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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memorietm)
APRESEISTTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanga a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortalega
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abencoar este trabal no assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atuai
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.

A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaca


depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
I

278
A Eucaristía, Misterio da Fé

Participado da Igreja na Atualidade


Brasileira

Teología da Liberlacio: Ambigüidades

"Aclaracoes Acerca de Alguns


Temas de Teologia"

Ainda "Em nome de Oeus" e oulros...

O Sentido da Vida

Impressóes Colhidas na U.R.S.S.

Roubar em Extrema Necessidade?

Janeiro-Fevereiro — 1985
PERGUNTE E RESPONDEREMOS
JANEIRO-FEVEREIRO — 1985
Publicacao bimestral
N? 278

DiretoMtesponsável:
SUMARIO
D. Estéváo Bettencourt OSB
Autor e Redator de toda a materia
publicada neste periódico
A RODA DA VIDA 1
Diretor-Administrador
Narracóes que fazem pensar:
D. Hildebrando. P. Martins OSB
A EUCARISTÍA, MISTERIO DA FÉ 2

Urna análise da:


Administradlo e distribuicáo:
PARTICIPACÁO DA IGREJA NA ATUA-
Edicdes Lumen Christi LIOADE BRASILEIRA 13

Dom Gerardo, 40 - 5? andar, S/501 Refletindo...


Tel.: (021)291-7122
TEOLOGÍA DA LIBERTACAO: AMBIGÜI-
Caixa postal 266ff- DADES 27
20001 - Rio de Janeiro - RJ
Pouco divulgadas:
"ACLARACÓES ACERCA DE ALGUNS
TEMAS DE TEOLOGIA" 43
Para pagamento da assinatura de 1985
quelra depositar a importancia no Banco
Livros de sensacáo sobre o Vaticano:
do Brasil para crédito na Corita Corrente
rr? 0031.304-1 em nome do Mosteiro de AÍNDA "EM NOME DE DEUS" E OU-
Sao Bento do Rio de Janeiro, pagável TROS 57
na Agenda da Praca Mauá (n? 0435)
ou VALE POSTAL na Agencia Central Questáo fundamental:
do Rio dé Janeiro. O SENTIDO DA VIDA 61

Mais uma vez atrás da Cortina de Ferro:


IMPRESSOES COLHIDAS NA U.R.S.S. 66
Será licito...
ASSINATURA ANUAL PARA 19S5
ROUBAR EM EXTREMA NECESSIDADE? 74
LIVROS EM ESTANTE 86
A partir de 1? de Janeiro — CrS 20.000

NO PRÓXIMO NÚMERO
RENOVÉ QUANTO ANTES 279 — M arpo-Abril — 1985
A SUA ASSINATURA
Vida em oulros planetas9 — "A Senhora
Aparecida" de Aníbal Peieira Reís. —
"Marxismo e Socialismo Real", de P -E
COMUNIQUE-NOS QUALQUER Charbonneau. — "Minhas Vidas" de Shiriey
MacLaine. — "Escola Itvre e grauita" de P.
MUDANCA DE ENDERECO Naccaralto. — "Quando coisas ruins aconte-
cem a pessoas boas" de H. Kushner —
Compoaicao e Impressao: Oracao de Joáo XXIII pelos judeus?
Depoimento do "Reí do Abono"
"Marques Saraiva"
Santos Rodrigues, 240
Rio de Janeiro Com aprovacáo eclesiástica
A RODA DA VIDA
Estamos entrando em novo ano... Isto nos recorda urna
imagem habitual entre os antigos pensadores gregos pré-cris-
táos, a saber: a roda da vida (lio trochos tes genéseos). Tal
imagem foi reassumida por S. Tiago na sua epístola: «A língua
póe em chamas o ciclo da existencia ou a roda da vida» (3,6).
Por que comparavam os antigos a nossa vida com urna
roda?
Tres sao as explicacóes possíveis:

1) Na roda que se move, o que está na parte superior


vai para baixo, e vice-versa. Assim a roda seria o símbolo da
sorte, que exalta e rebaixa sucessivamente os homnes.
2) A roda é a imagem da sucessáo e da mudanga. Sim
boliza, pois, a sucessáo das geracóes que perfazem a trama da
historia.
3) A roda é um círculo... Os antigos usavam tal ima
gem para designar a historia e tudo o que ela contém.
Compreende-se que, a tantos títulos, a roda se tenha tor
nado a figura da existencia humana.
Observamos, porém, que tal imagem traduz um certo pes-
simismo. Com efeito, a roda significa van rolar monótono, insí
pido, algo de fechado em si, sem saida; lembra também o
«eterno retorno» ou o pretenso ciclo das reencarnagóes, que
sufoca e agrilhoa o homem e do qual os antigos tanto queriam
libertar-se! — Por isto o Cristianismo prefere, para designar
a vida, urna outra imagem: a do cone. Este é urna figura que
se vai abrindo e dilatando cada vez mais, como se estivesse
para abarcar o Infinito. Exprime assim muito adequadamente
a dinámica da vida crista, que é urna sementé de eternidade
(a graga santificante é o germen da gloria), a qual se vai
desabrochando sucessivamente até chegar ao encontró face-a-
-face com a Beleza Infinita de Deus.
Ora o ano de 1985 é um segmento desse cone: deve assi-
nalar, para o cristáo, urna fase de crescimento interior e de
aproximacáo da plenitude dos valores definitivos. Deus, que
chama o homem para o consorcio de sua vida, o acompanha
nessa caminhada e o aguarda para o consumar.
Senhor, no novo ano que agora iniciamos, possamos reco-
nhecer todos os dias o teu santo designio e a tua reconforta-
dora presenga! Peregrino com os peregrinos, és também a
Grande Mercé dos que terminam a caminhada!
E.B.
«PERQUNTE E RESPONDEREMOS»
Ano XXVI — N° 278 — Janeiro-fevereiro de 1985

Narrares que fazem pensar:

A Eucaristía, Misterio da Fé
£,m símese: O presente artigo apresenta o relato de milagres eucarís-
ücos ocorridos na Italia através dos séculos. Tais (atos, embora nao cons-
tituam objeto de fé, nao podem ser desprezados. Observe-se que investiga-
cóes científicas tém sido feitas sobre as reliquias remanescentes de tais
milagres, de modo a ¡ncutir o caráter sobrenatural dos fatos. Embora a fé
possa dispensar milagres, ela em muitos casos se beneficia por considerá-los,
encontrando neles apoio para a sua adesSo ao "misterio da fé" (Eucaristía).

Na revista «Jesús» das Edigóes Paulinas de Roma, o escri


tor Antonio Gentili publicou, em abril de 1983, pp. 64-67, urna
breve resenha de milagres eucarísticos, que seriam aptos a
comprovar a real presenta de Cristo no sacramento do altar.
O artigo revela dados pouco conhecidos ao público brasileiro
— titulo pelo qual PR os divulga neste seu número. Assim
procedendo, reconhecemos que
— a fé dos católicos na real presenta eucarística de Jesús
nao depende de milagres, mas tem sobeja fundamentagáo nos
dizeres da S. Escritura, da Tradigáo e do magisterio da Igreja;
— pode ser discutida a autenticidade dos fatos relatados
ou, ao menos, de alguns fatos relatados, visto que outros fo-
ram submetidos a exames científicos, que parecem muito signi
ficativos;
— nao se pode, porém, de antemáo excluir que Deus tenha
manifestado o «misterio da fé» mediante fenómenos extraor
dinarios. Os milagres estáo na linha da revelagáo e dispensa-
gáo da graca de Deus aos homens; sao palavras mais fortes
e eloqüentes que Deus pode oportunamente proferir perante
os homens para levá-los a afirmar a sua fé de maneira mais
convicta e frutuosa.

Sobre estas premissas, publicamos em traducáo brasileira


o texto do artigo.

— 2 —
MISTERIO DA FÉ

«QUANDO A EUCARISTÍA REVELA O SEU MISTERIO

'Eu nao seria cristáo sem os milagres', gostava de repetir


o filósofo francés Blaise Pascal (1623-1662))... Deixemos os
teólogos discutir se a Eucaristía deve ou nao ser tida como
milagre. O fato é que os episodios correlacionados com ela
podem ser considerados como milagrosos.

1. Eucaristía e soúde do corpo

Quando Sao Paulo exprimia o seu desapontamento, veri


ficando que, apesar da prática da Eucaristía, havia ainda na
comunidade de Corinto 'muitos fracos e enfermos e iim bom
número de mortos' (cf. ICor 11,30), dava a ver claramente
que, para ele, a ceia do Senhor devia produzir efeitos de cura,
nao diferentes daqueles que se registravam ao longo das estra
das da Palestina, onde o povo se aglomerava para captar, ao
contato do corpo de Cristo, 'energías divinas que curavam a
todos'...

As primeiras geragóes cristas alimentavam, de modo muito


vivo, a consciéncia de que a Eucaristía emitía energías que
curavam. «Se apenas o contato com a sua santa carne resti
tuía a vida á materia já deteriorada, quáo grande proveito nao
haveremos de tirar da sua Eucaristía vivificante, quando a
recebemos», visto que «nao é possível que a Vida nao faca viver
aqueles aos quais ela se infunde». Quem assim se exprimia, é
S. Cirilo de Alexandria (370-444). Fazem-lhe eco outros Pa
dres da Igreja, como S. Joáo Crisóstomo (344-407), que convi-
dava os fiéis a «aproximar-se da Eucaristía com fé», «cada
qual com as suas doencas», e S. Efrém Sirio (306-372), que
exclamava: «Gloria ao remedio da vida!* Na verdade, Cristo
«corta urna parte do seu próprio corpo; aplica-a <á ferida, e
cura, como a sua carne e o seu sangue, as chagas».

Um reflexo de tal conviegáo encontra-se no rito da Comu-


nháo em vigor no século IV junto as comunidades da Pales
tina. É Sao Cirilo de Jerusalém (315-386) quem disto nos
fala:

«Na cavidade da mao recebe o corpo de Cristo; dize Amérn e


com zelo santifica os olhos ao contato do corpo santo... Depois
aproxima-te do cálice. Dize Amém e santifica-te tomando o sangue

— 3 —
4 . «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 278/1985

de Cristo. A seguir, toca de leve os teus labios, aínda úmidos, com


tuas máos, e santifica os olhos, a testa e os outros sentidos (ouvidos,
garganta, etc.)».

Se a Eucaristía nao encontra em nos urna sensibilidade


táo viva e receptividade táo intensa, ela é depauperada dos seus
efeitos; estes nao sao apenas espirituais — nada há que seja
apenas espiritual no homem! —; basta lembrar que a nossa
vooacáo derradeira é para a ressurreigáo da carne, ou seja,
para a plena e perfeita restauracáo do nosso ser, que é corpo,
psique e espirito K

É preciso, pois, reconhecer á Eucaristía o realismo que


inspirou a sua instituigáo: «Este pao é verdaderamente corpo;
este vinho é verdadeiramente sangue. Quem deles come e bebe,
vivera eternamente (Jo 6,55-58) »2.

2. Os milagres eucarístícos

Os milagres eucarístícos encaixam-se nesta ordem de coi


sas. Vém a ser o fruto de urna fé muito intensa ou a resposta
a situagóes de grave incredulidade. A sua finalidade parece ser
a de por em evidencia o realismo e a eficacia da presenga de
Cristo sob os sinais do pao e do vinho.

Urna ininterrupta tradicáo, que vai desde as origens do


Cristianismo até os nossos dias, atesta a existencia de mila
gres eucarístícos. De modo geral, revelam a presenca do corpo

1 Os antigos cristaos, com mais freqüéncia do que nos, atribulan) ¿


Eucaristía efeitos benéficos também para o corpo do comungante, enquanlo
peregrino na vida presente. Este costume hoje perdeu um tanto do seu
vigor; conserva-se, porém, inabalável a crenca de que a Eucaristía é o
phármakon athanasías ou o remedio da imortalidade ou, ainda, o penhor da
ressurreic3o dos corpos dos cristaos. A carne de Cristo, que padeceu e
ressuscitou, colocada dentro do corpo mortal do comungante, prepara-o para
a ressurreicao gloriosa ou para o triunfo sobre a morte. — Em vista da
evolucáo da piedade crista, Julgamos que nSo se deve insistir hoje com
demasiada énfase sobre os efeitos corporals da recepcio da S. Eucaristía
na vida presente. (Nota do tradutor).

2 A tricotomía "corpo (soma), alma (psyché) e espirito (pneuma)"


é de origem paulina; cf. 1Ts 5,23. Tem origem na filosofía platónica. A
teología católica, baseada no aristotelismo, distingue apenas corpo e alma,
sendo a alma espiritual e sede das faculdades esplrituais do homem (intelecto
e vontade). (Nota do tradutor).

— 4 —
MISTERIO DA FÉ

de Cristo no sacramento e manifestam a natureza e os efcitos


da mesma. Neste artigo nao falaremos de milagres de curas
realizadas pela Eucaristía. Ainda recentemente foram colecio-
nados alguns testemunhos a propósito na obra de A. Enge,
O sangue do Cordeiro cura o universo, Miláo, 1983. Também
nao se deve esquecer que o momento culminante e decisivo de
muitos milagres físicos, psíquicos e espirituais registrados em
Lourdes é o da Comunháo ou o da procissáo com o Santissimo
em meio dos doentes. — Ñas páginas subseqüentes considera
remos os milagres que evidenciam a realidade da presenta de
Cristo oculta sob os sinais da Santa Ceia.

Há tempos, foi tragado um 'mapa eucaristico', que regis


tra o local e a data de mais de cento e trinta milagres, metade
dos quais ocorridos na Italia. Escolhemos dentre estes sete,
distribuidos pelo Norte, o Centro e o Sul do país, ... milagres
verificados no arco de um milenio, isto é, de 700 a 1700. Sele-
cionamo-los dentre os mais bem documentados e os mais elo-
qüentes, visto que nao há para todos, como se compreende, um
abono de provas históricas e científicas igualmente rigoroso e
persuasivo.

No passado as peregrinacóes se dirigiam quase exclusiva


mente aos túmulos dos Apostólos e dos mártires ou aos san
tuarios marianos; eis, porém, que, a partir do século XIX, o
mapa geográfico da piedade popular itinerante inclui também
os santuarios eucarísticos. A primeira peregrinagáo eucarística
ocorreu na Páscoa de 1874: teve como inspiradora Santa Maria
Marta Emilia Tamisier (a quem se deve também a iniciativa
dos Congressos Eucarísticos internacionais) e como termo de
chegada o santuario de Avinháo (Franga), no qual o SS. Sa
cramento era exposto dia e noite em recordagáo do prodigio
verificado em 1443, quando urna endiente poupou o altar e
os espagos adjacentes da cápela da Confraria dos Penitentes
Cinzentos.

Dadas a explosáo do turismo de massa e a nova demanda


religiosa, os santuarios eucarísticos estáo sendo objeto de cres-
cente interesse.

3. Um rápido percurso

Tornemo-nos, também nos, peregrinos através da Italia,


iniciando a nossa caminhada ideal na cidade que é definida por
antonomasia como «a cidade do SS. Sacramento»: Turim.
6 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 278/1985

Nesta, entre outras coisas, realizaram-se o II e o XIV Con-


gressos Eucarísticos Nacionais Italianos, respectivamente em
1894 e 1953.

3.1. Em Turim

Se o ano de 1453 assinala a queda do Imperio Romano


do Oriente, com a tomada de Bizáncio por parte de Maomé II,
no Ocidente, e precisamente na Alta Italia, registrava-se urna
guerra furiosa em disputa do Ducado de Miláo. Francesco
Sforza, um dos contendentes, solicitou em seu favor a inter-
vengáo de Renato, duque de Ánjou e de Lorena.

Renato foi vencido em batalha muito sangrenta, após a


qual os piemonteses saquearan! as residencias da cidade; che-
garam entáo á igreja, e forcaram o tabernáculo. Tendo reti
rado o ostensorio de prata, no qual se guardava o corpo do
Senhor, ocultaram-no dentro de urna carruagem juntamente
com outros objetos roubados, e dirigiram-se para Turim.

Crónicas antigás referem que, na altura da igreja de


S. Silvestre, o cávalo parou bruscamente a carruagem — o que
ocasionou a queda, por térra, da presa capturada. Dizem que
entáo o ostensorio se levantou nos ares «com grande esplen
dor e com raios que pareciam os do sol». Os espectadores
mandaram logo chamar o bispo da cidade, Ludovico Romag-
nano; este foi processionalmente ao lugar do prodigio. Quando
chegou, «o ostensorio caiu por térra, ficando o corpo do Se
nhor nos ares a emitir raios refulgentes». O Bispo, diante dos
fatos, pediu que lhe levassem um cálice (identificado pela tra-
digáo com aquele que se conservava na catedral de Turim até
a última guerra). Dentro do cálice, desceu a hostia, que foi
levada para a catedral com grande solenidade. Era o dia 9 de
junho de 1453.

Existem testemunhos contemporáneos do acontecimento


(Atti Gapitolari de 1454 a 1456). No século seguinte, a Cá
mara Municipal mandou construir urna cápela ou oratorio
sobre o lugar do milagre. O oratorio foi destruido para ceder
á construgáo da igreja de «Corpus Domini» (1609), que até
hoje atesta o prodigio.

É difícil reconstituir com plena objetividade um aconteci


mento táo distante no tempo. O mais recente pronunciamento
de um grupo de historiadores designados pela autoridade dio-

— 6 —
MISTERIO DA FÉ

cesana (1977) sustenta — talé a posigáo minimista — que


«nao se pode negar... o fato de urna descoberta da Euca
ristía, tida pelos contemporáneos como milagrosa e digna de
culto».

3.2. Etn Ferrara

Se de Turim nos deslocamos para Ferrara, verificaremos


que o milagre eucaristía) de que é testemunha a basílica de
S. Maria in Vado se funda nao só sobre depoimentos históri
cos, mas também sobre dados empíricos.

Estamos no século XH, atormentado pelas doutrinas de


Berengário de Tours (t 1088), que negava a real presenca de
Cristo na Eucaristía. Aos 28 de margo de 1171, o Padre Pe
dro de Verona, assistido por tres outros sacerdotes, celebrava
a Missa de Páscoa; no momento de partir o pao, a hostia se
transformou em carne, da qual saiu um fluxo de sangue, que
atingiu a parte superior do altar, na qual ainda hoje existem
manchas visiveis da cor do sangue.

Os documentos que atestam tal milagre, eram até alguns


anos atrás um 'Breve' do Cardeal Migliorati (1404) e a Bula
de Eugenio IV (1442), cujo original foi encontrado em Roma
em 1975. Mas a descoberta mais importante deu-se em 1981,
quando se encontrou um manuscrito de Londres datado de
1197 — vinte e cinco anos depois do milagre —, no qual se lé
que em Ferrara, no dia de Páscoa, a hostia se transformou
em carne. Á documentacáo histórica, sustentada por ininter-
rupta tradigáo e por documentos insofismáveis, seria para dese-
jar que se acrescentasse a prova científica ou o exame químico
dos restos de sangue; há cerca de trinta anos, isto foi solici
tado á autoridade competente, a qual, porém, nao o concedeu,
dado o caráter sagrado de tais resquicios do acontecimento.

Todavia a prova científica ocorreu repetidamente no caso


de um dos mais famosos milagres eucaristicos: o de Sena.

3.3. Em Sena

Transportamo-nos para o centro da Italia, onde entramos


em Sena, patria de Santa Catarina. Aqui, na basílica de Sao
Francisco, durante a noite de 14 para 15 de agosto de 1730,
foram jogadas no chao 223 hostias por malvados desconheci-
8 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 278/1985

dos, que queriam apropriar-se do ciborio de prata no qual elas


se achavam. Dois dias depois, as hostias foram encontradas
numa caixa de esmolas, misturadas com dinheiro, poeira e teias
de aranha. Oportunamente reconhecidas e limpadas, foram as
hostias solenemente levadas de novo para a basílica de Sao
Francisco; ninguém as consumiu, fosse em consideragáo da
prodigiosa descoberta, fosse por motivos higiénicos.

O milagre nao tardou a evidenciar-se, visto que, com o


passar do tempo, as hostias nao apresentavam sinal algum de
decomposicáo.

No inicio do sáculo XX, foram realizados repetidamente


os mais diversos exames químicos, dos quais se tiraram as
seguintes conclusóes;

— trata-se de pao em perfeito estado de conservagáo;


— tal conservagáo, que hipotéticamente comega em 1730,
foi bem acompanhada no arco dos anos que se sucederam entre
um exame e outro; por conseguinte, o milagre é tal, ao menos
a partir do primeiro exame científico, que data de 1914. A
contra-prova foi efetuada com hostias de confecgáo recente e
nao consagradas: verificaram-se nestas últimas, em lapso de
tempo muito menor, os habituáis sinais de deteriorizacáo quí
mica, ao passo que as hostias do milagre conservaran! a natu
ral composigáo do pao.

3.4. Ainda em Sena

Sena foi também o berco de outro milagre eucarístico,


atualmente celebrado em Cascia, patria de Santa Rita. Em
1330, pediram a um sacerdote que morava ñas proximidades
de Sena, fosse levar o viático a um enfermo. Procedendo de
maneira apressada e irreverente, o padre colocou a partícula
no Breviario e foi 'á casa do doente. No momento da Comu-
nháo, abriu o Breviario e verificou que a hostia, liquefeita e
quase reduzida a sangue, tinha manchado as páginas do livro.
Apressou-se entáo a entregá-la a um frade agostiniano de
Sena, o qual levou para Perúgia a página manchada de san
gue e para Cascia aquela á qual a hostia ficara presa: a pri-
meira perdeu-se em 1866 com a supressáo das Ordens Reli
giosas; mas a 'reliquia Corporis Domini', como foi chamada, é
atualmente venerada na basílica de Santa Rita.

— 8 —
MISTERIO DA FÉ

3.5. Em Orvieto

Retrocedendo no tempo, deparamo-nos com outro milagre


eucarístico, muito conhecido por ter sido perpetuado pelo pai
nel de Raffaello Sanzio nos Museus do Vaticano.

Em resposta as heresias cátaro-patárias, que negavam a


presenga real, a bem-aventurada Juliana de Cornillon (t 1258)
recebeu do próprio Cristo, em revelagóes particulares, a ordem
de conseguir a introdugáo da festa de «Corpus Domini» no
calendario da Igreja. De Liége (1246), diocese a qual perten-
cia Juliana, a festa se estendeu a toda a Igreja (1264), por
obra de Tiago de Troyes, arquidiácono daquela cidade, que se
tornou Papa com o nome de Urbano IV. Este se encontrava
em Orvieto, onde ele assinou a Bula «Transiturus» (8 de setem-
bro de 1264), relativa ao Corpus Domini, no ano seguinte a
um fato milagroso.

Com efeito. Um sacerdote chamado Pedro de Praga, ator


mentado por dúvidas sobre a real presenga eucaristica, tinha
empreendido urna peregrinagáo a Roma; deteve-se entáo em
Bolsena (1263), onde celebrou a Missa. No momento da con-
sagragáo, a hostia destilou sangue, que se espalhou pelo cor
poral, pequeña toalha que se estende sobre o altar durante a
celebragáo da Eucaristia. A reliquia foi levada a Orvieto aos
19 de junho de 1264, e esta guardada na catedral, na cápela
do Corporal.

3.6. Em Offida

Aproximamo-nos do Sul, detendo-nos primeiramente em


Offida, urna aldeia das Marcas, nao longe de Lanciano. Nesta
cidade, no ano de 1273 urna hostia consagrada se transformou
em carne sangrenta sob o olhar estupefato de urna devota im
prudente, chamada Ricciarella Stasio; esta, por sugestáo de
urna feiticeira, fínha empreendido práticas supersticiosas com
a Eucaristia. A hostia transformada em carne, um pedago de
telha cóncava que recolheu o sangue e a toalha que envolveu
urna e outra, foram... entregues ao frade agostiniano Gia-
como Diotallevi, de Offida. Desta maneira é que as reliquias
eucarísticas chegaram a Offida, que as conserva em preciosos
relicarios.

9
^0 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 278/1985

Também no tocante a este milagre os testemunhos histó


ricos sao numerosos e ácima de qualquer dúvida, mas nao nos
consta tenha havido exames de laboratorio.

Offida, como notamos, lembra Lanciano.

3.7. Em Lanciano

Nesta cidade, cinco séculos antes tinha-se verificado o mi


lagre eucarístico mais antigo e clamoroso que se conhega na
historia da piedade crista.

Estamos em data nao claramente definida do século VIII.


Um monge da Ordem de Sao Basilio estava celebrando na
igreja dos santos Degonciano e Domiciano. Terminada a con-
sagragáo, que ele realizara provavelmente em estado de dúvi-
das interiores, senáo de incredulidade, a hostia transformou-se
em carne e o vinho em sangue depositado dentro do cálice.
Ao ver isto, o monge, perturbado e atónito, procurou ocultar
o fato; mas, depois, reagindo á emocáo, manifestou-o aos fiéis,
que, feitos testemunhas do milagre, espalharam a noticia pela
cidade. — O exame das reliquias, segundo criterios rigorosa
mente científicos, ocorrido pela última vez em 1970, levou aos
seguintes resultados muito significativos:

1) A hostia, que a tradigáo diz ter-se transformado em


carne, é realmente constituida por fibras musculares estriadas,
pertencentes ao miocardio. Acrescente-se que a massa sutil de
carne humana que foi retirada dos bordos, deixando um am
pio vazio no centro, é totalmente homogénea. Com outras pala-
vras: nao aprésente lesóes, como os apresentaria se se tratasse
de um pedaco de carne cortada com urna lámina.

2) Quanto ao sangue, trata-se de genuino sangue hu


mano. Mais: o grupo sanguíneo a que pertencem os vestigios
de sangue, o sangue contido na carne e o sangue do cálice
revelam tratar-se sempre do mesmo sangue do grupo AB.
Este é também o grupo que o Prof. Pierluigi Baima Bollone,
da Universidade de Turim, identificou na Sagrada Mortalha
(ver 'Sulla Sacra Sindone il sangue di un vero uomo', em L'Os-
servatore Romano, de 12/01/83).

3) Apesar da sua antigüidade, a carne e o sangue se


apresentam com urna estrutura de base intata e sem sinais de
alteracóes substanciáis; este fenómeno se dá sem que tenham

— 10 —
MISTERIO DA FÉ 11

sido utilizadas substancias ou outros fatores aptos a conservar


a materia humana, mas, ao contrario, apesar da agáo dos mais
variados agentes físicos, atmosféricos, ambientáis e biológicos.

A linguagem das reliquias de Lanciano é clara e fasci


nante: verdadeira carne e verdadeiro sangue humano, na sua
inalterada composicáo que desafia os tempos; trata-se mesmo
da carne do coragáo, daquele coracáo do qual, conforme a fé,
jorrou o sangue que dá a vida.

4. Conclusóo

Independentemente dos aspectos e dos problemas peculia


res a cada um dos milagres eucaristicos, urna coisa é evidente.
Em conseqüéncia e através desses fatos, o público tem tido
— e ainda tem — a ocasiáo de penetrar a linguagem de um
Deus que se faz pao. No estudo desses fatos, a razáo — recor-
rendo a criterios históricos e científicos — desempenha um
papel importante, mas nao exclusivo. Na verdade, sao dois os
excessos a evitar, como nos lembraria Pascal: 'Excluir a razáo
e só admitir a razáo' ».

