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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizacáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESENTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanga a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propoe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortalega
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.

A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaga


depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
/ \A(f\fi\ I
ANO XI — N? 124 ABRIL 1970
NDICE

I. ESTRUTURALISMO K DESMITIZACAO

1) "O estrutiiraliswo continua em voi/a... Desmitizou o


Itomem! Proclaman a morle do homem, depoix que foi proclamada
a morte de Deus.

Que luí de novo stibir <> rstnituraUsmuí" Ji-I

II. IlOMA HERÉTICA?

2) "Diz-se <¡ue Roma já acaban crdemlo á heresia, dando-


-noa urna sacrilega definicuo <l<> Missii. A marcha aóbre Roma já
rhegou ao neu termo.

Que penxar?" 150

3) "A nova Iraducao da Liturgia da Mi»m tem sido denun


ciada como falsa e traicocira. Superiría desvíos da reta dontriva
católica.

Que dizer a respeito?" 156

III. FAMOSO SEGRÉDO

i) "O padre <J».e ouvc urna canfissdo sacramental, está, abri


gado ao segrédo?

Esta obrigaedo é grave? Admite exce^des!" 10A

IV. CONTESTADO

5) "Que é a 'Igreja mibterránen' (Untcrgi-ound Church)?


Que dizer de tanta contextacüo na Igreja de nossos dias?". 172

V. MORAL HO.IE

6) "Diz-se classicamenle qur « (hit ni'm justifica os meios.


Será isto verdade mexmo em iio.inos días, quando os homens
enfrentam situacóes inéditas?" 182

CORRESPONDENCIA MIÜDA 1S7

RESENHA DE LIVh'OS 188

COM APROVACAO ECLESIÁSTICA


«...ATOS E OMISSOES»
Merece atengáo a fórmula penitencial adotada pela nova
Liturgia da Missa. Em vez de se recitar como outrora: «Con-
fesso a Deus todo-poderoso... que pequei por pensamentos,
palavras e obras...», diz-se atualmente: «Confesso... que
pequei por pensamentos e palavras, atos e omissocs...» Men-
cionam-se explicitamente as omissóes. Esta nova fórmula, que
corresponde a um antigo costume cristáo, pode ser tomada
como sinal da atengáo com que a S. Igreja se volta para o
pecado de omissáo em nossos dias.
Omissáo? — É o nao fazer, ... nao fazer algo que tenho
a obrigagáo de fazer. Deixando de o cumprir, acarreto um mal
para mim e para a sociedade em que vivo.
Hoje em dia a consciéncia dos homens se torna particular
mente sensível para a importancia e a gravidade das omissóes,
dadas as ampias dimensóes da vida moderna.
Atualmente todos os cidadáos sao chamados a ser res-
ponsáveis. Ñas escolas, os mestres procuram educar enancas
e adolescentes para o senso e o exercício de suas responsabi
lidades.
Os meios de comunicagáo, como a imprensa escrita e fa-
lada, eoloeam todos os homens — mesmo os mais modestos —
a par de todos os acontedmentos, experiencias, teorías recém-
-lancadas, provocando assim indiretamente os homens a formar
juízos e tomar atitudes em que outrora nao se pensava.
Os regimes democráticos proporcionan! a todos os cida
dáos a participacáo na gestáo da república (= bem público ou
comum).
Do seu lado, o progresso da técnica desperta nos homens
a consciéncia de que é preciso tornar o mundo mais habitável
e mais ameno para seus semelhantes.
Em suma, a vida moderna suscita mais e mais em cada
individuo a conviegáo de que todos sao solidarios entre si,
constituindo a grande familia humana. Diante das proporcóes
gigantescas das tarefas atuais, ninguém pode lutar e vencer
a sos; os homens tém que se unir, banindo o individualismo e
o egoísmo. Quem se isola, arruína-se, prejudicando nao sómente
a si, mas também a sociedade, que precisa de cada um de seus
membros.
— 141 —
Sao estas exigencias de solidariedade que tornam as omis-
sóes mais graves e de conseqüéncias mais vultosas em nossos
dias.
A realidade da vida civil assim esbocada repercute dentro
da Igreja. Nos últimos tempos se avivou a consciéncia de que
todos os cristáos sao chamados a constituir o povo de Deus;
fala-se muito, na Igreja, de «responsabilidade», «co-responsa-
bilidade», «diálogo», «servico», «comunháo fraterna», «solida
riedade» ... Todos os fiéis sao convidados a condividir entre
si anseios, expectativas, alegrías, angustias e tarefas em prol
do reino de Cristo. Oompreendemos sempre melhor que as
coisas nao poderáo ir bem, humanamente falando, sem a par-
ticipagáo de todos; se as coisas nao váo a contento, cada um
de nos deve sentir-se interpelado, ... obligado a dar a res-
posta que possa dar, e nao a omitir. As mais competentes das
autoridades ficaráo frustradas, se a comunidade se mostrar
indiferente ou amorfa.
Eis, pois, na Igreja de hoje urna face importante do pe
cado de omissáo: estar ausente, passivo, ser mero observador
(curioso ou, talvez, perplexo). Cada um dos fiéis é chamado
a exercer, dentro do ámbito de suas competencias e possibili-
dades, a sua responsabilidade pessoal.
Como?
Todos, sem dúvida, pela oragáo e a crescente iden-
tificagáo com Cristo: «Nao em desonestidade, .. • nao em con-
tendas... Revesti-vos, antes, do Senhor Jesús Cristo» (Rom
13,13s).
Há, além disto, chamados especiáis, entre os quais merece
destaque o apelo á catequese ou á difusáo da Boa-Nova: se
muitos nao amam a Deus hoje em dia, é simplesmente pelo
fato de que nao O conhecem; e, se nao O conhecem, é porque
nao há quem O anuncie e comunique. Se muitos se debatem
desorientados, é porque procuram a Deus sem o saber nem O
Haja, portante, numerosos arautos da Palavra de Deus
para todos os n!veis (para enancas, adolescentes, adultos, para
letrados e iletrados)! E que ésses arautos da Palavra se inte-
ressem por favorecer ñas almas o desabrochar das vocagoes
sacerdotais e religiosas! O problema das vocagoes é problema
de toda a Igreja. Sabemos que o Espirito fala no intimo de
muitos jovens e adultos generosos e disponíveis. Nao se perca
essa generosidade por falta de generosos colaboradores do
Espirito! E nao nos possa Deus acusar de omissáo na hora
atual!

