Heine penscur. Paris, 1905.
G. Brandes: Boerne unã Heine. 2.a ed. Muenchen, 1898. G. Wendel: Heine. Berlin, 1916.
L. Marcuse: Das Leben Luãwig Boernes. Leipzig, 1929. K. Kraus: "Heine und die Folgen". (In: Untergang ãer Welt
W. Humm: Boerne ais Journalist. Zuerich, 1937. ãurch Schwarze Magie, Wien, 1922.)
R. Bottacchiari: Heine. Torino, 1927.
40) Harry Heine, 1797-1856. K. Sternberg: Heines geistige Grstalt unã Welt. Berlin, 1929.
Geãichte (1822); Lyrisches Intermezzo (1823); Harzreise (1826); H. G. Atkins: Heine. London, 1929.
Buch der Lieãer (1827); Relsebilãer II (Nordsee, Das Buch Le G. Bianquis: Harry Heine. Uhomme et Voeuvre. Paris, 1948.
Grana; 1827); Reisebilder III (Italien; 1830); Franzoesische Zus- F. Hirth: Harry Heine. Bausteine zu seiner Biographie. Mainz,
taenãe (1833); Die romantische Schule (1833); Zur Geschichte 1950.
der Religion unã Philosophie in Deutschland (1834); Der Salon B. Fairley: Harry Heine. An interpretation. Oxford, 1954.
(1835-1840); Ueber Luãwig Boerne (1840); Atta Troll (1843); K. Weinberg: Harry Heine, romantique ãé)roque, héraut ãu sym-
Deutschland, ein Wintermaerchen (1844); Neue Geãichte (1844); bolisme français. New Haven, 1954.
Iiomancero (1851); Neueste Geãichte (1853-1854). W. Rose: Harry Heine. Two Stuãies of his Thought anã Feeling.
Edições por O. Walzel, 10 vols., Leipzig, 1911-1915, e por E. Elster, Oxford, 1956.
4 VOIÍ;., Leipzig, 1924. E. M. Butler: Harry Heine. London, 1950.
2016 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2047

Hoelderlin; outros têm o direito de preferir Eichendorff " . . . T h e spirit of the world,
ou Brentano, Moerike ou Rilke. Heine não é da estirpe Beholding the absurdity of men —
deles, mas é um grande poeta em outras regiões poéticas. Their vaunts, their feats — let a sardonic smile,
As pequenas poesias, sem títulos, do Buch der Lieder For one short moment, wander o'er his lips.
(Livro das Canções) representam uma criação originalís­ That smile was Heine!"
sima, que nem sequer precisava da bela música de Schu-
mann para encantar o mundo inteiro; a forma simples, de Heine, no estrangeiro, tornou-se um "poet's poet". Na
Hed popular, não esconde de todo as requintadas artes poé­ Alemanha, Heine tem público menos aristocrático. É pre­
ticas desse grande artista do verso; e justamente o que ciso admitir que êle deve a popularidade imensa à trans­
parece antipoético — o famoso "cinismo" dos desfechos iró­ formação do Hed em chanson; a diferença é, mais ou menos,
nicos que destroem o lirismo melancólico do começo do a mesma como entre uma ária de ópera e uma ária de
poema — justamente isso é uma contribuição inédita ao opereta. O seu sentimentalismo, agradavelmente misturado
tesouro da poesia europeia. Durante certo tempo, o pro­ com "esprit", tornou-o o poeta dos que precisam dum "sen­
cesso de Heine parecia julgado, por motivo daquele crime tido razoável" num poema; dos que sentem menos a poesia
de lesa-majestade contra o lirismo romântico. Hoje, numa autêntica. Assim como os estrangeiros gostam do romântico
época de crítica anti-romântica, de revalorização do "wit" alemão em Heine, assim os alemães gostam do seu lirismo
da "metaphysical poetry", Heine, o mais espirituoso dos meio francês: Heine deu ao Hed o sentimentalismo ligei­
ramente byroniano de um Musset; e na cantabilidade das
poetas, também precisa de uma "reconsideration". Mas até
suas poesia políticas sente-se a influência de Béranger.
dentro da tradição de poesia "séria", o poeta da Loreley,
Todas essas fraquezas desaparecem nas traduções. Mas
de baladas como Die Grenadiere, do lirismo puro de " E s
uma crítica estilística, assim como Karl Kraus a realizou
fiel ein Reif in der F r u e h l i n g s n a c h t . . . " , sobrevive a todas
de maneira implacável, revela falsidades justamente nas
as restrições possíveis. Mas a repercussão da sua poesia
poesias mais admiradas, nas sentimentais: "cheiro de flores
revela aspectos menos favoráveis, repercussão que foi aliás
artificiais, de papel impresso — música de acordeão". Com
de todo diferente na Alemanha e no estrangeiro.
efeito, muitas rimas de Heine não passam além de prosa
Para o mundo lá fora, Heine foi o mensageiro do rimada. Mas esta crítica não acerta quanto às grandes
lirismo romântico alemão, do lirismo do Hed, suprimindo baladas nem quanto aos poemas — poemas grandiosos que
certas particularidades e provincialismos que só podiam Heine dedicou ao mar: Die Nordsee. Estão em versos
perturbar o estrangeiro: um romantismo alemão, mas mais livres, e Heine é tanto mais livre quanto mais perto está
da prosa. Afinal, as fraquezas da sua poesia são prosaísmos
cosmopolita, mais acessível a todos. Heine foi bem servido
que não constituiriam defeitos em prosa. A prosa de Heine
pelos seus tradutores. Até o "esprit" irónico de Heine
revela as suas origens justamente no mais original dos seus
transfigurou-se na tradução em riso de filósofo; e um
livros: nos Reisebilder (Imagens de Viagem), causeiies
crítico tão severo como Matthew Arnold, adotando a dis­
ligeiras sobre viagens na Alemanha, Inglaterra, Itália, mis­
tinção entre "nazarenos" e "helenos", interpretou aquele
tura originalíssima de narração irónica, poesias altamente
riso como anamnese platónica do paganismo grego num
românticas e sátira mordaz. Heine aprendeu isso um pouco
mundo sem deuses alegres:
2048 O I T O MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2049

em Washington Irving, muito em Sterne, enfim no pré- dos tecelões famintos na Silésia inspiraram-lhe uma poesia
romantismo inglês. Lá encontrou o seu próprio impressio­ tão poderosa como Die Weber (Os tecelões), o canto dos
nismo sensibilíssimo, notando os aspectos passageiros da operários da nova indústria, "tecendo a mortalha da Ale­
atmosfera — da meteorológica e da mental; e, incapaz de manha antiga":
ignorar os aspectos contrários à melancolia das paisagens,
Heine revela o lado estreito e ridículo das coisas humanas. "Altdeutschland, wir weben dein Leichentuch.
Em prosa, êle é realmente um "metaphysical poet". Daí, W i r weben hinein den dreifachen Fluch,
em Heine, o poder de exprimir aquelas impressões em W i r weben! wir weben!"
comparações surpreendentes e fórmulas inesquecíveis. Hei­
ne é um dos maiores prosadores de todos os tempos. E E nos dias intermináveis da doença torturante — preso
a sua condição social obrigou-o a aplicar essa arte em tra­ durante oito anos no "túmulo de colchões" — o sentimen­
balho diário: criou a correspondência estrangeira, a cró­ talismo ligeiramente byroniano da sua poesia erótica trans-
nica, enfim o jornalismo em língua alemã. E as "conse­ formou-se no pessimismo sincero do Romanceio e nas acusa­
quências de Heine", das quais Kraus fala, consistem no fato ções grandiosas do Lazarus contra a ordem do Universo.
de que o jornalismo dos seus sucessores só lhe imitou as Um verso como —
leviandades e superficialidades. O próprio Heine era o " W o h l dem der stirbt, eh' ihn die W e l t b e s c h m u t z t . . . "
poeta do jornalismo, poeta autêntico; o jornalismo dos — e vários versos assim lembram de longe a Leopardi,
heinianos era antipoético ao ponto de afrouxar e arruinar senão a Sófocles. Mas Heine não é um clássico; ficou
a língua de Goethe. sempre "o enteado do romantismo", o poeta dos contrastes
A condição social de Heine era a de Boerne: um judeu gritantes. E m meio do pessimismo profundo do Romancero
alemão de 1830, quer dizer, um pária da sociedade. O ro­ encontram-se as mais impressionantes expressões do humo­
mantismo poético dos alemães entusiasmara-o; a realidade rismo fantástico, aristofânico, justificando as palavras de
social da Alemanha foi a grande desilusão. Mas em vez de Nietzsche em Ecce Homo: "Heine realizou o meu conceito
lutar pela República, preferiu Heine o sucesso das grandes mais alto de um poeta lírico. Em todos os séculos não
tiragens — pelo Buch der Lieder, o editor Campe em Ham­ encontrei uma música doce e apaixonada como a sua. Êle
burgo tornou-se riquíssimo. Heine juntou à conquista da possuiu aquela malícia divina sem a qual não posso imaginar
glória poética o êxito do jornalista mais lido da Europa, a perfeição".
abandonando a causa da Revolução, fazendo a propaganda A repercussão de Heine foi imensa. Na Alemanha,
d o liberalismo moderado de Guizot, levando uma vida de todos os poetas do século XIX, até o advento do simbolismo,
«epicureu com muito "cakes and ale" e outras boas coisas. E são heinianos; mas não lucraram com isso, senão êxitos
para justificar essa atitude, inventou a teoria dos "nazare­ fáceis. Um poeta menor como o tirolês Hermann von Gilm
nos" e "helenos". Com o tempo e em intervalos, a cons­ (1812-1864), que já tinha imitado a Heine em poesias satí­
ciência despertou. O cantor de poesias políticas à maneira ricas contra os jesuítas, gravou-se indelevelmente na me­
de Béranger, lembrando-se da sua condição tão parecida mória do povo alemão como um lied sentimental sobre o
com a do proletariado, chegou a escrever sátiras poéticas dia de finados: Allerseelen. Até um poeta tipicamente
de sabor socialista como Die Wanderratten; e as greves "teutônico", "moderado", nacionalista e burguês como Gei-
2050 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2051

bel ( " ) , devem ao tom heiniano das suas poesias o êxito a Pedro. Pela influência daquelas traduções explica ou
de ter sido o poeta alemão mais lido do século XIX, corrom­ antes explicava a crítica o tom heiniano da poesia d e
pendo por decénios o gosto literário das classes médias. Bécquer ( 4 3 ), que foi, no entanto, um espírito original. E
Depois, os críticos do simbolismo tinham que realizar uma só muito mais tarde se deveu ao venezuelano Juan António
cruzada contra os epígonos de Heine para renovar a poesia Pérez Bonalde (1846-1892), grave poeta pessimista, a tra­
alemã. dução magistral do Cancionero de Heine ( l : i - A ). O heiniano
A repercussão de Heine no estrangeiro percorreu três "sans phrase" da literatura espanhola foi Campoamor ( 4 4 ),
fases típicas, que aparecem com nitidez particular na Itália. exprimindo em pequeninos poemas epigramáticos, Doloras
Em 1865 Bernardino Zendrini deu uma tradução muito e Humoradas, o cepticismo cínico e contudo agradavel­
sentimental do Buch der Lieder, alcançando grande êxito, mente sentimental de burgueses que na poesia só admitem
contra o qual protestou Carducci no estudo Crítica e arte rimas e "pointes". Campoamor foi o poeta espanhol mais
(1874), interpretando a Heine como "o riso aristofânico" famoso entre 1850 e 1900, admiradíssimo como "filósofo
do Espírito do Universo. Enfim já não se acreditava nem profundo" em versos; só a geração de 1898 lhe destruiu a
no sentimento nem na metafísica, e Olindo Guerrini ( 4 2 ), glória. Seria possível defini-lo como poeta da Restauração
o maior heiniano italiano, tornou-se popularíssimo com poe­ monárquica na Espanha, entre a derrota da República em
sias de cinismo espirituoso e desprezo pessimista dos ideais. 1874 e o desastre colonial em 1898, época cinzenta e hipó­
E r a um prosador em versos de pouca arte, e êle mesmo crita; então, Campoamor seria um dos muitos poetas de
atribuiu à sua poesia voluptuosa e incrédula uma ascen­ desilusão, geral na Europa da época. Mas estes eram par­
dência hebraico: do Cântico dos Cânticos e do livro de nasianos; e Campoamor é prosaico até o excesso. Na ver­
Job. Os italianos, decepcionados pelo seu novo Estado dade, a sua poesia é da mentalidade de 1850, da desilusão
depois dos primeiros entusiasmos da libertação nacional, anti-romântica depois do fracasso da revolução europeia.
consideraram Guerrini como poeta da verdade; os literatos Campoamor fora, na mocidade, incapaz de competir com
encontraram nessa "poesia da verdade" uma nova doutrina o romantismo exuberante de Zorriela. Vingou-se de ma­
literária, parecida com a de Zola: o "verismo". neira radical. E esse anti-romantismo é uma das funções
Na Espanha introduziu-se Heine pelas traduções de históricas da poesia heiniana.
Eulogia Florentino Sanz (1825-1881), do qual a pequena
antologia de Menéndez y Pelayo imortalizou uma Epístola Heinianos sentimentais, havia-os em toda a parte, cor­
rompendo o gosto do público; como o judeu russo Nad-

41) Emanuel Geibel, 1815-1884.


(Cf. "Advento da burguesia", nota 64).
Juniuslieder (1847); Neue Geãichte (1857), etc. 43) Cf. "Romantismos de evasão", nota 79.
K. Th. Gaedertz: Emanuel Geibel. Leipzig, 1897. 43 A) J. Ramón Medina: Juan António Pérez Bonalde. Caracas, 1954,
42) Olindo Guerrini, 1845-1916. 44) Ramón de Campoamor, 1817-1891.
Póstuma (sob o pseudónimo Lorenzo Stecchetti; 1877). Doloras (1846); Pequenos poemas (1872-1874); Humoradas (1886-
Lorenzo Stecchetti: Pagine criticue de vários autores. Bologna.
1917. 1888).
U. Croce: "Olindo Guerrini". (In: La Letteratura delia Nuova Itá­ A. González Blanco: Campoamor, biografia y estúdio crítico,
lia, vol. II. 3.a ed. Bari, 1929.) Madrid, 1912.
V. Gaos: La poética de Campoamor. Madrid, 1955.
2052 OTTO M A M A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2053

son ( , r ') ( infelizmente o poeta russo mais lido da segunda rota e queda da monarquia, em 1918, para o crítico socialista
metade do século XIX. Esse tipo heiniano de poeta tuber­ Hermann Wendel poder chamar a atenção para as poesias
culoso, morrendo de fome na mansarda, queixando-se com revolucionárias de Heine. E grande parte da poesia socia­
ironia amarga, esse tipo ainda está presente em Laforgue; lista na Europa central e eslava é até hoje de estirpe hei­
e algo de ironia heiniana existe na poesia satírica dos ingle­ niana. Justifica-se essa filiação. O próprio sentimentalismo
ses e norte-americanos modernos, em Auden, Wallace Ste- de Heine tem algo em comum com aquele sentimentalismo
vens, Ransom. que acompanhava o "Sturm und Drang" pré-romântico e
Uma ironia heiniana de outra espécie apresenta-se en­ os começos da revolução industrial: Heine, "o enteado
tre os escandinavos: a ironia social. Os Feidaminni do do romantismo", decompôs o romantismo com as próprias
norueguês Vinje ( 46 ) são uma imitação dos Reisebilder: armas do romantismo. Depois de Heine, só era possível
lieds populares e belas descrições da natureza nórdica alter­ um romantismo subversivo: o romantismo social francês,
nam com ataques satíricos contra a sociedade e sobretudo do qual Heine participou, vivendo na França e simpatizando
contra os poetas que pretendiam dirigi-la e reformá-la por com o saint-simonismo.
meio de idealismos sublimes, contra a "poetocracia" norue­ O romantismo social francês não é precursor da revo­
guesa dos Welhaven e Wergeland, e já também contra lução social de 1848; acabou com ela. É o produto literário
Bjoernson e Ibsen. Vinje era um rebelde nato, brigando da revolução industrial antes de 1848. Na Inglaterra, onde
com todo o mundo, não acreditando em nada, menos em essa revolução já terminara, não existe literatura correspon­
uma coisa: no "landsmaal", o dialeto dos camponeses no­ dente. Mas assim como a Alemanha, todos os países da
ruegueses, no qual escreveu as suas mais belas poesias, e Europa continental encontraram-se mais ou menos na mes­
pelo qual desejava substituir a língua dinamarquesa dos ma fase da evolução económica. Daí a grande repercussão
poetas sérios. Em Vinje, inimigo dos intelectuais burgue­ do romantismo francês. J á se analisou a influência de
ses, sobrevive o espírito social da poesia de Heine. Hugo, combinada quase sempre com o pseudobyronianismo
Poesia social heiniana também houve em toda a parte, de Musset; e já se analisou a influência do romance femi­
sobretudo entre as nações politicamente oprimidas. O pri­ nista de George Sand. Havia dois outros veículos da re­
meiro lugar cabe, sem dúvida, ao grande jornalista e poeta percussão do romantismo francês: o teatro romântico à
tcheco Haclicek ( 4 0 _ A ). Só os alemães precisavam da der- maneira de Hugo, retórico e sentencioso, meio para trans­
formar a plateia em comício; e, doutro lado, o romance-
folhetim de Sue, instrumento para fazer propaganda social
45) Sémen Jakovlevitch Nadson, 1862-1887. em jornais apolíticos.
Poesias (1885; 15.a edição, 1897).
V. Tcherevski: Naãson, sua vida e sua poesia. Kasan, 1895 (em O teatro hugoniano é "melodrama" em "grand style",
língua russa). explorando o efeito infalível das grandes crises e choques
46) Aasmund Olavsson Vinje, 1818-1870. históricos no palco. Muitas vezes, os versos recitados pelo
Ferdaminni fraa Sumaren (1860-1861); Storegut (1866); Blanã-
korn (1867) etc. ator pareciam feitos — ou foram realmente feitos — para
Edição por H. A. Halvorsen e V. Vislie, 6 vols., Oslo, 1883-J890. aludir à atualidade política do dia; e então, o público bur­
V. Vislie: A. O. Vinje. Bergen, 1890.
A. Bergsgard: Aasmund Vinje. Oslo, 1940. guês bateu palmas como se a representação fosse uma sessão
46 A) Cf. "Romantismos de evasão", nota 163. na Câmara dos Deputados. Em países de liberdade cons-
2054 OTTO M A B I A CARPEAUX
HISTÓRÍA DA LITERATURA OCIDENTAL 2055
titucional ainda precária, como na península ibérica, os
versos alusivos burlaram a censura, transformando o palco itculo X I I , o embaixador da França mostrou-se aflito, mas
em tribuna e a plateia em comício. D embaixador da Áustria o consolou:

Assim os liberais espanhóis exilados na França conhe­


"L'adresse est à vous, mais la lettre est pour moi."
ceram e entenderam o teatro de Hugo, Dumas père e Vigny,
importando-o, depois, para a Espanha, onde a representação
Não são desprezíveis as grandes "histórias" pseudosha-
de La conjutación de Venecia, de Martínez de la Rosa ( 4 7 ) r
kespearianas, quer dizer, hugonianas, de Pasquale de Vir-
em 23 de abril de 1834, teve o efeito de uma "bataille
Killi (Masaniello 1840, Vespri siciliani 1842). Outro foco
d'Hernani" espanhola. Seguiram-se as peças de Garcia Gu-
do teatro romântico era a Escandinávia. Depois das tra­
tiérrez ( 47 " A ) e Hartzenbusch ( 4 7 " B ); mas as obras-primas
gédias fantásticas, já hugonianas, de Almquist, emprega-
do teatro romântico espanhol são as do Duque de Ri-
ram-se os efeitos melodramáticos dos franceses para dar
vas ( 47 " c ) e de Zorrilla ( 47 " D ). O Bánkbán do húngaro
mais interesse aos assuntos da história ou lenda nórdicas;
Katona ( 47 " E ), embora algo semelhante, é anterior ao teatro
assim fizeram os dramaturgos suecos, Johan Boerjesson
de H u g o ; é schilleriano. Mas na Itália assiste-se à transfor­
cm Erik XIV (1846), considerado durante muito tempo
mação do teatro pré-romântico de Alfieri em teatro român­
como a maior tragédia da literatura sueca, e Frans Hedberg
tico, hugoniano. Foi mesmo um antigo alfierano que rea­
cm Broelloppet pa Ulíasa (1865), imortalizado pelo acom­
lizou essa transição: o grande patriota e republicano Nicco-
panhamento musical de Grieg. Assim fizeram Bjoernson
lini ( 48 ) tratou, em impressionantes tragédias históricas, de
c Ibsen nas suas primeiras peças históricas; mas depois,
opressões estrangeiras ou levantes revolucionários em sé­
os grandes dramaturgos noruegueses acompanharam a evo­
culos passados, e os seus versos epigramáticos foram aplau­
lução do teatro parisiense, de Hugo através de Scribe a
didos como alusões da maior atualidade. Depois da repre­
Augier e Dumas fils; isto é, à crítica social da burguesia
sentação do Giovanni da Procida em Florença, quando o
pela própria burguesia.
público aplaudira a expulsão dos franceses da Sicília no
O teatro romântico, de tipo hugoniano, dominou du­
rante 20 anos os palcos da Europa. Hoje, esses dramalhões,
com seus heróis que juram fidelidade à Pátria e dão tiros
47) Cf. "Romantismos de evasão", nota 23.
de revólver, com suas heroínas que se prostituem e des­
47 A) Cf. "Romantismos de evasão", nota 24.
maiam a toda hora — hoje, esse teatro seria impossível no
47 B) Cf. "Romantismos de evasão", nota 25.
palco moderno. No entanto, esse mesmo teatro romântico
47 C) Cf. "Romantismos de evasão", nota 20.
continua dominando, até hoje, um ramo especial dos nossos
47 D) Cf. "Romantismos de evasão", nota 26.
teatros: sobrevive na ópera de Verdi.
47 E) Cf. "Romantismos de oposição", nota 43.
Giuseppe Verdi ( 49 ) deve a libretos, tirados de dramas
48) Giovan Battista Niccolini, 1782-1861.
Nabucco (1816); Foscarini (1827); Giovanni da Procida (1830); românticos, seus maiores sucessos: de peças de Hugo tira-
Ludovico Sforsa (1834); Arnaldo da Brescia (1843).
R. Guastalla: Vita e opere ãi Giovan Battista Niccolini. Livorno,
1917. •II)) Giuseppe Verdi, 1813-1901.
T. Borgomaneri: II romanticismo nel teatro di Giovan Battista Nabucco (1842); Ernani (1844); Macbeth (1847); I Masnaãieri
Niccolini. Milano, 1925. (1847); Luisa Miller (1849); Rigoletto (1851); II Trovatore
2056 OTTO M A K I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2057

ram-se Ernani e Rigoletto (Le roi s'amuse); Nabuco e Les ratura ignorara: os "bas-fonds" das grandes cidades. Os
Vêpres siliciennes já tinham sido tratados por Niccolini;. Mystéres de Paris geraram em poucos anos, conforme o
II Trovatore é o Trovador, de Garcia Gutiérrez; La Forza: testemunho de Janin, uma infinidade de Mistérios de Ber­
dei Destino é o Don Álvaro, do Duque de Rivas. Verdi é lim, Mistérios de Amsterdam, Mistérios de Bruxelas, Pe-
o maior dramaturgo italiano do século XIX. O garibaldiano- tersburgo, Budapeste, Hamburgo e assim em diante. Re­
transformou os elementos democráticos do teatro romântico' percussão enorme, da qual vestígios se encontram em ro­
em patriotismo democrático italiano e em melodias que mances de escritores tão imensamente diferentes como
exprimem ânsias permanentes de toda a alma humana. Seus Reade, Dostoievski e Jókai. A Reade precedeu, aliás, Di-
libretos, nos quais colaborou intensamente com os poe­ ckens; a Dostoievski, precedeu Alexei Veltman, autor dos
tastros Salvatore Cammarano e Francesco Piavo, consti­ primeiros romances russos que se passam na cidade; a Jókai
tuem um mundo de destinos românticos, em que Ernani precedeu Lajos Kuthy (Mistérios da pátria, 1847), antípoda
e Rigoletto, Gilda e Azucena, Álvaro e Violetta, Radamés e húngaro do português Camilo Castelo Branco, autor dos
Aida passam por vitórias e sacrifícios, provas e renúncias, Mistérios de Lisboa (1845). O romance "panorâmico" à
prazeres e fidelidade, erros e revelações, com o dueto de- maneira de Sue é uma transposição do romance histórico
amor no centro e o desfecho trágico no fim. Basta comparar de W a l t e r Scott para a atualidade social; em vez de pano­
essas óperas com as do verismo — Mascagni, Leoncavallo, ramas pitorescos da vida em séculos passados, pintaram-se
Puccini — para reconhecer o traço típico de V e r d i : o alto- panoramas da vida subterrânea na sociedade moderna, agi­
idealismo. Esse idealismo levou-o a procurar verdade dra­ tada pelas transformações sociais. Do ponto de vista for­
mática maior em produções pré-românticas de Schiller (I mal, esse género podia servir às tendências mais diferentes.
masnadierí, Luisa Miller, Don Cario), e a encontrá-la erra Podia servir ao jesuíta italiano António Bresciani, para em
Shakespeare (Macbeth, Otello, Falstaff). Mas também sa­ Uebreo di Verona (1850), denunciar a revolução italiana
crificou a verdade dramática do realismo burguês: trans­ como obra de malfeitores e ateus. A tendência podia quase
formou a Dame aux camélias em La Traviata. desaparecer, em favor de um realismo razoável, como no
sueco Blanche ( 5 0 ), autor de excelentes farsas à maneira
O romance-folhetim de Sue, género irremediavelmente-
de Nestroy e contos muito divertidos da vida pequeno-
prosaico, não teve a mesma sorte de sobreviver transfigu­
burguesa de Estocolmo, de modo que foi considerado como
rado; está hoje morto. Mas na época encontrou na E u r o p a
humorista do "Biedermeier" sueco; só recentemente dá-se
inteira o interesse mais entusiasmado; ofereceu oportuni­
importância aos seus romances, vastos quadros realistas da
dade para combinar discussões políticas, intrigas dos jesuí­
modernização de uma sociedade provinciana. O romance
tas e maçons, efeitos do romance "gótico" e do romance
de Sue só devia passar pelo pessimismo à base biológica,
policial, enfim, a exploração de novos ambientes que a lite-

(1853); La Traviata (1853); Les Vêpres siciliennes (1855); La<


forza dei destino (1862); Don Cario (1867); Aida (1871); Otello, 50) August Blanche, 1811-1868.
(1887); Falstaff (1893). Taflor och beraettelser Stockholmslifvet (1845); Sonen af soeder
A. Weissmann: Verdi. Stuttgart, 1922. och nora (1851) etc.
F. Toye: Giuseppe Verdi, his Life anã Works. London, 1931. N. Erdmann: August Blanche och hans samtid. Stockholm, 1892.
M. Mila: II meloãramma ãi Verdi. Bari, 1933. M. Lamm: August Blanche som Stockholmsskildrare. 2.a edição»
li. Unterholzner: Verdi's Operntypus. Hannover, 1933. Stockholm, 1950.
2056 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2057

ram-se Ernani e Rigoletto (Le roi s'amuse); Nabuco e Lesr ratura ignorara: os "bas-fonds" das grandes cidades. O s
Vêpres siliciennes já tinham sido tratados por Niccolini;. Mystéres de Paris geraram em poucos anos, conforme o
II Trovatore é o Trovador, de Garcia Gutiérrez; La Forza testemunho de Janin, uma infinidade de Mistérios de Ber­
dei Destino é o Don Álvaro, do Duque de Rivas. Verdi é lim, Mistérios de Amsterdam, Mistérios de Bruxelas, Pe-
o maior dramaturgo italiano do século X I X . O garibaldiano- tersburgo, Budapeste, Hamburgo e assim em diante. Re­
transformou os elementos democráticos do teatro romântico' percussão enorme, da qual vestígios se encontram em ro­
em patriotismo democrático italiano e em melodias que mances de escritores tão imensamente diferentes como
exprimem ânsias permanentes de toda a alma humana. Seus Reade, Dostoievski e Jókai. A Reade precedeu, aliás, Di-
libretos, nos quais colaborou intensamente com os poe­ ckens; a Dostoievski, precedeu Alexei Veltman, autor dos
tastros Salvatore Cammarano e Francesco Piavo, consti­ primeiros romances russos que se passam na cidade; a Jókai
tuem um mundo de destinos românticos, em que Ernani precedeu Lajos Kuthy (Mistérios da pátria, 1847), antípoda
e Rigoletto, Gilda e Azucena, Álvaro e Violetta, Radamés e húngaro do português Camilo Castelo Branco, autor dos
Aida passam por vitórias e sacrifícios, provas e renúncias, Mistérios de Lisboa (1845). O romance "panorâmico" à
prazeres e fidelidade, erros e revelações, com o dueto de- maneira de Sue é uma transposição do romance histórico
amor no centro e o desfecho trágico no fim. Basta comparar de Walter Scott para a atualidade social; em vez de pano­
essas óperas com as do verismo — Mascagni, Leoncavallo, ramas pitorescos da vida em séculos passados, pintaram-se
Puccini — para reconhecer o traço típico de V e r d i : o alto» panoramas da vida subterrânea na sociedade moderna, agi­
idealismo. Esse idealismo levou-o a procurar verdade dra­ tada pelas transformações sociais. Do ponto de vista for­
mática maior em produções pré-românticas de Schiller (I mal, esse género podia servir às tendências mais diferentes.
masnadieri, Luísa Miller, Don Cario), e a encontrá-la erro Podia servir ao jesuíta italiano António Bresciani, para em
Shakespeare (Macbeth, Otello, Falstaíf). Mas também sa­ L'ebreo di Verona (1850), denunciar a revolução italiana
crificou a verdade dramática do realismo burguês: trans­ como obra de malfeitores e ateus. A tendência podia quase
formou a Dame aux camélias em La Traviata. desaparecer, em favor de um realismo razoável, como no
sueco Blanche ( 5 0 ), autor de excelentes farsas à maneira
O romance-folhetim de Sue, género irremediavelmente-
de Nestroy e contos muito divertidos da vida pequeno-
prosaico, não teve a mesma sorte de sobreviver transfigu­
burguesa de Estocolmo, de modo que foi considerado como
rado; está hoje morto. Mas na época encontrou na E u r o p a
humorista do "Biedermeier" sueco; só recentemente dá-se
inteira o interesse mais entusiasmado; ofereceu oportuni­
importância aos seus romances, vastos quadros realistas da
dade para combinar discussões políticas, intrigas dos jesuí­
modernização de uma sociedade provinciana. O romance
tas e maçons, efeitos do romance "gótico" e do romance
de Sue só devia passar pelo pessimismo à base biológica,
policial, enfim, a exploração de novos ambientes que a lite-