Sem comentario propriamente dito ao artigo de A. Gen-


tili atrás transcrito, desejamos citar outro artigo, desta vez
referente ao milagre de Lanciano apenas.

Escrito por Odoardo Linoli, traz o título «Sludio Istolo-


gico e Biochimioo sulle reliquie del miraoolo cucaristico di
Lanciano» e foi publicado na revista «Scienza e Fede» n' 7,
gennaio-aprile 1983, pp. 53-67.

O autor, citando vasta bibliografía, refere que as reliquias


eucarísticas de Lanciano foram submetidas a exame eclesiás
tico nos anos de 1574, 1637, 1770 e 1886. Em 1970-71, houve
exame científico de tres elementos, renovado, em parte, no ano
de 1981. O artigo exibe doze fotografías e um gráfico, que
muito ajudam o leitor a penetrar dentro da temática. Na base
das pesquisas realizadas sobre as reliquias do milagre euca-
rístico de Lanciano, O. Linoli afirma em conclusáo (p. 58):

— 11 —
12 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 278/1985

«1) A carne milagrosa foi identificada como CORACÁO, dados


os seus componentes miocárdicos, endocárdicos, vasculares hemáticos
e nervosos.

2) O sangue foi reconhecido como auténtico sangue, ainda


que profundamente modificado em seus aspectos, na base da identifi-
cacao da hemoglobina mediante cromatografía em carnada sutil.

3) Após identificacao serológica, pode-se dizer que a carne e o


sangue milagrosos pertencem á especie humana.

4) E idéntico ñas duas reliquias o grupo sanguíneo (AB), identi


ficado pelo método de Fiori e col. (19Ó3).

5) O trabado eletroforético das proteínas séricas, obtido por


concentracao do líquido resultante da liquefacto do sangue milagroso,
pode ser tído como normal; estSo-lhe presentes todas as devidas fracpes
proteicas na proporcao própria das pessoas sadias».

É realmente digno de nota o artigo de O. Linoli pela pre-


cisáo com que descreve as características anatómicas das reli
quias de Lanciano: o vocabulario técnico próprio da linguagem
médica significa que os pesquisadores nao se furtaram aos mais
exigentes criterios científicos para identificar as reliquias em
pauta. — Nao há dúvida, o milagre de Lanciano nao é de fé,
ou seja, nao é considerado pela Igreja como objeto de fé uni
versal, mas, como quer que seja, proposto em tais termos rigo
rosamente científicos, é algo que se impóe á considerado dos
estudiosos e dos fiéis em geral, deixando-lhes a pergunta
aberta: nao se pode dizer que, através de tal sinal, o Senhor
Jesús quis realmente indicar que Ele está presente sob as apa-
réncias do pao e do vinho?

— 12 —
Urna análise da

Participado da Isreja
na Átualidade Brasileira1
Em síntese: O presente artigo parte do principio de que o Reino de
Deus nSo é meramente invisivel nem simplesmente futuro, mas já comegou
e deve impregnar as estruturas da sociedade terrestre. É o que justifica as
¡ntervencdes da Igreja na vida pública sempre que estejam em jogo valores
éticos; nSo compete á Igreja manifestar-se sobre questSes técnicas de
economía ou adminislracio pública. No Brasil os pronunciamentos éticos
da Igreja lém sido relativamente freqüentes, dado que vivemos numa situacáo
de lensóes entre o homem e a máquina ou numa fase de utilitarismo pragmá
tico e hedonlsta: tenham-se em vista as declaracoes dos Bispos sobre o
divorcio, a defesa da vida (nascitura ou terminal), a distribuI5S0 e a posse
de térras, a escola particular... É de reconhecer, porém, que certas extra-
polacóes tém ocorrido da parte de algumas figuras do clero; entre estas,
seja assinalada a Teologia da Libertacfio em sua forma extremada.

Em vez de se excitarem divlsóes e rupturas, é para desejar que, nesta


hora difícil do Brasil, o diálogo entre a Igreja e o Estado contribua para
aproximar um e outro entre si, em vista de maior bem-estar espiritual e
temporal do povo brasilelro.

* * #

Quem considera a face do Brasil desde 1500 até nossos


dias, nao pode deixar de perceber o papel desempenhado pela
Igreja na historia do país. Esta fungáo se torna assaz rele
vante se levamos em conta os nossos tempos, guando mais
complexa parece tornar-se a atividade do clero no Brasil.
É precisamente tal análise que tencionamos empreender atra-
vés destas páginas.

Dividiremos a exposigáo em quatro partes: 1) Fundamen


tos doutrinários e tópicos históricos da missáo social da Igreja;
2) Implantacáo desses principios nos campos social e político
do Brasil contemporáneo; 3) Urna pergunta perplexa; 4) Con-
clusáo e perspectivas.

1 Conferencia proferida pelo Pe. EstévSo Bettencourt, O.S.B. na Escola


Superior de Guerra aos 23/06/84.

— 13 —
14 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 278/1985

1. Fundamentos doctrinarios e tópicos históricos


da missáo social da Igreja

1. O Evangelho diz que o Reino de Deus se assemelha a


um grao de mostarda, que, minúsculo como é, se torna urna
grande árvore depois de langado á térra (cf. Mt 13,31s). Esta
imagem descreve, a seu modo, a historia do Reino de Deus
iniciado por Jesús Cristo, e continuado pela Igreja que Ele
fundou; tal Reino só estará consumado no fim dos tempos
(cf. ICor 15,23-28), mas já se acha em realizagáo dinámica
desde as origens da pregagáo evangélica: a ordem, a harmonía,
a Vitoria sobre o mal, que caracterizan! o Reino de Deus, devem
implantar-se sempre mais neste mundo através dos séculos.

Esta verdade foi compreendida pelos antigos cristáos, prin


cipalmente depois que em 313 cessou a era das perseguigóes:
o Reino de Deus nao é simplesmente invisível, intimo e indi
vidual, mas é também visivel, manifestó e social. O mundo
material nao é mau, mas, criado por Deus, foi redimido por
Cristo quando Este redimiu o homem (microscosmos x ma-
croscosmos); por conseguinte, deve ser penetrado em suas
diversas áreas (social, política, económica, educacional...)
dieval conceberam o ideal da «Cidade de Deus».

2. Conscientes disto, os escritores da Igreja antiga e me


dieval conceberam o ideal da «Cidade de Deus».

Tal foi o caso de S. Agostinho (f 430), que de 413 a 426


escreveu os vinte e dois livros da obra «De Civitate Dei». Esta
constituí o primeiro esbogo de uma filosofía da historia, cujas
diretrizes se tornaram a base da oríentagáo da Igreja neste
mundo até o fim da Idade Media; S. Agostinho considera a
«Cidade de Deus» e a «Cidade do demonio» como duas realida
des que se acompanham mutuamente por todo o decorrer da
historia. Os livros «De Civitate Dei» tornaram-se uma das
obras mais lidas na antigüidade e na Idade Media, pois deles
temos 382 manuscritos ñas grandes bibliotecas da Europa.

As idéias de S. Agostinho contribuiram para que se for-


massem conceitos sempre mais apurados nos séculos posterio
res: os canonistas e teólogos medievais falavam de dois pode
res — o Sacerdocio e o Imperio — que se deviam entrelagar

— 14 —
A IGREJA NA ATUALIDADE BRASILEIRA 15

no regime da Cidade de Deus: ao Imperador tocaría a solici-


tude da ordem temporal inspirada pelos principios do Reino de
Deus; ao Papa competiría a construgáo do edificio espiritual
encarnado ñas estruturas da sociedade; ao Sumo Pontífice atri-
buia-se também o direito de se pronunciar sobre as realidades
temporais, desde que estivessem em causa os valores éticos.
Muito significativo é o episodio seguinte:

O rei Joáo sem Térra (1199-1216) da Inglaterra apelou ao


Papa Inocencio III (1198-1216) pedindo-lhe que julgasse entre
ele, Joáo, e o rei Filipe da Franca; este era senhor feudal de
Joáo no tocante as posses da Inglaterra no continente. O Papa
Inocencio III respondeu-lhe que nao pronunciaría julgamento
entre um senhor feudal e seu vassalo, mas sim sobre materia
em que pudesse entrar o pecado (ratione peccati): «Non enim
intendimus iudicare de feudo... sed decemere de peccato cuius
ad nos pertinet sine dubitatione censura quam in quemlibet
exercere possumus et debemus» (Inocencio III, Epistolae VII
42, PL 215, 326) ».

O Papa Bonifacio VIII (1294-1303) repetiría tal concep-


Qáo na bula Unam Sanctam de 1302. Cf. Denzinger-Schon-
metzer, Enchirídion Symbolorum et Definitionum n» 875 [469].

3. Saltando séculos, passamos para a historia do Brasil.

A íntima colaboracáo da Igreja e do Estado refletiu-se na


instituigáo dita «do Padroado» ou do «Vicariato regio». Com
efeito, desde 31/05/1493 os Papas, em bulas sucessivas até a
Cédula Magna de 1V06/1574, foram concedendo aos reís de
Espanha e Portugal numerosos privilegios sobre as térras das
Indias Ocidentais: assim lhes pertenceriam todos os dízimos da
Igreja, direitos patronais sobre as igrejas novas, direito de apre-
sentagáo dos prelados, dos abades e dos portadores de títulos
eclesiásticos...

O direito de padroado pertencia diretamente ao rei, que o


exercia por intermedio de um Conselho apropriado, o qual, por
sua vez, se valia das Audiencias estabelecidas ñas varias par
tes da América. Tais privilegios foram outorgados pelos Pon-

1 "N3o Intencionamos arbitrar a respeito de assuntos feudais..., mas, no


caso, discernir o pecado, que, sem dúvida, nos toca censurar, como nos
compete o direito e o dever de censurar qualquer pecado".

— 15 —
16 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 278/1985

tífices aos monarcas da península ibérica, porque se tratava de


reís profundamente católicos, aos quais a Santa Sé confiava o
encargo missionário em relacáo as novas térras, encargo que
os Pontífices nao poderiam desempenhar com recursos e apa
rato próprios.

Em conseqüéncia desse estado de coisas, entende-se a


estreita colaboragáo registrada entre a Igreja e o Estado no
periodo colonial de nosso país: pode-se dizer que nao somente
a Igreja a desejava, mas também o Estado a exigía (verdade
é que nem sempre com intencóes puramente religiosas). A cul
tura e a civilizacáo no Brasil nao foram implantadas senáo com
a iniciativa ou o auxilio dos missionários jesuítas, franciscanos,
capuchinhos, carmelitas, beneditinos, mercedários, agostinia-
nos..., além dos membros do clero diocesano. Os trabalhos
desses homens heroicos marcam tanto a vida do Brasil colo
nial que o imparcial historiador Capistrano de Abreu pode afir
mar: «É atrevimento escrever-se a historia do Brasil antes de
estar escrita a historia dos jesuítas».

Grande seria o número de figuras beneméritas que se pode


riam citar para ilustrar a participagáo dos clérigos na forma-
cáo da nossa cultura. Seja apenas mencionada a obra educa
dora que tocou, em primeiro plano, aos jesuitas, a tal ponto
que a expulsáo dos mesmos em 1759 por decreto do Marqués
de Pombal dividiu a historia do Brasil em duas fases: a pri-
meira, de ascensáo cultural; a segunda, de declínio e obscuran
tismo (como afirmou Pedro Calmon): «No Brasil (Pombal)
desorganizou o ensino existente, sem o melhorar, sequer subs-
titui-lo por outros sistemas que o suprissem. Fechados os cole
gios dos jesuítas, as aulas de filosofía e gramática, em grande
número, ainda em 1760, logo decairam e se encerraram» (Cal
mon, citado por Bihlmeyr-Tuechle, Historia da Igreja, vol. III,
Sao Paulo 1965, p. 413).

Atesta ainda o Pe. Galánti; «Era deplorável o estado das


escolas em todas as capitanías do Brasil; poucas existiam, e
estas exercidas por homens ignorantes. Nao havia sistema nem
norma para a escolha dos professores, e o subsidio literario
nao bastava para pagar o professorado público» (ib).

Em 1795 o governador do Maranháo, Fernando Antonio


Noronha, afirmava: «Nao era conveniente houvesse mais do
que a cadeira de gramática latina, ler e escrever, porque o

— 16 —
A IGREJA NA ATUALIDADE BRASILEIRA 17

abuso dos estudos superiores só serve para nutrir o orgulho


próprio dos habitantes...» A Cámara de Sabara pedirá em
1768 urna aula de cirurgia. E o procurador da Coroa, negan
do-a, respondeu «que se lembrava de ter lido que algumas das
nagóes européias se arrependeram, mais de urna vez, de artes
estabelecidas ñas suas colonias da América».

Lembremos outrossim as partes importantes que tocaram


ao clero nos movimentos pro-independéncia do Brasil colonial
e pro-aboligáo da escravatura.

4. Urna vez instaurada a República no Brasil (1889),


deu-se a separagáo da Igreja e do Estado. Com isto, é claro,
acabaram-se a lei do padroado e a colaboragáo oficial da Igreja
e do Estado na implantagáo do Reino de Deus. Todavía é de
notar que a Igreja foi beneficiada pela separagáo, visto que a
sufocava o Imperador movido pelos principios da Magonaria
(tenha-se em vista a Questáo Religiosa, 1872-1875). Nao ces-
sou, porém, a agáo evangelizadora da Igreja no período repu
blicano; mediante pregagáo e outras atividades apostólicas, o
clero contribuiu poderosamente para a ulterior construgáo da
nagáo brasileira, como atestava o Ministro das Relagóes Exte
riores, o Dr. Félix Pacheco, em 1924:

«Posso lembrar que aínda recentemente foram as pastarais dos


arcebispos e bispos que levantaram o espirito brasileiro á altura da
grave siluacao em que nos víamos envolvidos e precisávamos enfrentar
corajosamente».

E o Ministro salientava «essa continuagáo de nobre esforgo


do clero patricio sob a orientacáo esclarecida de seus chefes
supremos».

Vale a pena realgar de modo explícito aínda o nome do


Eminente Cardeal D. Sebastiáo Leme da Silveira Cintra, que
em 1931-2 se empenhou por introduzir na Constituigáo do Bra
sil os sinais mínimos da presenga do Reino de Deus em nossa
patria: o nome de Deus no cabegalho da Magna Carta, a ins-
trugáo religiosa ñas escolas, a assisténcia religiosa as Forgas
Armadas... e aos estabelecimentos oficiáis de internagáo cole-
tiva, a indissolubilidade do matrimonio. Foi também o patro
cinador do projeto de se colocar a estatua do Cristo Redentor
no Corcovado.
1& «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 278/1985

2. Atuacdo da Igreja nos campos social e político


do Brasil contemporáneo

1. Nos dois últimos decenios a atuagáo da Igreja no foro


civil tem-se feito sentir com particular intensidade, provocando
reacóes contraditórias. — O assunto é delicado e merece ser
tratado por etapas:

a) O que move as intervencóes da Igreja no foro civil, é


o aspecto ético das questóes sociais, como dito atrás; nao sao,
portante, as facetas técnicas da economía, da sociología, da
administracáo...;

b) Acontece que nos últimos tempos o aspecto ético tem


tomado formas novas: vem a ser ditado especialmente pelo con
futo entre a máquina (ou as coisas) e o homem. O pragma
tismo e o utilitarismo tentam nao raro desvalorizar a pessoa
humana (especialmente a menos aquinhoada física ou espiri-
tualmente) em favor da máquina ou das coisas, que, k pri-
meira vista, sao muito mais produtivas e interessantes do que
o ser humano. Ora toca á Igreja o dever — imposto pela sá
filosofía e pela fé — de defender o homem diante da má
quina, qualquer que seja a condicáo social ou intelectual desse
homem. A Igreja há de ser a porta-voz da dignidade humana
ou de auténtico humanismo, com todos os seus valores, ainda
que pouco utilitarios ou mesmo incómodos. É o que explica os
pronunciamentos da Igreja
— em favor da vida nascitura encerrada no seio materno.
O feto já é pessoa humana, pois desde a fecundagáo do óvulo
pelo espermatozoide há todos os elementos constitutivos de
novo ser sob forma embrionaria. Eliminá-lo redunda em homi
cidio cometido contra um indefeso, em burla das leis mais
rudimentares do convivio social;
— em favor da vida terminal, ameacada pela eutanasia
direta; nenhum homem está apto a julgar o valor ou desvalor
da vida de outrem;

— em favor da familia dilacerada pelo divorcio e por su-


cessivas unióes, das quais as maiores vítimas sao os filhos;

— em favor do planejamento familiar entregue á respon-


sabilidade dos cónjuges, sem imposigóes ou interferencias da
parte de qualquer autoridade. O lar é indevassável. O que
toca as autoridades govemamentais, é instruir ou esclarecer

— 18 —
A IGREJA NA ATUALIDADE BRASILEIRA 19

as populacóes, especialmente as mais carentes, a respeito da


explosáo demográfica e no tocante aos deveres da paternidade
responsável: ninguém deve colocar no mundo criangas que nao
possam receber digna educagáo;

— em favor do justo uso da térra, de modo a evitar espe-


culagóes financeiras que reduzam as familias mais humildes a
condicóes sub-humanas de miseria e abandono. Muito sabia
mente observava Paulo VI que em nossos dias os ricos se tor-
nam cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres;

— em favor da escola particular e do direito de educagáo


que compete soberanamente aos pais. O Estado tem, neste
particular, uma funcáo subsidiaria; compete-lhe ajudar os ca
sáis a cumprir seu dever de educar, mas nao o deve fazer de
modo a apagar a tarefa dos pais ou impor aos educandos uma
cosmovisáo ou ideología que os pais nao aceitem.

Empreendendo estas e semelhantes campanhas, a Igreja


tenciona fazer as vezes daqueles que nao tém vez nem voz.
Ela seria digna de censura se passasse ao largo de tais pro
blemas com indiferenca ou displicencia, pois Cristo quis iden-
tificar-se com todo homem sofredor e indigente (cf. Mt 25,
31-46) e recrimina aqueles que fríamente o contemplam fa-
minto, doente ou desnudo... Doutro lado, é inegável que
também seria digna de censura a Igreja, se se esquecesse do
seu dever primordial de pregar e tentar implantar no mundo
os valores definitivos, anunciando aos homens a palavra da
fé inseparável da vida sacramental. Foi precisamentne para
escalonar estas duas tarefas — a de ordem espiritual e defi
nitiva e a do plano temporal — que o S. Padre Joáo Paulo II
escreveu importante carta aos Bispos do Brasil em 10 de
dezembro de 1980:

«£ certo que a míssáo da Igreja nao se confina ñas atividades


de culto e no interior dos templos... Mas nao é menos certo que a
Igreja perdería sua identidade mais profunda — e, com a identidade,
a sua credibilidade e a sua eficacia verdadeira em todos os campos —
se sua legítima atencáo as quest&es sociais a distraisse daquela missao
essencialmente religiosa que nao é primordialmente a construcáo de
um mundo material perfeito, mas a edificacáo do Reino que comeca
aquí para manifesfar-se plenamente na Parusia. Muitas outras instan
cias tém o objetivo, o dever e a capacidade de velar pelo bem-estar
das pessoas, pelo equilibrio social, pela promocáo da justica; a Igreja

— 19 —
20 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 278/1985

nao se esquiva á sua participacao nessa tarefa e assume com freqüén-


cia mesmo atividades de suplencia. Nao pode fazé-lo, porém, em
detrimento da missáoque é sua e que nenhuma outra instancia realizará
se efa nao fizer: transmitir, como depositaría auténtica, a Palavra
revelada; anunciar o Absoluto de Deus; pregar o noroe, o misterio, a
pessoa de Jesús Cristo; proclamar as bem-aventurancas e os valores
evangélicos e convidar á conversao, comunicar aos homens o misterio
da Graca de Deus nos sacramentos da fé e consolidar esta fé — em
uma palavro, evangelizar e, evangelizando, construir o Reino de Deus.
A Igreja cometería uma traicao ao homem se, com as melhores inten-
góes, Ihe oferecesse bem-estar social, mas Ihe sonegasse ou Ihe desse
escassamente aquilo a que mais aspira (por vezes até sem o perceber),
«quilo a que tem direito, que espera da Igreja e que só ela Ihe pode
dar» (n* 1).

2. Nao há dúvida, no seu afá de defender a pessoa hu


mana alguns eclesiásticos tém cedido a atitudes extremadas,
extrapolando das suas funcóes. Embora se Ihes possam atri
buir boas intengóes, nem sempre sao felizes em seus pronun-
ciamentos e gestos.

3. Em outros casos, parecem os Bispos estar divididos


entre si, pois se manifestam de maneira aparentemente con
traditória. A propósito observamos:
a) Nao se trata de divergencias no tocante a fé ou as
linhas essenciais da Moral católica, mas, sim, de divergencias
no plano disciplinar ou, melhor, no plano sócio-político-eco-
nómico.
b) Estas divergencias bem se entendem se recorremos a
uma imagem: quando a luz de um semáforo é verde, todos os
interessados entendem unánimemente que podem avangar;
quando é vermelha, também entendem que devem estacionar.
Mas, quando é amarela, surgem hesitagóes; há aqueles que,
por prudencia, se recusam a ultrapassar, receando ser vitimas
de um desastre, como há aqueles que, também por prudencia,
ousam avancar receando prejudicar o seu roteiro futuro (a pru
dencia nao é mera virtude de recuo). Pode-se perguntar quem
tem razáo: os que se detém ou os que avangam? — Ninguém
está habilitado a responder; apenas se pode dizer que, por
baixo de atitudes contraditórias, existe a mesma virtude de
prudencia: os que ficam, fazem-no por prudencia; os que se
váo, podem estar agindo também por prudencia. Esta é a vir
tude mais subjetiva que existe: depende da escola, da expe
riencia de vida, da idade, do temperamento ... de cada. um.

— 20 —
A IGREJA NA ATUALIDADE BRASILEIRA 21

Ora podemos dizer que a situagáo sócio-politica do Brasil


contemporáneo é táo complexa e polivalente que se asseme-
lha á de um semáforo de luz amarela: enquanto alguns cicUt-
dáos (inclusive Bispos) por prudencia dizem Sim ao Governo,
outros cidadáos por prudencia dizem Nao ao mesmo. Nao dis
cuto o valor objetivo dessas posigóes contraditórias; apenas
desejo considerar o aspecto subjetivo das mesmas. Há, pois,
urna intengáo básica comum em nossos Bispos, mas há tam-
bém diversos modos prudenciáis de por em prática essa inten-
gáo comum.

4. Neste contexto nao podemos deixar de fazer alusáo á


Teología da Libertagáo.

Esta é urna cosmovisáo inspirada a alguns teólogos pela


situagáo socio-económica da América Latina e dos países do
Terceiro Mundo em geral. Os seus principáis representantes
sao o peruano Gustavo Gutiérrez, o uruguaio Juan Luís Se
gundo, os brasileiros Hugo Assmann, Leonardo e Clodovis Boff,
o salvadorenho Jon Sobrino, o chileno Pablo Richard... Dentro
da vasta corrente da Teología da Libertagáo, há diversos mati-
zes; vamos propor a forma mais extremada da mesma, que
assim pode ser resumida:

A primeira etapa do raciocinio é a do VER. Este con


siste numa análise da sociedade latino-americana realizada
segundo os principios do marxismo. Isto resulta em dizer que
a sociedade consta de opressores e oprimidos postos em luta
recíproca. Nao há quem se possa dizer neutro diante do con-
flito, que tem em mira a posse dos bens de producto.

Julgada segundo os criterios do Evangelho, numa segunda


etapa do raciocinio, tal situagáo se apresenta como iníqua. Os
teólogos da libertacáo evocam a propósito os textos bíblicos do
Éxodo, que apresentam o povo de Deus cativo no Egito e me
recedor da comiseragáo do Senhor Deus. Citam também os
profetas bíblicos (especialmente Amos), que censuram os pode
rosos e ricos de Israel, objeto da justiga punitiva de Deus.

Em terceira instancia, o raciocinio concluí que é preciso


partir para a praxis ou a agáo. Esta nao pode consistir em
fomentar o desenvolvimento, como se fazia na década de 50
(pois este terá contribuido apenas para favorecer os privilegia
dos), mas se identifica com a agáo transformadora da socie-

— 21 —
22 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 278/1985

dade ou com a mudanga das estruturas, que pode tomar even-


tualmente as características da agáo revolucionaria. Para
fundamentar este processo transformador, os teólogos da liber
tagáo procedem a urna re-leitura dos Evangelhos, de modo a
descobrir em Jesús Cristo o prototipo e mestre da nova praxis
social; a fé seria o compromisso político; o pecado seria a
recusa do engajamento político; a Igreja seria a comunidade
dos pobres dispostos a lutar por seus direitos de ordem tempo
ral; a Eucaristía, a ceia fraterna dos pobres... A releitura
assim instituida implica adaptagáo da mensagem crista ao pro
grama da transformacáo social, a tal ponto que, segundo os
referidos teólogos, o criterio da verdade é a forga transforma
dora de urna proposigáo: as proposigóes religiosas sao julgadas
á luz das normas sócio-políticas. Urna proposigáo que nao
incida diretamente sobre a transformacáo da sociedade, é alie
nante e deve ser desprezada.

Numa palavra, diríamos: a teología clássica ou simples-


mente dita parte da Palavra de Deus revelada (o logos); apro-
funda o conteúdo desta e deduz as conseqüencias praticas da
mesma na Ética (Ética individual e Ética social). É precisa
mente esta apresentacao das conseqüencias praticas sociais da
mensagem evangélica que as encíclicas papáis propóem, cons-
tituindo o que se chama «a doutrina social da Igreja». — Ao
contrario, a teología da libertagáo parte da realidade sócio-eco-
nómica (e nao da Palavra de Deus); deduz dai a necessidade
da praxis transformadora e, por último, formula o logos ou a
doutrina da fé. Por causa disto, este sistema de pensamento
já nao merece a qualificagáo de teología, que é sempre
fides quaerens intellectum (a fé que procura compreender).

Como sabemos, o S. Padre Joáo Paulo II em suas alo-


cucóes feitas no México e no Brasil condenou claramente tal
cosmovisáo, enfatizando especialmente que é inepto e falso o
uso da análise marxista na elaboragáo da teología. Podemos
dizer que a teología da libertagáo, em seu sentido extremado,
nao sonriente nao representa o pensamento oficial da Igreja,
mas vem a ser a traigáo do mesmo: usando palavras do voca
bulario da fé, atribui-lhes sentido oposto áquele que o Evan-
gelho e a Igreja sempre lhes atribuiram.

5. Quanto á Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil,


notemos o seguinte: a direcáo da CNBB nao tem jurisdigáo
sobre as dioceses ou sobre os Bispos em particular; com outras
palavras: a CNBB nao é urna instancia superior que medeie

— 22 —
A IGREJA NA ATÜALIDADE BRASlLEIRA 23

entre cada Bispo e o Papa, mas cada Bispo responde direta-


mente ao Papa no tocante ao governo da sua diocese. A CNBB
toca apenas o papel de facilitar o intercambio entre os Bispos,
promover a sua unidade de acáo, suprir as deficiencias de pes-
soal ou de material que afetem alguma diocese.

Por isto os pronunciamentos dos Bispos da cúpula da CNBB


nao exprimem necesariamente o modo de pensar do episco
pado brasileiro; pode haver Bispos que legítimamente discor-
dem de tais declaragóes.