E. B.

— 142 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»
Ano XI — N* 124 — Abril de 1970

I. ESTRUTURALISMO E DESMITIZAQÁO

1) «O estruturalismo continua em voga... Desmitinra


o homem! Proclamou a morti3 do homem, depois míe foi pro
clamada a marte de Deas.
Que há d© nóvo¡ sobre o estruturalismo ?»

ii J*«sunio da resposta: O estruturalismo inspirase nos métodos da


lingüística. Assim como esta procura descobrir as leis da linguagem
a nova corrente filosófica tenta investigar as normas que reeem o
comportamento humano. Segundo os estruturalistas. estas normas se
derivam do «inconsciente coletivo»; todo individuo é expressáo da so-
ciedade. A sociedade, por sua vez, nao é senáo o produto de fórcas
íisico-quimicas. O psiquismo característico do homem é assim desml-
tizado, e o conceito de homem «ser inteligente e livre» é reduzido
a mero sdpro de voz. Tal é a morte do homem declarada por pensa
dores estruturalistas. v y
Ora vé-se que o homem, embora manifesté em todos os tempos
e lugares tendencias constantes, é capaz de assumir formas Impre
vistas de comportamento, decorrentes da intuicáo de valores novos
ou de valores antigos considerados de maneira nova. Os grandes por
qués da vida, do sofrimento e da morte tornam o homem sempre in
quieto e sequioso; procurando resposta para tais interrogac8es, ele
nao se satisfaz com as leis apresentadas pelo estruturalismo. Estas
nao esgotam o misterio do homem, aberto para o Infinito (Oeus).

Resposta: Embora seja algo de novo no panorama filo-


sófíco-teológico, a dita «teología da morte de Deus» já foi
superada por algo de mais recente aínda, ou seja pela «filo
sofía (ou antropología) da morte do homem», a qual tem seus
arautos no recente «estruturalismo».
A expressáo «teología da morte de Deus» assume diversos
significados, de acordó com os diversos pensadores e escolas
que a propalam; cf. «P.R.» 113/1969, pp. 183-193. Em qual-
quer hipótese, os seus autores pretendem afirmar que a pala-
vra «Deus» nada significa para muitos dos homens contem
poráneos; que Deus exista ou nao exista, é algo que nao lhes

— 143 —
4 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS> 124/1970, qu. 1

interessa, pois a sua conduta de vida permanecería a mesma


tanto num caso como noutro.
O que há de mais novo na filosofía de nossos dias, é que
também se fala da «morte do homem». Com efeito, a escola
estruturalista, eloqüentemente representada por Michel Fou-
cault na obra «Les mots et les choses», declara: se no sáculo
passado a filosofía de Nietzsche apregoou «a morte de Deus»
para que vivesse o «Super-Homem», em nossos tempos as
ciencias humanas anunciam «a morte do próprio homem».
Segundo Foucault, o conceito de homem, «ser consciente, li-
vre, responsável e autónomo», seria nocáo de origem rela
tivamente moderna na historia da filosofía, pois dataria do
Renascimento e do sistema de Descartes (séc. XVT); nao nos
deve, pois, surpreender o fato de que hoje tenda a desapa
recer; o conceito de «homem» vai sendo «desmitizado» pelas
ciencias humanas, que tendem a reduzir o homem a um sópro
de voz — sopro que exprime uma rede de determinagóes bio
lógicas, psíquicas, sociológicas, económicas, etc.
O estruturalismo, que prppóe a tese ácima esbo;ada, é
uma das manifestagóes mais impressionantes do pensamento
moderno; pretende ultrapassar Sartre e o existencialismo ateu,
Marx e o marxismo (humanismo materialista), como também
Marcuse e o «homem unidimensional» (Marcuse é o filósofo
da contestagáo, que, em nome e em vista do homem, protesta
contra a civilizacáo do consumo, a fim de obter uma socie-
dade mais humana e feliz; Marcuse aínda eré no homem...).
Foucault, porém, e seus colegas de escola descréem do pró
prio homem, ou seja, do que comumente se chama «a digni-
dade do homem dotado de inteligencia e livre vontade, dotado
de criatividade e aspiragóes a valores absolutos».
Ñas páginas seguintes, vamos procurar sintetizar o pen
samento estruturalista concernente ao homem e a Deus — o
que nos permitirá julgar, de certo modo, a problemática.

De resto, s6bre o estruturalismo já saiu um artigo em «P.R.»


101/1968, pp. 186-195.
Sobre Marcuse e a filosofía da contestacao veja «P.R.» 106/1968,
pp. 4051416; 114/1969, pp. 229-239.

1. Estruturalismo : premissas

1. Já se tem dito — e com razáo — que nao é fácil


explicar em poucas palavras o que seja o estruturalismo. Éste

— 144 —
ESTRUTURALISMO E DESMITIZAgAO

se apresenta antes como um método de pesquisa científica


do que como uma ideología rematada e definitiva. O éxito do
estruturalismo se deve principalmente á finura das suas aná-
lises minuciosas e nao tanto aos seus principios gerais.

2. A melhor maneira de propor o estruturalismo con


siste em observar os métodos da lingüistica — disciplina na
qual se inspiraram os arautos do estruturalismo.