(1853); La Traviata (1853); Les Vêpres siciliennes (1855); Lw


jorza dei destino (1862); Don Cario (1867); Aida (1871); Otello, 50) August Blanche, 1811-1868.
(1887); Falstaff (1893). Taflor och beraettelser Stockholmslifvet (1845); Sonen af soeder
A. Weissmann: Verdi. Stuttgart, 1922. och nord (1851) etc.
F. Toye: Giuseppe Verdi, his Life anã Works. London, 1931. N. Erdmann: August Blanche och hans samtid. Stockholm, 1892.
M. Mila: II melodramma di Verdi. Bari, 1933. M. Lamm: August Blanche som Stockholmsskilãrare. 2.a edição.
L. Unterholzner: Verdfs Operntypus. Hannover, 1933. Stockholm, 1950.
20S8
OTTO M A R I A CABPBAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2059
darwinista, para desembocar no naturalismo pré-socialista
na alta sociedade, tão frouxo o estilo, estilo de artigo
de Zola.
político de jornal. Gutzkow era, no fundo, um jornalista.
Teatro hugoniano e romance "panorâmico" eram os
"Jornalismo" seria a melhor definição, a mais lacónica,
géneros que deram posição literária eminente a Karl Gutz­
do movimento literário ao qual Gutzkow presidiu: "Das
kow ( 5 1 ), por volta de 1850 considerado como o primeiro
J u n g e Deutschland" ( 5 2 ), a "Jovem Alemanha". Termo e
dos escritores alemães. As suas peças são indubitavelmente
conceito foram criados pela Polícia do absolutismo: em
de grande habilidade técnica, seja uma comédia histórica
1835, o Conselho Federal dos príncipes alemães proibiu a
sobre os começos do militarismo prussiano (Zope und
divulgação de todos os escritos já publicados ou ainda a
Schwert), seja uma comédia sobre as lutas dos clericais
publicar de cinco autores da "escola literária, conhecida
contra a representação do Tartuffe, seja a tragédia do livre-
sob o nome de Jovem Alemanha". Tinham-se esquecido
pensador Uriel Acosta, perseguido pelos judeus intoleran­
tes de Amsterdam. Essas peças deviam o grande sucesso de incluir o nome de Boerne, o mais perigoso de todos.
à tendência liberal e às alusões atuais, produzindo-se mani­ Os dois primeiros nomes citados foram os de Heine —
festações políticas na plateia. Contudo, Gutzkow não foi que tinha poucas relações com o movimento — e Gutzkow.
um Scribe, antes um dramaturgo autêntico, apenas corrom­ As tendências do grupo aparecem com maior nitidez nos
pido pelos maus costumes da literatura tendenciosa. Havia membros de importância secundária, o contista Theodor
nele um romântico, um discípulo de Jean Paul, do qual Mundt e o crítico Ludolf Wienbarg. Mundt era saint-
herdara o gosto de digressões científicas e humorísticas simonista; no livro sensacional Madonna (1835) exigiu o
e a falta absoluta de cultura formal. Agradou-lhe, por isso, amor livre, o "desenvolvimento desenfreado da vida dos
o género "panorâmico" de S u e : em romances de tamanho sentidos" — um libertino de jornal de província. Wienbarg,
enorme descreveu a política reacionária na Alemanha (Die em Aesthetische Feldzuege (1834), combateu o romantis­
Ritter vom Geiste) e as intrigas dos jesuítas contra o libe­ mo, exigindo uma literatura realista e social, literatura da
ralismo (Der Zauberer von Rom); romances que fizeram atualidade. Os "jovens alemães" — com exceção de Heine,
sensação e que hoje nem o especialista é capaz de ler até que não quis ter nada com eles — não eram poetas; eram
o fim, tão complicados são os enredos, tão confusa a ideo­ homens da prosa e do dia, jornalistas. Eram, todos eles,
logia, tão ridículos os "horrores góticos" que acontecem liberais, mas dum liberalismo estranhamente moderado, in­
teressado só na condição social dos intelectuais e na liber­
dade da imprensa, no livre-pensamento e no amor-livre.
51) Karl Gutzkow, 1811-1878. O quinto dos nomes citados naquele ukase era o de Lau-
Teatro: Ricfmrd Savage (1838); Zopf und Schwert (1843); Uriel
Acosta (1847); Das Urbilã des Tartuffe (1847); Der Koenigslieu-
tenant (1849); Romances: Wally, die Zweiflerin (1835); Blasedow
und seine Soehne (1838-1839); Die Ritter vom Geiste (1850-1852);
Der Zauberer von Rom (1858-1861) etc.
Edição de obras escolhidas por H. H. Houben, 12 vols., Leipzig, 52) G. Brandes: Det unge Tyskland. (Hovedstroemninger i det 19 de
1908. Aarhunãredeãs Literatur. Vol. V. 6.a ed. Kjoebenhavn, 1924).
H. H. Houben: Studien ueber die Dramen Gutskows. Berlin, 1899. (Tradução alemã, Leipzig, 1891; tradução inglesa, London, 1924).
J. Dresch: Gutekow et la Jeune Allemagne. Paris, 1904. J. Proelss: Das junge Deutschland. Stuttgart, 1892.
K Metis: Gutzkow ais Dramatiker. Breslau, 1915. E. M. Butler: The Saint-Simonian Religion in Germany; a Stuãy
of the Young German Movement. Cambridge, 1926.
2060 OTTO M A B I A CABPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2061

be ( n:i ), e este é o representante perfeito do tipo: jornalista êle se tornou muito mais radical, assumindo uma atitude
liberal e élégant de salão, romancista "panorâmico", em­ próxima de Herzen e outros hegelianos. O caminho dos
preendendo a tarefa de pintar a situação política e social intelectuais da época, em geral, é o seguinte: da filosofia,
da Europa inteira (Das junge Europa); dramaturgo de através do jornalismo, à ação política. O instrumento dessa
habilidade consumada e sem ideias dramáticas, virtuose das transformação era o "Junghegeltum", o "jovem hegelia-
alusões atuais e desfechos retumbantes. Laube acabou como nismo". Na Rússia representa Bielinski o "jovem hege-
conformista, diretor do Teatro Imperial de Viena, onde lianismo". Sua resposta fulminante à reacionária Escolha
reuniu e dirigiu o melhor elenco de atôres na história do da correspondência com amigos, de Gogol, representa na
teatro alemão. Rússia o que foi na Inglaterra a conversão de Newman:
Aos "Jungdeutschen" faltava a base filosófica da ação. o fim do romantismo russo.
Nem sempre era este o caso dos seus muitos imitadores no Hegel ( 57 ) colocou-se deliberadamente fora da lite­
estrangeiro, entre os quais havia escritores tão importantes ratura, escrevendo num estilo dificílimo e abstruso; tão
como o dinamarquês Goldschmidt e o tcheco Havlicek. grande era a sua confiança na força do pensamento puro.
Goldschmidt ( 5 4 ), na verdade, só é mais um dos jornalistas Mas tanto maior também era a sua influência literária.
judeus de 1830, revolucionários antes da emancipação dos Pode-se dizer que aquele estilo, permitindo as interpreta­
israelitas, e conservadores depois. Nem é muito diferente ções mais contraditórias, correspondia perfeitamente à am­
o sueco Sturzenbecker. Mas um Havlicek (B5) reconheceu biguidade do pensamento hegeliano. De Kant herdou Hegel
melhor os motivos burgueses do movimento anti-romântitb, o idealismo, quer dizer, a consideração do mundo como
porque o eslavo, como os eslavos da época em geral, estava fenómeno espiritual. Mas o seu método de interpretação
informado pelo pensamento herderiano. Na Alemanha, as era outro do que o de Kant e dos seus sucessores imediatos.
ideias de Herder constituíam a base do romantismo nacio­ Em vez de considerar o Universo como organização estática,
nalista; na Rússia, o fermento de um nacionalismo revo­ definível nos termos da epistemologia matemático-lógica
lucionário. Assim evoluiu Bielinski ( 5 e ) do eslavofilismo de Kant, ou da psicologia voluntarista de Fichte, ou da
herderiano para uma posição que correspondia na crítica ciência fantástica de Schelling, Hegel adotou o historismo
literária ao realismo anti-romântico dos "Jungdeutschen"; de Herder: o mundo é um processo dinâmico, revelando-se
elogiou Gogol para acabar com o estetismo poético de o Espírito através da evolução histórica. Neste sentido, a
Puchkin, que lhe parecia aristocrático. Mas na política, filosofia de Hegel é romântica, assim como a crítica de

53) Heinrich Laube, 1806-1884.


Das junge Europa (1833-1837); Reisenovellen (1834-1837); Der 57) Georg Wilhelm Friedrich Hegel, 1770-1831.
Deutsche Krieg (1865-1866) ; Struensee (1847); Die Karlsschueler Phaenomenologie ães Geistes (1807); Wissenschaft der Logik
(1874); Graf Essex (1856) etc. (1812-1816) Encyclopaedie der philosophischen Wissenschaften
(1817); Grundlegung einer Philosophie ães Rechts (1820) etc.
Edição completa (com biografia) por H. H. Houben, 50 vols., R. Haym: Hegel und seine Zeit. 1857. (2.a e., Berlin, 1927).
Leipzig, 1908. K. Fischer: Hegels Leben, Werke und Lehre. 1901. (2.a ed„ Hei-
P. Przygoda: Laube's literarische Fruehzeit. Berlin, 1910. delberg, 1909.)
W. Dilthey: Jugenãgeschichte Hegels. 1907. (2." ed., Berlin, 1925.)
54) Cf. "Romantismos de evasão", nota 159. B. Croce: Saggio sullo Hegel. Bari, 1913.
55) Cf. "Romantismos de evasão", nota 163. H. Glockner: Hegel. Stuttgart, 1929.
J. Schubert: Goethe und Hegel. Leipzig, 1933.
f>(!) cr. "Romantismos de evasão", nota 164.
20(>2 OTTO M A R I A CARPEATJX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2063

Jlerdcr c dos irmãos Schlegel; e não causa estranheza o a filosofia das autoridades absolutas mas imparciais, a filo­
fato de que Hegel fora, na mocidade, adepto entusiasmado sofia oficial da Prússia. Garantia um estado de coisas
da Revolução francesa. Hegel construiu, porém, o seu sis­ tipicamente alemão: absolutismo policial do Estado, coe­
tema, depois de 1815, em bases diferentes, para não perder-se xistindo com liberdade ilimitada do pensamento. Fora da
no movimento perpétuo do heraclitismo: para interpretar Universidade, a vida artificialmente idílica do "Bieder-
o passado, colocou-se no ponto firme do estado presente meier"; dentro da Universidade, o trabalho imperturbado
das coisas; a atualidade apareceu como ponto final, defi­ dos grandes filósofos, filólogos, historiadores. Ainda mui­
nitivo, da evolução histórica. Nesse sentido, a filosofia de tos decénios mais tarde, a gente lembrava-se, com saudade,
Hegel é conservadoríssima, capaz de servir aos desígnios dessa "época halcyonica" da Universidade de Berlim. Mas
da reação e do absolutismo político. Mas não foi possível então já tinham assistido à lenta dissociação do hegelianis­
eliminar a origem "movimentada" desse "ponto firme"; e mo e ao seu fim em grande crise ideológica e política ( 6 7 - A ).
para reconciliar conceitos tão opostos, inventou Hegel uma Hegel morreu em 1831. Não se encontrou sucessor
nova lógica na qual o princípio da contradição já não vigo­ digno. Os alunos preferiram o catedrático de Filosofia d o
rava: o método dialético. A dialética hegeliana é princípio Direito Eduard Gans, amigo de Heine. Mas Gans perten­
de um movimento infinito, cujo ponto final pode ser coloca­ cia a um grupo que não foi visto com olhos benevolentes
do no passado, no presente ou no futuro. Deste modo, exis­ pelo Estado. Eram os "Junghegelianer", "jovens hegelia-
tem três hegelianismos diferentes: o histórico, o absolutis­
nos". Estes consideraram o processo dialético como infi­
ta e o dialético. O hegelianismo histórico continua vivo na
n i t o : a Revolução de julho lhes tinha demonstrado que a
"Geisteswissenschaft" de Dilthey e na estética de Croce;
História não acabara na Universidade de Berlim. Nesse
o hegelianismo absolutista continua vivo nos sistemas polí­
mesmo sentido, o teólogo Ferdinand Christian Baur, em
ticos do totalitarismo, sobretudo no fascismo, mas também
Tuebingen, analisou a história dos dogmas cristãos; e o
em vários sistemas de política conservadora; o hegelianismo
seu discípulo David Friedrich Strauss ( 5 S ), num livro bri­
dialético continua vivo no marxismo. O hegelianismo, em
suma, é a forma na qual o mundo moderno recebeu e aceitou lhante que fez sensação internacional, aplicou os mesmos
o historismo romântico, após de ter-se abolido o roman­ princípios à crítica dos Evangelhos, transformando a vida
tismo. de Jesus em "mito que fêz história". Estava criada a teo­
logia crítica do protestantismo alemão moderno, uma teo­
O hegelianismo romântico acabou, abandonado pelo logia "cristã" que, substituindo o Dogma pela História,
próprio mestre, com a queda de Napoleão e o advento da devia tornar-se fatalmente teologia a-cristã e, enfim, anti-
Restauração monárquica. Desde então, a filosofia de Hegel cristã.
foi considerada como a base do absolutismo; exigindo sub­
missão política, mas não exigindo fé religiosa, o hegelianis­
mo prestava ótimos serviços à monarquia prussiana, que 57 A) K. Loewith: Von Hegel zu Nietzsche. Der revolutionaere Bruch
se chamava "paritética" ou "neutra", não tomando conheci­ im Denken des 19 Jahrhunderts. 2.a edição. Zuerioh, 1949.
mento das diferenças religiosas entre os súditos protes­ 58) David Friedrich Strauss, 1808-1874.
tantes e católicos. Concedeu a liberdade das crenças e do Das Leben Jesu, kritisch bearbeitet (1835); Die christliche Glau-
pensamento em troca da renúncia à liberdade política. Era benslehre (1840-1841) etc.
Th. Ziegler: David Friedrich Strauss. 2 vols., Strasbourg, 1908.
2<K>4 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2065

A (.'.ora, o hegelianismo já não podia ser considerado Deutsch-Franzoesische Jahrbuecher, fundados em 1842 pelo
como filosofia oficial da Prússia; os "jovens hegelianos" "jovem alemão" Arnold R u g e ; mas no seio dessa revis­
estavam suspeitos de participar da literatura do "Junges ta rebentou a cisão do grupo. Bruno Bauer tornou-se
Deutschland" e da agitação política, cada vez mais viva na cada vez mais radical em matéria teológica, chegando a
Alemanha inteira. Frederico Guilherme IV, rei da Prússia negar a existência histórica de J e s u s ; mas — alemão típico
desde 1840, absolutista patriarcal e cristão, romântico, re­ — recusou-se a tirar conclusões em matéria política. Mais
solveu acabar com o hegelianismo. Em 1841, chamou o velho tarde, a sua atitude apolítica transformou-se em atitude
Schelling para ocupar a cátedra de Hegel. A luta entre reacionária: o anticristão acusou os judeus da fundação do
Schelling e os "jovens hegelianos" berlinenses, um dos cristianismo odiado, declarou-se anti-semita e depois racista
episódios mais dramáticos e mais decisivos da história espi­ germânico; acabou como propagandista jornalístico de Bis-
ritual da Alemanha, terminou com a derrota completa do marck, em cujo "Reich" viu realizado o "verdadeiro" socia­
velho místico ( B9 ). lismo. Bauer não quisera dar o passo decisivo do pensa­
mento à ação. Atacou-o por isso, e deu esse passo, um outro
Foi o fim da "época halcyonica". O "jovem hegelia­
"jovem hegeliano", Karl Marx ( 6 2 ).
nismo" tornou-se cada vez mais agressivo. Um docente-livre
da teologia, Bruno Bauer ( 6 0 ), chegou à negação formal do "Os filósofos só interpretaram o mundo de maneiras
cristianismo, voltando-se ao materialismo francês do século diferentes; mas é preciso transformá-lo", dizia Marx, cm
X V I I I . E m Ludwig Feuerbach ( 6 1 ), o materialismo iden- 1845, nas Thesen ueber Feuerbach. Quer dizer, a filosofia
tificou-se com o próprio humanismo, proclamando uma nova tornou-se ação. Para esse fim, o substrato ideal da dialctica
humanidade, verdadeiramente humana porque livre do céu, de Hegel foi substituído por um substrato material; mas
que seria só o lugar ideal dos desejos personificados. Atra­ não foi o materialismo de Feuerbach que prestou esse ser­
vés da "Jovem Alemanha", cujos membros residiam como viço, e sim o materialismo dos economistas do capitalismo
exilados na França, ideias francesas, o saint-simonismo e inglês, cujas consequências sociais se revelaram ao mesmo
as utopias socialistas invadiram o "hegelianismo da es­ tempo em A situação do operariado na Inglaterra (1844),
querda". O órgão dessas relações franco-alemãs eram os de Friedrich Engels. A dialética, aplicada à história social,

59) K. G. Wendriner: Schellings letzte Jahre. Zuerich, 1934.