Mais: notemos que a Igreja nao é a soma dos homens que


a compóem, mas é, como diz Sao Paulo, «o corpo de Cristo»
(cf. ICor 12,12-27; Cl 1,24). Isto quer dizer que, por detrás
da face humana da Igreja, existe o Cristo indefectivelmente
presente atuando através dos homens que Ele chama a si;
mesmo quando os homens falham, o Cristo continua presente
em sua Igreja e assegura a esta a eficacia da sua acáo santi-
ficadora. É esta certeza que transmite aos fíéis católicos con-
fianca no presente e no futuro da Igreja; para o cristáo, des-
dizer á Igreja ou trai-Ia seria o mesmo que, para um peixinho,
sair da agua onde nasceu, a título de «tornar-se mais e melhor
ele mesmo». A propósito diz muito sabiamente o Concilio do
Vaticano II:

«A Igreja avanea peregrina, anunciando a cruz e a morle do


Senhor até que Ele venha (ICor 11,26). Mas é fortalecida pela
forca do Senhor ressuscitado, a fien de vencer pela paciencia e o amor
suas aflicoes e dificuldades tanto internas quanto externas, e poder
revelar ao mundo o misterio de Cristo, embora entre sombras, mas com
fidelidade, até que no fim seja manifestado em plena luz» (Const.
Lumen Genlium n» 8).

«Licet sub umbris, fideliter tomen... Embora entre som


bras, mas com fidelidade...» Estas palavras caracterizam
bem o que chamamos «o misterio da Igreja», humana e pere
grina, mas, ao mesmo tempo, divina e indefectível no essen-
cial da sua missáo.

Passemos agora a urna pergunta.

3. «Revolugcto na lgre¡a?»

O jornal «A Folha de Sao Paulo», em sua edigáo de 18 de


junho de 1984, pág. 4, publicou um artigo intitulado «Revolu-
gáo na Igreja?» da autoria do Prof. Luciano Martins, soció-

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24 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 278/1985

logo, pesquisador na Escola de Altos Estudos em Ciencias So-


ciais de Paris. Este autor parece reproduzir a mentalidade de
muitos que de longe acompanharam a recente atuagáo da Igreja
no Brasil (Luciano Martins diz que foi aluno do Colegio Santo
Inácio «século atrás» e nao mais freqüenta a Igreja). Eis por
que lhe reservamos um espago próprio nesta nossa exposigáo.

O autor, que nao é perito em assuntos da Igreja, diz co-


lher suas informacóes num artigo redigido por Thomas Sheehan
(fievolution in the Ghurch) e publicado por New York Review
of Books, 16/06/84.

As premissas da explanagáo de Luciano Martins estáo


resumidas no seu primeiro parágrafo:

«As transformacoes ñas atitudes da Igreja Católica tornaram-se


visíveis, de uns lempos para cá, sobretudo no plano do seu engaja-
mentó social e político (além das modificacoes na liturgia). Sempre
me perguntei... quais seriam as verdadeiras raizes sociológicas desse
fenómeno- Agora surgiu urna pista... e, junto com ela,... urna
extraordinaria sorpresa: a descoberta de que ha uma fantástica re-
visáo histórica em curso, no seio da própria lgre¡a, sobre a vida, os
feitos e os ditos do personagem Jesús Cristo. Uma verdadeira revolucáo
cultural, por assim dizer, que nega, póe em dúvida ou reformula
alguns dos milenarmenle difundidos artigos de culto, se nao de fé.
Face a essa revisño, as ousadias da teología da libertacao, que tanta
celeuma tém causado, tornam-se de uma modestia franciscana».

A seguir, o autor expóe os pontos que seriam o objeto da


revolucáo cultural: Jesús nunca se teria considerado a 2* Pes-
soa da SS. Trindade nascida na carne humana; nem pretendía
ser o Messias ou fundar a Igreja confiada a Pedro, nem terá
ressuscitado dos mortos. Estas verificagóes ¡novadoras teráo
decorrido do «emprego de métodos científicos no exame do
texto sagrado» dos Evangelhos — o que é «uma aparente con-
tradigáo em termos». O fato é que, segundo Luciano Martins,
a Igreja, abalada em sua fé tradicional, procurou ocupar o
lugar da mesma com atividades socio-políticas; estas teráo sido
valorizadas para compensar o esvaziamento dos artigos do
Credo.

As insinuagóes de Luciano Martins, que podem ter calado


no grande público, sugerem as seguintes reflexóes:

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A IGREJA NA ATUALIDADE BRASILEIRA 25

A Biblia é um livro divino-humano. Por ser humano, esse


livro deve ser examinado segundo os criterios da lingüística
oriental antiga, da arqueología, da historia... Ora estas cien
cias tiveram surto ou tomaram vulto especialmente no sé-
culo XX. Em conseqüéncia, foi possível reler a Biblia com mais
luminosidade e penetracáo: disto se deduziram muitas conclu-
sóes novas e sabias, como, por exemplo, as que se referem a
criagáo do mundo, do homem, ao diluvio, etc. Nisto nada há de
estranho, nada que contradiga ao caráter sagrado das Escri
turas: a Biblia há de ser estudada científicamente, sim, como
também penetrada pelo olhar da fé. Muitos autores, porém,
católicos ou liberáis protestantes, tém formulado conclusóes
hipotéticas, que destoam da reta fé; tais conclusóes nunca fo-
ram adotadas pela Igreja Católica, que continua inabalavel-
mente a professar a Divindade de Jesús Cristo, a sua ressur-
reigáo dentre os mortos, a fundagáo da Igreja entregue por
Cristo a Pedro, etc. Por conseguinte, nao se pode falar de
«revolugáo cultural» dentro da Igreja; nao houve mudanga do
Credo nem dos principios éticos do catolicismo, mas houve,
sim, aprofundamento e melhor compreensáo das perenes ver
dades da mensagem crista.

A atuagáo prática da Igreja no campo social há de ser


entendida simplesmente como tentativa de aplicar coerente-
mente as normas moráis do Evangelho á realidade de nossos
tempos; novos e complexos problemas sociais sugeriram novas
atitudes da parte da Igreja Católica, especialmente na Amé
rica Latina, que é um campo intensamente visado por ideo-
logias diversas.

4. Conclusóo

Encerrando esta exposigáo, resumiremos nosso pensamento


em tres ítens:

1) Á Igreja toca o direito e o dever de considerar a


ordem temporal ou das realidades terrestres nao para substi
tuir ou sobrepor-se aos técnicos e especialistas, mas para fazer
as vezes de consciéncia moral da sociedade ou para avivar
(e nao permitir seja sufocada) aquela voz que fala no íntimo
de todo homem bem formado, em favor da justiga, do altruismo
e do senso de fraternidade; compete-lhe contrabalangar a ten
dencia que faz do homem um lobo para o homem (homo homini
lupus). Tal tarefa é dura e, as vezes, pouco simpática, mas a

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26 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 278/1985

Igreja a quer executar com fidelidade e amor, como servigo


prestado aos homens. A justiga, a fraternidade, a mutua com-
preensáo vém a ser notas constitutivas do Reino de Deus, que
a Igreja deve anunciar e promover neste mundo. Se nao se
interessar por elas, a Igreja trairá o Cristo e o homem.

2) A Igreja também trairia o Cristo e o homem se nao


anunciasse e transmitisse os valores espirituais da fé e da graca
ou se nao os transmitisse em primeira instancia, no desempe-
nho de urna tarefa que é específicamente sua. Por conseguinte,
deve haver urna escala de fungóes, sendo a missáo espiritual e
transcendental prioritaria nos horizontes da Igreja.

3) Reconhecemos que, na exec.uc.ao concreta da tarefa


de ordem ética e temporal, nao é fácil discernir os ditames da
auténtica prudencia, de tal modo que, em certos casos, os ho
mens da Igreja podem ter sido infelizes em seus pronuncia-
mentos e gestos.

Suposta boa intencáo da parte do Estado e da Igreja, o


diálogo pode contribuir para dissipar equívocos e conscrtar as
fainas. É do interesse do povo brasileiro que as autoridades
civis, militares e religiosas colaborem entre si, visando a unir
forgas em atitude de complementaridade, e jamáis em hostili-
dade ou rixas. É esse entrelagamento de valores e essa soma
de potenciáis que preconizamos para o futuro do nosso Brasil.

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Refletindo...

Teología da Libertacáo: Ambigüidades

Em síntese: Os debates sobre Teología da Libertacáo (TL) tém sido


alimentados por equívocos ou ambigüidades; alias, repetidas vezes na histo
ria da Igreja verificou-se que as disputas teológicas eram fomentadas pelo
fato de que os contendentes falavam linguagem polivalente. Assim, por
exempio, julgam multos que a TL é a resposta crista á questáo social — o
que é falso, pols a TL envolve o marxismo, que é materialista e ateu.
Entendem multos que o pobre latino-americano pode ser identificado com
o proletario imaginado por Karl Marx, o que também é falso, pols o pobre
latino-americano é profundamente religioso, á diferenca do imaginario proleta
rio de Marx. Mals: urna teología que faga da praxis ou da acSo revolucionaria
o criterio para interpretar o Evangelho, já nBo é teología, mas urna doulrina
sócio-polltica que conserva rótulos de Cristianismo aptos a iludir o público.

Sao estas e outras ambigüidades que o artigo abaixo procura pdr em


relevo.

O tema «Teología da Libertacáo» (TL) está sempre em


foco... Quem considera os respectivos debates, nao pode dei-
xar de verificar que sao alimentados por equívocos e ambigüi
dades. Alias, também em outras épocas da historia da Igreja
as disputas teológicas foram freqüentemente entretidas por
equívocos. Assim, por exemplo, no sáculo IV os candentes
debates sobre o Arianismo1, que moviam as populares mais
simples ñas pracas públicas, eram favorecidos por termos-cha
ves utilizados ambiguamente: homo-ousios e homoi-ousios 2, gcn-

» Arianismo = doutrina de Ario de Alexandria, que, a partir de 315,


afirmava ser o Filho de Deus criatura do Pal ou "o segundo Deus".
Negava assim a Divindade do Filho ou do Logos.
2 Honto-ousios quer dlzer "da mesma substancia ou da mesma natureza". —
Homolouslos significa "de substancia ou natureza semelhante, e nao
Idéntica".

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28 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 278/1985

netos e gcnetós1, nikainon e nikenon2. Algo de análogo se


deu na controversia jansenista do sáculo XVII: aos 31/05/1653,
o Papa Inocencio XI, pela bula «Cum occasione», condenou
cinco proposigóes extraídas da obra «Angustinus» de Corné-
lio Jansénio. Os jansenistas, em resposta, reconheceram que o
Papa procederá corretamente, mas nao quiseram considerar-se
atingidos pela censura, pois diziam que o Papa condenara tais
sentengas supondo um sentido que Jansénio e os jansenistas
nao Inés atribuiam; conseqüentemente, o Papa tinha razáo e
os jansenistas também «tinham razáo»! Estes quiseram distin
guir entre «questáo de direito» e «questáo de fato»: diziam que
a Igreja é infalível ao decidir a respeito de urna doutrina teo
lógica tomada em si (é herética ou nao?), mas nao é infalivel
ao decidir sobre um fato concreto (terá tal teólogo efetiva-
mente professado tal doutrina herética?). Na base desta dis-
tincáo, as discussóes sobre o Jansenismo se prolongaram calo
rosamente mesmo após a sentenga condenatoria da Santa
Sé... De modo geral, podemos afirmar que muitas das rixas
ocorrentes entre os homens se devem a mal-entendidos e ambi-
güidades, que dificultam a auténtica compreensáo dos valores
postos em causa.

É em vista disto que vamos, ñas páginas subseqüentes,


fixar nossa atengáo sobre alguns tópicos da problemática da
TD, ponde em evidencia os equívocos que entretém a discussáo.

1. TL: a resposta crista á questáo social?

Todas as argumentares em prol da TL evocam sempre a


situacáo de injustiga social de que sao vítimas as populagdes
latino-americanas, e apresentam a TL como sendo a resposta
auténtica e necessária do cristáo a tal estado de coisas. Dir-
-se-ia que ser fautor da justica implica adotar a TL: quem nao
é partidario desta, parece ser insensivel á miseria de seus
irmáos. — Ora nisto há grave equívoco.

1 Gennetós significa "gerado, nascido". — Genetós quer dizer "felto,


criado".

2 Nikainon é Nlceno; deslgnava o Concilio de NIcéla que em 325 formulou


a doutrina ortodoxa. — Nikenon significa o Concillo de Nice, que em 359
professou a heresia ariana.

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A IGREJA NA ATUALIDADE BRASILEIRA 29

Nao existe cristáo que nao reconheca a necessidade impe


riosa de justa renovagáo da sociedade; o S. Padre Joáo Paulo II
tem apregoado insistentemente o respeito á pessoa humana e
aos seus direitos, tirando daí conclusóes concretas para a rees-
truturagáo da nossa sociedade. Todavía sabe-se que a TL nao
é a resposta crista para a problemática social, pois, infiltrada
pelo marxismo, nao pode ser solugáo evangélica. Existe, sim,
urna genuina resposta da fé ao desafio social... e esta se
chama «Doutrina Social da Igreja». Verdade é que alguns
menosprezam a esta, alegando que, por ser doutrina, nao é
praxis ou nao é acáo forte e eficaz; tal alegagáo é baseada em
premissas gratuitas, como veremos adiante.

A Doutrina Social da Igreja está contida ñas encíclicas


papáis que, desde a Rerum Novarum de Leáo XIII (1891) até
a Laboran Exercens de Joáo Paulo II (1981), tém considerado
a questáo social de maneira cada vez mais precisa. Encon-
tram-se nesses documentos as conclusóes éticas que decorrem
do Evangelho lido objetivamente; viver o Evangelho implica,
pois, atender a tais normas e procurar configurar as sociedades
nacionais e a comunháo entre os povos segundo tais princi
pios. A propósito ocorrem oportunas palavras do Papa Joáo
Paulo II aos Bispos do CELAM' reunidos no Rio de Janeiro
aos 2/07/1980:

«Na Conferencia de Puebla. . . eu vos fiz notar como a Igreja


nao necessita de recorrer a sistemas e ideologías para amar, defender
e colaborar na Hbertacdo do homem. Na variedade dos tratados e
correntes de libertacáo, é indispensável distinguir entre o que implica
urna reta concepcáo crista da libertacáo, em seu sentido integral e
profundo como anunciou Jesir, aplicando lealmente os criterios que
a Igreja oferece, e outras formas de libertando distintas e até confu
tantes com o compromisso cristao» (Pronunciamentos do Papa no
Brasil, Ed. loyola, n* 261).

Nao se poderiam pleitear palavras mais claras para des-


fazer o equívoco apontado.

2. TL e análise marxistes
A TL, ao verificar a situacáo de miseria das populagóes
latino-americanas, procura outrossim discernir as causas da
mesma, a fim de Ihes opor o remedio adequado. Ora, afirmam

CELAM = Conferencia Episcopal Latino-americana.

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30 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 278/1985

alguns teólogos que o instrumental científico para discernir tais


causas é o modo como Karl Marx analisava as injustigas sociais.
Para este pensador, a iniqüidade se deve ao íato de que alguns
poucos cidadáos detém em seu poder os meios de proüugáo; em
conseqüéncia, a massa da populagáo depende deles para conse
guir trabalho e ganha-páo. Haveria, pois, urna exploragáo dos
muitos pobres por parte dos poucos ricos. Ora a TL, extremada
taz seu este julgamento, tirando dele conclusoes concretas como
a necessidade de que os pobres lutem contra os ricos, a cano
nizado dos pobres e a condenagáo dos ricos, a coletivizagáo
dos meios de produgáo, etc.

Ora a tal propósito observamos:

1) É impossível assumir o método marxista de análise


da sociedade sem adotar conjuntamente a ideología e as demais
posigóes do marxismo. Todos os marxistas rejeitam a distin-
gáo entre análise marxista, de um lado, e visáo do mundo ou
os principios de agáo marxistas, de outro lado. Nao é possível
adotar a análise marxista sem aceitar o materialismo histó
rico e a estrategia da luta de classes generalizada. A análise
da sociedade deixaria de ser marxista se nao propugnasse o
materialismo ateu. — Os Bispos latino-americanos reunidos em
Puebla, fazendo eco a Joáo Paulo II, observaram a incon
gruencia de quem tenciona adotar «táo somente» a análise mar
xista para elaborar sua teología:

«Alguns créem possível separar diversos aspectos do marxismo,


em particular sua doutrina e sua análise. Recordamos, com o Magiste
rio pontificio, que seria ilusorio e perigoso chegar a esquecer o nexo
íntimo que os une radicalmente; aceitar os elementos da análise
marxista sem reconhecer suas relac.5es com a ideologia, entrar na prá-
tica da luta de classes e de sua inlerprelasáo marxista, deixando de
perceber o tipo de sociedade totalitaria e violenta a que conduz tal
processo.

Compre salientar aquí o risco de ideologizagao a que se expoe


a reflexao teológica, quando se realiza partindo de urna praxis que
recorre á análise marxista. Suas conseqüéncias sao a total politizacao
da existencia crista, a dissolucdo da linguagem da fé na das ciencias
sociais e o esvaziamento da dimensao transcendental da salvacao
crista» (Documento de Puebla 544s).

Verdade é que alguns teólogos da libertagáo nao reconhe-


cem esta proposigáo, alegando que o marxismo atual nao é um
bloco monolítico, mas admitem matizes variegados, como sao o

_ 30 —
A IGREJA NA ATUALIDADE BRASILEIRA 31

eurocomunismo, o pensamento de Gramsci, o de Togliati...


— Respondemos que, embora hoje em dia haja diversas face
tas de marxismo, elas proceden! todas das mesmas premissas
— materialismo e ateísmo —, que as impregnam visceralmente.
Tudo no marxismo supóe que o homem seja mera materia,
sem valores transcendentais; todas as conclusóes do marxismo
exprimem e impoem esta concep;áo errónea. Donde se vé que
é impossível construir algum sistema teológico bascado em pos
tulados do marxismo.

2) As diversas tentativas de associar marxismo e Cris


tianismo, seja de maneira teórica, seja de maneira concreta ou
prática, sempre redundaram na opgáo por uma das duas con-
cepgóes: muitos católicos que o tentaram, acabaram tornan-
do-se simplesmente ateus e marxistas; tal foi o caso, entre
outros, do famoso Pe. Giulio Girardi, professor universitario
em Roma. De resto, em nenhum pais católico onde o mar
xismo tenha sido implantado (como sao Cuba e a Nicaragua),
se nota alguma atenuagáo da índole anticristá do respectivo
regime. O marxismo pode propor aspectos conciliatorios com
a religiáo quando tenciona ascender ao poder; uma, vez, po-
rém, instalado no regime de uma nagáo, é sempre hipócrita
mente anti-religioso.

3) Se a análise marxista da sociedade fosse verídica ou


científica, ela atingiría o seu propósito, que é o de descobrir
as causas das injustigas sociais e contribuir para evita-las; ela
se prestaría á edificagáo de uma sociedade justa e fraterna.
Ora nao é isto que ocorre nos países em que o marxismo (com
sua análise da sociedade) foi implantado. Com efeito; sabe-se
que na Rússia Soviética existe uma élite, que é a classe «capi
talista e burguesa»: consta dos administradores e governantes
do pais, aos quais se dá o nome de Nomenklatura (cerca de
150.000 pessoas). Para estes cidadaos, existem privilegios rela
tivos á habitacáo, á compra de mercaderías, ao gozo de ferias,
ao tratamento hospitalar, etc. Para a grande massa, porém,
as condicóes de vida sao penosas, pois os direitos humanos e a
liberdade lhe sao cerceados; estáo sujeitos a duras discrimina-
góes, á marginalizagáo, as filas do mercado, aos campos de
concentragáo, aos «hospitais psiquiátricos»... A corrupto
dos governantes, a aquisigáo desonesta de privilegios e favo
res sao fatos notorios na U.R.S.S. Ver a respeito o livro de
Michael Voslenky: «A Nomenklatura. Como vivem as classes

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32 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 278/1985

privilegiadas na Uniáo Soviética» *. A propósito da Iugoslávia


notava algo de semelhante Milovan Djilas, ex-membro do Go-
verno nacional, em seu livro «A Nova Classe» (ed. Agir).
CL PR 265/1982, pp. 483-498.

As penosas condigóes de vida a que leva a instauragáo


de regime marxista, sao vivamente apontadas pela Instrugáo
Libertatis Nuntius (XI, 10):

«Um foto marcante da nossa época deve ocupar a reflexáo de


lodos aqueles que desejam sinceramente a verdadeira libertacao de
seus irmaos. Milhóes de nossos contemporáneos aspiram legítimamente
a reencontrar as liberdades fundamentáis de que estño privados por
regimes totalitarios e ateus, que tomaram o poder por caminhos revolu
cionarios e violentos, exatamente em nome da libertacao do povo.
Nao se pode desconhecer esta vergonha de nosso tempo-. pretendendo
proporcionar-lhes liberdade, mantém-se nacoes ¡nteiras em condicóes
de escravidáo indignas do homem. Aqueles que, talvez por incons
ciencia, se tornam cúmplices de semelhantes escravidóes, traem os
pobres que eles querem servir».

A escravizagáo de povos aos quais se prometeu a liberdade


e o bem-estar, é, nota o Documento, urna «vergonha de nosso
tempo».

4) É de notar ainda que nao se poderia esperar outro


resultado da aplicagáo dos principios marxistas: visando ape
nas as estruturas da sociedade, nao tocam o coragáo do homem,
que é precisamente o responsável pela prática da justiga e da
fraternidade; o marxismo se prende aos efeitos das injusticas,
e nao atinge as causas das mesmas; tais causas sao o egoísmo
e a selvageria do coracáo humano; se este nao se converte do
odio para o amor e do egoísmo para o altruismo, nao adianta
modificar as estruturas da sociedade; as novas estruturas seráo
ainda e sempre o receptáculo do egoísmo, do odio e da explo-
racáo do homem pelo homem (apenas os personagens opresso-
res e oprimidos teráo mudado de nome). Tenha-se em vista a
Instrucáo Libertatis Nunttus XI, 7-9:

«Por a confianca em meios violentos, na esperanca de instaurar


maior ¡ustíca é ser vítima de ilusáo fatal. Violencia gera violencia e
degrada o homem. Rebaixa a dignidade do homem na pessoa das
vílimas e avilta esta mesma dignidade naqueles que a praticam.

J Editora Record, Rúa Argentina, 171 — 20921 — Rio (RJ).

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A IGREJA NA ATUALIDADE BRASILEIRA 33

A urgencia de reformas radicáis que incidam sobre estruturas que


segregam a miseria e constituem, por si mesmas, formas de violencia,
nao pode fazer perder de vista que a fonte da ¡njustica se encontró
no coracáo dos homens. Nao se obterao, pois, mudancas sociais que
estejam realmente ao servico do homem senao fazendo apelo as
capacidades éticas da pessoa e á constante necessidade de conversáo
interior. Pois na medida em que colaboraran! livremente, por sua
própria iniciativa e em solidariedade, tiestas necessárias mudancas, os
homens, despertados no sentido da sua responsabilidade, cresceráo
em humanidade. A inversáo entre moralidade e estruturas é própria
de urna antropología materialista, incompatível com a verdade do
homem.

E, pois, igualmente ilosáo fatal crer que novas estruturas daráo


origem por si mesmas a um homem novo, no sentido da verdade do
homem. O cristao nao pode desconhecer que o Espirito Santo que nos
foi dado, é a fonte de toda verdadeira novidade e que Deus é o
Senhor da historia».

3. TL: o primado da praxis

1. Praxis (prática, agáo, em grego) é pálavra freqüen-


temente repetida pelos teólogos da libertagáo. Significa a agáo
revolucionaria transformadora da realidade.

A TL extremada assume a necessidade da praxis como


ponto de partida das suas reflexóes; é afirmada dogmática
mente. Em fungáo desse principio indiscutido, os autores re-
léem a Biblia e a mensagem crista em nova ótica. Afirmam
que só pode ser verídica urna proposigáo que tenha forga trans
formadora. Em conseqüéncia, todo o Credo cristáo é refeito;
os vocábulos da fé e da mensagem católica continuam a ser
proferidos, mas com sentido totalmente diverso daquele que
lhes toca na auténtica teología. Eis alguns significativos teste-
munhos:

«O ponto de partida da nossa reflexao nao é algo 'cristao'...


A base de nossa reflex5o é a praxis revolucionaria, a ocupacáo do
povo revolucionario que luta para alcancar urna liberlacao socialista.
Assim fazemos teologia sem partir do >crist5o'. Esta base parece
incompalível com o Evangelho e com a tradicáo da Igreja. Porém no
fundo é o único caminho fiel ao Evangelho e á tradicáo. Porque só
há reflexao crista em torno a luta dos oprimidos por sua libertacao»
(Diego Irarrazável, Cristianos en el Processo Socialista, 1972, p. 420).

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34 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 278/1985

«O ponfo de partida nao é a fé, o evangelho ou um


ponto de partida eclesial ou teológico. Tal ponto de partida nao
fornece nenhuma luz para esclarecer os elementos constitutivos da
consciéncia política dos cristáos. Deve-se partir da infraestrutura, da
luta política, da consciéncia de classes» (Pablo Richard, Cristianismo,
Lucha Ideológica e Racionalidad Socialista, 1975, p. 20).

A propósito de criterio de verdade, escreve Mario Peres-


son, referindo-se a teólogos da libertagáo:

«Seu criterio de última verdade nao estará em sua concordancia


ou nao com doutrinas preexistentes, mas em sua eficacia para trans
formar a historia e para a libertacáo dos oprimidos (ortopráxis)»
(extraído do livro de Freí Boaventura Kloppenburg, Igreja Popular,
1983, p. 58).

Donde se vé que «concordar com doutrinas preexistentes»


ou com os artigos do Credo nao tem importancia; seria «teo
logía européia», a qual deve ser substituida por urna «teología
latino-americana». — A propósito observamos que pode haver
modalidades de teología adaptadas as circunstancias de vida
dos cristáos da América Latina, da Europa, da África...; toda
vía qualquer dessas modalidades há de conservar fidelidade
integral ao Credo comum a todos os fiéis católicos; se nao,
deixa de ser teologia, pois teología é o «soletrar a fé».

Eis alguns espécimens das novas conclusóes a que chega


a TL concebida em moldes de ortopráxis latino-americana:

«Alguns che,gam ao extremo de identificar o próprio Deus com


a historia e definir a fé como 'fidelidade á historia', o que significa
fidelidade comprometida com urna prática política, afinada com a
concepcáo do devír da humanidade concebido no sentido de um
messianismo puramente temporal.

Por conseguinte, a fé, a esperanto e a caridadc recebem um


novo conteúdo: 'fidelidade á historia', 'confianca no futuro', 'opcáo
pelos pobres', é o mesmo que dizer que sao negadas em sua realidade
teologal.

Desta nova concepcáo deriva inevitavelmente urna politizando


radical das afirmacóes da fé e dos ¡uizos teológicos. Já nao se trata
somente de chamar a atencao para as conseqüéncias e incidencias
políticas das verdades de fé .que seriam respetadas antes de tudo

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A IGREJA NA ATUALIDADE BRASILEIRA 35

ecn seu valor transcendente- Toda e qualquer afirmagao de fé ou de


teología se vé subordinada a um criterio político, que, por sua vez,
depende da teoría da luta de classes, como motor da historia.