Ora a lingüistica apresenta tres características, no caso


muito ponderáveis:

1) Formula leis distintas e rigorosas (leis da linguagem


ou do discurso), fazendo abstracto do conteúdo ou da men-
sagem do discurso. Para o lingüista, nao tem importancia o
que é enunciado pelas palavras («está chovendo»), mas, sim,
a ordem e a concatenagáo (coordenacáo e subordinacáo ou
sintaxe) das palavras no discurso (frase impessoal, por exem-
plo, frase ativa, frase passiva...).
A lingüistica tem, pois, algo que a assemelha á matemá
tica. Esta também formula leis segundo as quais é necessário
calcular (somar, subtrair, multiplicar, dividir, elevar á poten
cia, extrair raiz quadrada...), e nao se importa com o con
teúdo objetivo de seus problemas (trate-se de homens, de
burros, de flores, de pedras, os problemas da matemática se
resolvem segundo as mesmas leis). Esta metodología é a que
o estruturalismo adota.

2) Estudando as leis da linguagem, certos filólogos,


como Ferdinand de Saussure, Troubetzkoy, Román Jakobson
(pioneiros da mentalidade estruturalista), julgam que em
todos os homens há certas estruturas psíquicas inatas e in
conscientes que os levam a falar como éles falam. Conse-
qüentemente, tais estudiosos tém em vista descobrir as estru
turas fundamentáis do ser humano que se exprimem na lin
guagem (esta é uma super-estrutura).
3) A lingüística é, de certo modo, atemporal, isto é,
abstrai do tempo e dos acontecimentos da historia, segundo
tais filólogos; ela se fíxa apenas na consideragáo dos fenó
menos que se observam hoje em todos os povos mi, ao menos,
em muitos déles. O método estruturalista, conforme os seus
arautos, pode ser comparado a uma partida de xadrez; nesta,
uma determinada posigáo das pegas (rei, raínha, cávalos,
peóes...) pode ser estudada sem se levarem em conta os
lances anteriores que a provocaram; para resolver um pro-

— 145 — '
6 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 124/1970, qu. 1

blema de xadrez, nao é necessário ter acompanhado a par


tida desde o principio; basta estudar a configuraeáo ou a pro
blemática proposta ao estudioso (tenham-se em vista os passa-
tempos de muitas revistas).

2. Estruturalismo e desm¡t¡za;6o do homem

Adotando a metodología da lingüistica, o estruturalismo


se apresenta com as seguintes notas típicas:
1) Procura examinar o comportamento humano: usos,
costumes, leis, línguas, produ?áo literaria, atividades económi
cas, programas políticos, crencas religiosas..., a fim de des-
cobrir o substrato inconsciente e irrefletido que condiciona
todas essas expressóes conscientes do ser humano. — O que
importa, é reduzir todas essas super-estruturas a categorías e
leis inconscientes e universais. A conduta dos homens é, como
a linguagem, sujeita a leis e regras que a determinam. Em
todo individuo, primitivo ou civilizado, antigo ou moderno,
culto ou inculto, existem sempre comportamentos constantes
ou paralelos, que a ciencia pode identificar e catalogar segundo
esquemas rigorosos.
Em outras palavras: o estruturalismo pretende descobrir
as regras do jogo que regem todos os comportamentos huma
nos, a primeira vista, caóticos, desordenados, múltiplos e im-
previsíveis. Éste programa supóe urna premissa que o estru
turalismo muito valoriza: a comunháo e a igualdade existen
tes entre todos os homens, para além das difereneas de raga
e cultura.
2) As estruturas fundamentáis que se manifestam atra-
vés da linguagem e dos atos dos homens, procedem de um
substrato inconsciente, cujo sujeito nao é própriamente o
individuo, mas a sociedade (ou a coletividade) como tal. Por
conseguinte, quando alguém lé as obras de um autor, nao lé
própriamente o que ésse autor pensa, mas, sim, o que a so
ciedade pensa; o escritor em seu livro nao diz, mas é dito
pela coletividade ou por urna potencia inconsciente, da qual
ele vem a ser mera expressáo. — É muito importante esta
tese, porque dá a ver que, entre as correntes de pensamento
que inspiram o método estruturalista, nao sómente figura a
lingüística, mas também
o sociologisirK» de Durkheim, segundo o qual o indi
viduo é a expressáo de um inconsciente coletivo; a sociedade,

— 146 —
ESTRUTURALISMO E DESMITIZACAO

como algo de cegó ou natural, faz que o individuo pense, fale


e escreva «de tal modo», e nao «de tal outro modo»;
a psicanálise freudiana, com a sua teoría do incons
ciente — inconsciente que a sociedade recalca ou favorece
segundo circunstancias contingentes.

3) Na execugao dos seus estudos, o estruturalismo


abstrai da historia e do tempo, como, alias, faz a matemática.
O que interessa, nao é a origem dos comportamentos huma
nos, mas o conjunto de relagóes e regras que coordenam e
subordinam os comportamentos entre si. Éste conjunto deve
ser algo de invariavel através dos tempos.

4) O substrato coletivo e inconsciente que, com suas


categorías e leis, explica a linguagem e o comportamento dos
homens, é concebido pelo estruturalismo como algo de mecá
nico e determinado. Notam os autores da escola que a natu-
reza dos minerais, vegetáis e animáis irracionais é bem orde
nada e lógica, porque é regida por leis determinadas e rígi
das. Assim — dizem os estruturalistas — também o compor
tamento humano: aparentemente livre e espontáneo, ele se
reduz a urna ordem rígida, de sorte que a ciencia procura
«descobrir a necessidade (= as leis determinadas) que está
por baixo da ilusáo de que o homem é um ser livre» *. O espi
rito é, pois, urna coisa entre outras coisas; o dito «espirito»
do homem, em última análise, nao se distingue das realidades
cegas e mecánicas que o cercam.