60) Bruno Bauer, 1809-1882. 62) Karl Marx, 1818-1883.
Kritik der evangelischen Geschichte der Synoptiker (1841); Das Die Heilige Familie (1844); Le Misère de la Phiíosophie (1847);
entãeckte Christentum (1843); Die Judenfrage (1843); Kritik. Das Kommunistische Manifest (1847); Lohnarbeit und Kapital
der Evangelien (1850-1851); Christus und die Caesaren (1877); (1849); Der 18. Brumaire des Louis Bonaparte (1852); Das Ka­
Disraelis romantischer und Bismarcks sozialistischer Imperialis- pital, vol. I (1867) etc.
mus (1882). Edição crítica completa por D. Biasanov e V. Adoratski, 15 vols..
E. Barnikol: Das Entãeckte Christentum im Vormaerz. Jena, Moscou, 1931-1936.
1927. As obras da primeira fase em: Der historische Materialismus,
G. Runze: Bruno Bauer reãivivus. Berlin, 1934. ed. por S. Landshut e J. P. Mayer, 2 vols., Leipzig, 1932.
F. Mehring: Karl Marx. Geschichte seines Lebens. Leipzig, 1919.
(>]) Ludwig Feuerbach, 1804-1872. Trad. ingl., 2.a ed., New York, 1936.)
Das Wesen des Christentums (1841) etc. O. Riazancv: Karl Marx and Friedrich Engels. New York, 1926.
W. BoUn: Ludwig Feuerbach. Leipzig, 1904. S. Hook: From Hegel to Marx. New York, 1936.
A. I/ivy: La phiíosophie de Feuerbach et son influence sur la H. C. Desroches: Signification ãu marxisme. Paris, 1950. (Apôn-
UUèrature allemande. Paris, 1904. dice: Initiation bibliographique à Voeuvre de Marx et ã'Engels.)
2(K)f> OTTO M A R I A CABPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDUINTAL 2067

revelou a lei da evolução histórica: a luta de classes. E a alemã a dormir, "porque tendes o Goethe e Schiller!" T i n h a
utopia dos socialistas franceses transformou-se em conse­ um poder extraordinário de criar fórmulas, como a de
quência fatal da história do capitalismo. Em 1847, Marx e "transformar em gládios as cruzes dos cemitérios" do
Kn^els já tinham elaborado o "socialismo científico" do passado:
Kommunistisches Manifest.
"Reisst die Kreuze aus der Erden,
O papel histórico do marxismo pertence, porém, a épo­
Alie sollen Schwerter w e r d e n . . . " ;
cas posteriores; a sua participação nas revoluções de 1848 e
1849 foi modesta. A pequena burguesia contentou-se com
os slogans da burguesia liberal; e o operariado correu atrás muito depois da tempestade escreveu a Arbeiter-Marsei-
dos utopistas. As classes separaram-se lentamente, adqui­ llaise, a marcha dos socialistas de Lassalle, e o poema 1848,
rindo só pouco a pouco a consciência das suas condições lembrança cheia de furor e poder de evocação. Herwegh
diferentes; e isso também se reflete na evolução da poesia foi um grande poeta lírico; a crítica reacionária chamou-
política, então o género mais cultivado na literatura alemã. lhe "grande poeta, estragado pela política", quer dizer,
Anastasius Gruen ( 6 3 ), pseudónimo de um alto aristocrata "estragado" porque Herwegh não se reconciliou com Bis-
austríaco, fez sensação pelo seu liberalismo: um conde, marck e o "Reich" reacionario de 1870. As suas poesias
falando assim no país do absolutismo mais petrificado, cau­ continuaram a viver, por assim dizer, fora da literatura
sou estranheza e júbilo. Gruen era um poeta espirituoso e cantadas nas festas dos proletários socialistas e eliminadas
fino, até fino demais; nenhuma das suas poesias chegou até das antologias escolares.
o povo. A pequena burguesia de 1848 entusiasmara-se com A essa evolução da poesia política alemã corresponde
a eloquência hugoniana de Freiligrath ( 6 4 ), para esquecê-la na França a transição de Béranger, "chansonnier" do libe­
logo depois, nos anos da desilusão. Até o socialismo, se ralismo, aos autênticos poetas-operários, dos quais Pierre
bem um socialismo idealista, chegou só o intelectual-boêmio Dupont ( 8 6 ) se tornou famoso. O ideal da sua "Muse
Herwegh (° 5 ), "o rouxinol de ferro", conforme o apelido populaire" é utopista:
que Heine lhe deu. Só êle opôs-se conscientemente ao
idealismo apolítico, convidando com ironia mordaz a nação
"Voici la fin de la misère,
Mangeurs de pain noir, buveurs d'eau!"

63) Anastasius Gruen (pseud. de Graf Anton Alexander von Auers-


perg), 1806-1876. "Voici" foi, porém, o massacre dos operários parisienses
Spaziergaenge eines Wiener Poeten (1831) ; Schutt (1835). em julho de 1848 e, depois, a ditadura de Napoleão I I I .
J. Schlossar: Anastasius Gruen, sein Leben und Schaffen. Wien,
"Voici", isto foi o resultado do utopismo pequeno-burguês,
1907.
64) Cf. "Romantismos de oposição", nota 79.
05) Georg Herwegh, 1817-1875. 66) Pierre Dupont, 1821-1870.
Geãichte eines Lebendigen (1841-1844); Neue Geãichte (1877). La Muse populaire (1851); Chants et Chansons (1851-1854).
Fdição por H. Tardei, 3 vols., Berlin, 1903. P. A. Trillat: "Les dernières années de Pierre Dupont. Jugement
V. Floury: Le poete Georg Herwegh. Paris, 1911. et portée de son oeuvre". (In: Revue ã'Histoire literaire ãe la
K. Baldinger: Die Geãankenwelt der Geãichte eins Lebendigen. France, 1915.)
Hcrn, 1917.
206» OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2069

do qual o anarquismo de Proudhon ( 87 ) é a expressão mais das origens e do fim do romantismo se falará pouco de
completa — este um grande escritor, nada confuso, e pen­ valores literários; mas se falará muito de acontecimentos
sador penetrante; mas os seus discípulos foram coerentes, políticos e condições sociais. Esta discussão não pretende
aliando-se ao Segundo Império, ao cesarismo pequeno- explicar sociologicamente a existência daquelas obras, mas,
burguês. sim, as condições em que se divulgaram e os motivos por
O romantismo francês acabou em 1848. Os românticos que foram aceitas pelo público e imitadas por tão numerosa
dispersaram-se ( 6 8 ) : Lamartine vencido, Musset quebrado, legião de escritores menores; até o movimento romântico
Hugo exilado, Sainte-Beuve aliado aos novos donos da se esgotar e encontrar seu fim.
França. O romantismo acabou assim como começara: acom­ O romantismo foi definido, no seu ponto de partida,
panhando grandes acontecimentos políticos. como "reação à revolução francesa". O termo "reação" tem,
Fim do Romantismo. Os fatos são inegáveis: a con­ evidentemente, sentido psicológico: o de "reagir", desta
versão de Newman; o ataque de Kierkegaard contra os ou daquela maneira, a um determinado fato. Mas por volta
românticos na filosofia e na Igreja; a carta de Bielinski, de 1850, o termo já tinha adquirido outra acepção: signi­
denunciando o reacionarismo de Gogol; a revolução de ficava "Reação" política e religiosa, ou então, como na
f e v e ^ i r o de 1848 em P a r i s ; e o Manifesto comunista. T u d o França, a perda de contato com a realidade, à qual os
isso dentro dos poucos anos entre 1845 e 1855. Foi o fim românticos teriam preferido seus sonhos, a utopia. Quando
do romantismo. os escritores de 1850 se chamavam "realistas", fizeram-no
Mas o romantismo não desapareceu. Ficam suas obras. conscientemente em oposição ao romantismo; pretenderam
Ficam Kleist e Heine. Ficam Wordsworth, Coleridge, enfrentar a realidade social, da qual o romantismo se eva­
Scott, Shelley, Keats e Emily Bronté. Ficam Lamartine, dira, cultivando saudades medievais; pretenderam voltar
Nerval e Hugo. Ficam Manzoni e Bécquer. Pois as obras ao espírito lúcido, claro e racional do século X V I I I , da
não são atingidas pelo desaparecimento da mentalidade que Ilustração. Então, a gente acreditava saber o que é roman­
as inspirou. tismo: fora a "Reação". Quando, porém, os historiadores
As grandes obras literárias do passado são os objetos da literatura começaram a estudar as origens do roman­
permanentes da crítica. Mas outro é o objeto da historio­ tismo, verificaram com certo espanto a existência daquele
grafia literária. Essa ocupa-se, principalmente, dos movi­ saudosismo medievalista e, mais, da melancolia nebulosa
mentos literários coletivos. Por isso, na seguinte discussão e dos desejos desordenados de expressão subjetiva, típicos
do romantismo — verificaram a existência de tudo isso
em pleno século X V I I I . Existia, pois, um romantismo
67) Pierre-Joseph Proudhon, 1809-1865. avant la lettre, que foi batizado "pré-romantismo". O novo
Príncipes d'organisation politique (1843); Système des contra- conceito não foi logo aceito; acharam-no vago e impreciso.
ãictions économiques (1846); Les Confessions ã'un révolutionnaire
(1849); Philosophie ãu progrès (1853) etc. Sabemos, disseram os partidários das classificações con­
A. Desjardins: Proudhon, sa vie, ses oeuvres, sa doctrine. 2 vols., vencionais, o que é romantismo; mas que pré-romantismo
Paris, 1896.
C. Bouglé: La sociologie de Proudhon. Paris, 1911. e esse do qual ninguém sabe de onde veio, quando começou
E. Dolléans: Proudhon. Paris, 1948. c quando acabou? Os pré-românticos não sabiam, eviden­
<>8) P. Moreau:"Les écrivains après". (In: Le Romantisme. Paris, temente, que eram "pré-românticos", porque essa corrente
1932.)
2070 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2071

literária se define pelo "pré", que é um "vaticinium ex Wagner, oposto aos ideais democráticos e laicistas da Ter­
eventu" e não um fato histórico, bem definido. Hoje, pou­ ceira República.
cos fenómenos da história literária parecem tão bem defi­ Quando uma oposição entre dois conceitos é tão fun­
nidos como o pré-romantismo, enquanto o termo "roman­ damental, não demora a aparecer a possibilidade de uma
tismo" se torna cada vez mais vago e equívoco. Quase só explicação e reconciliação dialética. Com efeito, os "ve­
pode ser definido como o que veio depois do pré-roman­ nenos estrangeiros" que Madame de Staêl importou, esta­
tismo; como o "pós-pré-romantismo". vam concentrados no livro De 1'Allemagne; foi o roman­
Os equívocos em torno da palavra "romantismo" pa­ tismo alemão que Madame de Staêl deu a conhecer aos
recem desaparecer, quando o estudo desiste da interpretação franceses. E a oposição dos primeiros românticos alemães
do romantismo como fenómeno universal, limitando-se às contra o racionalismo seco da Ilustração apoiou-se no sen­
expressões nacionais. Então só subsiste a forte contradição timentalismo religioso de Rousseau, que tampouco deixava
entre o romantismo francês e o romantismo alemão. Para de influir na formação do nacionalismo alemão. Essas
estudioso francês, a palavra "romantismo" é quase sinónimo interdependências contraditórias até aparecem personifi-
^de "revolução": o grande precursor é Rousseau; Chateau- ficadas. Friedrich Schlegel, na primeira fase da sua ati-
briand, liberal meio anárquico, disfarçado de royalista e vidade, parece-se bastante com os românticos franceses da
católico, substitui os cânones clássicos da literatura pelos geração posterior, e o romantismo irónico de Heine encon­
arbítrios da sua subjetividade: Madame de Staêl arruina tra o seu pendant em Musset; Lamartine figuraria bem
a tradição nacional, importando venenos estrangeiros; os entre Eichendorff e Lenau, e Nerval não é menos "sonha­
maiores representantes do romantismo seriam o verbalista dor" do que Novalis. Existe, pois, um denominador comum
Hugo, jacobino terrível da literatura, e o seu pendant entre o romantismo alemão e o romantismo francês, e, con-
feminino George Sand, anarquista do sexo e da sociedade. siderando-se os antecedentes pré-românticos, será provável
Mas para o estudioso alemão, a palavra "romantismo" é encontrá-lo no país do pré-romantismo, na Inglaterra, onde
quase sinónimo de "reação": do início, os românticos so­ as contradições franco-alemãs coexistem: o pio popularista
nharam com catedrais e castelos medievais; ao racionalismo Wordsworth ao lado do aristocrata revoltado Byron, o
seco da Ilustração, Novalis opôs o sonho da Cristandade conservador nacional Scott ao lado do sonhador revolu­
novamente reunida; Eichendorff encontrou o país dos cionário Shelley. O denominador comum entre todos eles
seus sonhos na religião dos seus pais; muitos românticos não pode ser uma doutrina nem um estilo; quando muito,
protestantes converteram-se ao catolicismo; alguns desses é uma mentalidade; e será de origens inglesas.
convertidos, como Friedrich Schlegel e Adam Mueller, A palavra "romantismo" ( 69 ) é de origem inglesa,.ex­
tornaram-se os teóricos da reação política; e como fortaleza primindo o desprezo do realismo e empirismo anglo-saxô-
dessa reação, contra as influências nefastas do estrangeiro, nicos contra as loucuras donquixotescas dos espanhol»,
foi considerada a própria nação alemã. O romantismo ale­
mão não é ateu, republicano e cosmopolita como o roman­
tismo francês; é católico ou pelo menos cristão no sentido 69) A. François: "Romantique". (In: Annales Jean-Jacqucu Honiumau,
de qualquer ortodoxia eclesiástica; é monárquico e nacio­ V, 1909.)
nalista. Culminará no neo-romantismo pangermanista de F. Baldensperger: "Romantique, ses analopues et óqiilvultinU",
(In: Harvard Stuáies and Notes in Philology and Mímutur*,
XIV, 1937.)
2070 OTTO M A B I A CABPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2071

literária se define pelo "pré", que é um "vaticinium ex Wagner, oposto aos ideais democráticos e laicistas da Ter­
eventu" e não um fato histórico, bem definido. Hoje, pou­ ceira República.
cos fenómenos da história literária parecem tão bem defi­ Quando uma oposição entre dois conceitos é tão fun­
nidos como o pré-romantismo, enquanto o termo "roman­ damental, não demora a aparecer a possibilidade de uma
tismo" se torna cada vez mais vago e equívoco. Quase só explicação e reconciliação dialética. Com efeito, os "ve­
pode ser definido como o que veio depois do pré-roman­ nenos estrangeiros" que Madame de Staêl importou, esta­
tismo; como o "pós-pré-romantismo". vam concentrados no livro De 1'Allemagne; foi o roman­
Os equívocos em torno da palavra "romantismo" pa­ tismo alemão que Madame de Staêl deu a conhecer aos
recem desaparecer, quando o estudo desiste da interpretação franceses. E a oposição dos primeiros românticos alemães
do romantismo como fenómeno universal, limitando-se às contra o racionalismo seco da Ilustração apoiou-se no sen­
expressões nacionais. Então só subsiste a forte contradição timentalismo religioso de Rousseau, que tampouco deixava
entre o romantismo francês e o romantismo alemão. Para de influir na formação do nacionalismo alemão. Essas
estudioso francês, a palavra "romantismo" é quase sinónimo interdependências contraditórias até aparecem personifi-
^ de "revolução": o grande precursor é Rousseau; Chateau- fiçadas. Friedrich Schlegel, na primeira fase da sua ati-
briand, liberal meio anárquico, disfarçado de royalista e vidade, parece-se bastante com os românticos franceses da
católico, substitui os cânones clássicos da literatura pelos geração posterior, e o romantismo irónico de Heine encon­
arbítrios da sua subjetividade: Madame de Staêl arruina tra o seu pendant em Musset; Lamartine figuraria bem
a tradição nacional, importando venenos estrangeiros; os entre Eichendorff e Lenau, e Nerval não é menos "sonha­
maiores representantes do romantismo seriam o verbalista dor" do que Novalis. Existe, pois, um denominador comum
Hugo, jacobino terrível da literatura, e o seu pendant entre o romantismo alemão e o romantismo francês, e, con-
feminino George Sand, anarquista do sexo e da sociedade. siderando-se os antecedentes pré-românticos, será provável
Mas para o estudioso alemão, a palavra "romantismo" é encontrá-lo no país do pré-romantismo, na Inglaterra, onde
quase sinónimo de "reação": do início, os românticos so­ as contradições franco-alemãs coexistem: o pio popularista
nharam com catedrais e castelos medievais; ao racionalismo Wordsworth ao lado do aristocrata revoltado Byron, o
seco da Ilustração, Novalis opôs o sonho da Cristandade conservador nacional Scott ao lado do sonhador revolu­
novamente reunida; Eichendorff encontrou o país dos cionário Shelley. O denominador comum entre todos eles
seus sonhos na religião dos seus pais; muitos românticos não pode ser uma doutrina nem um estilo; quando muito,
protestantes converteram-se ao catolicismo; alguns desses é uma mentalidade; e será de origens inglesas.
convertidos, como Friedrich Schlegel e Adam Mueller, A palavra "romantismo" ( 69 ) é de origem inglesa,.ex­
tornaram-se os teóricos da reação política; e como fortaleza primindo o desprezo do realismo e empirismo anglo-saxô-
dessa reação, contra as influências nefastas do estrangeiro, nicos contra as loucuras donquixotescas dos espanhóis,
foi considerada a própria nação alemã. O romantismo ale­
mão não é ateu, republicano e cosmopolita como o roman­
tismo francês; é católico ou pelo menos cristão no sentido 69) A. François: "Romantique". (In: Annales Jean-Jacques Rousseau,
de qualquer ortodoxia eclesiástica; é monárquico e nacio­ V, 1909.)
F. Baldensperger: "Romantique, ses analogues et équivalents".
nalista. Culminará no neo-romantismo pangermanista de (In: Harvarâ Stuãies anã Notes in Philology anã Literature,
XIV, 1937.)
2072 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2073