Apresenta-se, por conseguíate, o ingresso na luta de classes como


urna exigencia da própria caridade; denuncia-se como atitude desmo-
bilizadora e contraria ao amor pelos pobres a vontade de amar, de
saída, todo homem, qualquer que seja a classe a que pertenga, e de
ir ao seu encontró pelas vias nao-violentas do diálogo e da persuasáo.
Mesmo afirmando que ele nao pode ser objeto de odio, afirma-se com
a mesma forca que, pelo fato de pertencer objetivamente ao mundo
dos ricos, ele é, antes de tudo, um inimigo de classe a combater. Como
conseqüéncia, a universalidade do amor ao próximo e a fraternidade
transformam-se num principio escalológico que terá valor somente para
o 'homem novo', que surgirá da revolucao vitoriosa.

Quanto á Igreja, a tendencia é de eneará-la simplesmente como


urna realidade dentro da historia, sujeita ela também ás leis que,
segundo se pensa, governam o devir histórico na sua imanéncia. Esta
reducáo esvazia a realidade específica da Igreja, dom da graca de
Deus e misterio da fé. Contesta-se, igualmente, que a participacao na
mesma Mesa eucarística de cristáos que, por acaso, pertencam a classes
opostas, lenha aínda algum sentido» (Liberfatis Nuntius, IX, 4-8).

2. Diante destas afirmacóes, evidencia-se mais uma vez


que a TL extremada já nao é teología, mas um sistema sócio-
-político marxista que se reveste de aspectos de teología. Com
efeito; teología propriamente dita é fldes quaerens intellectum,
a fé que procura comprender. Ora a fé professa o Credo como
lhe é entregue pela Igreja, e parte dos artigos deste para ten
tar ilustrar e penetrar as verdades reveladas. Tal compreen-
sáo certamente deve inspirar .urna praxis (Ética crista) que
seja conseqüéncia da doutrina da fé.

Como se vé, a TL inverte a reta ordem: faz da praxis um


principio absoluto, em funcáo do qual sao formuladas as pro-
posicóes da fé; estas já nao sao a verdade, mas sao artigos con
cebidos para firmar e confirmar a urgencia dogmática da agáo
revolucionaria transformadora da sociedade. Já nao se trata
de fides quaerens intellectum, já nao se trata da fé procurar
soletrar as verdades reveladas pelo Senhor Jesús. Com outras
palavras: a praxis deixa de ser um objeto de estudo da teología
para tomar-se o ponto de partida da teología e o principio her-
menéutico da Revelagáo Divina.

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36 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 278/1935

4. TL: luta de classes

A luta de classes, inspirada pelo pensamento marxista,


tornou-se um ingrediente fundamental da TL extremada. Se
gundo este conceito, a Igreja é dividida em Igreja dos pobres
oprimidos e Igreja dos ricos opressores ou em Igreja popular e
Igreja hierárquica, institucional.

O amor aos pobres, assim entendidos, implica luta contra


os ricos; tal luta vem a ser urna forma de amor para com eles.
É o que afirma Joáo Batista Libánio:
«O amor de Deus manifesta-se na mediacao daquele confuto que
nega a negatividade. Isto é, passa pela forca de luta do polo opri
mido contra o elemento opressor do polo dominante. Pois somente
combatendo as eslruturas dominantes podemos libertar a concciéncia
do dominador. Pois as consciéncias humanas se objetivam ñas estru-
turas de classe. A luta contra tais estruturas é mediacáo de caridade,
pois possibilita ao opressor a entrada em liberdade pessoal e portanto
optar pelo amor» (Pastoral numa Sociedade de Conflitos, 1982,
p. 221).

Ora a luta de classes nao se coaduna com as conceptees


cristas nem pode integrar o programa de reforma social dos
fiéis católicos, como notava o Santo Padre ao falar aos Meta
lúrgicos em Sao Paulo:

«A luta de classes nao é o caminho que leva á ordem social,


porque ela traz em s¡ o risco de elevar os desfavorecidos a privilegia
dos, criando novas situaedes de injustiea para os que até aquí detém
as vantagens. Nao se constrói com odio ou com a destruicao dos
outros» (Pronunciamentos do Papa no Brasil, Ed. Loyola, n» 403).

A propósito de luta de classes, observa sabiamente a Ins-


trugáo Libcrtatis Nuntius expondo o pensamento de autores
extremados da TL:

«A lei fundamental da historia, que é a leí da luta de classes,


implica que a sociedade esle¡a fundada sobre a violencia. A violencia
que constituí a relacáo de dominacáo dos ricos sobre os pobres, deverá
responder a contra-violencia revolucionaria, mediante a qual esta re-
lacao será invertida.

A luta de classes é, pois, apresentada como urna lei objetiva e


necessária- Ao entrar no seu processo, do lado dos oprimidos, 'faz-se'
a verdade, age-re 'cientificamente'. Em conseqüencia, a concepcao da

— 36 —
A IGREJA NA ATUALIDADE BRASILEIRA 37

verdade va i de par com a afirmacao da violencia necessária e, por


isso, com a do amoralismo político. Nesta perspectiva, a referencia a
exigencias éticas, que prescrevam reformas estrufurais e institucionais
radicáis e corajosas, perde totalmente o sentido.

Quando se assumem estas teses de origem marxista, é, em par


ticular, a própria natureza da ética que é radicalmente questionada.
De falo, o caráter transcendente da distingao entre o bem e o mal,
principio da moralidade, encontra-se implicitamente negado na ótica
da luta de classes» (VIII, 5-9).

Ademáis: na raiz do conceito do pobre apregoado pela TL,


há um equívoco: o pobre da TL é identificado com o proletario
marxista. Ora o proletario, segundo Marx, seria um homem
sem religiáo ou materialista, ao passo que o pobre latino-ame
ricano é profundamente religioso, como foi observado á p. 453s
de PR 277/1984. Por conseguinte, nao se podem aplicar ao
pobre latino-americano as teorías que Marx apregoava com
referencia ao «proletariado».

5. TL: secularismo

Nos últimos decenios tem-se falado freqüentemente de


«secularizagáo» e «secularismo».

Seculariragao é o processo que devolve as realidades ter


restres a sua justa autonomía. Implica urna desmitizac.áo autén
tica: assim, por exemplo, a medicina nao deve recorrer á mís
tica e ao curandeirismo para realizar suas tarefas terapéuticas;
nao é com artes mágicas que se curam doengas (o que nao
exclui a oragáo pelos enfermos, que todos devemos praticar);
a astronomía (ciencia) nada tem que ver com astrologia (falsa
crenca no destino); o rei nao é um semi-deus nem deve ser
endeusado; a economía, as viagens, os casamentos, os nego
cios. .. nao devem ser orientados por sortilegios, adivinhagóes,
búzios, ordalías... — A secularizado assim entendida é sadia
e mesmo necessária. Nao queremos com isto dizer que a fé
seja simplesmente um valor ao lado de outros, na vida do cris-
táo; ela é, sem dúvida, o valor supremo que ilumina todos os
outros valores e lhes dá sentido; mas a fé nao tem resposta
pronta e técnica para os problemas que a vida profana sus
cita diariamente ao cristáo.

— 37 —
38 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 278/1985

Secularismo, porém, é a extingáo de todas as manifesta-


cóes religiosas e sagradas mesmo dentro dos ambientes onde
elas deveriam ocorrer. O secularismo apaga o nome de Deus
e o substituí pelo do homem. Amar ao homem e servir a este
seria o programa de toda religiáo; nao haveria necessidade de
culto sagrado nem de explicitagáo dos valores específicamente
religiosos. Tem-se assim o que se chama «o Cristianismo sem
religiáo», «a religiáo sem Deus»..., «O Cristianismo posteísta»,
«a teología da morte de Deus»... O nome de Deus morreu,
dizem; em conseqüéncia, é preciso que o cristáo viva como se
Deus nao existisse (ac si Deus non darctur, Dietrich Bonhoef-
íer) — o que significa que o cristáo só se deve interessar por
tarefas seculares ou deste mundo.

Ora a TL extremada é a expressáo derradeira da teología


da morte de Deus. Relega Deus e o sagrado para um plano
secundario ou mesmo invisível; o servico ao homem seria a
única tarefa atribuida ao cristáo.

Clodovis Boff, por exemplo, assim se exprime através de


dois personagens ficticios (o militante Luís e o teólogo Car
los) do seu livro «Da Libertagáo. O teológico das libertagóes
sócio-históricas»:

«Luís (militante): Eu acho que a coisa mais importante da fé


crista nao é a parte religiosa: oracao, missa, sacramentos, etc. Coisas
assim os fariseus também faziam. E muitos fariseus de hoje continuam
fazendo. Para Jesús, o que contava mesmo era o amor, a ¡ustica, a
sinceridade. Cristianismo é prática. Isso ele o deu a entender mais de
urna vez. 'Quero a misericordia e nao o sacrificio'. E depois: 'Nao
é o que diz: Senhor, Senhor, que entrará no Reino dos Céus, mas aquele
que faz a vontade do meu Pai» (p. 102).

«Carlos (teólogo): A participacáo dos cristaos na luta do povo


se baseia no valor intrínseco dessa luta, que. .. para um cristáo tem
dimensáo divina objetiva.. . Nao é a fé que confere um sentido
sobrenatural ou divino á luta. E o inverso que ocorre: é esse sentido
objetivo intrínseco que confere a fé sua forca. Nao é porque o cristáo
vai á luta animado pela fé sobrenatural. E o contrario .que acontece:
é porque a própria luta jó tem em si mesma urna grandeza sobrenatural
que o cristáo vai a ela animado pela fé» (p. 107J-

«Carlos (teólogo): O esforco pastoral da Igreja nao visa direta-


mente a batizar, santificar ou sobrenaturalizar a liberlacño humana,
acrescentando-lhe assim urna significagáo sobrenatural. Nao. Essa

— 38 —
A 1GREJA NA ATUALIDADE DRASILEIRA 39

tarefa compete a Deus, que desde sempre elevou a historia dos homens
ao nivel da historia divina.E os homens (todo o homem) responden)
a essa proposta de Salvacao sendo justos e bons. A tarefa primeira
da Igreja é outra... é garantir na historia o aspecto sócio-religioso
da libertacao, que é onde se manifestó a salvacao de Deus. Sua
rnissáo tem base portento no nivel da historia, embora objetive final
mente a salvacao trons-histórica.

Vicente (vigário): A posicao comum hoje, tanto no Magisterio


como entre os teólogos, é que a libertacao só é integral se incluí a
comunhao com Deus, sendo que essa comunhao com Deus é obra da
palavra e da acáo sacramental da Igreja.

Carlos (teólogo): Essa posicáo deve ser submetida a um exame


mais rigoroso. Comefeito; ela esquece de duas coisas fundamentáis:
1) que a comunhao com Deus (graca) é urna possibilidade intrínseca
á própria sociedade, á historia, á prática política, podendo-se dar
também antes e fora da Igreja. Quer dizen a libertacao social ¡á
integra a Salvacao, antes aínda e sem que a Igreja intervenha; 2)
que o papel da Igreja em termos de conferir urna dimensáo integral
á libertacao histórica consiste exatamente nisso: em garantir o aspecto
sócio-religioso á libertacao humana, em garantir assini a mística crista
da política e, finalmente, em garantir assim a presenca positiva da
graca no coracáo da libertacao histórica. Portanto, o papel da Igreja,
como sacramento de Salvacao, na historia da libertacao, nao é a pro
dúcelo da graca, mas sua garantía.

Vicente (vigário): Nesse caso a Igreja nao seria necessária para


a Salvacao. Ela poderia ser muito bem dispensada. Tal posicáo é
contraria á doutrina tradicional, baseada na Escritura.

Carlos (teólogo): A presenca da Igreja na historia nao é ne


cessária de modo absoluto. Ela é moralmente necessária, histórica
mente necessária, dada a condicáo concreta em que o homem vive do
ponto de vista da Salvacao. Essa situacao de necessidade moral de
Salvacao vía Igreja se prende finalmente ao que se chamou "pecado
original'- A Igreja é necessária no nivel das condicóes históricas da
'predicáo' da ,graca e nao tanto no nivel dos instrumentos dessa
'predicao' » (pp. 1 lOs).

Tal atitude é assim comentada pelo Pe. Armando Ban


dera O.P., professor do Instituto Teológico de San Esteban
(Salamanca):

— 39 —
40 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 278/1985

«Do ponto de vista da TL, aquele que pratica obras de justica,


aquele que é justo á luz dos criterios da opcao socialista, esse conhece
Deus. Pouco importa que nunca O invoque, que nao sinta necessidade
dele, .que mesmo o negué, e qve persiga os que confessam o nome de
Deus. Se pratica as obras de justica exigidas pela opcao socialista, se
luta para instaurar no mundo essa opcao, conhece Deus e o confessa,
aínda que com os labios o renegué, pois, suposto que pratique aquelas
obras, a negacao nao se dirige a Deus, ao Deus verdadeiro, mas as
falsificares de Deus e aos Ídolos introduzidos pelos aislaos, que,
opondo-se á opcao socialista, deformam o Cristianismo e desfiguram
o rosto de Deus. A única forma de negar Deus é cometer ¡njusticas
contra o próximo e nao Ihe atender de acordó com os postulados da
opcao socialista» (La Iglesia ante el proeesso de liberación. Madrid
1975, p. 83).

Como se vé, tem-se ai o que se pode chamar «conhecimento


ateu de Deus». Além de contraditória, tal atitude nao chega a
ser fiel á justica, pois quem impede o próximo de cultuar a
Deus, perseguindo o nome de Deus, comete traicáo e injustica
para com esse próximo.

O secularismo está, sem dúvida, em frontal oposigáo ao


que sempre pensou a mensagem da fé crista. Esta ensina que
Deus há de ser sempre o primeiro servido e que o homem deve
ser servido em fungáo de Deus e por amor a Deus. Isto em
nada desmerece o homem e o servigo a este; ao contrario,
assegura motivacáo mais sólida e dinámica a quem deseja ser
vir a seus irmaos; o servigo por amor a Deus é certamente mais
eficaz do que o servigo por amor ao homem apenas.

6. Conclusao

De quanto foi dito, nao é difícil deprender que a TL favo


rece a causa do comunismo. E isto nao só por seu conteúdo
marxista, mas também pelas ambigüidades que caracterizam
suas posicóes: dá a impressáo de ser a forma mais atualizada
e aberta de ser cristáo na América Latina, quando na ver-
dade solapa os fundamentos do Cristianismo, propiciando o
ateísmo e o materialismo. O marxismo adota premeditada
mente a tática da ambigüidade ; assim tenta confundir ou dei-
xar perplexa a opiniáo pública; enquanto esta nao sabe o que
julgar, os marxistas avangam e tomam o poder. Esta tática
faz parte do programa de implantagáo do comunismo redigido

— 40 —
A IGREJA NA ATUALIDADE BRASILE1RA 41

por Li-Whei-Han; trata-se de um livrinho vermelho, que tem


servido aos revolucionarios da América Latina e que reza o
seguinte:

«Urna acáo precipitada, sem levar em conta a agudez desse


confuto psicológico, pode ¡solar o partido das massas. Se os latos
entre as massas e a Igreja sao muito estreitos, importa seguir o princi
pio de dois passos para a frente e um para tras. Ao dar o passo
para tras, o governo popular deve afirmar que está defendendo a
liberdade religiosa e que é pela vontade das massas que estabelece
comités de reforma das associacoes, para que as massas patrióticas
possam expressar-se mais diretamente na direcao dos assuntos da
Igreja».

Nao é, pois, de admirar que os comentaristas políticos de


Moscou estejam acompanhando com interesse o desenrolar dos
acontecimentos em torno da TL. Pode-se a propósito citar
Valentina Andronova, que assim se exprime:

«Os renovadores declaram que a lgre¡a nao tem ho¡e tarefa


mais elevada e nobre do que participar na revolucáo social da América
Latina. Formulam varias missoes concretas: colaborar no fortalecí-
mentó da unidade e da solidariedade das massas populares; desen
volver entre os cristáos, com base na teología da libertacao, a cons-
ciéncia do seu dever revolucionario; conduzir os líderes cristáos até a
atividade prática da libertacao; apoiar moral, espiritual e material
mente todos os perseguidos, reforcando neles a fé na justica da sua
causa; intervir contra qualquer forma de opressao; consolidar os
vínculos com todos os países em desenvolvimento» («Lucha por la
teología de la liberación», in: América Latina, Moscou, Academia de
Ciencias da URSS, 34 [101 57, 1980, p. 48).

Em outra passagem escreve a mesma Valentina Andro


nova:

«Assim a teología da libertacao, interpretaciio teórica da prática


de protesto social na América latina a partir de posicoes cristas radi
cáis, tem dois traeos característicos substanciáis: orientacao exclusiva
mente social e nexo direto com a prática» (ib. p. 45).

José Grigulevich observa o papel instrumental que a teo


logía da libertagáo e a Igreja progressista representan! na
estrategia de penetracáo soviética no continente latino-ameri
cano:
42 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 278/1985

«A experiencia destes quatro lustros ensina que, apesar de par


ticipar ativamente na luta popular contra as forcas reacionárias, a
Igreja nao tem possibilidades para se converter em fator determinante
do processo de modancas na América Latina á imagem e semelhanca
do Isla, que se tornou forca reitora do dinamismo revolucionario
iraniano... Isso é compreendido perfeitamenle pelos comunistas, que,
alheios a um anticlericalismo ostensivo, tém promovido sempre urna
politica de colaboracao com a Igreja e os católicos em prol da paz,
da democracia e das mudancas socíais indispensáveis» («La Iglesia
latinoamericana en el umbral de los anos 80», in: América Latírta,
Moscou, Academia de Ciencias da URSS, Instituto de América Latina
34 [10]: 19/20, 1980, p- 31J.

Como se vé, os soviéticos compreenderam bem que a TL


tem importante caráter politico-revolucionário e que se pode
tornar valioso instrumento para a infiltracáo do marxismo em
nosso continente.

Mediante as observacóes até aquí propostas, nao quere


mos atribuir aos nossos teólogos da libertacjio má fé ou man-
comunagem com Moscou. Pessoalmente nao querem ser ateus
nem comunistas. É certo, porém, que as suas posigóes, enver-
nizadas de linguagem teológica, sao valiosa cabeca de ponte
para a introducáo de regime comunista nos países da América
Latina. Alias, varios desses teólogos talvez saudassem com
bom ánimo o advento de um governo socialista marxista entre
nos (como, alias, o saúdam na Nicaragua).

Eis por que se torna dever dos fiéis católicos esclarecidos


expor a seus irmáos e ao público o que é a TL: nao haja
quem se preste a ser explorado como «inocente útil»! Mas. ao
contrario, procurem os fiéis católicos estudar e praticar a Dou-
trina da Igreja!

A oronósito:
BANDERA. A.. La Iglesia ante el Proceso de Liberación. Madrid 1975.
BAC n? 373. Llvraria Ihero-Anwicana. Rúa Hermenegildo de Barros, 40,
Calxa Postal 816 — 20.241 — Rio (RJ).
CELAM, Documento de Puebla. Ed. Vozes, Paulinas, Loyola 197S.
JOAO PAULO II, Discursos pronunciados no Brasil. Ed. Vozes, Paulinas,
Loyola 1980.
KLOPPENBURG, B., Igreja Popular. Ed. AGIR, Caixa postal 3.291, Rio
de Janeiro (RJ).
SAGRADA CONGREGAQAO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Instrucio
Líbertatla Nuntlus sobre alguna aspectos da "Teología da Llbertacao". Ed.
Vozes, Paulinas, Loyola, 1984.

— 42 —
Pouco divulgadas:

"Ádaracdes Acerca de Alguns


Temas de Teologia"
por Leonardo Boff, O.F.M.

Em símese: Em julho de 1982 a revista "Grande Sitial", destinada a


Religiosas, publicou "AclaragSes..." ou Retratares de Freí Leonardo Boff
referentes a pontos doutrlnários de llvros seus, que o autor reconheceu
como incursos em erros teológicos. Essa RetratagSo resulta de advertencia
da Santa Sé ao teólogo franciscano. Todavía verillca-se que o grande público
no Brasil nSo tomou conheclmento adequado de tal texto. Também se
observa que as obras portadoras de erros teológicos nSo foram devldamente
corrigidas, mas continuam a ser publicadas sem que o autor Ihes tenha feito
alguma retificagSo.

1. A controversia em torno de Frei Leonardo Boff OFM


continua a merecer atengáo. Sabe-se que o teólogo francis
cano é argüido nao somente por defender a utilizacáo do mar
xismo na elaboragáo da teología da libertacáo, mas também
por formular teses destoantes da fé da Igreja niversal. É sobre
este segundo ponto que se deteráo as páginas seguintes.

A ortodoxia das obras de Leonardo Boff vem sendo ques-


tionada em duas etapas: 1) a primeira prendia-se as obras
«Jesús Cristo Libertador» (1972); «Paixáo de Cristo — Paixáo
do Mundo» (1977) e «Eclesiogénese» (1977); 2) a segunda
disse respeito ao livro «Igreja: Carisma e Poder» (1981), em
virtude do qual o autor foi chamada a Roma para responder
a questóes suscitadas por tal escrito.

Na primeira etapa, os tres livros indicados foram objeto


de indagacóes por parte da Santa Sé, indagagóes que termi-
naram com urna retratagáo redigida por Frei Leonardo, a fim
de retificar posigdes erróneas assumidas em tais escritos. Essa

— 43 —
44 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 278/1985

retratagáo foi publicada na revista de espiritualidade para Re


ligiosas intitulada «Grande Sinal,», de julho 1982, pp. 357-369,
como também na revista espanhola «Sal Terrae», d e maio 1982.

No Brasil o público nao tomou o devido conhecimento do


tal retratagáo; esta apareceu num fascículo destinado a enal
tecer a figura de Frei Leonardo Boff; entre diversos artigcs
de elogio ao teólogo, podem-se ler as «Aclaragóes» de Leo
nardo, cujo alcance é diluido pelo quadro em que aparece (exal-
tagáo de Frei Leonardo numa revista para Religiosas!). Mais:
dado que as tres obras indicadas continuam a ser publicadas
sem retoque algum da parte do autor (como se a retratagáo
nao devesse ter influencia na apresentagáo do pensamento de
Frei Leonardo Boff), julgamos oportuno publicar essa retra
tagáo. Quem a conhece, toma consciéncia de que nao pode
aceitar integralmente o conteúdo dos tres livros citados sem
incidir em erros teológicos ou mesmo em heresias.

2. Sao tres os pontos que Leonardo Boff retifica ñas


suas páginas de «Aclaragóes...»:

1) Com relagáo á ciencia humana e "á consciéncia psico


lógica de Jesús, L. Boff afirmava que Jesús até o fim ignorou
o desfecho da sua missáo; ignorou o sentido salvífico e expia
torio da sua morte; Jesús nem sequer sabia claramente que
ele era o próprio Filho de Deus feito homem! Vejam-se os
seguintes textos:

«Um teólogo moderno diz com acertó: 'Com toda a probabilidade


a pesquisa alual neotestamentária pode dizer: Jesús nao entendeu sua
morte como sacrificio expiatorio, nem como satisfácelo, nem como res-
gafe. Nem eslava em sua ¡nten;ao precisamente mediante sua morte
redimir os homens. A redencáo dos homens dependía, na mente de
Jesús, da aceilasao de seu Deus e do modo de viver para os outros,
como ele Ihes pregava e mesmo vivía...' (H. Kessler, 25)» (Paixáo
de Cristo — Paixáo do Mundo, 1* edicáo, p. 82).

«O importante para Jesús nao é fazer a sua própria vontade,


mas a vontade do Pai, que ele nao conhece exalamente até o fim,
se implica somente grandes dificuldades ou mesmo a morte. Sua
última grande tentacáo no Getsémani mostra a angustia, a incerteza,
mas também a resolusfio fundamental de fazer sempre a vontade de
Deus... (Me 14,36 par.). Jesús entrevia a possibilidade da morte,
mas nao tinha a certeza absoluta déla. O brado derradeiro, no alto

— 44 —
ACLARAO6ES DE LEONARDO BOFF 45

da cruz: 'Meu Deus, por que me abandonaste?' (Me 15,34) pres-


supóe a fé e a esperanza inabaláveis de que Deus nao iria deixá-lo
morrer, mas que, mesmo no último instante, iria enfim salva-lo» (Jesús
Cristo Libertador, V ed., p. 130).

«Jesús é originario de Nazaré na Galiléia. A familia pertence


aos piedosos de Israel, observantes da Lei e das sagradas tradicoes.
Eles iniciaram Jesús na grande experiencia de Deus. Se Jesús é o que
foi e nos é dado a conhecer, devemo-lo nao somente ao designio do
Misterio, mas também a sua familia.. .

Foi num ambiente assim que Jesús aprendeu a interpretar teológica


mente os sinais de sua época.. .

Em sua idade adulta Jesús de Nazaré se sentiu interpelado pela


pregacáo de Joáo. Esta se centrava sobre o ¡uízo iminente de Deus.. .
Nao se pode dizer que Jesús tenha sido discípulo de Joao, nem entre
tanto pode-se negar o contrario... Certo é a aceitacao e apoio de
Jesús á mensagem central do Batista: ha que se fazer penitencia. . .

Por ocasiáo de seu batismo por parte de Joao (o atual relato


está cheio de teología, com retroprojecoes da gloria do Ressuscitado),
Jesús teve urna experiencia profética decisiva. Ficou-lhe claro que a
historia da salvacáo eslava ligada a ele. Com ele se decidirá tudo. . .»
(Paixáo de Cristo — Paixáo do Mundo, I4 ed., 74-76).

2) Em conseqüéncia — dizia Frei Leonardo — Jesús, ao


cear pela última vez, nao sabia estar instituindo a Eucaristía
como a Igreja a entendeu posteriormente, isto é, como perpe-
tuaqáo do seu sacrificio sob forma sacramental. Veja-se, por
exemplo:

«Dentro da linha de reflexáo tracada por Is 53, se interpretaran!


os gestos de Jesús na ceia de despedida; após a morte e a ressurreicao
entenderam que aquilo significava realmente um sacrificio a Deus.
Compreenderam que Jesús, que se doara toda a vida, aquí na morte
se doara completamente. Daí os textos eucarísticos expressarem bem
esta compreensáo teológica: 'Isto é o meu corpo que será entregue,
isto é o meu sangue que será derramado'. Nao seriam palavras
¡esuánicas, mas teología ¡á bem elaborada das comunidades primiti
vas, em contexto eucarístico» (Paixáo. . . p. 65).

«Como ¡á dissemos anteriormente, a última ceia possui um


eminente sentido escatológico. Simboliza e antecipa a grande ceia
de Deus, na nova ordem das coisas (Reino). Como veremos mais

— 45 —
46 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS? 278/1985

tarde, pao e vinho nao simbolizavam, a esta altura, o corpo e o sangue


de Jesús que seriam sacrificados {¡sso descobrirá a comunidade primi
tiva, quando ¡á viveu a morte e a ressurreicao de Jesús), mas simples-
mente a ceia. Dentro de urna ceia judaica, onde ¡á havia o pao e o
vinho, estes representam o banquete no céu. Daí que, lógicamente,
Jesús' diga: 'Eu vos entrego o Reino (ceia celestial)... para que
comáis e bebáis1. O pao e o vinho simbolizavam a Ceia-Reino»
(ib, p. 71).