5) Tendo reduzido o homem á realidade social ou ao


inconsciente coletivo, o estruturalismo procura ulteriormente
reduzir a sociedade a um conjunto de fórgas físico-químicas;
assim como o individuo em si nada tem de distintivo e pró-
prio frente a sociedade, tampouco a sociedade possui algo de
específico em relagáo a natureza ou ao cosmos; o elemento psí
quico se reduz a foreas físico-químicas. Eis palavras do estru-
turalista Lévi-Strauss:

«NSo seria suficiente absorver os individuos no conjunto da so


ciedade; esta tarefa é ponto de partida para outras, ... que compe-
tem ás ciencias exatas e naturais: redintegrar a cultura humana na
natureza (irracional) e finalmente reduzir a vida ao conjunto das suas
condicOes fisico-qulmicas... Nos eremos que a meta final das cien
cias humanas nao é constituir o homem, mas dlssolvé-Io» («La pensée
sauvage». París 1962, p. 326s).

i Palavras de Lévi-Strauss, em «Réponse a quelques questions>,


citadas na revista «Esprit», nov. 1963, p. 630.

— 147 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 124/1970, qu. 1

Em urna palavra: as ciencias humanas, cultivadas pelos


estruturalistas, negam tudo que no homem possa haver de
especifico, reduzindo o próprio psiquismo a meras realidades
físico-químicas; o ser humano é assim desmitizado, ou seja,
liberto da ilusáo de ser algo de novo no conjunto das criatu
ras. Neste sentido, a nova escola filosófica proclama a morte
do homem.
6) Em suas pesquisas, o estruturalismo rejeita qualquer
explicagáo do fenómeno humano por recurso a Deus ou a
valores religiosos; recusa também toda metafísica. Basta-lhe
verificar que as leis e o mecanismo do homem «sao assim, e
nao de outro modo». Nao se deve indagar o porqué nem ir
ao encalco de causas invislveis. Também nao se deve crer
em leis éticas de valor normativo e absoluto. A Religiáo e a
Moral sao manifestacóes do «coletivo social», manifestacóes
da materia físico-química. Realmente, segundo o estrutura
lismo, Deus e o homem morreram.

Passemos agora a urna

3. Reflexáo serena

1. Poder-se-á realmente dizer que o conceito de


«homem», desmitizado pela ciencia moderna, acabou finalmente
morrendo?
A propósito, observe-se:
1) Urna antropología que aspire a ser completa, jamáis
poderá limitar-se a observar leis gerais e fundamentáis do
comportamento humano. Estas existem, sem dúvida, pois ha
em toda homem aspiragóes inatas, que se manifestam cons
tantemente através do tempo e do espaco. Urna vez, porem,
verificadas essas leis, póe-se o problema típicamente humano
dos valores. Com efeito, o homem é estritamente desuñado a
viver de valores e para valores; ele os distingue uns dos outros,
optando pelos que lhe parecem auténticos e repelindo outros.
Por causa de valores ele pode mesmo mudar seus modos de
comportamento; estes dependem das nocoes que o homem vai
adquirindo por seus sentidos e sua inteligencia. Por conse
guirte, a liberdade de arbitrio é urna prerrogativa de base, e
irredutível, da criatura humana.
2) Os fenómenos da Moral e da Religiáo nao podem ser
tidos como funcóes ou expressóes da sociedade ou efeitos da

— 148 —
ESTRUTURALISMO E DESMITIZACAO

pressáo social. Muitas vézes mesmo, em nome da sua consci-


éncia moral e religiosa própria, o ser humano resiste as pres-
sóes do seu ambiente. Certos pesquisadores que nos últimos
tempos muito se dedicaram á Historia das Religióes, como
Mircea Eliade e Van der Leuw, afirmam insistentemente que
o fenómeno religioso é algo de singular e especifico em rela-
qáo aos demais fenómenos humanos; sómente quem admite a
existencia de um Deus, que é o Bem Infinito a atrair a alma
humana peregrina, é capaz de compreender as manifestacóes
religiosas do ser humano.

3) Reduzindo o individuo á expressáo de um grande


inconsciente coletivo, o estruturalismo extingue toda possibi-
lidade de auténtica convivencia entre os membros da socie-
dade. Em verdade, se o ser humano é simples coisa entre as
coisas, se é simples objeto de ciencia matemática, nao se vé
por que há de ser digno de amor, de compreensáo e de sim
patía. Os estruturalistas pretendem, sem dúvida, despertar as
consciéncias contra toda forma de exclusivismo e colonialismo,
seja local (como se o mundo ocidental fósse superior as de
mais partes do globo), seja temporal (como se o presente
século civilizado se pudesse sem mais antepor aos precedentes).
Sublinhou a extrema variedade e, ao mesmo tempo, a afini-
dade existentes entre os diversos sistemas de cultura humana,
mas é incapaz de propor os fundamentos filosóficos de urna
genuína colaboracáo entre os povos.

4. Gonclusao

Pode-se dizer que o estruturalismo corresponde bem a


algumas tendencias da cultura contemporánea, como sao:

— a aversáo a hitas filosóficas e políticas, intermi-


náveis e incertas, aversáo que leva muitos homens a refugiar-
-se ñas ciencias exatas (matemática, física, quimica...), as
quais parecem oferecer maior seguranza ao homem;
— a reacao contra os mitos do marxismo, (o qual
espera da dialética da materia e da evolugáo da sociedade a
ordem de coisas perfeita), do hjstoricismo (exagerada estima
da historia como se ela tudo explicasse) e do existencialismo
(que aprecia ácima de tudo a liberdade do homem);

— a filantropía humanitaria e anti-racista, a qual


encontra plena expansáo no estruturalismo.

— 149 —
10 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS> 124/1970, qu. 2

É essa consonancia com tragos do pensamento moderno


que explica o sucesso da nova escola filosófica.
Nao obstante, o estruturalimo está longe de atender aos
genuírros problemas e &s angustias do ser humano. Nao há
quem se possa contentar com a exposigáo de mero jógo de
regras destinadas a explicar o comportamento do individuo;
todo homem procura inelutávelmente saber os porqués de sua
existencia, de seus sofrimentos e de sua morte. Ora ésses por
qués, em última análise, encontram a sua resposta em Deus
e na experiencia religiosa; sómente esta pode libertar o homem
do suicidio ou da morte a que por vézes, desesperado, ele se
condena.