depositadas nos romances de cavalaria. Neste sentido pe­ a literatura medieval, ao ponto de identificar "literatura
jorativo aparece a palavra na segunda metade do século romântica" e "literatura cristã" ou "moderna". Eis a razão
X V I I , entre as épocas de Hobbes e Locke. No século por que é possível encontrar "precursores" do romantismo
X V I I I , a palavra perde o sentido pejorativo: o "revival" em todos os países e em vários séculos; já se construíram
de Spenser favorece a revalorização do "romanesco", e o verdadeiras árvores geneológicas do romantismo, sempre
"revival" de Milton acrescenta o termo de "penseroso", do com a pretensão de defini-lo "logicamente", racionalizar-lhe
homem perdido na contemplação da natureza, do céu, do a substância emotiva. Presta-se atenção à literatura anti-
passado, das ruínas. Agora, "romantismo" significa um humanística, popular e burguesa, da Idade Média; às rela­
"état d'âme" melancólico, o do poeta Gray, meditando entre ções entre o conceito de "Inspiração" nos teólogos da
os túmulos de um cemitério de aldeia, o do poeta Cowper, Reforma e o conceito de "génio" nos teóricos do pré-
comparando a natureza, obra de Deus, e a cidade, obra do romantismo; à analogia entre a vitória definitiva da astro­
homem. Nesse sentido saudosista, a palavra aparece na " 5 m e nomia copernicana no começo do século X V I I I e o olhar
^loménade" das Rêveries d'un promeneur solitaire (1777, do homem pré-romântico, angustiado, para o Universo infi­
publicadas em 1782), de Rousseau: "Les rives du lac de n i t o ; à proibição dos assuntos de mitologia pagã pelos
Bienne son plus sauvages et plus romantiques que celles du teóricos da Contra-Reforma, e ao uso da "mitologia" cristã
lac de Genève". Aí, "romântico" significa a capacidade de pelos miltonianos do século X V I I I ; à meditação individual
uma paisagem de sugerir certas emoções; no rigor, não dos Exercitia spiritualia, e à meditação solitária dos pro­
"certas" emoções mas a de um "je ne sais quoi" que não testantes secularizados; ao desenvolvimento dos conheci­
pode ser traduzido para a língua da "raison". Toda a litera­ mentos científicos, geográficos e económicos, e à deca­
tura romântica será, neste sentido, emotiva: opondo-se à do­ dência dos conhecimentos filológicos, greco-romanos, entre
os leigos; à decadência do patronado aristocrático, e ao apa­
minação da matéria pela inteligência artística, que é a nor­
recimento de um novo público, burguês e em grande parte
ma das literaturas clássicas e classicistas, admitirá como fim
feminino. Esses fenómenos, pelo menos muitos entre eles,
da arte só a expressão espontânea das emoções individuais
precedem de longe ao advento do romantismo. Romantismo,
ou coletivas. Daí a impossibilidade de uma definição racio­
neste sentido, não é uma qualidade característica da litera­
nal. Principalmente emotiva é a literatura pré-romântica,
tura entre 1800 e 1830, nem sequer entre 1760 e 1850, mas
de Thompson a Rousseau; puramente emotiva é a literatura
uma qualidade intermitente, às vezes manifesta, às vezes
do próprio romantismo, entre mais ou menos 1800 e 1830
subterrânea, de toda a literatura de todos os tempos, porque
e depois. Mas literatura "romântica" no sentido de lite­
representa a parte emocional da expressão literária e uma
ratura emotiva é um fenómeno de todos os tempos. Poetas
qualidade humana permanente.
emotivos, e portanto românticos, são Petraraca e Tasso, Du
Bellay e Samuel Richardson. Tampouco é critério a in­ Por isso, não é justo verificar, com certo desprezo, um
compatibilidade da expressão com os cânones clássicos e "romantismo anacrónico" em poetas "atrasados", "provin­
classicistas; neste sentido tinham razão os primeiros teó­ cianos", que não têm nome ou são legião, ou em "fantai-
ricos do romantismo quando chamavam de românticos — sistes" solitários como Stevenson, ou em celebridades pa­
por mais estranho que isso nos pareça — a Dante e Sha­ trióticas como Sienkiewicz; ou então considerar como con­
kespeare, Ariosto e Camões, Cervantes e Calderón e a toda sequência de atraso literário e da disposição racial pela
2074 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2075

retórica a sobrevivência do hugonianismo nas literaturas Júlio Dinis. Romântico é o medievalismo dos vitorianos,
hispano-americanas, até o "Hugo dos Andes", Santos Cho- de Tennyson, dos pré-rafaelitas Rossetti e Ruskin, do vi­
cano, em pleno século XX. Em outros poetas e outras toriano americano Longfellow, até do socialista Morris.
literaturas o romantismo sobrevive de maneira mais sutil
Romantismo é um conceito relativo. Dostoievski é român­
ou mais dissimulada, mas um pouco em toda parte e às
tico em comparação com Tolstoi, Flaubert é romântico
vezes com ruído, de modo que se pode dizer: o roman­
em comparação com Zola, Zola continuou sempre român­
tismo continua.
tico, até na ideologia rousseauiana dos seus últimos roman­
O golpe mais duro contra o romantismo foi a revolução ces; e na ideologia democrática, respectivamente na ideo­
parisiense de julho de 1830: então começou a época do logia anarquista da velhice de Ibsen ressurge o romantismo
"juste-milieu", da burguesia, da industrialização e comer­ meio fantástico das suas obras da mocidade. Em relação
cialização, do jornalismo. Mas o mesmo ano de 1830 é o ao parnasianismo da poesia vitoriana, Swinburnc e W h i t -
0(da "bataille d'Hernani", da vitória do romantismo francês man são românticos, aquele um romântico do helenismo,
na mesma cidade de Paris. O verdadeiro vencido de 1830 este o romântico da democracia americana. Românticos
é o romantismo medievalista de tipo alemão; Heine fará são Baudelaire, Villiers de L'Isle Adam, o ironista heiniano
a canção fúnebre, irónica, dos sonhos catolizantes e feudais. Laforgue; isto é, os precursores daquele neo-romantismo
Schopenhauer, no entanto, o metafísico mais típico do ro­ que se chama simbolismo. Não há nada mais romântico
mantismo alemão, estava desconhecido naquele tempo; foi do que o simbolismo, sobretudo nas suas formas decaden-
descoberto por volta de 1850, exercendo influência inter­ tistas; Verlaine, Samain, Rilke na mocidade, Yeats na moci­
nacional entre 1860 e 1890, na época do positivismo cien­ dade. Não é possível separar o simbolismo do neo-roman­
tífico e económico, preparando o caminho ao neo-roman- tismo confesso dos Richard Wagner, Maeterlinck, Selma
tismo de Wagner, grande potência artística de 1890 e 1900. Lagerloef. Romântica é a atitude de D'Annunzio e a de
Nem realismo nem naturalismo nem a intervenção inespe­ Barres. Romantismo é o medievalismo "fantaisiste" de
rada das literaturas escandinavas e russa significam o fim Fagus, o catolicismo liberal e meio sensual, meio místico
do romantismo. Balzac, o romancista do dinheiro, não é de Fogazzaro, as explosões anárquicas de Huysmans, Bloy
o "dernier Chouan" do romance histórico, que continua c Papini, a mentalidade do "Renoveau Catholique" na Fran­
a ser escritor em toda a parte. O positivismo de Georg ça, a renascença do romance histórico em toda a parte, até
Brandes não impediu o advento ao impressionismo neo- entre os russos soviéticos Alexei Tolstoi, Tchapygin e
romântico do seu amigo Jens Peter Jacobsen nem ao neo- Tynianov; enfim, há o romantismo baixo do romance poli­
romantismo popular de Selma Lagerloef. Gogol, o criador cial que é um "revival" do romance "gótico" do pré-roman-
do realismo russo, é um grande romântico; confirmaram lismo. Romântica é a poesia emocional de Noailles, Millay,
isso os seus discípulos neo-românticos, como Remisov, no J essenin. Mas também há os fortes "souvenirs" românticos
século XX. Em geral, realismo e romantismo, os irmãos cm Apollinaire — "cors de chasse dont meurt le bruit parmi
inimigos, harmonizam muito bem, historicamente e estilis­ !c vent"; e os seus discípulos, os surrealistas, invocam os
ticamente. Em que ponto acaba o romantismo e começa o exemplos de Jean Paul, Novalis e Nerval. Há muito roman­
realismo em Dickens? — e a pergunta volta a apresentar-se tismo na poesia hermética de Harold Hart Crane, no saudo­
a propósito de Turgeniev e Bjoernson, Pedro Alarcón e sismo aristocrático dos escritores do "Old South", no ego-
2076 OTTO M A R I A CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2077
tismo de David Herbert Lawrence. Românticos são o
A confusão com respeito ao sentido político do roman­
byronismo político de Malraux e o byronismo apolítico de
tismo reflete a confusão com respeito ao sentido do roman­
Hemingway. Existem um fascismo romântico e um roman­
tismo literário. Na verdade, as discussões políticas em torno
tismo comunista, ambos lutando contra o romantismo da
do romantismo não servem pára esclarecer o termo; antes,
democracia que se inspira em Rousseau. Existe, em suma,
um romantismo político, porque a evolução política, da ao contrário. O fenómeno fundamental da história literária
qual o advento do romantismo foi um sintoma, ainda não daquela época — a contradição dialética entre o romantismo
acabou. alemão, medievalista, e o romantismo francês, revolucio­
nário — já deveria excluir a polémica que pretende atua-
Eis o motivo por que o romantismo constitui objeto lizar o problema. O problema é histórico: como foi possível
w i e apaixonadas discussões políticas. Precederam às pole­ que aqueles dois movimentos contraditórios se chamassem,
micas atuais as dos liberais alemães entre 1830 e 1850, pre­ ambos, "românticos"? A atualidade do problema para a
tendendo destruir, junto com os sonhos medievalistas, os crítica literária reside no fato de que a expressão se tornou
restos do feudalismo e da reação política na Alemanha. lugar-comum, de acepção cada vez mais indefinida. Deu-se
Depois, inverteram-se os argumentos. O anti-romantismo o apelido de românticos aos poetas e escritores mais dife­
dos direitistas franceses e da "Action Française" ( 70 ) cons­ rentes; diagnosticaram-se elementos românticos em Gogol,
truiu a filiação nefasta "Rousseau — Chateaubriand — Balzac e Wagner, Tennyson, Turgeniev e Ibsen, Whitman,
Lamartine — Hugo", com alusões a Byron e Wagner, para D'Annunzio, Yeats, Apollinaire — mas em que se autoriza
demonstrar a identidade de romantismo e revolução, anar­ esse uso da palavra? Não seria apenas um sentimento vago,
quia sentimental e anarquia política; e o neo-humanismo uma emoção irracional que pretendemos racionalizar? Ne­
norte-americano ( 7 1 ), secundado pelo inglês Hulme, repetiu nhuma tentativa de definição deu resultado; o romantismo
esses argumentos com zelo desdobrado, na esperança de não se define. Quando muito, será possível descrever-lhe
construir, no mundo anglo-saxônico, um classicismo con­ as vicissitudes históricas.
servador, comparável ao classicismo da "Action Française".
O primeiro resultado dos estudos de literatura compa­
Bremond ( 7 2 ), ao contrário, chama a atenção para o roman­
rada sobre o romantismo foi a descoberta do pré-roman-
tismo conservador de Walter Scott e os elementos de cato­
tismo: de um movimento literário, principalmente da se­
licismo irrepreensível em Lamennais e Sainte-Beuve, en­
gunda metade do século X V I I I , inspirado pelo advento
quanto os círculos libertadores da América Latina preten­
da burguesia e pelas crises agrária e industrial; e de caráter
dem ressuscitar o romantismo revolucionário contra o
classicismo dos humanistas, defensores do capitalismo de "melancólico", no sentido mais amplo da palavra, do des­
estilo colonial. contentamento até ao ponto de incompatibilizar-se com a
realidade. E n t r e o pré-romantismo e os começos do ro­
mantismo situa-se um acontecimento histórico: a Revo­
lução francesa; e não será precipitado afirmar que ao "post
70) P. Lasserre: Le romantisme français. 3.a ed. Paris, 1918. hoc" corresponde um "propter hoc". A Revolução destruiu
Ch. Maurras: Romantisme et Révolution. Paris, 1925. parte daquelas realidades sociais, tão dolorosamente senti­
71) .7. Babbitt: Rousseau and Romanticism. Boston, 1919. das. Deste modo, a Revolução francesa pode ser definida,
72) II. Bremond: Pour le romantisme. Paris, 1923.
com respeito às suas consequências literárias, como um
207» OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2079

fenómeno pré-romântico ao qual sucedeu imediatamente o não é mera evasão; é uma tentativa das mais radicais de
romantismo. Entre a Revolução francesa e o romantis­ destruir a "falsa" realidade do dia, da sociedade e das
mo francês, que continua revolucionário, existe, porém, reflexões racionais; e constitui assim uma analogia perfeita
um grande intervalo cronológico. Pensa-se em Chateau­ das tentativas de destruição da velha sociedade pela Revo­
briand e Madame de Staêl. Mas Chateaubriand, em quem lução. Mas nem o romantismo alemão nem o romantismo
existem muitos resíduos classicistas, só continua uma tra­ francês param na destruição. Encaminham-se, este e aquele,
dição francesa do século X V I I I , a do intercâmbio lite­ para uma nova realidade, que não será tão insuportavel­
rário com o pré-romantismo inglês; e Madame de Staêl só mente racional como a destruída. Contudo, para apresentar
comunicou aos franceses o classicismo weimariano e a crí­ programa político já não bastam as emoções; é preciso,
t i c a romântica de August Wilhelm Schlegel. Salientou-se até certo ponto, racionalizá-las, transformá-las em projetos
a influência direta dos "Lake Poets" sobre Lamartine; mas concretos. O romantismo francês procurou a nova realidade
o romantismo inglês já é da mesma maneira contrária à no "peuple" e na "Humanité", reconhecendo-se o elemento
tradição revolucionária dos franceses como o alemão, e em emotivo na "volonté générale" instintiva da democracia o
vez da explicação procurada volta à contradição conhecida. no socialismo sentimental das reivindicações humanitárias.
Outra linha de filiação foi estudada por Albert Béguin ( 7 3 ). Se, por outro lado, os românticos alemães como Friedrich
O entusiasmo dos românticos alemães pela aristocracia me­ Schlegel, Adam Mueller e Goerres são reacionários siste­
dieval, com todas as consequências políticas e sociais desse
máticos, a ponto de se descobrirem vestígios de uma "so­
entusiasmo, não harmoniza bem com a violência rousseauia-
ciologia romântica" até em Tieck, Eichendorff e Bettina
na dos pré-românticos alemães, do "Sturm und Drang";
Brentano ( 7 4 ), isso também já constitui uma racionalização:
descobriram-se então, dentro do pré-romantismo alemão, os
o patriarcalismo político e social, a ortodoxia luterana ou
começos de uma nova psicologia do sonho e do subcons­
católica, o medievalismo aristocrático, tudo isso é a pro-
ciente, produto das experiências místicas e antecipações da
jeção dos sonhos do subconsciente para a realidade social,
psicanálise. A psicologia irracionalista amanhece no cép­
estabelecida em novas bases irracionais; em vez do "peuple"
tico Lichtenberg e nos místicos Hamann, Moritz e J u n g -
democrático, o "Volk", o "Povo" de raça germânica; e em
Stilling; apresenta-se como "ciência romântica", sistemá­
vez da "Humanité" do futuro, o passado, a História com as
tica, em Troxler, Gotthilf Heinrich von Schubert e Carus;
raízes na subconsciência racial e nas predestinações divinas,
e constitui elemento significativo da literatura dos Jean
garantindo a harmonia entre a imutabilidade da fé e as
Paul, Novalis, Tieck, Arnim, Clemens e Bettina Brentano,
evoluções históricas, lentas e orgânicas. As diferenças po­
E. T. A. Hoffmann, Eichendorff, e até de Heinrich von
Kleist. Os pendants franceses são Sénancour, Nodier e, líticas entre o romantismo francês e o romantismo alemão
sobretudo, Nerval; também se salienta o ocultismo de não importam no respeito à estrutura básica do pensamento
Victor Hugo. Os herdeiros franceses desse "verdadeiro" romântico, que é um pensamento irracionalista. Por isso,
romantismo são Baudelaire, certos simbolistas e os surrea­ o romantismo apareceu em toda a parte como anti-raciona-
listas. O romantismo da noite, do sonho e do subconsciente lismo, dirigindo-se contra a aliança de classicismo e racio-