Em conseqüéncia, a Igreja é que terá compreendido a


Eucaristía; Jesús nao a entendeu como tal.
3) No tocante á celebracáo da Eucaristía, defende L. Boff
a tese de que poderia ser fungió de um ministro leigo nao
ordenado pelo sacramento da Ordem. Tenha-se em vista:

«A comunidade, assim nos parece, celebraría verdadeira, real e


sacramentalmente a Eucaristía; Cristo presente, mas invisível, far-se-ia
na pessoa do coordenador nao-ordenado, sacramentalmente visivel...
O celebrante nao-ordenado seria ministro extraordinario do sacra
mento da Eucaristía» (Eclesiogénese, 1« ed., p. 80).

Ora as Aclaragóes de Freí Boff que se seguem, constituem


auténtica retratagáo de tais pontos erróneos; infelizmente, po-
rém, nao foram incluidas no teor dos livros indicados.

Passamos a transcrever o texto de Leonardo Boff:

ACLARARES ACERCA DE ALGUNS TEMAS DE TEOLOGÍA

Um dos campos privilegiados da reflexáo teológica é a cristologia


que trata da verdade de Jesús de Nazaré, Filho eterno de Deus encar
nado em nossa pobreza, de sua gesta salvadora mediante soa prática,
suas palavras, sua paixáo, morte e ressurreicáo. Outro campo impor
tante é a eclesiologia. Aquí se trata, fundamentalmente, da Iflroj0
como sacramento de salvacao e de sua organizacóo comunitaria
através dos séculos. Tanto nom campo como no outro há graves ques-
tóes que a fé racionante deve abordar com devocao e cuidado para
deíxar clara a reta compreensáo, necessária para garantir nossa
adesáo ao misterio de Cristo e nossa comunhao com a comunidade
de fé.

A teología se ocupa com as verdades fundamentáis da revelacao,


mas também com a conexáo entre todas as verdades na perspectiva
do designio global de Deus revelado em Jesús Cristo e no seu Espirito.

— 46 —
ACLARAgÓES DE LEONARDO BOFF 47

Nesta diligencia a teologia elabora visees e até sistemas (como as


sumas teológicas dos mestres medievais) que mostram a coeréncia do
plano de Deus. Nestas visoes, além de todas as verdades da fé, se
fazem presentes também ¡nterpretacoes próprias de cada teólogo.
Estas interpretacóes devem guardar referencia ás verdades, á Tradicáo
e ao Magisterio vivo da Igreja.

Nem sempre estas interpretacóes sao correlamente compreendidas


por todos. Alguns véem nelas elementos meramente subjetivos do
teólogo, outros nao conseguem ver sua concordancia com a perspeclivd
global que toda teologia deve guardar com referencia aos dados
reguladores da fé da Igreja- Há anos escrevi dois livros: Um Paixáo de
Cristo Paixáo do mundo (Petrópolis 1977) e outro Eclesiogénese.
As comunidades eclesiais de base re-inventam a lgre¡a (Petrópolis
1977). Ambos os livros liveram ampia aceitacóo, o que jostificou sua
traducáo para varias línguas.

Entretanto, se¡a num seia no outro, houve qoestoes que nao foram
entendidas corretamente por todos. Nem sempre o teólogo atinge tal
grau de clareza que consiga a compreensño de todos. Outras vezes
as formulacóes que empregou, permitem urna linha de interpretacóo
que vai além do intencionado quando escreveu seu livro. .Para des-
fazer tais dificuldades e por em luz mais clara sua doutrina em
consonancia com a doutrina eomum da Igreja, passo a aclarar tres
questSes ligadas aos livros referidos ácima. No entonto, convém
inicialmente esclarecer alguns pontos epistemológicos e metodológicos.

O cristianismo testemunha intervencoes históricas de Deus, especial


mente aquela que culminou de forma definitiva em Jesús Cristo. Estas
irrupcoes divinas acontecem em fatos e palavras reveladores.

Tudo o que é histórico está vinculado a um tempo determinado


Un illo tempore), no qual as palavras e os falos possuem um sentido
definido. O sentido da revelaeóo está assim ligado ao tempo histórico,
mas nao se esgota em nenhum tempo por causa de seu caráter divino,
definitivo e escatológico. Possui um sentido atual para todos os
lempos. Este sentido perene se mantém sempre atual mediante a*
interpretacóes, particularmente, do Magisterio da Igreia.
A tarefa da teologia consiste, entre outras funcóes, em a¡udar o
Magisterio nesle servico hislórico-salvifico de interpretacáo atualizadora.
Ademáis devemos conservar a consciénda de que sempre temos a ver
com misterios divinos. Como tais, nunca poderáo ser expressos total
mente noma única fórmula, embora as fórmulas oficiáis da fé expnmam
o essencial para a nossa salvacao.

— 47 —
48 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 278/1985

Por serem insondóveis, os misterios desafiam a busca religiosa do


fiel no sentido de descobrir profundidades do verdade e do amor de
Deus. É aqui que se abre o espaco á liberdade teológica de acentuar
esta ou aquela perspectiva da riqueza inesgotávei dos misterios, sempre
considerando também outras perspectivas válidas e a totalidade da
verdade-

Outras vezes, as próprias fontes da fé apresentam dados tño ricos


que permitem diferentes sistematizacóes, dentro do marco fundamenta
da fé comum e da comunhao eclesial. Existem até diferentes perspec
tivas que nao se deixam, fácilmente, ordenar noma visao unitaria.

Clássico é o exemplo dos textos escatológicos do Novo Testa


mento. Em alguns, Jesús espera a vinda do Reino e do Filho do Homem
como bem próximos, embora com a recusa explícita de definir o exato
momento; em outros, se diz que será na presente geracao daquele
lempo.

As duas versóes nos sao conservadas ñas fontes da fé. é sinal


de que elas, de certa forma, estáo ligadas ao Jesús histórico. Nao
viram erro nesta divergencia, nem nos devemos ver ai erro. Mas ela
desafia a reflexao teológica na busca de urna compreensao mais
profunda na qual apareca a unidade da verdade. Nesta diligencia,
um grupo pode valorizar mais urna serie de textos, outro grupo a outra
serie. E muitos vezes nao há unanimidade na solucáo, sem prejuízo
da fé e da unidade da Igreja.

1. Jesús teve clara consciéncia messianica que nunca perdeu


Algo semelhante aos textos escatológicos ocorre com as diferentes
perspectivas cristológicas. Podemos dizer que existem predominante
mente duas grandes tendencias na reflexao sobre o misterio de Jesús
Cristo.

A primeira se inspira nos evangelhos sinóticos: comeca no tempo,


com Jesús, pregador do Reino e vai até a sua plena revelacao pela
morte e ressurreicao. A segunda se inspira em S. Joao: comeca na
eternidade, com o Cristo, Verbo eterno e Filho Unigénito do Pa, que
se encarna, nos revela e realiza o designio redentor de Deus.
Ambas as tendencias sao legítimas, a partir das próprias fontes
da fé, mas implicam acentos diferentes. A primeira «faiteara P"n°P¿
mente-a humanidade de Jesús, a complexidade da ex.stenc.a h.stór.ca
que lentamente vai entregando á nossa compreensao o m.sténo de
— 48 —
ACLARACOES DE LEONARDO BOFF 49

Jesús. A segunda sublinhará, particularmente a divindade de Jesús,


seu caráter incomparável, sua relacño única com o Pai, sua consciéncia
messiánica que nunca perdeu.

Tanto a primeira quanto a segunda tendencia devem ser fiéis aó


Cristo total, vale dizer, ao Jesus-homem e ao Jesus-Deus. Aquele que
acentúa a divindade de Jesús deve dizer, em seu devido lugar, que
ele foi tentado (Me 1,13; Le 4,1-13; Mt 4,1-11) e que «sofreu ao ser
tentado» (Hb 2,18), passando «pelas mesmas tentacoes que nos»
(Hb 4 15) eqvena alto da cruz gritou ao Pai: «Meu Deus, meu Deus,
por que me abandonaste?» (Me 13,34). Nao deverá apresentar urna
Imagem de Jesus-Deus-encarnado que torne impossível o que os Evan-
gelhos nos referem de Jesús, em sua humanidade histórica.

A segunda tendencia que sublinha a humanidade de Jesús deve


afirmar, em seu devido lugar, que toda esta humanidade concreta é
a humanidade assumida por Deus, que quem vé Jesús ve o Pai
(cf. Jo 14,9) e que Jesús está no Pai e o Pai em Jesús (cf. Jo 14,11)
e que Cristo é preexistente á criacáo porque é o Filho Unigénito e
eterno do Pai (cf. Jo 1,3.14). Esta tendencia nao deverá apresentar
urna figura de Jesús que esvazie o que os textos fundadores da nossa
fé nos dizem acerca de sua transcendencia e divindade.

O equilibrio entre urna e outra deve ser sempre buscado, embora


se trate de um equilibrio nem fácil nem sem difieuldades para cada*
urna das tendencias.

Jesús teve em sua consciéncia humana o experiencia


inefável de ser o Unigénito do Pai celeste. Sua vida inteira
estava impregnada dessa autoconsciéncia, embora devamos
admitir que tenha havido um crescimento, consoante o
desenvolvimento humano de Jesús, desde criancinha até a
plena luz da idade madura.

Toda minha producáo cristológica dos últimos dez anos se sitúa


dentro da tendencia sinótica. Ela é característica também da escola
franciscana da experiencia pessoal de S. Francisco de Assis, de
S. Boaventura, de Duns Scotus e dos grandes meslres franciscanos
medievais. Enfatiza fortemente os traeos da santa humanidade de
Jesús, sua fé, na linha da epistola aos Hebreus (12,1). a conflitividade
que sua mensagem e pessoa provocou, e sua paixao e morle, num
primeira plano, vistas como conseqüénda do tipo de vida que levou
e das exigencias de conversao que fez.

— 49 —
50 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS». 278/1985

Em nenhum momento se quis ficar apenas nesta dimensao histó


rica. Em seu devido lugar sempre se afirmou claramente a divindade
de Jesús; sua humanidade nunca existiu fora de sua uniáo hipostática
com a Segunda Pessoa da Santissima Trindade. Pode ter havido frases
que parecessem ignorar a consciéncia messiánica de Jesús; entretanto
há que entendé-las dentro do contexto global do livro, especialmente
em referencia com aquelas partes onde se afirma explicitamente tanto
a consciéncia messiñnica de Jesús quanto sua divindade.
Seria realmente estranho se a subsistencia divina do homem Jesús,
isto é, o elemento decisivo de sua personalidade (Verbo) nao enlrasse
em sua consciéncia, e portanto o óntico (encarnacáo do Verbo) nao
se traduzisse no aspecto ontológico Uonsdéncia messiánica e de ser
o Filho Unigénito do Pai).

Jesús teve em sua consciéncia humana a experiencia inefável de


ser o Unigénito do Pai celeste. Sua vida inteira estova impregnada
dessa autoconsciéncia, embora devamos admitir que tenha havido um
crescimento, consoante o desenvolvimento humano de Jesús, desde
criancinha até á plena luz da idade madura.
Mas em cada fase de sua vida leve a máxima consciéncia possível
de sua realidade divina.

Precisamente por isso Jesús pode dizer, segundo o testemunho


de Mt 11 25 ss, que ninguém conhece o Pai senao o Filho e ninguém
conhece o Filho senao o Pai. Em virtude dessa singular experiencia
religiosa de Deus, pode Jesús dar urna revelaeáo divina revestida de
caráter absoluto e escatológico.

Mas esta clarividencia nao esvazia a realidade das tentacóes e a


experiencia de abandono no alto da cruz. A razáo reside no seguinte:
a encarnacáo do Filho teve também um caráter redentor e sacrificial-
•expiatorio Jesús, o verdadeiro Servo sofredor, «foi castigado por
nossos crimes e esmagado por nossas iniquidades... O Senhor car-

Na agonía «a crui, Jesús sofreu como representante da


humanidade pecadora, sofreu, assumindo livremente a
sol'tdao que o pecado provoca, expiou pelos pecadores de
toda a historia.

regou sobre Ele a iniqüidade de todos nos... foi morto pelos pecados
de seu povo» ds 53,5.6.8). O Verbo eterno tomou «carne»
(cf. Jo 1,14; Rm 8,4) quer dizer, assumiu a vida humana com sua

— 50 —
ACLARACOES DE LEONARDO BOFF 51

situacdo de dor e de morte; a morte do pecador é vivida como solidao,


abandono, ausencia da graca da integracáo pela qoal o esvaziamento
das forcas vitáis seria incorporado no amor a Deus.

Na agonía da cruz Jesús sofreu como representante da humanidade


pecadora, sofreu, assumindo livremente, a solidao que o pecado pro
voca, expiou pelos pecadores de toda a historia. Como diz muito bem
Michael Schmaus (A fé da Igreja, 3, Petrópolis 1977, p. 60) «na morte
de Jesús, como representante da humanidade pecadora, fica revelada
a situacáo do homem autónomo, afastado e abandonado por Deus
e centrado únicamente em si mesmo. Pela morte de Jesús na cruz,
Deus evidencia o homem pecador como um perdido, um abandonado,
desgranado e impotente. Que Jesús tivesse que experimentar o aban
dono de Deus (Me 15,34; Mt 27,46), longe de ser urna encenaeño
pura e simples, se constituí urna auténtica realidade, cujo sombrío misté-

A solrdao de Jesús na cruz, expressa no grito «Meu


Deus, meu Deus, por que me abandonaste?» (Me 15,34;
SI 22 [211,1), revela a soTtdariedade do Jesús inocente com
a solidao dos homens pecadores.

rio nos é incompreensível. Precisamente na experiencia do abandono


de Deus se evidencia que Jesús, embora isento de todo pecado, morreu,
apesar dísso, a morte do pecador em sua forma mais cruel; pois é
morrendo como pecador que o culpado experimenta sua total solidao.
O falo de Jesús ter suportado dócilmente este último e mais terrível
pavor deve ser entendido pela sentenca em sua forma de expressSo
díalética: 'Pai, em tuas maos entrego o meu espirito' (Le 23,46).
Superou a suprema solidao com um amor tdo incomensurável de modo
que esta se Ihe tornou em íntima companheira. Podemos dizer do
Crucificado: ecce homo, particularmente no sentido de: ecce homo
peccortor».

A solidSo de Jesús na cruz expressa no grito «Meu Deus, meu


Deus, por que me abandonaste?» (Me 15,34) revela a solidariedade
de Jesús inocente com a solidao dos homens pecadores. O Filho
encarnado quis assumir esta sinistra situacáo para redimi-la e ins
taurar o reino da graca como comunháo e solidariedade.

Neste sentido podemos dizer que Jesús sempre teve a consciéncia


messiánica de Servo sofredor que passa pelo pavor da solidao em
expiacáo pelo pecado, produtor de solidao e em comunháo com os que
sofrem por causa da solidSo gerada pelos pecados dos homens.

— 51 —
52 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 278/1985

2. A presenca real de Cristo na Eucaristia está garantida


ñas mesmas palavras da Instituicáo da Última Ceia
Com referencia á ¡nstituicáo da Eucaristía como presenta perene
de Jesús Cristo e de seu sacrificio redentor deve-se tomar em conta,
especialmente, duas queslóes: a dimensao histórica e a dimensao
teológica.

a) Dimensao histórica cía instituigao da Eucaristia

Possuímos quatro textos do Novo Testamento que nos referem a


instituicáo da Eucaristia: ICor 11,17-34; Le 22,7-23; Mt 26,17-30;
Me 14,12-26. Basta urna observacao superficial para constatar que
Mateus e Marcos em suas formulacóes :e aproximan) muito; o mesmo
ocorre com Lucas e Paulo. Assim a palavra sobre o cálice em Lucas
e Paulo possui a seguinte formulacño: «Este cálice é a nova alianca
no meu sangue»; em Marcos e Mateus, ao contrario, soa assim: «Este
é o meu sangue do Testamento». Outrossim as palavras: «Fazei isto
em minha memoria» se encontram urna vez em Lucas e duas vezes em
Paulo, enquanto que em Marcos e Mateus faltam.

Existe urna pesquisa ¡mensa histórico-exegética sobre as palavras


eucarísticas l. .Conforme a tendencia da pesquisa poderiamos nos
representar assim a codificacáo dos textos: O evangelista Marcos
assumiu o relato eucaristico da tradicáo de Jerusalém (chamada
também de tradicáo petrina). Antes de sua fixacao escrita, circulou
oralmente em muitas comunidades que celebravam a Ceia do Senhor.
O evangelista Mateus depende de Marcos; seu relato da instituicáo
da Eucaristia revela um leve retrabalhamento estilístico e teológico do
texto de Marcos.

Considera-se atualmente como seguro que Lucas (que escreve


depois de Paulo) literariamente nao depende de ICor 11. Paulo e
Lucas independentemenle um do outro se relacionam com urna mesma
tradicáo. Provavelmente esta tradicáo datada dos anos 40 depois de
Cristo tem seu lugar em Antioquia. é nesta tradicáo comum a Paulo
e a Lucas que se conservou a palavra de Jesús: «Fazei isto em minha
memoria»!

> Na perspectiva católica seguimos especialmente a H. Schürmann, Der


Paschamahlbericht Lk 22 (7-14) 15-18 (NTA XIX, 3), Münster 1953:
Der Elnsetzungshericht Lk 22,19-20 (NTA XX, 4), Münster 1955; Jesu
Abschtedsrede Lk 22,21-38 (NTA XXI, 5), Münster 1957. Um bom resumo
se encontra em Urspning und Gestalt, Dusseldorf 1970, 77-196. Bastante
completa é a bibliografía que oferece R. Feneberg, Chrlstllche Passafeler
und Abendmahl (St ANT XXVII), München 1971, 144-149.

— 52 —
ACLARAgÓES DE LEONARDO BOFF 53

Levanta-se agora a questao: comparando-se as duas tradicóes —


aquela de Jerusalém e aquela de Antioquia — poder-se-ia chegar
a urna fórmula primitiva, quem sabe alé, á fórmula do próprio Jesús
histórico? Ressaltamos que se trata de om problema histórico, para
o qual nao se chegoy a om consenso completo. O teólogo católico
Alexander Gerken, OFM resumindo a pesquisa exegética acerca deste
ponto conclui: «Devemos nos contentar com isto: podemos chegar as
formulacoes primitivas do relato da instituicao da Eucaristía, mas a
formulacáo original nos escapa» 2.

A presenca real de Cristo na Eucaristía está, portanto,


assegurada pelas palavras de Jesús proferidas na derradeira
Ceia que fez eom seus apostólos, palavras conservadas em
duas tradicoes litúrgicas.

b) Dimensáo teológica da instituicáo da Eucaristía


A conclusáo histórica nao é de decisiva importancia para a di-
mensao teológica porque os textos, por seu caráter tradicional,
acentuado por ICor 11,23 («recebi do Senhor o que vos transmití: na
noite em que foi entregue, o Senhor Jesús...»), possuem um caráler
históricamente fidedigno. Podemos ver isso especialmente no fato de
que tanto os Sinóticos como Paulo indicam com toda certera a ocasiao
histórica em que Jesús pronunciou as palavras eucarísticas. Apesar
de seu caráter litúrgico-cultual, o valor histórico dos textos nao pode
ser negado Fundamenta-se em sua procedencia de testemunhas quali-
ficadas, a saber, dos próprios participantes da Ultima Ceia de Jesús
antes de sua morte.
A presenca real de Cristo na Eucaristia está, portento, assegurada
pelas palavras de Jesús proferidas na derradeira Ceia que fez com os
seus apostólos, palavras conservadas em doas tradicSes litúrgicas, a de
Jerusalém e a de Anlioquia. As diferencas existentes rio mínimas. O
cerne «tendal se reporta ao Jesús histórico. Na fe sabemos que e
por forca de suas palavras que Ele se faz presente sempre que a Igreia
celebra o seo Memorial eocarístico.

Assim como toda a Igreja é apostólica, podemos dfcer


com o Vaticano II que toda a Igreja é o sacramento de Cristo.

s A. Gerken, Theologle der Eucharistte, München 1973, 19.

— 53 —
54 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 278/1985

3. A sucessoo apostólica da Igreja supoe, entre outros


elementos, a sucessáo histórica e o poder sacramental,
por sua vez, supoe <o sacramento da Oidem

Como o Credo manda rezar, existe orna apostolicidade de toda a


Igreja. Isto significa que a communitas fidellom (a lgre¡a) existe
porque acolhe a fé dos Apostólos em Jesús como o Cristo, o Filho
Unigénito do Pai, o Salvador do mundo mediante sua vida, paixáo,
morte e ressurreicao. A Igreja é apostólica, porque toda ela é enviada
em missao ao universo. É apostólica, por fim, porque possui urna
apostolicidade de ministerio em continuidade histórica, sem perder a
identidade originaria, com o ministerio dos Doze Apostólos dos quais
o Corpo Episcopal é sucessor. Esta continuidade histórica nao é urna
mera estrutura formal, mas significa a continuidade de urna comunhao
que se iniciou com os Apostólos ao redor de Jesús histórico e após
a ressurreicao ao redor da comunhao, na forca do Espirito, com o
Senhor sentado á direita do Pai; esta comunhao do Corpo Episcopal
vem do passado e se mantém, em sua esséncia, fiel até o presente,
garantindo a apostolicidade de doutrina e de governo para toda a
comunidade eclesial.

Assim como toda a lgre¡a é apostólica, podemos dizer com o


Vaticano II qwe toda a Igreja é o sacramento de Cristo. Os sacra
mentos, tomados individualmente, realizam de modo específico e próprio
o sacramento total da Igreja para as diversas sifuacóes seja da
comunidade seja das pessoas. A Igreja é a portadora de todos os
sacramentos. Assim Cristo confiou a ela o sacrificio da cruz para que
o atualízasse constantemente. A Igreja ensína que toda a comunidade
eclesial é sujeito ativo da acao eucarística. Nao contradiz a esta tese
a afirmacSo solene da mesma lgre¡a segundo a qual somente o sacer
dote validamente ordenado ou o bispo lém o poder de consagrar
(DS 1739s; 1752; 1771). Isto significa: somente o sacerdote oficial,
dentro do Ordo da Igreja, pode, como ministro ordinario, pronunciar
eficazmente aquelas palavras em virtude das quais se torna presente
a vítima eucarística, o corpo e o sangue de Jesús.

Que valor possuem as celebracóes eucarísticas daquelas comuni


dades ou igrejas que nao possuem mais a auténtica tradieáo do
ministerio? Esta é urna questáo muito discutida ao nivel ecuménico
e nao se chegou ainda a unt consenso definitivo. Segundo a doutnna
tradicional mediante o votum objectlvuni, estas comunidades nao ficam
privadas dos beneficios do Sacramento. Por causa da umdade de fe

— 54 —
ACLARAQ6ES DE LEONARDO BOFF 55

e de amor na qual se enconfram tais igrejas. Cristo e o Espirito, a causa


eficiente última da forca de todos os sacramentos, suprem a falta do
ministerio e sao comunicados os beneficios do Sacramento eucarístko.

De todas as formas, devemos reconhecer que nao há celebracao


eucaristica propriamente dita no sentido canónico como o entende a
Igreja Católica quando o celebrante nao é ministro ordinario, valida
mente ordenado com o sacramento da Ordem.

Pensó que estas precisoes deixaram mais claras minhas posigóes


expostas nos livros Paixáo de Crisfo-Paixño do Mundo e Eclesiogénese.

OBSERVACÁO FINAL

A respeito da firmeza da Igreja na preservagáo da reta


doutrina, sao oportunas algumas ponderacóes.

1) Existem verdade e erro nao somente em ciencias oxa-


tas, mas também em materia de fé. Esta nao é um sentimento
cegó ou vago; também nao é apenas confianca, entrega ou
abandono, mas um ato de inteligencia movida pela vontade.
Ora a inteligencia foi feita para a verdade, de modo que o
erro a violenta.

A Palavra de Deus revela ao homem verdades a ser acei


tas na fé, sto é, de maneira inteligente o obsequiosa da parte
do fiel.

2) As verdades da fé (o misterio da SS. Trindade, o da


Encarnagáo, o da Eucaristía...) nunca poderáo ser compreen-
didas pelo intelecto humano, pois ultrapassam o alcance deste.
Como quer que seja, elas podem ser penetradas, até certo ponto,
pela inteligencia, que lhes dá urna formulacáo verbal. Esta é
importante, pois nossos conceitos estáo sempre ligados a pala-
vras (dada a constituigáo psicossomática do homem). — Por
isto pode-se dizer que há formulagóes fiéis á verdade, como há
outras que sao ambiguas, ineptas, insuficientes ou mesmo erró
neas. O pluralismo teológico ou enfoques diversos das verda
des da fé sao legítimos, contanto que respeitem o auténtico
teor dos artigos da fé.

3) Á Igreja quis Jesús confiar a fungió de guardar e


transmitir genuinamente o depósito da fé. Vejam-se as pala-
vras do Senhor a Pedro: «Simáo, Simáo, eis que Satanás vos
pediu insistentemente para vos peneirar como trigo; eu, porém,
orei por ti, a fim de que tua fé nao desfalega. Tu, quando vol-
tares de novo para mim, confirma teus irmáos» (Le 22,31s).

— 55 —
56 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 278/1985

Ou aínda aos doze Apostólos: «Ide, e fazei que todas as nagóes


se tornem discípulos, batizando-as em nome do Pai, do Filho
e do Espirito Santo, e ensinando-as a observar tudo quanto
vos ordenei. E eis que estou convosco todos os días até a con-
sumacáo dos sáculos» (Mt 28,19s).
O Senhor outorgou á sua Igreja um carisma próprio para
ser mensageira da fé: «O Paráclito, o Espirito Santo que o
Pai enviará em meu nome, vos ensinará tudo e vos recordará
tudo o que eu vos digo» (Jo 14,26); «Quando vier o Espirito
da verdade, ele vos conduzirá á verdade plena, pois nao falará
de si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e vos anun
ciará as coisas futuras. Ele me glorificará porque receberá do
que é meu e vo-lo anunciará» (Jo 16,13s).

A fé tem por objeto um patrimonio sagrado de verdades


entregues por Cristo á sua Igreja e, por isto, irreformáveis, á
diferenca das ciencias humanas ou da filosofía, que professam
proposigóes concebidas por homens e, por isto, reformáveis por
homens.
4) Ao desempenhar-se da sua tarefa, a Igreja nao ten-
ciona ser «dona da verdade», mas executa um servico arduo
em favor de todo o povo de Deus. Os fiéis que levam a serio
a sua fé, tém o direito de ser esclarecidos pelo magisterio da
Igreja. Eis por que a esta toca o dever de zelar pela preser-
vacáo da reta fé e pela sadia orientagáo doutrinária do povo
de Deus (do qual fazem parte também os teólogos).
5) A teologia é fides quaerons inteltoctam; é a fé que
procura compreender. Por conseguinte, o teólogo é um homem
de fé ou um homem que aceita integralmente as verdades reve
ladas tais como lhe chegam através do magisterio da Igreja.
Procura penetrar no sentido de tais verdades sem se afastar
do magisterio, mas, ao contrario, colaborando com o magis
terio (cuja palavra nem sempre é definitória, mas por vezes é
apenas orientadora).
6) Os teólogos nao estáo ácima do magisterio, apesar de
sua eventual erudicáo, mas estáo subordinados ao magisterio,
pois só este possui o carisma da verdade, como lembra o Con
cilio do Vaticano II: «A Tradigáo progride na Igreja... pela
pregacao daqueles que, com a suoessáo do episcopado, rece-
beram o carisma seguro da verdade» (Constituigáo Dei Ver-
bum n» 8).
Sao estas verdades que explicam o interesse da Santa Sé
pelas obras de Frei Leonardo Boff, que, como reconheceu o
próprio autor, sao portadoras de proposigóes teológicas erróneas.