Entre outras obras, podem-se consultar a propósito:


P. Valori, «Strutturalismo e ateísmo», em «Divlnitas» a. XIII, n* 1,
marco de 1969, pp. 225-234.
G. Schiwy, «Strukturalismus», em «Sacramentum Mundi» IV, 19G9,
cois. 74347.
J. Piaget, «Le Structuralisme». París 1968.
C. Lévi-Strauss, «Le cru et le cult». Paris 1964.
<Du miel aux cendres». Paris 1966.
«L'origine des manieres de fable». Paris 1968.
M. Foucault, «Les mots et les choses». Paris 1966.

II. ROMA HERÉTICA ?

2) «Diz-se que Boma já acabou cedendo a heresia,


dando-nos urna sacrilega definicao de Missa. A marcha sobre
Boma já chega ao seu termo».

Resumo da resposta: Tem sido impugnado o n' 7 da Instrugáo


com que a Santa Sé apresenta a nova Liturgia da S. Missa, como se
contivesse urna herética definicao da Missa.
Na verdade, as criticas provém de um equivoco. O n' 7 citado,
sem pretender ser urna definicao, apresenta a Missa como «memorial»,
palavra que, na linguagem do Antigo Testamento e no entendimento
de toda a tradieao crista, significa sacrificio. Além do que, basta ler
na sua íntegra o documento mencionado para se encontraren™ ai
repetidas alusoes á Eucaristía como sacrificio.
A palavra do Papa Paulo VI, explicando o espirito da nova Litur
gia, é apta a tranquilizar os fiéis, como se dcpreende das alocucOes de
S. Santidade citadas ao fim déste artigo.

— 150 —
ROMA EM HERESIA? 11

Resposta: Sabe-se que em fins de 1969 a Santa Sé pos


em vigor — ao menos em caráter facultativo até 1971 —
novo rito de celebragáo da S. Missa. Éste, embora guarde as
grandes linhas do anterior (que sao tradicionais e veneráveis),
causou perplexidade em certos ambientes católicos. Tém-se
escrito artigos diversos que pretendem indicar falhas da nova
Liturgia. Ñas páginas que se seguem, voltaremos nossa aten-
qáo para o mais grave aspecto da contestac.áo, que versa em
torno da nocáo de Missa apresentada pela nova Liturgia.

1. O ponto controvertido

O novo rito c acompanhado de urna Instrugáo da Santa


Sé que apresenta a mente e as normas orientadoras da Litur
gia eucarística reformulada.
Ora no n" 7 dessa Instrucáo se lé:

«A ceia do Senhor ou Missa é a sagrada sinaxe ou assembléia do


povo de Deus que se congrega presidida pelo sacerdote, para celebrar
o memorial do Senhor. Por isto, de maneira tdda particular vale para
a reuniáo local da Santa Igreja a promessa de Cristo: 'Onde dois ou
tres estiverem congregados em meu nome, ai estarei eu entre éles"
(Mt 18,20)».

Já se disse que tal noc.áo é «sacrilega, herética e infini


tamente tola», pois nao menciona explícitamente o sacrificio
da Cruz, do qual a Missa é, inegávelmente e antes do mais,
a perpetuacáo incruenta ou sacramental. Ensina, sim, o Con
cilio de Trento que no Calvario e na Missa temos o mesmo
Sacerdote e a mesma Vítima, Jesús Cristo, que se oferece ao
Pai, variando apenas o modo do oferecimento (sess. XXII,
c. 2).
Os autores da nova Instrucáo teriam traído o Sangue do
Redentor, apresentando a Missa como assembléia fraterna, des
tinada a ter repercussóes principalmente na linha horizontal
ou humana. A tal ponto estaría o govérno supremo da Igreja
contaminado pelos «progressistas» !• Os inimigos do Vaticano
estariam prevalecendo na diregáo geral da Igreja.
Quem assim concebe as coisas, tem razáo para se assus-
tar. Mas é preciso, antes do mais, saber se o documento cri
ticado foi bem compreendido. Terá Roma desvirtuado a sua
mensagem, cedendo a urna mentalidade ou protestante ou
«esquerdizante»?

É o que procuraremos ver abaixo. wi»— —»«?-

l¡»i:HÍ3».l ,
12 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 124/1970, qu. 2

2. A nogSo de Missa

1. Deve-se comegar por advertir que o texto impugnado


nao pretende ser urna definigáo de Missa (como julgam seus
críticos), mas apenas urna apresentacáo válida do que é a
Santa Missa.
Esta é dita «assembléia do povo de Deus» — o que está
correto. A Missa é o ato central da vida da Igreja, ato pelo
qual o povo de Deus se reúne e se afirma de maneira emi
nente.
Essa assembléia tem por fim «celebrar o memorial do
Senhor», diz a Instrugáo. Eis a causa que especifica a assem
bléia eucaristica, distinguindo-a de qualquer outra reuniáo fra
ternal ou filantrópica.

E que é o «memorial do Senhor»?

«Memorial» é palavra derivada do vocabulario litúr


gico pré-cristáo. Estava em uso entre os judeus, por exemplo,
que célebravam anualmente na Páscoa o «memorial» ou a
comemoracáo da saida do Egito (cf. Éx 12,14.17). Ésse me
morial coincidía com um sacrificio ou era um sacrificio: o
sacrificio do Cordeiro de Páscoa.
O vocábulo grego correspondente, anamnese, também es
tava em uso ñas religióes nao israelitas ou ñas religióes ditas
«de misterios»; também ai significava mais do que mera re-
cordagáo ou evocagáo.
Ora Jesús, na última ceia, se deu aos discípulos sob forma
de corpo e sangue entregues para a remiss&o dos pecados, e
mandou que repetissem o gesto do Senhor: «Fazei isto em
memoria de mhn» (cf. Le 22,19). Por isto a ceia do Senhor
ficou sendo chamada também memorial ou anamneae. Ésse
memorial tem o sentido rico e prenhe que tinha entre os
judeus: é um sacrificio; é o sacrificio do Calvario perpetuado
sob a forma de sacramento. Como afirmam os estudiosos da
Liturgia crista, quando os teólogos medievais se referiam á
S. Eucaristía, usavam tanto o termo «memorial» como o vo
cábulo «sacrificio». Na verdade, trata-se de um memorial que
é sacrificio nos termos atrás indicados, e... de um sacrificio
que é memorial. Em conseqüéncia, dizem o Canon Romano e
a terceira das preces eucaristicas: «Memores... offerimus...»,
isto é, «Recordando... oferecemos...».
Sacrificio que é memorial... Com efeito, a Missa é dita
«sacrificio relativo»; nao é um sacrificio autónomo, absoluto,