74) J. Baxa: Einfuehrung in die romantische Staatswissenschaft


'/:n A. Bóguin: L'Ame romantique et le rêve. 2 vols. Marseille. 1937. 2.a ed. Jena, 1931.
2080 OTTO M A B I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2081

nalismo na literatura francesa do século X V I I I . O anti- realizado a transformação desse pré-romantismo em roman­
racionalismo básico de todos os romantismos liga-os à gran­ tismo sem os impulsos de outro movimento místico que
de fonte de anti-racionalismos na história espiritual da deve ser procurado lá onde nasceu o primeiro movimento
E u r o p a : às correntes místicas, que aparecem na primeira literário que se chamou a si mesmo "romantismo": na Ale­
metade do século X V I I I como quietismo, pietismo, meto­ manha. Lá é preciso procurar o "outro misticismo" que
dismo, preparando imediatamente o pré-romantismo ( 7 5 ). se juntou ao misticismo ocidental, pré-romântico, para cons­
Salientando essas origens românticas, Seillière chegou a tituir o romantismo. Com efeito, existe na Alemanha orien­
e ^ g e r o s inadmissíveis; acabou identificando tudo com tal um outro misticismo, de tradição multissecular e ins­
romantismo e misticismo, porque aquele misticismo histó­ piração eslava — basta citar os nomes dos silesianos Boehme
rico aparece um pouco em toda a parte. Será preciso dis­ e Johannes Scheffler e do tcheco Comenius, e lembrar as
tinguir mais exatamente, perguntando: qual foi o misti­
relações com as seitas tchecas, polonesas e russas, em parte
cismo específico que gerou o romantismo.
seitas revolucionárias, anarquistas. O papel desse misti-
Certamente, o romantismo não tem uma raiz só. Nem tismo, em Iena e Berlim, ao lado dos centros "ocidentais"
sequer com respeito às doutrinas estéticas, já mais ou por uma observação de Joseph Nadler ( 7 7 ), conforme a
menos racionalizadas, é possível afirmar isso. O primeiro qual as "tribos" silesianas, prussianas e bálticas invadiram
grande romantismo europeu foi o alemão dos irmãos Schle- a literatura alemã na segunda metade do século X V I I I ,
gel; mas este não teria surgido sem o pré-romantismo do constituindo-se, depois, dois centros orientais do roman­
"Sturm und Drang", que se baseia, por sua vez, no pré- tismo, em Iena e Berlim, ao lado dos centros "ocidentais"
romantismo de Rousseau, que se baseia no pré-romantismo em Heidelberg e Viena.
inglês. E quanto às origens doutrinárias deste último, exis­ Nadler chamou a atenção para as grandes diferenças
tem reivindicações justificadas dos italianos ( 76 ) : as teorias entre o romantismo na Prússia e Silésia e o romantismo
estéticas dos ingleses já se encontram em Muratori e Gra- na Renânia, Suévia e Áustria. Reconhece nisso a diferença
vina; Viço antecipa o historismo; a defesa da literatura
fundamental entre os dois componentes da nação alemã:
medieval por Gasparo Gozzi precede a Young e P e r c y ;
as "tribos" do Ocidente e do Sul foram meio latinizadas
quando Herder criou a ciência especificamente romântica
pelos romanos, readeriram depois da Reforma ao catoli­
da história literária, Girolamo Tiraboschi já tinha escrito
cismo romano, guardaram a tradição humanista, ficaram,
e publicado a primeira história científica de uma literatura
porém, excluídas da evolução literária pelo luteranismo
moderna, a Storia delia letteratura italiana (1771-1782). Mas
vitorioso no Norte e no Centro; e permaneceram numa
as ideias italianas só repercutiram, encontrando-se com os
atitude de conservantismo retirado. As "tribos" do Norte
impulsos ingleses. Do mesmo modo, quietismo, pietismo
e do Oriente da Alemanha são as que conquistaram durante
e metodismo, que alimentaram o pré-romantismo, não teriam
a Idade Média as regiões antigamente eslavas; são "tribos
coloniais", sem tradição; tinham como primeiro centro es­
piritual a Universidade de Wittenberg, fundada só em
75) E. Seillière: te romantisme. Paris, 1925. 1502 e da qual logo irradiará a Reforma; é o misticismo
Fr. Heer: Europaeische Geistesgeschichte. Stuttgart, 1953.
76) J. G. Robertson: Studies in the Génesis of the Romantic Theory
In lhe Eighteenth Century. Cambridge, 1923. 77) J. Nadler: Die Berliner Romantik. Berlin, 1921.
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HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2083
meio eslavo dos silesianos e bálticos, revoltando-se contra
dos Schlegel e Tieck contra o racionalismo e o causalismo
as tradições ocidentais-mediterrâneas. O romantismo é a
das ciências não os levou à mística nem ao historismo, mas
segunda voga dessa mesma revolta. A velha Universidade
a uma filosofia anticausalista. O mundo, privado da coe­
de Leipzig (1409) continua fortaleza do classicismo, en­
rência rigorosa do causalismo, pareceu-lhes um jogo esté­
quanto os pré-românticos se reúnem nas novas Universi­
tico sem finalidade; em face da realidade, só lhes parecia
dades de Halle (1694) e Goettingen (1737). Hamann,
conveniente a atitude irónica, sem se assumir responsabi­
Herder, E. • . A. Hoffmann e Zacharias Werner são da
lidades. Intronizaram o sonho e a saudade vaga, a "Sehn-
Prússia Oriental; Lenz, do Báltico; Fichte, Schleierma-
sucht". Consideravam a poesia como o milagre divino na
cher, Eichendorff, da Silésia; Novalis, da Saxônia; Tieck,
prosa da realidade. A filosofia voluntarista de Fichte
Heinrich von Kleist e Arnim, do Brandenburgo. Os român­
permitiu-lhes rejeitar a realidade prosaica. Essa atitude,
ticos renanos, bávaros, austríacos — Brentano, Goerres,
Cari Schmitt ( 79 ) definiu-a como ocasionalismo. A filosofia
Uhland e os outros poetas da Suévia — são bem diferentes;
o caráter humanista, católico, conservador, ocidental desse de Fichte está em relações de analogia com a filosofia do
outro romantismo, distinguindo-se do romantismo nacio­ seu contemporâneo Maine de Biran; e este, por sua vez,
nalista, revolucionário e místico do romantismo oriental, está em relações semelhantes com a filosofia do cardeal
revela-se sobretudo nas lutas íntimas e dificuldades polí­ italiano Giacinto Sigismondo Gerdil (1718-1802), que des­
ticas dos convertidos, Friedrich Schlegel e Adam Mueller, cende do ocasionalismo de Malebranche. O ocasionalismo
"orientais" que aderiram, pela conversão, ao Ocidente. pretende explicar as relações entre o mundo físico e o
mundo psíquico pelas intervenções contínuas da divindade,
Nadler pretendeu desdobrar a sua hipótese, transfor- pelo milagre permanente. Quando o ocasionalista se separa
mando-a em fundamento de uma história do espírito ale­ da fé, o mundo apresenta-se-lhe como um jogo arbitrário
mão ( T8 ), determinada pela cooperação inamistosa dos dois de acasos, como fantasia e sonho. Daí o esteticismo e a
grupos de "tribos" e das duas grandes regiões. A genera­ inconstância das românticos, mesmo nos convertidos Frie­
lização obrigou-o a arbitrariedades, classificando os autores drich Schelegel e Adam Mueller; Schmitt opõe-lhes a socio­
às vezes pelo pai, outra vez pela mãe, ou então pelas origens logia firmemente reacionária de pensadores latinos como
remotas da família ou pelo acaso da residência, para con­ De Maistre, Bonald e Donoso Cortês. Mas a oposição não
seguir os resultados preestabelecidos. De um lado, Nadler é tão absoluta: Bonald também era discípulo de Gerdil,
se aproxima de T a i n e ; de outro lado, dos pseudomisti- e o patriarcalismo da sua ciência política está muito perto
cismos racistas. Não deu a atenção devida às diferenças do paternalismo sociológico de Karl Ludwig Haller, que
ideológicas. Confundiu os místicos prussianos e bálticos inspirou, por sua vez, a política reacionária dos Friedrich
do pré-romantismo com os protestantes convertidos ou cato- Schlegel e Adam Mueller. Nos românticos conservadores e
lizantes da Saxônia e Silésia. Os românticos de Iena são católicos não se verifica, depois de Iena, ocasionalismo
de origem oriental (Saxônia, Brandenburgo); mas o roman­ algum. Os estudos de Schmitt só servem para precisar as
tismo de Iena não é o de Hamann e Herder. A oposição atitudes ideológicas, interpretando-se a conversão dos Frie­
drich Schlegel e Adam Mueller como conversão filosófica
78) J. Nadler: Literaturgeschichte der deutschen Staemme unã Land-
scha/ten. 2.a ed., 4 vols. Regensburg, 1923-1928.
79) C. Schmitt: Politische Romantik. 2.* ed., Muenchen, 1925.
201l<t OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2085

c política, do individualismo estético de Iena ao conser- ingleses que reagiram contra a Revolução: inspiram-se em
vantismo nacional dos Haller e Goerres. O romantismo B u r k e ; a crítica literária dos irmãos Schlegel coincide
alemão começou, em Iena, como se fosse romantismo francês amplamente com a de Coleridge; a poesia lírica da segunda
"avant la lettre"; só em Heidelberg e Viena evidencia-se geração é o pendant alemão da poesia de Wordsworth.
a tendência reacionária. Trata-se de reações diferentes de Mas não tem nada em comum com os seus contemporâneos
duas gerações; e pelo "teorema das gerações" pretendem de além Reno, os românticos franceses, que, depois de
outros críticos resolver o problema do romantismo ( 8 0 ). efémera fase católica e royalista, se tornaram revolucioná­
"Romantismo oriental", prussiano e silesiano, conforme rios; esses românticos franceses estão antes em relações
o conceito de Nadler, define melhor o pré-romantismo do com a primeira geração romântica alemã, a de Iena, desem­
que o próprio romantismo; isso é evidente nos casos de penhando Madame de Staèl e August Wilhelm Schlegel
Hamann, Herder, Lenz. Os "orientais" E. T. A. Hoffmann o papel de intermediários. O elemento comum entre os
e Werner serão "outsiders"; e Eichendorff, posterior a estetas de Iena e os lutadores da "bataille d'Hernani" é
todos eles, é um silesiano católico e portanto diferente. a atitude contra o classicismo da Ilustração c, portanto,
Restam os "orientais" Fichte, Tieck, Schleirmacher e Nova- contra o racionalismo burguês. Admitindo-se isso, desapa­
lis; estes, juntos com os irmãos August Wilhelm e Frie- rece pelo menos em parte o isolamento do romantismo
drich Schlegel, constituem a primeira geração romântica, alemão dentro do romantismo europeu. O romantismo eu­
a de Iena; o seu esteticismo ou — enquanto se prefere ropeu, em geral, é uma reação à Revolução: na Inglaterra,
a expressão — ocasionalismo ainda tem muito do espírito uma reação hostil, nacional e conservadora; na França, onde
do século X V I I I , do qual são filhos, e as suas criações monarquia e Igreja foram restauradas, uma reação no sen­
literárias relacionam-se com as do "Sturm und Drang", do tido de recomeçar e continuar a obra da Revolução. O
qual estão separados por um intervalo de poucos anos. A romantismo alemão parece perder-se em sonhos evasionis-
segunda geração romântica, o "romantismo ocidental", tem t a s ; a descoberta da ciência política romântica revelou os
dois centros: Heidelberg e Viena. Em Heidelberg, Goerres fins práticos dessa atitude. Agora deve ser possível subs­
e Brentano colecionam canções e contos populares, chegan­ tituir ou completar a interpretação política pela sociológica:
do através do folclore ao catolicismo paterno, do qual Ei­ interpretar o romantismo alemão também como reação à
chendorff, algo parecendo-se com eles, nunca se afastara; Revolução francesa.
em Viena, os convertidos Friedrich Schlegel e Adam Muel-
A literatura alemã do século X V I I I tinha os seus cen­
ler fundaram o romantismo político, conservador, católico,
tros nos pequenos Estados do Ocidente e do Sul. Berlim
patriarcalista. Os românticos de Viena, onde Eichendorff
excluíra-se, preferindo o gosto francês; os descendentes dos
recebeu impressões decisivas, estão perto das teorias polí­
huguenotes imigrados desempenharam papel preponderante
ticas de Haller; de outro lado, estava em relações íntimas
na inteligência berlinense, e a côrtc em Potsdam era uma
com eles o amigo e cunhado de Brentano, Arnim, conser­
corte francesa. O próprio Rei Frederico o Grande escreveu
vador prussiano. Todos eles parecem-se muito com os tories
em francês, gostava, entre os escritores alemães, só de
Gellert, e chegou a lançar um panfleto contra o pré-roman­
tismo alemão. A Áustria e a Baviera, Estados católicos,
DO) J Pctcrsen: Die Wesensbestimmung der ãeutschen Romantik. não participaram da evolução literária da nação luterana.
Leipzig, 1926.
llDIKi OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2087

O u t r o s literários eram, além das Universidades de Leipzig, A primeira ambição dos campeões do milagre, do catoli­
I In Mc c Goettingen, os pequenos Estados da Renânia, Suévia cismo, da Idade Média, é "épater le bourgeois". Poesia é
v Kr.mcônia, países minúsculos, governados por senhores o que não é burguês. Saúdam a Revolução libertadora —
<la aristocracia feudal ou por bispos e abades; e havia certo ela também sabia "épater le bourgeois" — mas só por um
número de "cidades livres", nas quais dominava o "patri­ momento. Quando a Revolução se revela como movimento
ciado", a altcFburguesia de origem medieval. A estrutura da burguesia, os românticos já não a podem acompanhar:
social e política de todos esses estadozinhos era medieval, na nova sociedade utilitarista, não haverá lugar para o poeta.
a atividade literária e artística muito viva, as cortezinhas Novalis censura o prosaísmo de Wilhelm Meister; e o pró­
verdadeiros centros de intelectuais, abertos a todos os ximo passo é a descoberta da existência de uma sociedade
modernismos de então. Esse pequeno mundo acabou com a "poética" na Idade Média. Catolicismo, aristocracia, pa-
Revolução Francesa; príncipes e bispos foram depostos, os triarcalismo são conclusões fatais. A metafísica estética
artistas e literatos perderam as sinecuras. Fugiram para dos literatos transforma-se em política contra-revolucioná-
a Alemanha oriental, para a Prússia e Saxônia, onde encon­ ria, em romantismo político. O medievalismo dos român­
traram um mundo diferente: Estados de tamanho médio ticos alemães é, no entanto, sonhador, irrealista, fica ligado
ou grandes, com forte organização administrativa e militar, ao "romantisme des rêves"; e isso é digno de nota; pois o
que não deu importância à literatura, e uma burguesia ur­ medievalismo dos pré-românticos alemães, por exemplo, o
bana, envolvida em negócios, uma sociedade da prosa. Os entusiasmo do "Sturm und Drang" pela arquitetura gótica
artistas e escritores, incapazes de se enquadrar nessa socie­ e pelos cavaleiros revoltados de Goetz von Berlichingen,
dade, começaram a dar aulas e conferências, editar revistas era muito realista, até popular. A diferença é exatamente
e jornais, fundar casas editoras. São os primeiros literatos aquela entre Rousseau e Haller. O "Sturm und Drang"
profissionais, os Schlegel, Tieck, Adam Mueller. Outros rousseauiano é, como o pré-romantismo de Alfieri, mais
nem conseguiram isso; incapazes de realizar qualquer tra­ nacionalista do que os pré-romantismos ocidentais; pois
balho "útil", escolheram de propósito uma vida sem uti­ nem a Alemanha nem a Itália constituíam nações definidas;
lidade económica, uma vida "romântica", viajando de cidade mas o seu nacionalismo revolucionário é diferente do pa­
para cidade, sem finalidades definidas; eram os Brentano triotismo dinástico e racismo místico da segunda geração
e Werner, a primeira boémia da Alemanha. Essas modifi­ romântica. No meio entre os pré-românticos nacionalistas
cações na situação social dos escritores criaram a ideologia e os românticos patriótico-místicos estão os românticos de
romântica ( 8 1 ). lena, que não são nacionalistas nem patriotas.