— 56 —
Livros de sensacáo sobre o Vaticano:

Ainda "Em nome de Deus11 e outros...

Em sintese: Abaixo vai transcrita uma noticia publicada pelo jornal


O GLOBO que comenta a literatura sensacionalista publicada a respeito do
Vaticano nos últimos decenios. Em virtude do sigilo mentido durante sáculos
sobre o arquivo da Santa Sé, multos escritores tém procurado explorar fiiaes
que parecem permitir penetrar dentro da realldade interna do Vaticano.
Tém-no feito, porém, fantasiosamente, recorrendo nSo raro á mentira e a
caricatura. A Santa Sé nao costuma responder a tais invect.vas embora
últimamente o tenha feito de modo peremptórlo em relacio ao livro «Em
Nome de Deus" de David Yallop.

Transcrevemos a seguir uma noticia do jornal O GLOBO,


edicáo de 16/08/84, p. 30, que se refere ao livro «Em Nome
de Deus», de David Yallop, e a semelhantes obras concernentes
á vida interna da Santa Sé. Visto que se trata de apreciagáo
assaz lúcida e equilibrada, merece atengáo; poderá ser útil
para se aferir o significado de tal literatura.

Vaticano: Séculos de sigilo, um filó» para a imaginacao

ROMA — Pesquisadores serios ou simples aventureiros interessados


no sensacionalismo, cada vez mais escritores de todo o mundo se dedi-
cam a explorar o filáo de ouro das historias que envolvem a Igreja
Católica. As veres ¡untando dados avaramente distribuidos, quase
sempre usando apenas a máquina de escrever e moita ¡maginacao,
esses escritores descobriram que devassar os segredos ciosamente ¡guar
dados no Vaticano é um dos meios mais eficazes de ganhar muilo
dinheiro com nenhum risco.

Obsessivamente preocupada em resguardar seus arquivos, que


encerram a historia do mundo ao longo de quase dois mil anos, a
Santa Sé acaba por conseguir o contrario do que pretende. H exata-
mente esse espesso manto de sigilo que excita a imaginacáo, fazendo
com que periódicamente sur¡am livros com versSes mais ou menos

— 57 —
58 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 278/1985

fantasiosas de fatos ligados á Igreja. E que também excita os leitores,


levando-os a consumir milhóes de exemplares vertidos para pratica-
mente todos os idiomas, tornando seus autores cada vez mais ricos
e famosos.

Ao Vaticano, pouco resta fazer para enfrentar a gigantesca maré


literaria. Quando o livro se fundamenta em dados inquestionavel-
mente corretos e pesquisas cuidadosas, oferecendo urna imagem pouco
crítica, a Igreja quase sempre silencia. Quando, ao contrario, a imagi-
nacáo forja mentiras e se destaca, sem provas, o sensacional é o
escandaloso, também ai é melhor o silencio. Vez por outra surge um
desmentido, mais ou menos enfático, dependendo da natureza do tema.
Mas os processos judiciais nunca sao apresentados porque eles exigem
documentacao e isso o Vaticano nao está interessado em tornar público.

INESGOTÁVEL

Há séculos se escreve sobre o que acontece por Irás dos pesados


muros da Santa Sé, mas de alguns anos para cá a avidez do público,
estimulada pelo aumento de permissividade, tornou-se muito maior.
Com isso, explorando esse filáo inesgolável, surgiram dezenas de escri
tores, contando historias baseadas em pesquisas pouco serias ou
criando situacóes que váo da imaginacáo desenfreada á fantasia
delirante.

Em 1982, o ¡ornalista americano Richard Hammer publico» «A


conexáo do Vaticano», que tratava das operacoes financeiras da Mafia
nos Estados Unidos e da suposta parMdpacáo da Santa Sé nos negocios.
Baseado em declaracóes do estelionatário austríaco Leopold Ledl,
Hammer escreveu que o administrador do Banco do Vaticano, Paúl
Marcinkus, tentou comprar a precos baixos fakos bdnus do Tesouro
americano para compensar algumas operacoes desastrosas que
realizara. Nao foi apresentada nenhuma prova, mas o livro foi um
sucesso de vendas.

Outro «best seller» foi «A batina vermelha», do escritor e ex-


diplomata francés Roger Peyrefitte, um hábil especialista em literatura
religiosa de fiecáo. Em sua obra, o Papa, polonés, é um agente comu
nista e as duvidosas manobras financeiras de um certo Arcebispo
larvinkus misturam-ce com detalhadas descricoes de orgias no
Vaticano. ..

Em «O somántanos, do canadense de origem ucraniana Philippe


Vandt Rjndt, o título da capa é desenhado de forma a parecer o
emblema do sindicato polonés Solidariedade e o Papa polonés

— 58 —
«EM NOME DE DEUS» E OUTROS... 59

Inocencio I tem traeos semelhantes aos de Karol Woityla. Na historia,


o Papa é judeu sem saber (sua identidade havia sido trocada quando
enanca no campo de concentracáo de Auschwitz), colabora estreita-
mente com os Servicos Secretos de Israel e acaba conseguindo fazer
emigrar da URSS todos os judeus soviéticos.

O escritor francés Gérard de Villiers, em «A conexño búlgara»,


ampara-se em supostas pesquisas sobre o atentado cometido pelo
turco Mehmet Ali Agca contra o Papa Joño Paulo II em 1981. Mas,
ácima de tudo, dá destaque as tnaratonas sexuais promovidas na
Bulgaria pelo principal persona,gem, um certo Príncipe Malko, ignorando
os aspectos supostamente mais serios da historia.

O MAIOR GOLPE

Desses livros inofensivos, frutos de mera imaginacao, o Vaticano


¡amáis se ocupou. Nao foi o que ocorreu, porém, com o recente «Em
nome de Deus», no qual o inglés David Yallop tenta demonstrar, sem
provas, que o Papa Joáo Paulo I (Albino Luciani) foi assassinado após
exercer o Pontificado por menos de um mes. Na versao de Yallop, o
Papa pretendió reorganizar a fechadíssima Curia Romana e exercer
maior controle sobre as financas da Santa Sé. Por essa razáo, foi
envenenado num conluio de sacerdotes com financistas ligados á Loja
Masónica Propaganda-2.

Quando o livro ganhou fama e foi condensado por revistas e


¡ornáis de todo o mundo, o Vaticano veio a público com o porta-voz
Romeo Panciroli para desmentir categóricamente o seu teor. O resul
tado foi quase nulo porque até ho¡e «Em nome de Deus» freqüenta as
listas de mais vendidos e transformou seu autor num milionário.

No momento, a polémica é sobre o livro «O ano do Armagedon:


o Papa e a bomba», dos ingleses Gordon Thomas e tAax Morgan-
-Wilrs. O Vaticano, segundo eles, colabora ativamente com a Agencia
Central de Informacpes (CÍA) dos EUA e déla recebe, todas as sextas-
-feiras, um boletim com informes que Ihe interessam.

No caso, a Santa Sé nao esperou, reagindo com rapidez ¡ncomum:


logo no dia seguinte ao da apresentacao do livro, o porta-voz da
Igreja qualificou as versees de «absurdas e desprovidas de qualquer
fundamento». E, a cada réplica dos autores, vem novo desmentido.
Esse procedimento leva a crer que, cansado de insinuagóes e ataques,
o Vaticano decidiu agir e nao pretende deixar nada sem resposta.

— 59 —
60 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 278/1985

Á guisa de conclusáo, podemos lembrar famosos axiomas


que, proferidos em épocas passadas, conservam seu pleno va
lor era nossos dias. Assim, por exemplo, diziam os romanos:
«Vulgus vult decipi. — O povo (o público) quer ser engañado».
Com outras palavras: a verdade, cha e incolor como muitas
vezes é, nao atrai, nao provoca ressonáncia no grande público;
nao raro, sonriente a mentira imaginosa e caricatural provoca
o interesse das massas. Voltaire (t 1778), por sua vez, escre-
via: «Mentez, mentez; il en restera toujours quelque chose.
— Mentí, mentí, sempre ficará alguma coisa»; com efeito, a
mentira forjada de maneira fantasiosa e picante tende a se
impregnar ñas mentes mais fácilmente do que a verdade lisa
e neutra. É o que se verifica precisamente no tocante á
literatura vaticanesca e, em particular, com respeito ao livro
«Em Nome de Deus» de David Yallop.

curso bíblico por correspondencia


A Escola de Fé e Catequese «Mater Ecclesiae» lancou um
Curso Bíblico por Correspondencia destinado a agentes de pas
toral e ao laicato em geral.
Compreende quatro etapas: 1) Introdujo Geral á S.
Escritura (12 ligóes); 2) Introdugáo Especial ao Novo Testa
mento; 3) Introducáo Especial ao Antigo Testamento; 4)
Exegese de textos seletos.
As inscrigóes podem ser feitas em qualquer época do ano.
O cursista receberá licóes acompanhadas de questionário
atinente á materia. Depois de estudar, responderá as questóes
e enviará a resposta a Escola. Esta as devolverá corrigidas,
com novo bloco de ligóes. Se, ao fim das quatro etapas, obtiver
75% de acertos, receberá certificado da Escola «Mater
Ecclesiae».
As inscrigóes podem ser feitas desde já, com indicagáo do
nome e do enderego do cursista e o pagamento de Cr$ 3.000,00
pela primeira etapa (12 ligóes). Enviar inscrigóes E PAGA
MENTO ao seguinte enderego:
Escola «Mater Ecclesiae» — Rúa Benjamín Constant 23,
3' andar — 20241 — RIO DE JANEIRO (RJ).
Depositar na conta 070-739-2 do BRADESCO, Agenda
3019, Catete, RJ.
Pede-se a todos queiram fazer a possível divulgacáo desta
iniciativa pastoral.

— 60 —
Questáo fundamental:

0 Sentido da Vida

Em síntese: O psicólogo judeu Viktor Frankl, pesquisando o com-


portamento de jovens e adultos norte-americanos, verlficou o alto teor de
neuroso que os afeta. Tal fato é surpreendente, se levamos em conta as
teorías de Slgmund Freud e Alfred Adler, que afirman) ser a neurose con-
seqüéncia dé nSo satisfacfio do apetite sexual (Freud) ou do apetite de
autoafirmacao (Adler); na verdade, os adolescentes e os jovens norte-ameri
canos gozam de numerosas oportunidades de realizacño de um e outro
apetite. — Em conseqüéncia, Viktor Frankl afirma que em todo ser humano
existe ainda outro apetite ou desejo, que, se nao é satisfeito, leva á neurose:
é o desejo de sentido da vida; sim, o ser humano quer nao apenas ser
compreendido, mas quer também visceralmente compreender o sentido da
vida. Mals: tal apetite nio se contenta com a proposta de valores passa-
gelros ou fugazes, como sfio os da moda ou mesmo os do amor meramente
humano, mas só se aquieta mediante a proposta de valores estáveis; ora
estes sSo, segundo Frankl, Deus (que nio tem principio nem fim), o espirito
(que nao se desintegra), a eternidade (perpetuidade ou ininterrupto hoje).

A doutrlna de Frankl, que nao é cristio, mas fala estritamente como


pslcoterapeuta, é altamente significativa para os crlstios. Estes sao chama
dos a corroborar sua adesfio aos valores da fé e a traduzi-los em vida
coerente para atender nSo só aos seus anseios pessoais, mas para prestar
ao mundo um servico, ... servico que, na verdade, nenhum terapeuta,
munido apenas de conheclmentos científicos, pode prestar.

Viktor Frankl é um psicólogo e psiquiatra judeu nascido


na Austria. Foi perseguido pelo nacional-socialismo, que o
encerrou no campo de concentragáo de Auschwitz, donde con-
seguiu escapar com vida. Passou entáo a residir nos Esta
dos Unidos, onde leciona e pesquisa como professor univer
sitario. É professor honorario de Universidades de diver
sos países. Escreveu urna dezena de livros sobre o ser humano,
entre os quais se salientam: «O homem em busca do sentido»,
«Psicoterapia e sentido da vida», «Psicoterapia e existencia-
lismo»... Viktor Frankl foi o sucessor de Sigmund Freud na
cátedra de Psiquiatría da Faculdade de Medicina da Universi-
dade de Viena e é o criador do método psicoterapéutico cha
mado «Logoterapia».

— 61 —
62 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 278/1985

É precisamente este aspecto original de Viktor Frankl que


nos interessará ñas páginas seguintes.

O presente artigo se baseia estritamente na apresentagáo


de Viktor Frankl feita pelo Pe. Joáo Mohana em seu livro
«Escolhidos de Deus», Ed. Loyola 1984, pp. 109-123. — Em
próximo artigo, analisaremos diretamente tópicos do livro «Psi
coterapia e Sentido da Vida» de Viktor Frankl.

1. A tese de Viktor Frankl

1.1. O desejo de sentido da vida

Viktor Frankl estudou a cultura norte-americana, carac


terizada pelo puerocentrismo ou pelos cuidados dispensados á
crianga.

Verificou, entre outras coisas, que, embora a juventude


norte-americana tenha liberdade para praticar o sexo, o Índice
de neuróticos entre os cidadáos norte-americanos é muito ele
vado. Na verdade, a descontragáo sexual nos Estados Unidos
é livremente vivenciada pelos jovens; a vontade de prazer é
contentada nos rapazes e ñas mogas norte-americanos. Ora,
segundo as concepgóes freudianas, a neurose é o produto da
repressáo do sexo; a frustragáo sexual é mecanismo desenca-
deador de doengas. Foi o que levou Viktor Frankl a perguntar
como se explicava a neurose de tanta gente livre para praticar
o sexo.

Mais: o mesmo pesquisador verificou que nos Estados Uni


dos o impulso de auto-afirmagáo ou a vontade de poder encon-
tra ampia realizagáo e satisfagáo; aos jovens sao dadas chan
ces que a juventude de outros países ignora. Ora, segundo
Alfred Adler, a neurose decorre da frustragáo da auto-afir-
magáo pessoal; é doenga da personalidade cujo impulso de auto-
-afirmagáo ou cuja vontade de poder é reprimida.

Perguntou entáo Frankl: como se explicam os numerosos


casos de neurose exisstente nos Estados Unidos se lá a juven
tude goza de liberdade sexual, de garantías profissionais e faci
lidades sociais? Em outras palavras: se o désejo de prazer e
o desejo de poder encontram a sua satisfagáo, como entender
que pululem os casos de neurose entre os jovens norte-ameri
canos?

— 62 —
O SENTIDO DA VIDA 63

O pesquisador austríaco respóndete o vazio e a angustia


existenciais que afetam o homem, decorrem muitas vezes de
outra frustracáo, nao levada em conta por Freud e Adler; com
efeito, dizia Frankl, em todo homem há também urna «vontade
de sentido» ou o desejo de saber o significado da vida, o por
que e o para que viver. Tal necessidade de sentido da vida é
um impulso específicamente humano, arraigado ñas carnadas
mais profundas do psiquismo.

Os animáis irracionais existem como os homens. Mas


somente os homens querem saber por que existem e para que
existem; estes aspiram nao apenas a ser compreendidos, mas
também a compreender a vida; tal aspiragáo é inata, imperiosa
e incoercivel. Em conseqüéncia, todas as vezes que deixa de
ser atendida, entra em frustracáo e causa neurose,... neurose
que Viktor Frankl chama noógena (de nous, espirito), pois
ela decorre, em última instancia, do fato de que o homem é
mais do que materia; é dotado de urna alma espiritual, que é
capaz de se elevar ácima das situagóes momentáneas e de pro
curar os porqués ou as grandes premissas de cada realidade
contingente.

£ a falta de resposta para a vontade de sentido que explica


muitos dos casos de suicidio em nossos dias. Em 1978 houve
14.600 sucídios de jovens entre 17 e 20 anos na Franga; todos
deixaram sinais de que haviam perdido o sentido da existencia.
Nao basta o amor dos pais para curar este tipo de neurose.
Por isto já está superado o slogan: «Ame seu filho e vocé o
livrará da neurose»; é preciso que os pais apresentem a seus
filhos também o sentido da vida.

1.2. Valores ¡nstáveis e estovéis

Viktor Frankl, em suas pesquisas, descobriu ulteriormente


que o sentido da vida só se revela quando o homem encon-
tra valores estáveis. Isto bem se compreende. Valores instá-
veis e passageiros nao impedem a inseguranga; quando se váo,
esvai-se aquilo que parecía dar sentido á vida.

Muitos sao os exemplos de valores efémeros, nos quais ilu


soriamente o ser humano pode procurar a resposta para as
suas aspiragóes congénitas:

Tais sao os bens de consumo, que sao sempre substituidos


por outros, «mais modernos» ou «mais funcionáis». Tais sao
também a gloria, o poder, o prestigio, que nao duram sempre,

— 63 —
64 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 278/1985

mas tém suas fases. Tal é outrossim o prazer sensual, pois o


corpo e a sensibilidade se esmaecem e desintegram. Até mesmo
o amor humano tem o caráter da finitude e da limitagáo.

Feita esta análise, Viktor Frankl chegou a conclusáo de


que tres sao os valores estáveis capazes de dar ao homem o
sentido da vida: Deus (que nao tem principio nem fim), o
espirito (que nao se desintegra nem desaparece), a eternidade
(que significa perpetuidade ou o náo-acaso).

A saúde mental requer a descoberta desses tres valores


estáveis e a adesáo aos mesmos. Sempre que Frankl tentou
usar a psicoterapia freudiana (que supóe ser a neurose de
fundo sexual meramente) ou a adleriana (que atribuí a neu
rose a nao consecucáo da auto-afirmacáo), fracassou. Dai ter
criado novo método psicoterapia) — a Logoterapia —, que
tenía levar o paciente a descoberta dos valores estáveis, capa
zes de o saciar. Segundo Frankl, o médico que nao ajuda o
paciente a encontrar o sentido da vida e a descobrir os valo
res estáveis, fracassa em sua missáo. — Wilfried Daim, discí
pulo de Frankl, cbega a afirmar que «o psicoterapeuta que nao
instala no paciente o confuto de Deus (primeiro dos valores
estáveis), nao o liberta da neurose».

As conclusóes de Frankl, que fala táo somente como psi


cólogo, e psicólogo nao vinculado ao Cristianismo, sao alta
mente significativas; convergen» com o conteúdo da mensagem
crista. Dai a conveniencia de urna reflexáo sobre o assunto.

2. Refletindo...

A tese de Viktor Frankl interpela vivamente os cristáos


em dois níveis:

1) A todos o psicólogo austríaco lembra que os valores


apregoados pela fé sao os únicos aptos a responder ao homem.
Já bem dizia S. Agostinho (f 430), depois de ter percorrido
algumas escolas de filosofía da sua época: «Senhor, Tu nos
fizeste para Ti, e inquieto é o nosso coracáo enquanto nao
repousa em Ti» (Conf. 11). Diante da avalanche de propostas
materialistas para responder ao homem de hoje, os bens espi-
rituais — tidos por muitos talvez como meramente poéticos e
inconsistentes — avultam-se como os únicos valores capazes

— 64 —
O SENTIDO DA VIDA 65

de satisfazer aos anseios mais profundos do homem. Isto se


compreende bem: qualquer promessa de felicidade transitoria
só pode deixar decepcionado o homem, cujas aspiracóes se vol-
tam para a felicidade sem fim; qualquer bem que passa, por
mais fascinante que seja, é pequeño demais para a capacidade
do ser humano.

2) De modo especial, as conclusoes do psicólogo austríaco


recomendam a tarefa dos sacerdotes e Religiosos que, além de
consagrar toda a sua vida ao servigo dos valores definitivos,
procuram transmiti-los aos seus irmáos. Viktor Frankl, em-
bora nao seja cristáo, apela para o servic.0 dos ministros reli
giosos, julgando que o ministro de Deus está particularmente
credenciado para transmitir á humanidade a nocáo dos valores
estáveis. O psicoterapeuta nao pode fazer isto sozinho.

Esta verificacáo de V. Frankl projeta luz sobre o que se


chamaría «a crise de identidades» de certos Religiosos. Na
verdade, alguns destes, julgando que o mundo moderno se des-
cristianizou e materiaíizou quase por completo, poderiam ser
propensos a crer que nao tém mais funcáo a desempenhar em
nossos dias, pois os valores religiosos estariam em grande baixa.
Enganar-se-ia quem assim pensasse, induzido talvez por opi-
nióes precipitadas e superficiais de falsos «profetas». — Aos
Religiosos cabe hoje um papel táo urgente e necessário como
nunca. Alguns, por sua palavra e sua agáo, tentam despertar
em seus irmáos a no~áo dos valores estáveis para os quais o
homem foi feito; sao os que pregam e ensinam as verdades da
fé em sua pureza nao secularizada ou com toda a pujanca do
transcendental que as impregna. Outros procuram viver no
silencio contemplativo e na clausura esses valores estáveis,
demonstrando praticamente aos seus irmáos que tais valores
podem preencher a vida de urna criatura e comunicar a esta
a paz, a felicidade e a liberdade que o mundo nao é capaz do
dar (cf. Jo 14,27); pelo fato mesmo de viverem fielmente a
sua vocacáo contemplativa, sao sinal e testemunho para os
seus semelhantes,... sinal que indica o sentido da vida,...
sinal que fala até mesmo aos casáis, ajudando-os a viver mais
cristámente a sua vida conjugal (a qual é um sacramento
permanente).

Na época materialista em que vivemos, presenciando tan


tos casos de neurose existencial, a doutrina de Viktor Frankl
é certamente luz e solucáo para muitos dos que se debatem
na angustia e no desespero.

— 65 —
Mais urna vez atrás da Cortina de Ferro:

Impressóes Colhidas na U. R. S. S.
Em sintese: As páginas subseqüentes apresentam impressdes coihi-
das por um viajante habituado a estar na Rússia Soviética a respeito da vida
de fé naquele país. De um lado, o cronista mostra o peso da persegulcfio
aos fiéis, que sentem o amedrontamenlo e o respeito humano. Doutro lado,
evidencia o fervor com que muitos observam suas prátlcas religiosas (jejum,
freqüéncia ao culto) e dSo o testemunho de honestidade num país que se
vai corrompendo cada vez mais. Em suma, a fé está longe de ter morrido
na U.R.S.S.; ela renasce especialmente ñas gerac.5es mais jovens, onde se
encontra bom número de recém-convertidos.

A revista PR tem publicado relatónos e informagóes a


respeito da vida de fé na U.R.S.S., informagóes que chegam
ao Ocidente por vía clandestina ou pelo testemunho de via
jantes. Neste número tornamos a apresentar crónica e im
pressóes da U.R.S.S., cientes de que se trata de noticias
geralmente desconhecidas, como desconhecido é ao estran-
geiro quase tudo o que se realiza no cotidiano da U.R.S.S.
O cristáo do Brasil, através de tais páginas, tomará conscién-
cia do heroísmo do ánimo de seus irmáos na Rússia, dos per-
calgos que os ameacam e da necessidade de pedir perseveranca
e magnanimidade por quantos sao assim perseguidos. Mais e
mais a leitura de tais noticiarios incute a convicgáo de que o
mundo precisa de santos ou de homens que saibam viver a sua
fé até as últimas conseqüéncias, nao só na U.R.R.S., mas
também no Brasil.

O autor do documento que se segué, fez prolongadas via-


gens através da U.R.S.S. por motivos profissionais, deten-
do-se em alguns pontos importantes, inclusive em Moscou, que
o cronista bem conhece. Em 1981 permaneceu varios meses
na Rússia. Como resultado de suas experiencias, houve por
bem redigir as suas impressóes, que foram publicadas pelo
Boletim SOP, do Comité ínter-Episcopal Ortodoxo da Franca,
n» 65, fevereiro 1982, pp. 19-23. É desta fonte que traduzimos
o relatório. Por motivos evidentes, o autor quis guardar o
anonimato. Fazemos ainda notar que o cronista se refere sem-
pre á Igreja Ortodoxa, nao unida a Roma.

_ 66 —
IMPRESS6ES DA U.R.S.S. 67

O RELATÓRIO

Tive recentemente a ocasiao de residir alguns meses em Moscou,


o que me deu a possibilidade de participar pessoalmente da vida dos
cristaos, mas também me privou das informagoes que habitualmente
recebo em París e que sao qvase inacessíveis na U.R.S.S... A
'desinformac.ao' faz parte de todo um conjunto de restricóes que tornam
a Rússia um país totalitario.

Eis por que o leitor encontrará aqui um relato de viagem concreta,


e nao urna crónica sobre a situacao atual dos fiéis na U.R.S.S. Minha
narragáo baseia-se sobre observacoes pessoais, conversas fortuitas,
encontros imprevistos, comparacoes com minhas estadas anteriores no
país...

1. Ñas paróquias 1

Quisera comecar por falar da vida cotidiana ñas paróquias que


freqüentei. Um sábado á noite, a Igreja relativamente grande estava
toda apinhada. Nos nos comprimíamos como no metro. Mas nao
estovamos no metro; havíamos deixado os aborrecimentos da luta
cotidiana e as filas; havíamos esquecido tudo isso e, dentro da ¡greja
repleta de gente, éramos arrastados pelo clima de oracáo que nos
envolvió e pela harmonio própria do ritmo do Oficio2. Como lugar
de culto ou de retiro, a igreja como tal se torna um oasis de serenidade
e de oracao, onde cada um pode fazer a sua experiencia da Térra
Prometida e da expectativa do Paraíso.

A meu ver, as enancas sao mais numerosas, especialmente nos


Oficios da noite, do que há dez anos. Muitas vezes sao vistas em pé
na frente, perto da iconostase e a alguns metros do clero. Quem as
leva á ¡gre¡a? Ja nao sao os avós como outrora, pois estes atualmente*
fazem parte da geracáo totalmente atéia dos anos de 1925-1930,
nascidos e educados no ateísmo militante e totalmente alheios á
religiáo. As enancas váo sos á igreja ou acontece que seus jovens
genitores, muitas vezes recém-convertidos, as levam. Contudo a oposi-
cáo á religiáo ñas cidades é forte. Num domingo de marina entrei no
recinto de um mosleíro de suburbio transformado em museu, no interior

i Os subtítulos sao do tradutor.

s O Oficio Divino é a oracao oficial da Igreja, constituida de salmos, hlnos


e preces. (Nota do tradutor).

— 67 —
68 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 278/1985

do qual havia uma ¡gre¡a aberta. Uma mulher segurava seu filho pela
máo, um garoto de cerca de dez anos. A multidao entrava persi.gnan-
do-se- O garoto, ao vé-la, fez o mesmo; observei entao que sua mae
foi duramente recriminada por um guarda que estava perto. ..

É preciso dizer que as condicóes de vida de uma paróquia sao


bastante difíceis, sendo um dos problemas fundamentáis a falta de
catequese. O celebrante da Liturgia pode ser censurado pelos agentes
do Governo se o seu sermáo procura atualizar um pouco mais os temas
evangélicos. Nao há catequese para enancas, nao ha livros a comprar
em livrarias especializadas ou a emprestar em bibliotecas paroquiais,
pois nem aquelas nem estas existem.