— 152 —
ROMA EM HERESIA? _13

mas ela se refere toda ao sacrificio da Cruz; na Missa e no


Calvario tém-se o mesmo Sacerdote e a mesma Hostia. É esta
referencia que constitui ou fundamenta o memorial.
Donde se vé que, quando a nova Instrugáo de Roma con-
cernente á Eucaristía fala de «assembléia reunida para cele
brar o memorial», ela nao trai em absoluto a genuína dou-
trina católica, nem faz concessóes ao catolicismo liberal nem
vilipendia o Sangue do Salvador. Trata-se apenas de entender
a terminología utilizada, a qual se inspira, sem dúvida, na
mais genuína tradicáo crista.

2. E, para que nao naja dúvida a propósito da orto


doxia da Instrugáo em foco, basta percorrer o restante do
documento.

Lé-se, por exemplo, logo no respectivo ítem n" 2:

«É de máxima conveniencia ordenar a celebrarán da Missa ou


Ceia do Senhor de tal forma que os ministros e os fiéis, déla parti
cipando cada um conforme sua condigáo, recebam com plenitude aque
les frutos que o Cristo Senhor quis prodigalizar, instituindo o sacri
ficio de seu Corpo e Sangue e confiando-o á sua dileta Esposa, a Igreja,
como memorial de sua PaixSo e Ressurreicáo».

O n' 259 da mesma Instrugáo assim reza:

«O altar em que se torna presente o sacrificio da Cruz sob os


sinais sacramentáis, é igualmente a mesa do Senhor, a cuja partici-
pacáo na Missa o povo de Deus é convocado; é também o centro da
aoao de gracas que se realiza pela Eucaristía».

Estas proposiQóes sao ditadas pela mais auténtica doutrina


católica.

Note-se também a mencáo de Missa como sacrificio nos


parágrafos seguintes:

«O presbítero celebrante... associa a si mesmo o povo ao ofe-


recer o sacrificio por Cristo no Espirito Santo a Deus Pai» (n' 60).
«Na celebracao da Missa os fiéis constituem a plebe santa... para
darem gracas a Deus e oferecerem a hostia Imaculada» (n' 62).
«A última ceia, em que Cristo instituiu o memorial de sua morte
e ressurreic&o, sem cessar se torna presente na Igreja quando o sacer
dote, representando o Cristo Senhor, realiza o mesmo que o próprlo
Senhor fez e recomendou aos discípulos que fizessem em sua memo
ria, instituindo o sacrificio e banquete pascal» (n' 48).

Estas expressóes nao deixam dúvida de que a Instrucáo


promulgada pela Santa Sé conserva íntegro o depósito da fé

— 153 —
14 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 124/1970, qu. 2

católica no tocante a «Missa sacrificio, e nao mera assembléia


fraterna*.

3. Quanto á real presenca de Cristo na Eucaristía, é


professada pela Instrucáo em termos indubitávelmente claros.
A presenca eucarística nao se confunde com a presenca pro
metida pelo Senhor em Mt 18,20 («Onde dois ou tres estiverem
reunidos em meu nome...»), mas é professada nao sómente
nos incisos atrás citados, como também ñas rubricas seguintes,
que impóem o respeito as pequeñas parcelas do pao eucarís-
tico, segundo o modo tradicional da S. Igreja:

«Sempre que algum fragmento da hostia aderir aos dedos, princi


palmente após a fracáo ou a comunháo dos fiéis, o sacerdote Umpé
os dedos sobre a patena ou, se necessário, lave-os. Da mesma forma,
reúna os fragmentos que houver fora da patena» (n* 237).
«Se cair no chao urna hostia ou alguma partícula, seja tomada
com reverencia. Se fór derramado um pouco de sangue, lave-se com
agua o lugar onde caiu, c esta agua seja depois langada á piscina
(sacrarlum)» (n» 239).

Ve-se, pois, que nao há razáo para escrúpulos da parte


dos fiéis católicos a respeito da Instrucáo da Santa Sé. A au-
toridade da Igreja merece pleno acato. Trabalha contra Cristo
quem desprestigia a Igreja e seu magisterio. No caso, é sutil
e arbitraria a distincáo entre a Santa Sé (ou Roma) e «os
que se infUtraram na Santa Sé»; a Santa Sé, com seu magis
terio, tornar-se-ia assim algo de teórico ou arbitrario.
O genuino zélo pela causa de Cristo há de procurar sem-
pre a unidade e coesáo da Igreja, coesáo que se faz em torno
de Pedro. — Sómente o mal-entendido pode levar um fiel
católico a contradizer á voz oficial da Igreja; dissipado o equi
voco, dissipe-se também a crítica destrutiva.