O romantismo, pelo menos nos seus começos, caracte- Uma particularidade do movimento literário alemão é
riza-se pela separação entre literatura e sociedade, no mo­ a falta de uma ligação direta entre pré-romantismo e roman­
mento em que os escritores, privados do mecenado, começam tismo, ligação tão manifesta na França de Rousseau e Cha-
a depender do público anónimo; talvez seja por isso que teaubriand e na Inglaterra de Thomson e Wordsworth. Na
reagem contra o novo público, que julgam "antipoético". Alemanha, os pré-românticos Goethe e Schiller acabaram
classicistas, e entre o "Sturm und Drang" de Lenz e Klinger
e o romantismo de Tieck e Wackenroder existe tão pouca
1)1) K. Zllsol: Die gesellschaftlichen Wurzeln der romantischen Ideo- relação como entre os teóricos Herder e Schlegel. O Cias-
louic. Wien, 1928.
2088
OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2089

sicismo de Weimar não substituiu inteiramente o pré-ro- indústria pesada em Berlim tomam vulto. A unidade terri­
mantismo, mas afastou-o para o nível da literatura vulgar, torial da Prússia parece até insuficiente para as necessi­
de modo que o romantismo, movimento de estetas requin- dades de expansão da economia burguesa. Em 1834 conclui-
tadíssimos, não o podia continuar. Só depois do fim do se o "Zollverein", a União Aduaneira Alemã; começa a
romantismo, por volta de 1830, o pré-romantismo voltou, nas construção das estradas de ferro. Os motins revolucionários
produções de Grabbe e de alguns "Jungdeutsche", muito de 1830 e 1831 em algumas das pequenas capitais têm pouca
semelhantes ao "Sturm und Drang" revolucionário. Essa importância em comparação com a revolução económica,
particularidade da evolução literária alemã encontra a sua que produz, como reflexo literário, um novo "Sturm und
explicação, interpretando-se de maneira sociológica o pré- Drang", o de Grabbe e dos "Jungdeutsche". O realismo
romantismo. O pré-romantismo é o reflexo literário da liberal seguiu sem demora.
revolução industrial e da revolução agrária que a acompa­ O fator social, por mais importante que seja, não é o
nha. A observação estrita dos dados cronológicos levaria único. A falta de uma grande tradição literária e estilística
até a dizer que o pré-romantismo é um "reflexo antecipado" na Alemanha contribuiu para criar as particularidades do
daquelas transformações económicas — um dos casos fre­ romantismo alemão. O classicismo não tem tradição na
quentes nos quais a literatura parece antecipar os movimen­ Alemanha; e o próprio Goethe não conseguiu autoridade
tos sociais, enquanto, na verdade, só reage, com sensibilida­ suficiente para implantar o grecismo. Os alemães, seguindo
de sismográfica, aos primeiros sintomas de modificação antes a Herder do que a Goethe, procuraram uma tradição
da estrutura social. Na Alemanha havia, por volta de 1770, própria na Idade Média alemã, no estilo gótico — mas a
começos tímidos de revolução industrial: no comércio literatura alemã medieval, escrita em língua diferente e
marítimo, na mineração, na indústria de linho. Coincidiram correspondendo a situações sociais e mentais já inexisten­
com a agonia das obsoletas estruturas feudais, e produziram tes, não podia servir de modelo; então, os românticos cria­
um reflexo pré-romântico — ou foram acompanhados pelo ram uma Idade Média fantástica, de sonho, procurando-se
reflexo pré-romântico: o "Sturm und Drang". Mas aquela subsídios em todas as literaturas estrangeiras, traduzindo-se
revolução industrial acabou, antes do tempo, nas guerras Dante e Ariosto, Camões e Calderón. A esse respeito tam­
dos jacobinos e de Napoleão; e a destruição das estruturas bém foi Herder, traduzindo o Poema dei Cid, o precursor.
feudais por Napoleão só serviu ao estabelecimento de maio­
Mas o mesmo Ariosto que pareceu romântico aos ale­
res unidades territoriais sob regime absolutista, principal­
mães é o poeta máximo da Renascença italiana, e o mesmo
mente da Prússia. O classicismo de Weimar. que teria sido
Dante que abriu aos românticos alemães as portas da Idade
a expressão literária do aburguesamento completo, não con­
Média católica é na Itália o discípulo de Virgílio, o porta-
seguiu conquistar a nação. Esta acompanhou a evasão
voz do espírito latino "durante dez séculos de silêncio".
romântica para a realidade que se perdera em 1789 e que
Na Itália, uma poderosa tradição classicista opunha-se à
foi restabelecida só no sonho: a realidade medieval. O
continuação do pré-romantismo; e a evolução social, embora
romantismo alemão será medievalista. A revolução in­
parecida com a da Alemanha, colaborou com os classicistas.
dustrial só recomeçou por volta de 1830, no tempo da revo­
Na Itália também havia, na segunda metade do século
lução burguesa em Paris, de profundas repercussões na
X V I I I , um início de revolução industrial: principalmente
Alemanha. Agora, a mineração na Renânia e Silésia e a
na Lombardia, e pelas tentativas mercantilistas nos peque-
2090 OTTO M A P I A CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2091
nos Estados absolutistas. A Revolução e a Restauração
acabaram com tudo isso, assim como acabou o liberalismo com o romantismo e o "mal du siècle" romântico dos
do Café de Pietro Verri e companheiros. Na Milão de 1820, Chateaubriand, Musset, Lenau, Espronceda. Pois Byron,
os classicistas são os partidários do absolutismo austríaco. Vigny, Leopardi, todos eles são filhos do século X V I I I ,
Até a aíhaide do exilado Foscolo nos seus últimos anos racionalistas, materialistas ou radicais "sans phrase"; e são
de vida — a volta ao classicismo ortodoxo e a repulsa da classicistas. Platen, o conde liberal, parece-se um pouco
Revolução — pode ser interpretada por analogia. Quando com os aristocratas franceses que na noite de 4 de agosto
muito, aquela transformação económica inacabada tinha de 1789 renunciaram aos seus privilégios. Todos eles são
chamado a atenção para as relações entre civilização e aristocratas, de sangue ou de espírito, e, em todo caso, de
estilo. São aliados casuais do romantismo, pela oposição
economia; nos Promessi sposi, de Manzoni, a miséria da
contra o espírito utilitarista da nova burguesia.
população rural lombarda no século X V I I I é explicada pelas
migrações da indústria de seda. Os chamados românticos São figuras isoladas, porque a aristocracia já não exerce
italianos são patriotas que se defendem contra o classicismo o poder; mas não é tanto assim na Inglaterra, onde o
francês, estrangeiro, mas não se opõem ao classicismo nacio­ Whigismo aristocrático do século X V I I I sobreviveu. E
nal. São católicos liberais, como Manzoni e Rosmini, que justamente na Inglaterra, Byron exerceu uma atração tão
explicam a desgraça da pátria pela Contra-Reforma, a mes­ forte sobre os espíritos dissidentes que o romântico Shelley
ma Contra-Reforma que destruíra a civilização da Renas­ se tornou seu amigo e o classicista proletário Keats se
aproxima, pelo menos geograficamente, desse grupo de exi­
cença. Quando um romântico italiano tem — como Tomma-
lados na Itália. Deste modo surgiu um romantismo revo­
seo — um temperamento "inquisitorial", logo se revela atrás
lucionário na Inglaterra, fenómeno que torna perplexos os
das fórmulas românticas o espírito classicista. O roman­
observadores, porque o romantismo inglês é conservador.
tismo italiano, patriótico e cristão como o alemão, é muito
A coexistência de um romantismo revolucionário e de um
diferente, é classicista porque a tradição italiana não per­
romantismo conservador na Inglaterra, de românticos libe­
mitiu outra solução( 8 2 ). O maior dos "românticos" italianos
rais e românticos medievalistas, constitui um problema que
é o classicista mais clássico da literatura italiana: Leopardi.
só pode ser resolvido pela análise sociológica ( H;! ). Antes
Leopardi, porém, não é cristão, ao contrário; e o pa­
de tudo é preciso afastar o caso de Walter Scott, que
triotismo da sua mocidade andava vestido de toga romana;
não é inglês e sim escocês: o seu medievalismo é realista,
parecia antes jacobino. E Leopardi não é, em pleno roman­
porque não é realmente medievalismo. Os seus romances
tismo, o único classicista revoltado contra a Ordem do
mais importantes não se passam na Idade Média; Scott
Universo. Estão com êle: Byron, admirador de P o p e ;
descreveu o passado não muito remoto da Escócia inde­
Vigny, único sucessor legítimo de Chénier; Platen, o aris­ pendente, antes de ela confundir-se com a nação inglesa.
tocrata liberal e goethiano. Stendhal e Puchkin não deixam É o epitáfio de uma civilização ( 8 4 ). O romantismo rela-
de revelar analogias com esse grupo que só o descuido
completo dos elementos estilísticos é capaz de confundir
83) E. B. Burgum: "Romanticism". (In: Kenyon Review, IV/4, 1942.)
A. O. Lovejoy: "On the Discrimination of Romanticisms". (In:
Essays in the History of Ideas. Baltimore, 1948.)
iili) G. A. Borfre.se: Storia delia critica romântica in Itália. 2.» ed.
Mll.-mo, 1920. 84) E. Muir: "Sir Walter Scott". (In: The English Novelists. Edit. por
D. Verschoyle. London, 1936.)

O
2092 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 20').'l

tivamente realista de Wordsworth tem origens de todo pequenas cidades, que a Revolução criara pela expropriação
diferentes. Wordsworth pode ser realista sem ficar revo­ dos latifúndios. A grande burguesia estava derrotada pela
lucionário, porque a revolução burguesa, a de 1688, já pas­ Restauração; estava na oposição, continuando o estilo clas-
sara, até sem derramar sangue. O seu realismo é romântico sicista dos jacobinos. Os liberais franceses de 1820 são
pela reaçao contra uma nova fase da evolução burguesa: anti-românticos. O romantismo francês começa como movi­
contra a revolução industrial, Wordsworth exalta a Ingla­ mento literário da aristocracia provincial e rural, que fora
terra agrária, patriarcal, dos tories. É uma política reacio- derrotada pela Revolução. Eis o caso de Lamartine, que se
nária, mas muito realista, nada sonhadora. Só mais tarde, aproxima tanto, pelo estilo e pela ideologia, de Words­
quando a revolução industrial já vencera, o medievalismo worth. A esse romantismo religioso aliam-se outros "aris­
inglês transformar-se-á em sonho italiano dos pré-rafaelis- tocratas", entre aspas, os filhos da aristocracia militar, cria­
tas, senão em socialismo utópico de Morris. Existem rela­ da por Napoleão e relegada ao ostracismo pela Restauração;
ções íntimas entre Wordsworth e Burke, Coleridge e Carly- eis o caso de Victor Hugo, quer dizer, só do medievalismo
le, Ruskin e Morris: são fases da dissolução do romantismo artificial da sua mocidade. Até Stendhal, o oficial refor­
inglês, da transição do conservantismo romântico ao socia­ mado de Napoleão, apoiava a luta dos românticos contra
lismo romântico. Contra todo o romantismo, Byron repre­ a dramaturgia raciniana.
sentava a aristocracia liberal; esta que abrirá, em 1832, as
Ao lado desse romantismo reacionário não podia exis­
portas da Casa dos Comuns à burguesia, e abolirá, em 1846,
tir um romantismo revolucionário, como aconteceu na In­
os direitos sobre a importação de trigo. Byron, em discurso
glaterra. E m vez disso, aconteceu que o próprio romantismo
na Casa dos Lordes em 1812, ainda tinha defendido traba­
reacionário se transformou em romantismo revolucionário.
lhadores amotinados contra os industriais. Agora os aristo­
A solução desse problema encontra-se nas relações entre
cratas fizeram as pazes com os homens de negócios. E na
a burguesia revolucionária e o proletariado na França. A
poesia vitoriana, que é o reflexo desse "compromisso", en­
burguesia liberal aceitara a aliança da pequena burguesia
trou um vago saudosismo romântico de tempos mais nobres.
democrática contra o feudalismo; mas rejeitou-a, quando a
Aí está o medievalismo de Tennyson, poeta dos Idylls oi
proletarização começava a produzir os germes do socialis­
the King.
m o : daí os golpes contra-revolucionários de 1794, depois
A diferença entre o romantismo alemão, medievalista, de 1830, e depois de 1848. Os mesmos anos são datas deci­
e o romantismo inglês, em que coexistem um movimento sivas da história do romantismo: 1794, fim do pré-roman-
medievalista e um movimento revolucionário, explica-se tismo rouseauiano; 1830, começo do romantismo revolu-
pela estrutura social-econômica, diferente, dos dois países: cionáriq; 1848, fim do romantismo.
na Alemanha, uma revolução industrial fracassada e um A significação político-literária dessas três datas lem­
feudalismo já derrotado; na Inglaterra uma revolução in­ bra o ponto de partida desta discussão: a interpretação do
dustrial vitoriosa e um feudalismo ainda poderoso. A estru­ romantismo como reação à Revolução francesa — agora
tura social da França de 1820 é mais um caso diferente: pode-se acrescentar: às fases consecutivas da Revolução,
o feudalismo já não existia; a revolução industrial estava de 1789 até 1848. Por isso, o romantismo percorreu uma
nos começos e antes de a grande burguesia subir ao poder, evolução; ou melhor: os romantismos percorreram evolu­
dominava socialmente a burguesia média, a rural e a das ções diferentes. Na Inglaterra, o romantismo dividiu-se em
2094 OTTO M A R I A CABPEAUX
HISTÔBIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2095