Por isto é que surgiram os «seminarios de trabalho», reunioes de


pequeños grupos fechados, ñas quais algumas pessoas procuram com-
preender a sua fé e instruir-se, a fim de aprofundar a vida espiritual.
A forca moral dos fiéis explica, em parte, as perseguicoes; o Governo
nao pode tolerar que os homens falem do Reino de Deus, que tenham
fé neste, e que vivam para este. Por isto tais seminarios foram decapi
tados (perderam seus dirigentes) e vivem atualmente na clandestini-
dade. Se bem que soubesse pela imprensa ocidental que existem tais
seminarios, nao procurei ¡nformacoes a respeito durante a minha viagem
para nao acarretar perigo para alguém.

Os sacerdotes tém que fazer escolhas. Al.guns vao visitar os


doentes nos hospitais ou a domicilio; confessam-nos e levam-lhes a
Comunhao. Outros preferem nao o fazer, e isto sem que sofram alguma
crítica. Trata-se de sacerdotes que tém filhos de pouca idade e nao
querem correr o risco de ser encarcerados. Nao se atribuem o direito
de por sua familia em perigo e de deixar os filhos sem pao. Aqueles
cu¡os filhos ¡á sao crescidos, correm habitualmenle mais riscos.

2. Batirados

É preciso dizer que os balizados de enancas e de adultos se


multiplicam. Nao possuo dados numéricos, mas posso referir o que vi
numa igreja periférica de Moscou num domingo comum. Havia multidao
de gente, como sempre, e eu me pusera em nave lateral... Vi chegar
dezenas de enancas, desde bebés carregados nos bracos até as de
seis ou sete anos aproximadamente. Contei mais de 150. Eran» recém-
•batizados, e deviam ser levados á cerimónia que ocorre depois do
batismo- Terminada esta, toda essa assembléia de enancas foi ter com
seus pais e se pos em fila para aguardar a Comunhao.

— 68 —
IMPRESSOES DA U.R.S.S. 69

Em outra igreja... o padre me disse com ufania que lá se batiza-


vam geralmente dez ou quinze bebés de cada vez. Quanto aos adultos,
ele contava cerca de duzentos balizados por ano.

3. Confissáo sacramental

Um dos problemas mais graves qve atualmente se poem para os


fiéis ortodoxos, é o da Confissáo. Sabe-se que na prática ortodoxa
russa é costume confessar-se todas as vezes que o fiel vai comungar.
Um fato recente, e certamente alarmante para as autoridades, é o
aumento do número de Comunhóes tías grandes cidades. Mais de urna
vez assisti á distribuicáo da Comunhfio aos fiéis: durava de 12 a 13
minutos e havia dois cálices, se nao mais; verifique! em ¡grejas dife
rentes que o número de comungantes era muito maior do que por
ocasiáo de estadas anteriores.

Ora os sacerdotes nao bastam para a tarefa; sao poucos demais


(apesar disto, alguns bispos incorreram em sancoes severas porque
ordenavam padres 'em demasía'). A vida cotidiana de um sacerdote
de paróquia pode comparar-se á de um médico clínico noma regiao
do interior isolada, mas sem carro! Muitos levantam-se desde a aurora,
e em alguns domingos as cinco horas da manhá, para so terminar a
¡ornada á meia-noite ou mais tarde. Os neo-convertidos sao moitas
vezes muito ignorantes; é preciso catequizá-los um por um durante a
confissáo. é por isto que, no correr dos anos, se propagou a prática
da confissáo comunitaria, que outrora ocorria excepcionalmente nos
dias de grande afluencia. Diante do povo reunido (eem ou duzentas
pessoas de cada vez), o sacerdote recita as oracSes penitenciáis, as
quais se segué urna lista de culpas de acordó com a ordem dos dez
mandamentos. Feito isto, cada fiel vai receber a absolvicao. E preciso
proceder com rapidez, pois há muita gente! Mas eu mesrao assisli a
cena seguinte: o sacerdote comecou a dar a absolvió individual
mente Dez minutos depois, ele interrompeu o fluxo de pessoas e,
voltando-se para todos com sorriso, disse: «Nao vos preocupéis; cada
um de vés deve aproximar-se em paz; se tem algo a dizer, diga-mo
calmamente, sem pressa; nao esquecerei ninguém». Estas palavras
apaziguaram os ánimos inquietos e dissiparam a aparenaa de fila de
espera diante de urna lo¡a, transformando a multidao impaciente em
povo de Deus.

A prátiea da confissáo comunitaria, cujas vantagens sao evidentes,


aprésenla também dois inconvenientes importantes. Ocorre durante a
celebrado. Os fiéis que váo á confissáo no iníao da Liturgia, faltam

— 69 —
70 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 278/1985

a grande parte do Oficio. O segundo inconveniente é a ausencia,


nessas condicoes, de direcao espiritual1. Contaram-me que cerfos
habitantes do interior, vivendo em regioes onde nao há urna só igreja
aberta, ficaram por vezes varios anos sem se confessar e sem comungar-
Qs neo-convertidos sao talvez os mais infelizes porque nem sempre
sabem a quem se dirigir, nao tém textos á disposicSo e precisam espe
cialmente de ser guiados. Por vezes, os amigos ou vizinhos se encar-
regam de os instruir quanto podem. Mais: existe, desde anos, a prática
da direcao espiritual por correspondencia; existe também a consulta
aos monges nos poucos mosteiros que ainda ficam abertos no país;
essa procura de mosteiros torna-se até om dos possíveis objetivos de
viagens de ferias.

4. Renascimento religioso

£ preciso nao idealizar o renascimento atual. Fala-se muito disto


tío Ocidente, em ambientes informados, e ele existe, por certo; mas na
Rússia ouvem-se a respeito testemunhos de grande pessimismo. Alias,
este é normal da parte ele pessoas que estao pessoalmente envolvidas
num processo e, por conseguinte, menos conscientes dos aspectos posi
tivos ¿lo movimento religioso. O que aqui refiro, observei-o eu mesmo
em Moscou. Ao contrario, ñas regioes isoladas e ñas pequeñas cidades
de provincia a situacao é dramática, dizem; fala-se de 'deserto total';
é notoria a miseria do interior da Rússia com seus corolarios: o
alcoolismo, a corrupcao e a violencia; ai reina o medo. Acontece, por
exemplo, que, numa pequeña cidade onde ha¡a apenas urna i,gre¡a
aberta, as pessoas que nesta entram nem ousam fazer o sinal da cruz.
Preferem assistir ao Oficio como turistas e passar por 'curiosos' que lá
tenham entrado por acaso, antes que ser identificadas e deixar trans
parecer que sao crentes.

i Na Igreja Católica, a prática da conflssfio sacramental comunitaria


é permitida desde que

1) o blspo diocesano a autorizo, devendo o mesmo Indicar também os


días em que seja lícito pratlcá-la;

21 o fiel que receba a absolvIcSo em contlssSo comunitaria deve estar


disposto a confessar na prlmelra ocasISo os pecados absolvidos. Nfio Ihe
é licito recebar nova absolvIcSo comunitaria sem ter felto previamente a
devida confissfio auricular dos pecados absolvidos comunitariamente. (Nota
do tradutor).

— 70 —
IMPRESSOES DA U.R.S.S. 71

5. Perseguigóes

A respeito das perseguicóes nada posso dizer. Nao sei se se


intensificaran) no decorrer das semanas que passei na Rússia, pois, como
eu dizia atrás, as informacóes na U.R.S.S. circulam difícilmente. Mas
o que é novo para mim e de todo surpreendente, é urna mudanca de
atitude das pessoas postas em provacao. Outrora, quando ocorria a
desgraca — interrogatorios, perquisicoes, encarceramentos — forma-
va-se um muro de silencio em torno das pessoas areladas. Agora
parece que, sem violar as regras da prudencia, os cristaos procuran),
ao contrario, espaldar a noticia, a fim de ajudar as pessoas, dar-lh'es
coragem e vencer o medo. Desde que se saiba que alguém precisa de
roupas quentes, de vitaminas, de urna Biblia, de um calendario litúr
gico, ... os amigos percorrem a cidade inteira para descobrir tais
objetos, sem indagar ou sem procurar saber quem é que precisa disso:
<cé necessário»; por conseguinte, tudo fazem para encontrar esse
necessário com a máxima urgencia possível.

No tocante aos encarcerados e as suas familias, as necessidades


sao evidentes; as enancas sao muitas vezes as vítimas mais desprovidas.
Mas quanto maior é o despojamento, tanto maior é também a parlilha.
Observei, entre outras coisas, urna extraordinaria circulacao de livros
em Moscou: um bom livro, principalmente urna obra de teologia, está
em perpetuo vai-e-vem; tantas pessoas precisam de tal livro .que, se
alguém consegue um exemplar, nao pode recusar a partilha-

6. Honestidadé

De modo .geral, creio que os costumes dos fiéis mudaram: a penuria


parece ter gerado generosidade e solidariedade. Parece também que
o rigor da vida litúrgica é acompanhado por acrescida austeridade no
seio da familia.

Por exemplo, os casáis de fiéis parecem nao praticar controle dos


nascimentos; por conseguinte, tém muiros filhos e agudas carencias
materiais (o sistema dos aluguéis de residéndas para familias na Rússia
chega ás raias do ridículo). Vi casáis muito ¡ovens com cinco ou seis
filhos; alguns sacerdotes com os quais conversei, eram todos oriundos
de familias onde havia entre cinco e quinze filhos!

Além do número de filhos, observei também mais disciplina pessoal


num país onde a corrupcao se alastra de maneira monstruosa e a
inflacáo é galopante. Vi pessoas a recusar o mercado negro ou o

— 71 —
72 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 278/1985

sistema 'D1; nao querem ser tragadas pela avidez e a corrupcáo gerais
e, por ¡sto, reduzem as suas necessidades a um mínimo mais do que
estrilo.

Eu eslava na Rússia durante o Advento e, apesar das dificuldades


de alimentacao ¡á conhecidas, as prescricoes de jejum eram observadas
por completo. Mais: os fiéis voltam a praticar o ¡ejum eucarístico desde
a véspero do dia em que comungam; pelo que sei, a abstinencia nos
períodos de preceito é guardada habitualmente. Torna-se difícil obter
informacoes sobre tais assuntos, que costumam ficar sob o sigilo da
discricáo. Mas de modo geral pode-se dizer que os fiéis que vño á
igreja, nao se contentam com urna ortodoxia 'dominical', mas procuram
viver a vida crista no cotidiano e no seio da familia.

7. Igreja e Estado

No tocante ao modo de ver a Igreja no contexto soviético atual,


a atitude mais freqüente parece ser a seguinte: a Igreja é um baluarte
que se faz mister defender. Apesar disto, alguns perguntam com certa
angustia se a necessidade de receber os sacramentos e viver urna vida
litúrgica na lgre¡a nao é paga a preco demasiado alto; urna hierarquia
comprometida, a dúvida, a suspeita, a mentira e a linguagem dupla,
como os que sao correntes no país, sao toleráveis no seio mesmo da
Igreja?

A vida da Igreja ressente-se fortemente da pressao do Estado ateu,


que se agravou na U.R.S.S. tío decorrer dos últimos anos. Entre os
sinais desta recrudescencia, nota-se o linguajar da imprensa, que se
tornou cada vez mais violento em assuntos de ordem internacional como
nos de política externa; por exemplo, ao denunciar um abuso social
qualquer, os ¡ornáis voltam a falar de 'inimigos do povo*.

Tem-se a impressao de que a Cortina de Ferro se tornou muito


densa. A penuria económica aumenta todos os días. A vida cotidiana
é dura. Há um contraste chocante entre tudo o que os cidadaos nao
tém o direito de fazer e tudo o que conseguem fazer concretamente. O
número de proibicóes é grande dentáis para que o Governo consiga
controlar a vida dos cidadaos. As malhas da rede se afrouxam as
vezes, porque a própria rede é demasiado grande.

8. O medo
Nao obstante o que ¡á disse, desejo aínda acrescentar que a forma
mais requintada de 'tortura' que eu tenha visto durante este outono na
Rússia, é o medo. Observe! pessoas desfiguradas, cujo semblante era
decom'posto e cujo comportamento era artificial por causa do medo-
— 72 —
IMPRESSOES DA U.R.S.S. 73

«Agora, mais do que outrora?», perguntar-me-ao. Nao posso respon


der. Será que as pessoas sofrem mais, de modo que o seu medo se ¡a
mais transparente, Ou será que comecaram a dominar o medo e, por
isto, aceitam mais fácilmente os riscos? Afinal medo de qué? De falar
alto numa sala em que ha¡a um telefone, medo de referir-se a certas
pessoas (ninguém profere, diante de desconhecidos, os nomes daqueles
que sao considerados como heróis ou qvase santos: Soljenitsin, Sakharov
e, depois deles, Ogourtzov, Yakounine, que, apesar de tudo, estao
presentes na mente e na oragao de cada um), medo de ser chamado
ao KGB, de ser interrogado e de trair alguém, medo de ser separado
dos próximos e amigos.

O medo é degradante e destruidor. Vem a ser, certamente, vma


das mais veementes impressoes que me ficam da minha última visita á
Rússia.

No primeiro serao em Moscou, .quando eu assistia as Vigilias


numa igreja da periferia, compreendi que, aos olhos do Estado, a Igreja
devia ser destruida. As autoridades nao podem nem poderáo ¡amáis
tolerar que, no seio de um pais socialista e totalitario, exista forca Ido
grande, tño viva e tao básica.

Disse um clássico entre os dissidentes russos: «Para sobreviver em


nosso pais, é preciso obedecer a tres imperativos: nao ter medo de
coisa alguma, nada aguardar, nao ter esperanca». Creio que é preciso
transformar esta prescricao amarga em otimismo cristáo e rezar especial
mente para que, a todos os que sofrem, seja poupado o medo; se¡a
este transformado em temor de Deus, a fim de que os homens vivam
na expectativa do Reino e na esperanto da salvacao.

Contaram-me que, no ano passado, na manha da Páscoa, um


sacerdote moscovita idoso e doente assim falou em sua prédica:
«Durante a minha doenca, muito refleti e compreendi que é preciso
nao ter medo. Nada receeis, meus filhos bem-amados, na vida nada
nos pode incutir medo, pois o Cristo ressuscitou»!
O texto assim transcrito é eloqüente por si. Dá a ver quáo
arraigado e espontáneo é o senso religioso do ser humano;
ressurge e reafirma-se mesmo quando submetido á escola do
ateísmo militante. Artificial ou desumano, portanto, é querer
extirpar a crenca religiosa de alguma populagáo. Sem Deus
nao há grandeza humana.

Queira a Providencia Divina continuar a fortalecer seus


fiéis na U.R.S.S., dando-lhes ánimo para testemunhar a vitó-
ria de Cristo! Quem tem consciéncia desta, nao se deixa inti
midar.

— 73 —
Será lícito...

Roubar em Extrema Necessidade?


Em síntese: Sao Tomás de Aqulno e os moralistas católicos enslnam
que, em caso de extrema necessidade, Isto ó, diante do perigo Iminente de
morte, é licito a um indigente apropriar-se de bens alheios na medida em
que estes Ihe sejam Indispensávels para salvar a sua vida (ou a vida do
próximo). Note-se que a grave necessidade nfio basta para justificar tal pro-
cedimento, mas requer-se a extrema... Requer-se também que o indigente,
ao retirar bens do próximo para nao morrer, nSo retire mais do que o
necessário nem acarreto para o proprietário ¡mínente perigo de morte...

Tais principios de Moral, lembrados pela Campanha da Fraternldade/85,


n§o deveriam servir para estimular roubos e assallos. A Campanha da Frater-
nldade foi Instituida para fomentar entendimento e benevolencia mutua entre
os homens, filhos do mesmo Pal celeste, e nfio para Incitar uns contra os
outros.

A Campanha da Fraternidade 1985 adotará por tema


«Pao para quem tem fome». Nos comentarios a tal slogan,
lé-se que é licito «tirar coisas dos outros» em casos especiáis,
sem que isto se constitua em furto ou roubo. Esta afirmacáo
é apoiada em dizeres de S. Tomás de Aquino (t 1274), grande
doutor da Igreja. Ora a temática assim formulada tem sus
citado dúvidas e ansiedades. Pergunta-se: que disse propria-
mente S. Tomás de Aquino? Como definir os limites do lícito
e do ilícito no «tirar as coisas dos outros»?

É precisamente a tais questóes que dedicaremos as pági


nas seguintes. Deve-se notar que tal temática era mais estu-
dada pelos autores antigos do que pelos contemporáneos. Na
explanacáo subseqüente, valer-nos-emos da obra de Domi-
nicus Prümmer O.P., um dos melhores moralistas da primeira
metade do século XX. Em seu «Manuale Theologiae Moralis
secundum principia S. Thomae Aquinatis», ed. nona, tomo n,
Friburgi Brisgoviae 1940, pp. 82-84, o autor propóe conside-
ragóes que podem ser tidas como típicas da doutrina comum
nessa materia.

— 74 —
RQUBAR EM EXTREMA NEGESSIDADE? 75

UM PRINCÍPIO

«Em caso de extrema penuria é lícito retirar dos bens


alheios a quantia suficiente para que o indigente so livre de
tal penuria».

Assim pensam os moralistas católicos em geral, como tam-


bém os Códigos Civis de varios países.

1. A fundamentagáo da tese é a seguinte:

Deus concedeu a térra a todos os homens para que a habi-


tem e se sirvam dos seus bens. Ora todo homem inocente tem
o direito natural de viver; e, como só pode viver se utiliza os
bens da térra, torna-se-lhe lícito, em caso extremo, apropriar-se
dos bens que lhe sejam necessários para escapar da rñorte e
garantir a sua sobrevivencia. Em tais circunstancias, o indi
gente nao está roubando ou nao está injustamente retirando
a propriedade alheia. — Esta proposicáo nao nega o direito á
propriedade particular, pois tem em mira apenas os casos
extremos.

2. O principio assim enunciado requer algumas explica-


£óes:

a) Somente os casos de extrema necessidade, nao os de


grave ou grande penuria, justificam o «retirar bens alheios».

E que se entende por extrema necessidade? — Os autores


nao sao unánimes a respeito: geralmente apontam «próximo
perigo de morte» ou também «próximo perigo de perder um
membro importante do respectivo corpp». O motivo de res
tringir a liceidade aos casos de extrema penuria é obvio: os
moralistas e legisladores querem evitar furtos e assaltos indis
criminados, que violariam o principio da propriedade particular
e a paz da sociedade. Donde se segué que aos mendigos, como
geralmente ocorrem ñas rúas das grandes cidádes, nao é lícito
retirar bens alheios sem licenca do respectivo proprietário. O
Papa Inocencio XI condenou a seguinte propqsicáp de autores
laxistas: «É lícito roubar nao só em extrema necessidade, mas
também em grave penuria» (Denzinger-ScHonmetzer, Enqui-
rídion' 2136 [1186]).
S. Tomás de Aquino, em sua Suma Teológica II/II, qu. 66,
art. 7, interroga: «Se é lícito furtar por necessidade». E res
ponde:

— 75 —
76 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 278/1985

«Se a necessidade for de tal modo evidente e Imperiosa que seja


indubitável o dever de obviá-la com as coisas ao nosso alcance —
por exemplo, .quando corremos perigo iminente de morte e nao é
possível salvarmo-nos de outro modo — entáo podemos licitamente
satisfazer á nossa necessidade com as coisas alheias, apoderando-nos
délas manifestó ou ocultamente. Nem tal ato tem propriamente a
natureza de furto ou rapiña».

O S. Doutor acrescenta que nao somente em caso de ex


trema necessidade do sujeito, mas também em extrema indi
gencia do próximo, é lícito a alguém retirar os bens alheios
suficientes para que nao morra: assim a máe que nao tenha
alimento para seu filho posto na iminéncia de morrer de fome,
pode apropriar-se do alheio na medida do necessário para sal
var da morte o seu filho: «Em caso de semelhante necessi
dade, também podemos apoderar-nos da coisa alheia para socor-
rermos ao próximo assim necessitado» (ib. ad 3).

b) Nao é licito retirar mais do que o necessário para que


a pessoa indigente se salve da morte ou salve o seu próximo.

Por conseguinte, se, para escapar da morte, baste a alguém


tomar de empréstimo um bem alheio, nao lhe é lícito apro
priar-se desse bem. Urna vez passada a extrema necessidade,
é preciso restituir o bem alheio, caso ainda exista. Caso nao
mais existal, os moralistas julgam que nao há estrita obriga-
cáo de restituir o equivalente ou de ressarcir o proprietário
(ainda que o indigente tenha condicóes de o fazer).

c) Mesmo em extrema necessidade nao é lícito tirar bens


alheios, se o proprietário cair também ele em extrema neces
sidade em decorréncia de tal gesto.

Esta proposigáo se explica pelo principio «melhor é a con-


dicáo de quem está de posse» (melior est conditio possidentis).
Donde se segué que, se duas pessoas sofrem naufragio, mas
urna só (mais fraca e inexperiente) possui um salva-vidas, nao
é lícito á outra pessoa arrebatar-lhe o salva-vidas, pois isto
colocaría o próximo em extremo perigo.

i o que geralmente ocorre, pols se trata, na malorla dos casos, de


retirar alimentos para matar a fome.

— 76 —
ROUBAR EM EXTREMA NECESSIDADE? 77

REFLEXÁO FINAL

Verifica-se que o principio firmado por S. Tomás de Aquino


e adotado pelos moralistas em geral tem fundamento lógico e
plausível. Para corroborar esta observagáo, podem-se citar os
Códigos de Direito Civil que formulam o mesmo principio,
reconhecendo o «furto famélico» K

É preciso, porém, que o fato de se trazer á tona tal norma


da Moral e do Direito nao se torne ocasiáo de maior número
de furtos e assaltos em nossa sociedade. Nao sirva de justifi
cativa para que pivetes, «trombadinhas» e outros tipos de
ladróes recrudesgam na prática do mal, recorrendo falsamente
ao principio de S. Tomás evocado pela CNBB. A Campanha
da Fratemidade, por seu nome mesmo, tenciona avivar os sen-
timentos de fratemidade entre todos os homens, fomentando
o perdáo mutuo e a reconciliacáo; jamáis poderá servir para
incitar uns contra os outros ou para estimular o furor das
ondas de assalto.

i A palavra "furto" a( ocorre Impropriamente. Trata-se de um roubo


materialmente talando, n§o, porém, em sentido formal ou estrlto da palavra.
Com efelto, tal "furto" nfio é algo de Injusto, nao fere a justica; por Isto nao
ó roubo propiamente dito.

— 77 —
NOTAS E COMENTARIOS

I. MISSA SEGUNDO O RITO PRÉ-CONCILIAR

Sabe-se que na Igreja existem grupos que se recusam a


celebrar a S. Missa segundo o rito promulgado pelo S. Padre
Paulo VI em 1970, de acordó com os anseios do Concilio do
Vaticano II: o uso do vernáculo na Liturgia, a colocacáo do
altar de frente para os fiéis, a maior participacáo destes no
rito sagrado... foram inovagóes valiosas e sadias (inspiradas,
alias, em ritos antigos), que nem todos os cristáos entenderam
devidamente.

Ora, a finí de evitar a cisáo desses fiéis, o S. Padre Joáo


Paulo II lhes fez urna concessáo, que nao derroga as verdades
da fé nem aos principios da Moral, mas visa a tranquilizar as
consciéncias de quem está perturbado. Observemos que o que
está em causa nao é o uso do latim na Liturgia, pois esta lín-
gua é lícita também no rito de Paulo VI, mas é o cerimonial
litúrgico promulgado por S. Pió V no século XVI e vigente
até a época do Concilio Vaticano II.
Eis o texto transcrito de «L'Osservatore Romano», ed. por
tuguesa:

Indulto para usar o Missai Romano 1962


No día 3 de outubro a Sagrada Congregado para o Culto Divino envlou
urna carta aos Presidentes das Conferencias Episcopals, a respelto da cele-
bracao da Santa Missa segundo o Missal Romano edigfio de 1962, em virtude
do Indulto concedido pelo Santo Padre JoSo Paulo II:

Roma, 3 de outubro de 1984


Pro». CD Ó8Ó784

Excelencia Reverendísima
Há quatro anos, por vonlade do Santo Padre Joño Paulo II, os
Bispos da Igreja toda foram convidados a apresentar um relatório:
— sobre o modo como sacerdotes e fiéis das respectivas dioceses
tinham recebido o Missal promulgado em 1970 pelo Papa Paulo VI,
de acordó com as decisóes do Concilio Vaticano II;
— sobre as dificuldades surgidas na atuacáo da reforma litúrgica;
sobre as eventuais resistencias que deveriam ser superadas.

— 78 —
RITO EUCAR1STICO PRÉ-CONCILIAR 79

O resultado da consultacao fo¡ enviado a todos os Bispos (cf.


Nolitiae, n' 185, dezembro de 1981). Com base ñas suas respostasi
parecía que estava resolvido quase completamente o problema de
sacerdotes e fiéis que linham permanecido ligados ao rito tridentino.

Perdurando o problema, o Santo Padre, no desejo de ir ao encontró


também desses grupos, oferece aos Bispos diocesanos a possibilidade
de usufruirem de um indulto, pelo qual se concede aos sacerdotes e
também aqueles fiéis, que serao indicados na carta de pedido a ser
apresentada ao próprio Bispo, poderem celebrar a Santa Missa, usando
o Missal Romano segundo a edicáo de 1962, observadas porém as
seguintes normas:

a) Com toda a clareza deve constar também publicamente que


esses sacerdotes e os respectivos fiéis de nenhum modo compartilham
das posicóes daqueles que poem em dúvida a legitimidade e a exatidao
do Missal Romano promulgado pelo Papa Paulo VI em 1970.
b) Tal celebracáo se¡a feita somente para a utilidade daqueles
grupos que a pecam; ñas igrejas e oratorios indicados pelo Bispo (nao,
porém, ñas igrejas paroquiais, a nao ser que o Bispo o tenha concedido
em casos extraordinarios); e nos días e ñas condicóes aprovadas pelo
próprio Bispo, tanto de modo habitual como para cada caso.
c) Essas celebracóes devem ser feitas segundo o Missal de 1962
e em língua latina.

d) Deve ser evitada qualquer fusáo entre os textos e os ritos


dos dois Missais-

e) Cada Bispo informe esta Congregacao das concessóes por


ele dadas e, transcorrido um ano da concessao do indulto, refira sobre
o éxito da sua aplicacao.

Esta concessáo, sinal da solidtude que o Pai comum tem por todos
os seus filhos, deverá ser usada de modo que nao cause prejuizo á
observancia fiel da reforma litúrgica na vida das respectivas Comuni
dades eclesiais.

De bom grado aproveito a oportunidade para me confirmar, com


os sentimentos de distinta estima,

De Vossa Excelencia Reverendísima


dev.mo no Senhor
t AUGUSTIN MAYER
Pró-Prefeito

VIRGILIO NOÉ
Secretario

— 79 —
80 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 278/1985

Este texto dá testemunho do profundo senso pastoral que


anima o Papa Joáo Paulo II. O S. Padre revive, a seu modo,
a atítude do Apostólo Sao Paulo, que dizia:
«Aínda que livre em relacáo a todos, f¡z-me o servo de todos,
a fim de ganhar o maior número possível. Para os judeus, fiz-me como
¡udeu, a fim de ganhar os judeus. Para os que estao sujetos á Leí,
fiz-me como se estivesse su¡eito á Leí... Para aqueles que vivem sem
a Leí, fiz-me como se vivesse sem a lei... Para os fracos, fiz-me fraco,
a fim de ganhar os fracos. Torneí-me tudo para todos, a fim de salvar
alguns a todo custo» IICor 9,19-22).