3. Urna palavra abalizada

O Santo Padre Paulo VI promulgou o novo «Ordo Missae»


com plena consciéncia do que fazia. Previa possíveis relután-
cias, táo compreensíveis sempre que se trate de trocar costu-
mes antigos por outros mais novos (embora estes novos cos-
tumes sejam inspirados pelas fontes que sempre inspiraran! a
Igreja). Eis passagens da alocucáo do Santo Padre proferida
aos 19/11/1969 sobre o novo rito da Missa:

«Tentaremos tirar de vossas mentes as primeiras e mais espon


táneas dificuldades suscitadas por essa mudanca (do rito da Missa),

— 154 —
ROMA EM HERESIA? 15

respondendo a tres perguntas que o acontecimento, por ceito, fftz ñas-


cer em vosso espirito.
Em primeiro lugar: por que tal mudanca?
Eis a resposta: a mudanca é devida á expressa vontade do Con
cilio Ecuménico recém-celebrado (cf. Const. 'Sacrosanctum Concilium'
n' 50).
A reforma, portante, corresponde a um mandato autorizado da
Igreja; é, pois, um ato de obediencia, um ato de coeréncia da Igreja
consigo mesma; é um passo para a frente na sua auténtica tradicáo
e é urna demonstracao de fidelídade e vitalidade a que todos devemos
aderir com presteza.
Esta reforma nSo é arbitraria. Nao é experimento caduco ou
facultativo. Nao é improvisagáo de algum diletante. É urna leí conce
bida por categorizados cultores da Sagrada Liturgia, lei longamente
discutida e estudada.

É nosso dever, pois, acolhé-la com afetuoso interésse e cumpri-la


com atenta e unánime observancia. Esta reforma acaba com as incer
tezas, as discussSes, os abusos. Convoca-nos para aquela uniformidade
de ritos e sentimentos próprios da Igreja Católica, herdeira e conti
nuadora da primeira comunidade crista, que era 'um só coragáo e
urna só alma' (At 4, 32)...
A segunda pergunta: em que própriamente consiste a mudanca?
... Esteja bem claro que nada se mudou de substancial em nossa
Missa tradicional. Alguém talvez possa íicar impressionado por algu
ma cerimdnia em particular ou por alguma norma correlata, como se
isso fósse ou escondesse urna alteracáo ou diminuigao de verdades,
desde sempre incorporadas e promulgadas na fé crista...
Nao é assim em absoluto...
A Missa segundo o novo rito é e permanece aquela de sempre, até
com mais evidencia sob certos aspectos.
A unidade entre a Ceia do Senhor, o Sacrificio da Cruz, a reno-
vagáo representativa daquela e déste na Missa está confirmada e cele
brada inviolávelmente no rito novo como no anterior.
A Missa é e permanece a memoria da última ceia de Cristo, na
qual Nosso Senhor, transformando o pao e o vinho no seu Corpo e
Sangue, instituiu o Sacrificio do Novo Testamento; através do seu
sacerdocio comunicado aos Apostólos, quis que esse sacrificio ídsse
renovado na sua identidade era memorial perene até o último retorno
do Senhor; apenas a maneira de oferecer é diferente, pois na Missa
ela é incruenta e sacramental (cf. De La Taille, 'Mysterium Fidel',
elucid. IX).
... Nao digamos, pois, 'nova Missa', mas, sim, 'nova época' da
vida da Igreja» («L'Osservatore Romano», 20/11/969).

As palavras de Sua Santídade o Papa Paulo VI sao sufi


cientes para garantir aos fiéis católicos que a Igreja nao
mudou sua doutrina concernente 'á S. Missa; as formulacóes
apresentadas pelo Concilio de Trento sao reproduzidas pelo

— 155 —
16 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 124/1970, qu. 3

Pontífice. Aquietem-se, pois, as consciéncias e dissolvam-se os


preconceitos!

Bibliografía:

A respeito do conceito de «memorial» podem-se consultar


J. A. Jungmann, «La Grande Priére Eucharistique». Paris 1955.
A. G. Martimort, «A Igreja em oracüo>. Slngeverga 1965.
«Dictionnalre de la Foi Chrétienne, sous la direction de La Brosae,
Henry, Rouillard», vol. I. Paris 1968.

3) «A nova tradujo da liturgia da Missa tem édo


dennnclada como falsa e traicoeira. Sugeriría desvíos da reta
doutrina católica.
Que dizer a respeito ?»

Resumo da resposta: A nova traducao da Liturgia eucarística


tem suscitado dúvidas e perplexidades, que se podem dissipar caso se
levem em conta os seguintes elementos:
1) A tarefa de traducao foi confiada a urna comissáo, que se
desempenhou meticulosamente, submetendo finalmente seu trabalho
aos Srs. Bispos do Brasil e de Portugal, assim como á Santa Sé. O
texto vigente foi aprovado pela suprema autoridade da Igreja a titulo
de experiencia.
2) Observacóes e sugestóes para a melhora do texto seráo leva
das em conta antes de se pedir á Santa Sé a aprovacao definitiva.
3) Algumas das fórmulas da nova tradugáo foram redigidas por
urna comissáo mista luso-brasileira — o que explica possam, por seu
estilo, causar estranheza aos fiéis do Brasil.
4) A Santa Sé promulgou diretivas para os tradutores, lembran-
do-lhes a necessidade de nao se prcndcrem servilmente a composicáo
literaria dos origináis latinos, a fim de nao sacrlficarem a compre-
ensáo dos mesmos por parte dos fiéis de nossos tempos.

Resposta: Tém sido publicados comentarios desfavoráveis


á nova tradueáo luso-brasileira da Liturgia Eucarística, pro
venientes da pena de zelosos defensores da fé católica. Im-
pugnam o fato de ter sido traduzido, por completo, o texto
latino de celebracáo da Missa, nada mais ficando ai de latim.
Além disto, contaram-se nada menos de cent» e cinqüenta infi
delidades, entre grandes e pequeñas, ao texto original latino;
algumas dessas infidelidades, dizem os críticos, chegam a por
em perigo a reta fé católica.