uma ala reacionária e uma ala revolucionária. Na Alemanha, nos conhecidos: Auguste Trognon, que nos Études sur
o esteticismo apolítico da boémia de Iena transformou-se 1'histoire de France (1836) publicou as suas aulas univer­
em conservantismo político-eclesiástico. Na França, a rea- sitárias da época da Restauração; e Carrel, mais tarde
ção foi d i f e m i t e : depois de uma espécie de acesso de famoso como jornalista republicano, autor duma Histoire
medievalismo monárquico e católico, o romantismo inteiro de la Contre-Révolution en Angleterre (1827). Trognon,
tornou-se revolucionário. É reveladora, a respeito, a evo­ influenciado por W a l t e r Scott, pretendeu demonstrar e
lução da historiografia romântica. reivindicar a união nacional dos franceses contra os estran­
A base ideológica da Revolução fora a ideia rousseau- geiros que acabaram de humilhar a França napoleônica; e
iana da "volonté générale", que deveria substituir a von­ o republicano Carrel deu à ideia da união nacional uma
tade autocrática do rei. Mas a Revolução não conseguiu interpretação bonapartista.
unificar a vontade da nação; ao contrário, quebrou-a. Em
1792, os emigrantes aristocráticos foram excluídos; em 1815, Lembrando estes dois historiadores esquecidos, Jacques
a burguesia liberal. A nação estava dividida. As proclama­ Barzun ( 87 ) revelou o sentido político da historiografia
ções líricas de reconciliação, de Chateaubriand, não encon­ romântica. Declarando reconciliada a nação, Chateaubriand
traram ouvidos. A separação das classes entrou na categoria pretendera apoiar a monarquia, restaurada em 1814. A
dos fatos consumados da história francesa. A historiografia teoria da luta de raças, de Thierry, foi a resposta da bur­
encarregou-se de explicar o fato. guesia liberal. Guizot, partidário da monarquia constitu­
Thierry ( 85 ) revelou a pré-existência daquela separação cional, pretendeu restabelecer o equilíbrio dos poderes.
na história inteira da França: aristocratas e burgueses, Trognon e Carrel recomendaram a democracia nacionalista
protestantes e católicos, feudais e comunas — até encon- para unificar a França. Seguiram-nos, de maneiras diferen­
trar-se a raiz da separação na composição étnica da nação tes, Thiers e Michelet. Thiers ( 8 8 ), burguês progressista,
francesa, composta de duas raças, gauleses e francos. A começou como historiógrafo liberal de Napoleão, e acabará,
história da França é a história de uma luta de raças. O em 1870, como chefe da frente única da burguesia contra os
grande burguês que Guizot ( 86 ) era, reconheceu, talvez socialista e democratas da Commune. Michelet ( 8 0 ), demo­
instintivamente, o motivo económico dos fatos que Thierry crata pequeno-burguês, influenciado pelo medievalismo de
descrevera: a luta de classes atrás da luta de raças. E para Scott e pelo medievalismo democrático do apóstata La-
contribuir à reconciliação, Guizot apontou o exemplo da mennais, contou a história da França medieval como a vida
nação inglesa, composta de anglo-saxões e de conquistadores de um povo unido pela democracia: "J'avais pose le premier
normandos, fundidos sob a égide da Constituição. Michelet la France comme une personne". Mas, historiando a França
parece ter realizado a ideia de Guizot, interpretando a moderna, não podia manter a ficção épica; tornou-se o mais
história medieval da França como de um povo fortemente
unido; mas Guizot era conservador e Michelet democrata.
Convém lembrar, entre eles, dois outros historiadores, me-
87) I. Barzum: "Romantic Historiography as a Politicai Force in
France". (In: Journal of the Historv of Iãeas, II/3, 1941.)
85) Cf. "Romantismos de evasão", nota 54. 88) Cf. "Romantismos de evas&o", nota 49.
86) Cf. "Romantismos de evasão", nota 48. 89) Cf. "Romantismos de oposição", nota 69.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2097
2096 OTTO M A R I A CAHPEAUX
socialistas, sentiram nessa separação como o fim do roman­
apaixonado dos historiadores das "duas Franças" em guerra tismo. Retiraram-se, evadindo-se da realidade social para
civil permanente — o Thierry da democracia. a "tour d'ivoire" do parnasianismo. O "último romântico"
A esperança de Michelet é a do "romantismo social": chamava-se Gautier; é o primeiro parnasiano.
a República — talvez a "Republique universelle" de Hugo
— unir França, realizando a "volonté générale". Michelet Revela-se mais uma face do romantismo: êle vive da
volta a Rousseau. O resultado é inequívoco: o romantismo aliança ou da confusão entre liberalismo e democracia. Essa
revolucionário francês continua o pré-romantismo; por isso aliança ou confusão permite aos poetas e escritores, lite­
mesmo ele é revolucionário. ratos profissionais fora das classes económicas, reagir con­
A interpretação das atitudes dos poetas e romancistas tra a realidade social, de qualquer maneira; como aristo­
românticos dá o mesmo resultado, embora não com a mesma cratas reacionários ou como aristocratas revolucionários,
evidência, porque — o fenómeno repete-se em todos os não importa, porque em todo caso são "aristocratas do espí­
séculos — as "classes literárias" não são de todo idênticas rito" : imbuídos dessa consciência, são capazes de manter-se
com as classes da sociedade. Porque o romantismo francês entre as classes. O romantismo sempre foi o que fora nos
continua as atitudes revolucionárias do pré-romantismo seus primeiros dias em I e n a : não uma reação literária das
francês, o medievalismo é mais fraco na França do que em próprias classes da sociedade, mas uma reação da "classe"
outra p a r t e ; apareceu no momento em que, entre 1815 e literária às modificações sociais. Daí o caráter estético do
1830, a burguesia se fechou no classicismo racionalista, pre­ movimento, a facilidade em mudar bandeiras e atitudes, e
tendendo voltar à Ilustração de 1750. Neste momento, a a preferência pelo passado que é — quase por definição —
própria aristocracia parecia mais perto do povo do que os mais estético do que a realidade de todos os dias. O roman­
burgueses; assim como Wordsworth na Inglaterra preten­ tismo é antiburguês como a democracia e, ao mesmo tempo,
deu representar o autêntico povo inglês; assim como os antidemocrático como a aristocracia; convinha aos aris­
medievalistas alemães de 1820, esboçando programas sociais, tocratas do espírito. O medievalismo romântico é um fenó­
lançaram aos burgueses acusações muito parecidas com as meno de superfície. Na verdade, o romantismo acompanha
reivindicações socialistas de 1848. Na França de 1820, quem o processo de separação entre o liberalismo e a democracia,
não era aristocrata como Chateaubriand e Lamartine, fin­ constituindo o reflexo literário da revolução prolongada.
giu, pelo menos, sê-lo, como Hugo. Esses românticos já
E m 1848, o processo parecia ter chegado ao fim. O
eram revolucionários sem sabê-lo; e a revolução burguesa
novo partido conservador na Inglaterra, renunciando aos
de 1830 abriu-lhes os olhos, transformando-os em revolu­
serviços da Igreja anglicana, sacudida pelo Oxford Mo-
cionários democráticos; podiam reagir contra uma revolu­
vement e a conversão de Newman, abandonou o medieva­
ção, quer dizer, a burguesa, e fizeram-no como democratas.
lismo, tentando a aliança com os operários contra a burgue­
Mas não eram propriamente democratas, tampouco como
sia liberal; o liberalismo, def endendo-se, acentua a doutrina
foram propriamente aristocratas; constituíram uma "In-
manchesteriana, implicitamente antidemocrática. Na Ale­
telligentzia", uma classe de literatos profissionais, perdidos
manha, os intelectuais e pequenos-burgueses democráticos
entre as classes da sociedade. A revolta proletária de 1849
decidiu a separação entre o liberalismo burguês e a demo­ abandonaram a causa perdida da Revolução; constituirão
cracia socialista; os românticos, que não eram liberais nem o Partido Nacional-Liberal, aliado dos junkers prussianos
2098 OTTO MARIA^CARPEAUX IIíSTÓniA DA LITERATURA OCIDENTAL 2099

na tarefa da unificação nacional, da construção do "Reich" A comparação do "romantismo permanente" com o


alemão por Bismarck. Na França, a aristocracia rural está ""realismo permanente" lembra-nos o fato importante de que
definitivamente eliminada, a burguesia excluída do poder; os estilos literários percorrem evolução autónoma. Uma
Lamartine e Musset são os vencidos de 1848. O "socia­ evolução assim já foi bem estudada: a transformação da
lismo" utópico dos intelectuais exilou-se com Hugo; a lírica renascentista de Garcilaso de la Vega em lírica bar­
pequena burguesia de tradições jacobinas — eis o caso de roca de Góngora. Com respeito ao romantismo, já foram
Sainte-Beuve — prefere o "ralliement", a aliança com Na­ •estudadas a sobrevivência do classicismo francês na poesia
poleão I I I ; mais tarde, voltará ao poder, com Gambetta. E romântica francesa (91) e a sobrevivência do espírito ro­
então, contra eles reerguer-se-á o operariado socialista, su­ mântico no romance realista e naturalista de Balzac, Flau-
cessor da democracia: a filiação revelar-se-á na pessoa de bert e Zola ( 92 ). Mas ainda estamos longe de poder traçar
Jaurès. Nos anos da "affaire Dreyfus", todo o mundo sa­ uma história do estilo romântico através da história literária
berá que a Revolução, começada em 1789, ainda não chegou universal, assim como Erich Auerbach a traçou com res­
ao fim. São os anos da poesia simbolista: de um neo-ro- peito ao estilo realista.
mantismo.
Ficam os fatôres ideológicos. O romantismo, fenómeno
A sobrevivência e as reincarnações do romantismo de reação à Revolução francesa, encerrou, de início, uma
lembram uma dificuldade à qual já se aludiu no início desta •crítica da civilização europeia e da sua evolução. Os român­
discussão: não é possível esclarecer as origens e o fim ticos — Friedrich Schlegel e Goerres, De Maistre e Prou-
",. dos movimentos literários pelo estudo das condições so­ dhon, Carlyle e Donoso Cortês — criaram a nova disciplina
ciais ; esclarecê-los, sim, mas não explicá-los completamente.
da "crítica da civilização" ( 93 ), cujos maiores representan­
Pois há mais outros fatôres: psicológicos, estilísticos e
tes serão, mais tarde, Tocqueville e Marx, Burckhardt e
ideológicos.
Nietzsche, Spengler e Toynbee, Ortega y Gasset e todos
Os fatôres menos acessíveis à análise são os psicoló­ os russos. Essa crítica faz, entre 1830 e 1880, parte de um
gicos. Sentimos, todos, que o romantismo é produto de grande processo: o da ruptura revolucionária na história
■certa mentalidade que já existia antes dos séculos XVIII do pensamento europeu do século XIX, pela dissociação
e XIX; que continua existindo e continuará, provavelmente. dos elementos da filosofia de Hegel. Os pontos altos dessa
O romantismo corresponde a uma disposição permanente história do hegelianismo e anti-hegelianismo (94) são as crí-
do espírito humano; assim como o realismo e outros estilos
correspondem a disposições diferentes. Mas as tentativas
de definir e fixar essa disposição com os recursos da análise 91) P. Moreau: Le classicisme ãu romantisme. Paris, 1932.
psicológica (90) ainda não deram resultados que possam ser 92) F. Lion: Der franzoesische Roman im 19. Jahrhunãert. Zuerich,
aceitos como definitivos. 1952.
93) H. G. Schenk: Die Kulturkritik der europaischen Romantik.
Wiesbaden, 1956.
50) C. G. Jung: "Psychologie und Dichtung". (In: Gestaltungen ães 94) K. Loewith: Von Hegel zu Nietzsche. Der revolutionaere Bruch
Vribewussten. Zuerich, 1950.) im Denken ães 19 Jahrhunâerts. 2.tt ed. Zuerich, 1949.
2098
OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2099
na tarefa da unificação nacional, da construção do "Reich" A comparação do "romantismo permanente" com o
alemão por Bismarck. Na França, a aristocracia rural está "'realismo permanente" lembra-nos o fato importante de qu*
definitivamente eliminada, a burguesia excluída do poder; ■os estilos literários percorrem evolução autónoma. Uma
Lamartinj^ e Musset são os vencidos de 1848. O "socia­ evolução assim já foi bem estudada: a transformação da
lismo" utópico dos intelectuais exilou-se com H u g o ; a lírica renascentista de Garcilaso de la Vega em lírica bar­
pequena burguesia de tradições jacobinas — eis o caso de
roca de Góngora. Com respeito ao romantismo, já foram
Sainte-Beuve — prefere o "ralliement", a aliança com Na­
•estudadas a sobrevivência do classicismo francês na poesia
poleão I I I ; mais tarde, voltará ao poder, com Gambetta. E
romântica francesa ( 91 ) e a sobrevivência do espírito ro­
então, contra eles reerguer-se-á o operariado socialista, su­
mântico no romance realista e naturalista de Balzac, Flau-
cessor da democracia: a filiação revelar-se-á na pessoa de
bert e Zola ( 9 2 ). Mas ainda estamos longe de poder traçar
Jaurès. Nos anos da "affaire Dreyfus", todo o mundo sa­
uma história do estilo romântico através da história literária
berá que a Revolução, começada em 1789, ainda não chegou
ao fim. São os anos da poesia simbolista: de um neo-ro- universal, assim como Erich Auerbach a traçou com res­
mantismo. peito ao estilo realista.

Ficam os fatôres ideológicos. O romantismo, fenómeno


A sobrevivência e as reincarnações do romantismo
de reação à Revolução francesa, encerrou, de início, uma
lembram uma dificuldade à qual já se aludiu no início desta
discussão: não é possível esclarecer as origens e o fim crítica da civilização europeia e da sua evolução. Os român­
dos movimentos literários pelo estudo das condições so­ ticos — Friedrich Schlegel e Goerres, De Maistre e Prou-
ciais; esclarecê-los, sim, mas não explicá-los completamente. dhon, Carlyle e Donoso Cortês — criaram a nova disciplina
Pois há mais outros fatôres: psicológicos, estilísticos e d a "crítica da civilização" ( 9 3 ), cujos maiores representan­
ideológicos. tes serão, mais tarde, Tocqueville e Marx, Burckhardt e
Nietzsche, Spengler e Toynbee, Ortega y Gasset e todos
Os fatôres menos acessíveis à análise são os psicoló­ os russos. Essa crítica faz, entre 1830 e 1880, parte de um
gicos. Sentimos, todos, que o romantismo é produto de grande processo: o da ruptura revolucionária na história
certa mentalidade que já existia antes dos séculos X V I I I do pensamento europeu do século XIX, pela dissociação
e X I X ; que continua existindo e continuará, provavelmente.
dos elementos da filosofia de Hegel. Os pontos altos dessa
<0 romantismo corresponde a uma disposição permanente
história do hegelianismo e anti-hegelianismo ( 94 ) são as crí-
d o espírito humano; assim como o realismo e outros estilos
correspondem a disposições diferentes. Mas as tentativas
d e definir e fixar essa disposição com os recursos da análise
psicológica ( 90 ) ainda não deram resultados que possam ser 91) P. Moreau: Le classicisme ãu romantisme. Paris, 1838.
aceitos como definitivos. 92) F. Lion: Der franzoesische Roman im 19. Jahrhunátft,
1952.
93) H. G. Schenk: Die Kulturkritik ãer europaisch
Wiesbaden, 1956.
90) C. G. Jung: "Psychologie und Dichtung". (In: Gestaltungen ães 94) K. Loewith: Von Hegel zu Nietzsche. Der revoluti
Unbewussten. Zuerich, 1950.) im Denken ães 19 Jahrhunderts. 2.a ed. Zuerich, 1
2098 OTTO M A R I A CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2099
na tarefa da unificação nacional, da construção do "Reich"
alemão por Bismarck. Na França, a aristocracia rural está A comparação do "romantismo permanente" com o
definitivamente eliminada, a burguesia excluída do poder; "'realismo permanente" lembra-nos o fato importante de que
L a m a r t i n ^ e Musset são os vencidos de 1848. O "socia­ os estilos literários percorrem evolução autónoma. Uma
lismo" utópico dos intelectuais exilou-se com H u g o ; a evolução assim já foi bem estudada: a transformação da
pequena burguesia de tradições jacobinas — eis o caso de lírica renascentista de Garcilaao da la Vaga em lirica bar­
Sainte-Beuve — prefere o "ralliement", a aliança com Na­ roca de Góngora. Com respeito ao romantiamo, já foram
poleão I I I ; mais tarde, voltará ao poder, com Gambetta. E •estudadas a sobrevivência do classicismo francês na poesia
então, contra eles reerguer-se-á o operariado socialista, su­ romântica francesa ( 91 ) e a sobrevivência do aspirtto ro­
cessor da democracia: a filiação revelar-se-á na pessoa de mântico no romance realista e naturalista d* Balsac, Flau-
Jaurès. Nos anos da "affaire Dreyfus", todo o mundo sa­ bert e Zola ( 9 2 ). Mas ainda estamos longa da podar traçar
berá que a Revolução, começada em 1789, ainda não chegou uma história do estilo romântico através d l hiltOrU Utsrârla
ao fim. São os anos da poesia simbolista: de um neo-ro- universal, assim como Erich Auerbach ■ trtflOU t#JtH MS-
mantismo. peito ao estilo realista.

A sobrevivência e as reincarnações do romantismo Ficam os fatôres ideológicos. O rorWMtlHH, ItUlmtno


lembram uma dificuldade à qual já se aludiu no início desta de reação à Revolução francesa, •nOSrrOU, 4 l lntfit, Uma
discussão: não é possível esclarecer as origens e o fim critica da civilização europeia a da SUI tVOlMfl* O t fttDln-
dos movimentos literários pelo estudo das condições so­ ticos — Friedrich Schlegel a Ooarrai, Df Maia** • Prou-
ciais; esclarecê-los, sim, mas não explicá-los completamente. dhon, Carlyle e Donoso Cortês — orlaram • MVt dilêlpllna
Pois há mais outros fatôres: psicológicos, estilísticos e d a "crítica da civilização" ( " ) , cujo* IMltfM ftpraaantan-
ideológicos.
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Os fatôres menos acessíveis à análise são os psicoló­ Nietzsche, Spengler e Toynbat, O f t l g l f OttMt a todoN
gicos. Sentimos, todos, que o romantismo é produto de os russos. Essa crítica faa, antra IMO t IMO, parta da um
■certa mentalidade que já existia antes dos séculos X V I I I grande processo: o da ruptura raVOlualOflârla na história
e X I X ; que continua existindo e continuará, provavelmente. do pensamento europeu do séoule XIX, pala dissocia-lo
O romantismo corresponde a uma disposição permanente dos elementos da filosofia da Hagal. Ol pontos altos «IPMHO
d o espírito humano; assim como o realismo e outros estilos história do hegelianismo a antl>hagallanlimo (**) slo «H et Í-
correspondem a disposições diferentes. Mas as tentativas
d e definir e fixar essa disposição com os recursos da análise
psicológica ( 90 ) ainda não deram resultados que possam ser 91) P. Moreau: Le clauiotimê iu nm*nUm« Furl», iu:ia
aceitos como definitivos. 92) F. Lion: Der framo*»t*ah$ Jtofftsn lm II, Jahrhumtrrl Zunirh,
1952.
93) H. O. Schonk: IH* KMWkriUk étf #Mro|»«(*t7iffi Hiwianlik.
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90) C. G. Jung: "Psychologie und Dichtung". (In: Gestaltungen des
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ticas de Marx, Kierkegaard e, um pouco mais tarde, de


Nietzsche. São os pensadores que combateram, transforma­
ram ou enterraram o hegelianismo romântico. Nesse sen­
tido — pois essa evolução já é irreversível e o que foi antes
daqueles críticos, nunca voltará — pade-se falar em: Fim
do Romantismo.

■ ÍNDICE DO VOLUME IV

1 PARTE VII

I O ROMANTISMO

■ Capítulo I
Origens do Romantismo 1 651

Capítulo II
- ."Romantismo de Evasão 1 725
^Capítulo III
Rornantismos em Oposição 1867
Capítulo IV
O Fim do Romantismo 2 009

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