II. CASTA MERETRIZ OU ESPOSA INCORRUPTA?


Entre os debates provocados pelas obras de Frei Leonardo
Boff, veio á tona a afirmagáo de que o escritor Orígenes de
Alexandria (t 254) chamou a Igreja «casta meretriz»; quería
assim significar que a Igreja é santa em si e como tal (pois
é o Cristo prolongado), mas carrega os pecados que os homens
cometem á revelia da mesma S. Igreja.
Como se vé, a metáfora «casta meretriz», como toda me
táfora, é deficiente; chega a ser paradoxal ou contraditória.
Ora existe ñas obras de um escritor contemporáneo de Oríge
nes precisamente a afirmagáo contraria: Sao Cipriano (t 258),
bispo de Cartago, repele da Igreja toda corrupgáo e toda trai-
gáo a Cristo, num dos mais belos textos que a literatura antiga
tenha produzido sobre o assunto:
«A ¡greja do Senhor... é urna só máe ¡mensamente fecunda-
Nascemos todos do seu ventre, somos nutridos com seu leite e anima
dos por seu espirito.
A esposa de Cristo nao pode ser adulterada, ela é incorrupta e
pura, nao conhece mais que urna só casa, guarda com casto pudor a
santidade do único tálamo. Ela nos conserva para Deus, entrega ao
Reino os filhos que gerou. Quem se aparta da Igreja e se junta a urna
adúltera, separa-se das promessas da Igreja. Quem deixa a Igreja
de Cristo nao alcancará os premios de Cristo. É um estranho, um
profano, um ¡nimigo. Nao pode ter Deus por Pai quem nao tem a
Igreja por M5e» (Sobre a Unidade da Igreja).
Esta passagem relativiza a expressáo «casta meretriz», que
iá por si é incoerente, e póe em relevo o aspecto mais genuino
da Iereia- conforme o Apostólo, Ela é a Esposa sem mancha
nem ruga, santa e irrepreensível (cf. Ef 5,27), a qual nao
desdenha trazer em seu seio homens pecadores, que podem des-
figurar a sua santa e bela face.
DESMENTIDO DO PADRE GERAL 81

III. COMUNGAR MAIS VEZES AO DÍA

Em PR 277/1984 foi publicado um artigo que analisava


o adverbio iterum do canon 917 do atual Código de Direito
Canónico. Após minucioso estudo, concluía que tal partícula
nao significa «de novo indefinidamente», mas apenas «pela
segunda vez». Ficaria permitida, portante, táo somente urna
segunda Comunháo Eucaristica por dia a quem participasse
de urna segunda celebracáo eucaristica.

Pois bem. O teor de tal artigo foi confirmado por decisáo


da Santa Sé. O jornal «L'OSSERVATORE ROMANO», edicáo
semanal portuguesa de 11/11/84, p. 2, traz a seguinte noticia:

Pontificia Comissáo para a Interpretaeáo auténtica

RESPOSTAS A ALGUMAS PERGUNTAS SOBRE O CÓDIGO


DE DIREITO CANÓNICO

Os Padres da Pontificia Comissáo para a Interpretaeáo auténtica


do Código de Direito Canónico consideraran! que se deva responder
como segué, a cada urna das dúvidas que Ihes foram apresentadas na
reunido plenária de 2ó de junho de 1984:

I.

P. — Se, conforme o canon 917, o fiel que já recebeu a Santís-


sima Eucaristía, pode recebé-la no mesmo dia só urna segunda vez ou
todas as vezes que participa da Celebracáo Eucaristica.

R. — Afirmativamente ao primeiro caso. Negativamente ao


segundo caso.

t Rosálio Castillo Lara


Are Til. de Precausa, Pró-Prefeilo
Julián Herranz, Secretario

IV. DESMENTIDO DO PADRE GERAL DOS JESUÍTAS


Correu o rumor, entre nos, de que o Padre Geral da Com-
panhia de Jesús tomou posigáo contraria a. da Santa Sé a pro
pósito da Teología da Libertagáo. Ora o jornal «La Croix» de
París publicou a 1/11/84 a seguinte noticia:

— 81 —
82 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 278/1985

«O Pe. Peter-Hans Kolvenbach, Geral da Companhia de Jesús,


de volta a Roma após urna viagem ao Brasil, á Venezuela e aos Estados
Unidos, desmentiu formalmente ter falado com um jornalista de New
York Time a respeito dos 'aspectos negativos das declaracóes romanas
concernentes a alguns aspectos da teología da libertaeao' (La Croix,
de 30/10/84). Ao contrario, na sua entrevista o Pe. Kolvenbach co-
mentou os aspectos negativos da teología da libertacao de que trata
a Instrucao da Santa Sé datada de 3 de setembro pp., manifestando
sua expectativa de outro documento referente ao assunto».

O JORNAL DO BRASIL, por sua vez, publicou a noticia


deste desmentido em suas edigóes de 23 e 25/11/84.
Para melhor aínda elucidar o caso, a redagáo de PR
escreveu á Curia Geral da Companhia de Jesús em Roma, pe-
dindo esclarecimentos sobre a posicáo assumida pelo Padre Ge
ral Peter-Hans Kolvenbach diante dos debates sobre a teología
da libertagáo. Eis a resposta enviada a tal solicitacáo:
Roma, 22/11/84

Caro D. EstévSo, a paz de Cristo!

Estou autorizado a enviar-lhe, em nome do nosso Superior Geral,


a declaracSo por ele feita acerca da Instrucdo da Sagrada Congrega-
cao para a Doutrina da Fé sobre alguns aspectos da teologia da
libertacao. Sempre com a aprovacao do Pe. Geral envio-lhe ainda
fotocopia de um artigo do Pe. Virginio Rotondi S.J., publicado há
poucos dias num dos maiores ¡ornáis de Roma, II Tempo, e que o Pe.
Geral, ... subscreve inteiramente.

Com o envió deste material, creio ter satisfeito ao seu pedido...


(a) Pe. Atexander A. Macintyre, S.J.
O artigo, atrás mencionado, do Pe. Virginio Rotondi S.J.
inclui, em sua parte final, a Declaracáo do Pe. Kolvenbach a
respeito da Instrucáo da Santa Sé relativa á teologia da liber
tacao. Transcrevemos, pois, aqui os trechos principáis de tal
artigo:

Em vista das noticias e das entrevistas da Agencia ADISTA


QUANDO A INFORMACAO É DADA EM SENTIDO ÚNIOO
Pe. Virginio Rotondi

Convido os católicos a ler as noticias da Agencia ADISTA...:


terao em todos os exem piares, sem excecáo, a amostragem de como
se pode tomar partido por urna frente contra outra frente bem re-
conhecivel; donde resulta a guerra

— 82 —
DESMENTIDO DO PADRE GERAL 83

A Agencia ADISTA... nao é ambigua; é totalmente, e em todos


os sentidos, partidaria de urna frente; é, se quisermos ser precisos, urna
revista cotidiana dos cato-comunistas', que Paulo VI, sem cerimónias,
chamava 'traidores'. Em ADISTA há sempre espaco para católicos da
dissensáo: sacerdotes, meio-sacerdotes e ex-sacerdotes; basta que falem
mal da Igreja una, santa, católica, apostólica e romana; aqui a ten-
denciosidade das informacoes se torna tao evidente quanto — com
a devida venia — infantil e adolescente. A própria tendenciosidade,
se quer encontrar aceitacáo, tem os seus limites. O Papa atual, por
exemplo, é — para ADISTA — um 'sapo' que eles nao conseguem
engolir. Em conseqüéncia, há o silencio, a escolha sagaz, a manipula-
cao propriamente dita com referencia ao mesmo: citam textos fora dos
respectivos contextos, contam pormenores extraídos do conjunto dos
falos-

A Agencia ADISTA apressou-se em resumir nos ns. 5-6-7 novembro


urna entrevista concedida pelo Padre Geral da Companhia de Jesús ao
New York Times, propondo o seguinte teor:

'O Pe. Peter-Hans Kolvenbach, Preposto Geral da Companhia de


Jesús, em entrevista concedida ao New York Times de 28 de outubro,
expressou plena solidariedade á agao dos jesuítas na América Central
e Latina, como referem as Agencias noticiosas. Os jesuítas que tra
ba I ham naquelas regides lutando pela igualdade social ao lado das
faixas mais pobres da populacao, sao freqüentemente tachados de
filo-comunistas. O Pe. Kolvenbach enfatizou que a Igreja nao teria
concebido amor preferencial pelos pobres se na América Latina os
jesuítas nao tivessem tornado evidente a necessidade da libertacao.
Neste contexto ele chamou a atengáo para a importancia da teología
da libertacao, cujos ensinamentos devem ser reconhecidos como
possíveis e necessários. O mesmo Pe. Geral declarou-se desiludido
pela recente tomada de posicáo do Vaticano que critica o recurso da
teologia da libertacao á análise marxista. Pois, explicou, pode haver
situacoes ñas quais seja absolutamente necessário fazer uso da termi
nología marxista a fim de ilustrar as condicoes económicas e sociais'.

Devo dizer que quase nunca confio nos colegas ¡ornalistas entre-
vistadores (a menos que os entrevistados déem por escrito as suas
respostas, exigindo sejam publicadas sem cortes tiem acréscimos).
Quando o entrevistado se limita a falar enquanto o jornalista toma
nota, dá-se o risco de ter que recorrer á retificagao; esta geralmente

1 Cato-comunista = católico comunista. (Nota do tradutor).

— 83 —
84 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 278/1985

é publicada, mas — salvo raras excecoes — com o acréscimo de urna


resposta dada pelo entrevistador para fazer crer ao leitor que ele (o
jornalista) fo¡ fiel e que o mentiroso é o entrevistado.

Se isto pode acontecer em urna entrevista genuino, imagine o


leitor o que ocorre quando é resumida nao pela Agencia ANSA, nem
pela ITALIA, nem pela ADN-Kronos, mas por ADISTA. Segundo esta,
o Pe. Kolvenbach — eleito fulminantemente (no primeiro escrutinio) e
imprevistamente Geral da Companhia de Jesús — aparece pratica-
mente de acordó com o 'confusionario' teólogo que traz o nome de
Pe. Boff, favorável á análise marxista tía acao e na luta — crista —
contra a ¡njustica social que reina na América Latina e, infelizmente,
também alhures.

Todos os 26 mil jesuítas — inclusive eu — receberam e leram


a Dedaracao que o Padre Geral escreveu a propósito, a saber:

'Todos aqueles que, atraídos pela opcao preferencial pelos po


bres, sofreram nestes últimos anos por causa de confusoes doulrinárias
e de desvíos ideológicos na luta crista pela ¡uslica, acolheráo com
gratidSo este documento da Santa Sé '.

Purificando com clareza apostólica o discurso de alguns teólogos


da liberlacáo, o documento contribuiu positivamente para a elabora-
cao de auténtica teología da libertacáo humana a ser praticada na
base de experiencia sócio-pastoral.

O documento nao se esquece de fazer apelo á competencia dos


especialistas em economía, financas e política social. Juntamente com
o esforco dos teólogos, é necessária a contribuicáo desses especialistas
se nao quer que os pobres corram o risco de permanecer pobres'.

Eis ai o verdadeiro Pe- Kolvenbach. As 'entrevistas' ou, pior


ainda, os 'resumos' nao me interessam em absoluto».

Como se vé, a própría Companhia de Jesús, por sua Curia


Gerai, desmente as declaragóes que tendenciosamente a Agen
cia ADISTA — conhecida como parcial e preconceituosa —
atribuí ao Pe. Peter-Hans Kolvenbach S.J.
Está assim dissipado o doloroso mal-entendido.

i Trata-se da Inslrucáo Llbertalis Nunlius, publicada a 3/09/64 sobre alguns


aspectos da Teología da Libertario.

— 84 —
PISOTEAMENTO DE CRUZ? 85

V. PISOTEAMENTO DE CRUZ?

A imprensa tem publicado amplamente comentarios de


personalidades a respeito de incidente ocorrido a 15/11/84 em
Santa Cruz do Sul (RS), por ocasiáo da celebragáo dos vinte
e cinco anos da respectiva diocese: terá sido entáo pisoteada
urna cruz, tida como símbolo do sistema sócio-politico vigente
no Brasil? — Se a cruz foi assim profanada, a indignacáo mais
veemente nao pode deixar de se apoderar dos coragóes de
todos os fiéis cristáos; mereceriam seria punigáo os que tives-
sem assim procedido.

Eis, porém, que o boletim «Noticias» da CNBB, em sua


edigáo de 29/11/84, n» 756, p. 2, publicou um desmentido, que
vem a ser a palavra oficial do Sr. Bispo de Santa Cruz do Sul.
Eis a noticia:

NAO HOUVE CRUZ, NEM PROFANACAO: declaro» o Bispo de


Santa Cruz do Sul, Dotn Alberto Etges, esclarecen do a repercussao da
celebracáo jubilar dos 25 anos da ¡nstalacáo da diocese e posse do
primeiro Bispo, a 15 de novembro de 1984, no estadio de futebol da
cidade, com dez mil participantes. {1) — «Os quadros representativos
da vida do povo da diocese foram urna decisáo do Conselho Presbiteral
Diocesano, na reuniao de 24 e 25 de setembro, quando diversas co
marcas assumiram a apresentacao; (2) — No segundo quadro, pre
parado e apresentado pela comarca de Lajeado, nao havia cruz pre
sente, milito menos a intencño, de quem quer que se¡a, de profaná-la;
(3) — A divulgacáo infundada da noticia, pela imprensa, de que
houve profanacao de urna cruz, bem mostra a malignidade do sistema
que se quis condenar; {4} — O Bispo continua na sua missao de
«Preparar um Povo Perfeito» e levar a bom termo as conclusóes da 4"
Assembléia Diocesana de Pastoral», diz <x «Declaracáo ao Povo de
Deus» de Dom Alberto Etges.

Diante de tal declaracáo assaz categórica e proveniente


da fonte mais limpa, podemos crer que nao foi pisoteada a cruz
(símbolo da Redencáo e da esperanca dos homens), mas con
tinuamos a julgar que houve manifestacóes sócio-políticas inde-
vidas numa solenidade religiosa. Tem-se assim a politizacáo
que o Documento de Puebla e a Instrucáo «Libertatis Nuntius»
condenam categóricamente: «Cumpre salientar aqui o risco de
ideologizacáo a que se expde a reflexáo teológica, quando se
realiza partindo de urna praxis que recorre á análise marxista.

— 85 —
86 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS? 278/1985

Suas conseqüéncias sao a total politizagáo da existencia crista,


a dissolugáo da linguagem da fé na das ciencias sociais e o
esvaziamento da dimensáo transcendental da salvagáo crista»
(DPn« 545).

LIVROS EM ESTANTE

Ciencia e Fó Face a Face, por O. EstévSo Pierantoni, O.S.B. — Ed.


Santuario, Rúa Pe. Claro Montelro 342 — 12570 — Aparecida (SP), 1984,
155 x 220 mm, 269 pp.

O autor é monge benedltino camaldulense, que há anos exerce o


ministerio sacerdotal em Mogi das Cruzes e se tem dedicado aos estudos
com grande zelo. Procura defender a fé católica das objecóes levantadas
pela ciencia materialista. Para tanto considera as obras de autores que, em
nome da ciencia, impugnaram a doutrina católica e aponta as fainas ou as
incoerénclas de tais estudiosos. Entre estes, acham-se Edgar Morin, Edward
O. Wilson, von Dilfurth, Oswald Loretz, Richard Leakey, Cari Sagan...

A intencio do autor é altamente louvável. O livro contém páginas


¡nteressantes que expSem o pensamento de dentistas diversos, e outras que
mostram a Ineficléncia de seus argumentos; em varios casos será útil ad
leitor. Todavía algumas observares parecem ¡mpor-se:

1) seria para desejar que o autor focalizasse de maneira mais ampia


cada qual dos pontos estudados (o fenómeno religioso, a evolucSo da
materia e dos viventes, a alma e suas funcoes espirituais...); nao se restrin-
gisse apenas a considerar um dentista nao crlstáo e a refutá-lo.

2) A refutacáo perde um tanto da sua forca persuasiva porque vasada


numa linguagem por vezes irónica, agressiva; cf. pp. 20.165. 180-183. 207...
Logo no inicio, pp. VIII-XIII, o autor parece depreciar os sabios e eruditos
por profissao, os professores catedráticos. A p. 165 lé-se: "Os exegetas
progressistas... fazem muita confusáo e comem gato por lebre" — o que
nao é linguagem de um cientista.

3) O livro contém varias imprecisSes ou afirmacdes inexatas do ponto


de visla da própria doutrina católica; asslm, por exemplo, as pp. 21 Os admite
inteligencia e raciocinio no gorila e no chlmpanzó (o que é Inaceitável, pois
isto suporia em tais viventes urna alma intelectiva espiritual; aquilo que tais
animáis possuem, é um instinto muito desenvolvido). A p. 204, lé-se
"Pontificio Instituto Bíblico" em vez de "Pontificia Comissao Bíblica". A
p. 164 o tomismo é tido como "um tipo de revelacSo divina para a Igreia",
o que é exagerado. A p. 164 o autor afirma que "Deus com o seu próprio
dedo escreveu a Carta Magna, que é o Decálogo, ñas duas tábuas de pedra
de Moisés. Ditou um código litúrgico, moral e civil, e até normas higiénicas";
ora tais concepcóes nao correspondem & nocSo de inspiracio bíblica que
a sá doutrina católica professa.

4) Em relacSo á Biblia e as culturas antigás, o autor parece um pouco


slmplório. Asslm, por exemplo, nSo se vé como subscrever a tSo categórica
aflrmacSo: "Para exprimir conceitos religiosos e descrever as obras de Deus

— 86 — •
LIVROS EM ESTANTE 87

(por exemplo, a criacáo), a língua hebraica nao precisava absolutamente de


figuras literarias tomadas de outras llnguas" (p. 165); ora sabemos que na
verdade existem nao poucas figuras literarias de idiomas estrangeiros dentro
do hebraico bíblico: a figura do ovo do mundo (Gn 1,2), a figura do Deus-
•Olelro (Gn 2,7), a figura da árvore sagrada (Gn 2,17)...

Muitas outras observares poderiam ser tecidas a respeito do conteúdo


do livro em foco. Oremos que em varios pontos ele atinja o seu objetivo,
mas julgamos que a obra nao trilha o caminho mais adequado e persuasivo.

Fé e Compromisso, por Fr. Battistini. — Ed. própria, Caixa pos


tal 93630 — 25900 — Magé (RJ), 120 X 160mm, 177 pp.

Eis mais um livro de grande pastor e catequista, preocupado com a


formacio doutrinária do povo de Deus. As obras de Fr. Battistini apresentam
sempre as nocSes básicas da fé e da Moral crista, visando as questóes
concretas dos fiéis católicos e procurando ajudá-los a manter viva a sua
crenca num mundo pluralista como o nosso.

O livro em pauta aprésenla primeramente urna slntese das verdades


do Credo, explicadas com simplicidade e clareza (pp. 11-136); a seguir,
considera a ética do cristSo no lar, na profissáo, na política, terminando
com um resumo da doutrina social da Igreja (pp. 137-176). Após cada
capitulo ou licio há um questionário, que ajuda os leitores a testar a sua
aprendlzagem. O autor segué, através de suas páginas, as diretrizes da
Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil propostas no livro "Catequese
Renovada". Muito oportunas sao as consideracdes do autor sobre o uso da
Biblia, o pulular das seitas, a índole da Igreja de Cristo, a teología da
libertacSo, etc.

Só podemos congratular-nos com Fr. Battistini por mais este volume


de sua já numerosa coiecSo, ao mesmo lempo que recomendamos vivamente
o uso de tal livro por parte dos fiéis do povo de Deus.

Na Forca da Cruz, por Edith Stein. Colegio "Clássicos da Espirituali-


dade". — Ed. Cidade Nova, Rúa Cel. Paulino Carlos 29 — 04006 — Sao
Paulo (SP), 105 x 160 mm, 102 pp.

Edith Stein é urna figura impresslonante do nosso século. Judia alema,


tornou-se alheia á religiáo de seus pais, e passou a estudar filosofia na
escola fenomenológlca de Edmund Husserl. Aos poneos, pelo caminho da
racionalidade filosófica, fol descobrindo os valores cristüos e a fé evangélica.
Pediu entáo o batismo, e fez-se Religiosa carmelita com o nome de IrmS
Teresla Benedicta a Cruce. Todavía, colhida pela perseguicSo nazista, faleceu
no campo de concentrado de Auschwitz.

O presente livro é urna antología de textos dessa grande Religiosa con


templativa, devida aos cuidados de outra Carmelita (Irma Teresa da Máe de
Deus) e apresentada por Freí Patricio Sciadini, O.C.D. Versa principalmente
sobre a Cruz, que tanto marcou a vida de Edith Stein; trata também de
oracBo e meditacao, viver na Eucaristía, abandono á Providencia Divina, etc.
A guisa de amostragem, transcrevemos os seguintes textos: "Que seria a
oracSo da Igreja se nao fosse a entrega plena dos grandes amantes de Deus,
que é amor?" (p. 78). "A oracáo da Igreja é a oracao do Cristo vivo. Ela

— 87 —
88 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 278/1985

tem seu modelo na oracao de Cristo durante sua vida humana" (p. 77). "Nao
é a atividade humana que nos pode ajudar, mas o sofrimento de Cristo. É
meu ardoroso desejo ter participacao nele" (p. 100).

O Iivro é muito fecundo como fonte de esplritualidade. Além do qué,


é um marco importante no diálogo religioso entre judeus e cristáos.

O Caminho. Sínlese da Doutrina Cristi para Adultos, sob a responsa-


bllidade da Provincia Eclesiástica de Alagoas. — Ed. Loyola, Sao Paulo,
1984, 116 x 170 mm, 442 pp.

Estamos sempre á procura de um bom compendio da doutrina católica,


seja para a catequese de criancas, seja para a de outras faixas etárías.
Mu ¡tos livros tém sido publicados neste setor, mas portadores de graves
lacunas — o que tem preocupado a Santa Sé.

O presente livro tenciona ser uma tentativa de atender á catequese de


adultos sob a responsabilidad© da Providencia Eclesiástica de Alagoas
(arquidiocese de Macelo, dioceses de Penado e Palmelra dos Indios). NSo
incide no horizontalismo de obras semelhantes, que omitem ou empalidecen!
pontos Importantes da fé católica. Todavía poderla ser mais explícito em
alguns pontos. Limitámo-nos a assinalar a abordagem do pecado original
(op. 59-62), que nos parece sucinta demals: nSo trata suficientemente da
justica original e do significado da queda na historia da salvacio; está
inserida num contexto de "dlreitos e tiberdade do homem" (p. 49-55), onde
sao transcritos os trinta artigos da Declaragáo dos Direltos Humanos pro
mulgada pela ONU; assim se misturam questoes fundamentáis da fé católica
com questoes de Moral social; julgamos que é, sem dúvida, importante tratar
da Moral individual e social; mas melhor seria dar a esta um lugar próprio
após a considerado explícita, detida e clara das verdades da fé. Seria
preciso que os cristSos conhecessem mais a fundo as proposigSes do Credo
como tais em sua grandeza própria, e nao apenas em luncao de normas de
Ética.

Desejamos louvar, porém, quanto neste catecismo é dito a respeito de


outros pontos de doutrina e da vida sacramental, especialmente no tocante á
Reconciliacáo e á Eucaristía,... a respeito da oracao e do ciclo litúrgico...
O Apéndice, que é um pequeño manual da piedade católica (com a valori-
zacáo do Rosáno) é precioso. — Fazemos votos pa.a que "o Camlnr.o" saja
revisto e completado, a fim de poder preencher plenamente a nobre finalidade
que Irte idealizaram os seus redatores.

E.B

88 —
EDI(?6ES "LUMEN CHR'lSTI"
MOSTEIRO DE SAO BENTO
Rúa Dom Gerardo 40, — 5o andar — Sala 501
Caixa Postal 2666 — Tel.: (021) 291-7122
20001 — Rio de Janeiro — RJ

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cias para pagamento das assinaturas de P.R. está sendo evitado pelo
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Agradecemos a colaboragáo dos nossos leitores como estimulo para


levarmos avante a míssáo na qual vem se empenhando a Revista há quase
trinta anos.
A Administrado

NOVO ANO LETIVO SE APROXIMA — 198S

Que livros adotar para os Cursos de Teología e Liturgia?

1 RIQUEZAS DA MENSAGEM CRISTA (2a ed.l. por Dom Cirilo Folch


Gomes O.S.B. (falecldo a 2/12/83). Teólogo conceituado, autor de
um tratado completo de Teología Dogmática, comentando o Credo do
Povo de Oeus, promulgado pelo Papa Paulo VI, Um alentado volume de
700 p., besl seller de nossas Edicóes. cuja traducáo espanhola está
sendo preparada pela Universidade de Valencia — CrS 12.000

2 A DOUTRINA DA TRINDADE ETERNA, do mesmo Autor O significado da


expressáo "Tres Pessoas", 1979, 410 p. — CrS 6.000

3 O MISTERIO DO DEUS VIVO. P. Patftort. O P. O Autor foi examinador


de O. Cirilo para a conquista da láurea de Doutor em Teología no
Instituto Pontificio Santo Tomás de Aquino em Roma. Para Professores
e Alunos de Teología, é um Tratado de "Deus Uno e Trino", de orienta-
cao tomista e de índole didática. 230 p. — CrS 6.000

4 LITURGIA PARA O POVO DE DEUS 13? ed., 1984), pelo Salesiano Dom
Cario Fiore, traducáo de D. Hildebrando P. Martíns. OSB. Edigáo
ampliada e atualízada. aprésenla em linguagem simples toda a doutrina
da Constituicáo Litúrgica do Vaticano II. É um breve manual para uso
de Seminarios, Noviciados. Colegios. Grupos de reflexáo. Retiros etc..
216 p. — CrS 4.000.

ATENDE-SE PELO REEMBOLSO POSTAL


MOSTEIRO DE SAO BENTO

NOVIDADEI Grande Álbum de luxo em estojo: formato 36,5 x 28


Obra de arte, com texto em portugués e inglés por Dom Marcos
Barbosa. O.S.B.
DezottD fotografías artísticas (preto-branco) por Hugo Leal, o mesmo
que fotografou Ouro Preto e Salvador — Bahía.
Como nem todos podem vir ao Rio de Janeiro ou penetrar na
clausura, poderSo contudo admirar a beleza arquitetónica desse
monumento colonial do inicio do século XVII.
EdicSo "Lumen Christi — CrS 120.000

NÚMEROS AVULSOS DE P.R.:


1984: Janeiro/Fevereiro; Malo/Junho; Setembro/Outubro;
Novembro/Dezembro — Cada número CrS 2.000
Anos anteriores: N? mensal CrS 800
bimestral CrS 1.500
índices: de 1957 a 1977 — em xerox CrS 3.000
de 1978 a 1982 — impresso CrS 1 500
Colecao completa de 1983 e 1984. encardenadas em
percalina ■ CrS 25.000

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