— 156 —
NOVA TRADUCAO DA LITURGIA TT

Ora tal impugnagáo sugere quatro observares, que pode-


ráo ajudar o leitor a julgar a situagáo assim criada:

1. Aprova$6o da Santa Sé

A nova traducáo da Liturgia eucaristica foi no Brasil


cuidadosamente elaborada por urna comissáo de teólogos, bi-
blistas, liturgistas, literatos, musicólogos, cada qual contribu-
indo com sua especializacáo para o éxito da tarefa.
Urna vez elaborada, a traducáo foi submetida a assem-
bléia plenária do episcopado brasileiro em julho de 1969, na
cidade de Sao Paulo. Os Srs. Bisóos do Brasil foram entáo
solicitados a apresentar opinióes e sugestóes para melhorar o
texto vernáculo. As respostas a éste apelo foram devidamente
examinadas e aproveitadas.
A seguir, as partes do Ordinario que devem ser ditas pelo
povo, foram revistas por urna comissáo de representantes dos
Bispos do Brasil e de Portugal no mes de agosto de 1969. As
outras partes — que competem ao celebrante apenas — foram
aprovadas pela Comissáo Central do Episcopado Brasileiro em
setembro de 1969, depois de ter sido submetidas 'á revisáo da
Comissáo Nacional de Teología representada por seu entáo
Presidente D. Aloísio Lorscheider.
Finalmente o texto completo foi levado á Santa Sé, que
o aprovou a título de experiencia. Ésse mesmo texto, urna vez
comprovado ou devidamente emendado, deverá posteriormente
receber a aprovagáo definitiva dos Srs. Bispos do Brasil e de
Portugal, assim como das autoridades de Roma.
Como se vé, nao se pode dizer que tenha havido levian-
dade na execucáo da tarefa de traducáo. Esta vai sendo feita
por etapas e submetida a experiencia e as sugestóes dos inte-
ressados, a fim de que chegue finalmente á melhor forma
concebivel (é claro que toda obra humana está sujeita a defi
ciencias e difícilmente agrada a todos os estilos possiveis).
Ademáis a aprovacáo dada pela S. Sé as fórmulas boje vigen
tes é garantía de que sao ortodoxas e corresponden! ao sentido
do texto latino, sem deturpacóes doutrinárias.
Seria pouco recomendável dizer que os textos litúrgicos
foram inconscientemente aprovados por Roma, pois esta ale-
gacáo, além de ser irreverente, poderia servir para acobertar
todo tipo de insubordinacáo. O bom católico acata os documen
tos que trazem, em termos legáis, a cháncela da suprema

— 157 —
18 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS? 124/1970, qu. 3

autoridade da Igreja. Se há algum reparo a fazer, dirija-se


diretamente á autoridade competente e nao excite a opiniáo
pública, provocando alarde e desconcertó nao sonriente entre
os irmáos na fé, mas também entre aqueles que nao compar-
tilham a fé católica.

2. Criterios do tradugao

A Santa Sé mesma, em mais de unía ocasiáo, promulgou


normas a ser seguidas pelos tradutores dos textos litúrgicos.
Tais diretivas recomendam, sem dúvida, a fidelidade aos tex
tos origináis, em termos, porém, que tenham significado claro
e vivo para o povo cristáo de cada país. A Liturgia é, em parte,
a oracáo da assembléia sagrada; donde se depreende a necessi-
dade de que possa ser assimilada pelos fiéis que déla parti-
cipam.
Eis, por exemplo, o que manda o «Consilium ad exse-
quendam Constitutionem de Sacra Liturgia» (Comissáo de
peritos destinados a por em prática a Oonstituicáo sobre a
Sagrada Liturgia) em urna «Instrugáo para a tradugáo de
textos litúrgicos» datada de 25 de Janeiro de 1969:

«Nao basta que a tradugáo litúrgica exprima na lingua vernácula


o conteúdo literal e as idéias do texto original. Deve procurar trans
mitir fielmente a um determinado povo, e na sua lingua, o que a
Igreja quis comunicar no texto original a outro povo de idioma di
verso. A íidelidade da traducáo nao se julga tomando-se em conside-
racao a morfología de cada palavra ou de cada frase, mas o contexto
exato de quanto a Liturgia comunica, tendo-se como base a natureza
e o modo de exprimir-se da Liturgia» (n' 6).
«A oracSo da Igreja é sempre proferida por um grupo particular,
reunido 'aqui e agora*. Por isto, muitas vézes n3o basta traduzir com
oxatidao material, palavra por palavra, textos litúrgicos redigidos em
outra época e em contexto cultural diverso.
O texto traduzido deve tornar-se oragáo viva e atual da comunj-
dade reunida, e nesta cada um dos seus membros deve ter a possibi-
lidade de encontrar-se e exprimirse» (n* 20).

Descendo a casos particulares, o documento ensina:

«Por exemplo, o acumulo de palavras latinas 'ratam, rationabilem


acceptabilemque' reforca o sentido epiclético da oracáo. Contudo em
algumas linguas o uso dos tres adjetivos pode produzir efeito contra
rio, diminuindo a fdrca oratoria do texto» (n' 12).
«Ñas oragOes da quaresma, o termo 'ieiunium' nao indica só a
privacao de alimentos, mas pode indicar agora tfida a disciplina qua-
resmal, litúrgica e ascética» (n» 13).

— 158 —
NOVA TRADUCAO DA LITURGIA 19

Tais normas precisas nao sao senáo o eco parcial de


principios gerais ditados pelo Santo Padre Paulo VI aos tra
dutores litúrgicos em alocucáo datada de 10 de novembro
de 1967:

«A traducao dos textos litúrgicos para o vernáculo é ta reía táo


delicada, importante e diíicil que nao poderi'a ser devidamente empre-
endida sem a confrontacáo do pensamento de todos os interessados.
Com efeito, se ela fósse deixada ao arbitrio de cada um, correría o
risco de nao corresponder á expectativa da Igreja c dos fiéis.

Quanto trabalho requerem tais traducSes, bem o pode dizer S. Je


rónimo, que era um perito na materia: 'Se traduzo palavra por pala
vra, asseverava ele, a coisa nao tem sentido; se a necessidade me
obríga a mudar a ordem do texto ou suas expressóes, pareco ser
infiel ao meu dever de traduzir' Clnterpret. Chron. Euscbii'. pref PL
27, 35).

... O texto em lingua vernácula que passc a ter lugar na Litur


gia, pode ser adaptado a inteligencia de todos, mesmo das criancas e
dos incultos. Mas, bem o sabéis, ele deve ser sempre digno das altís-
simas realidades que exprime. Deve ser diferente da Iinguagem cor-
rente que se fala na rúa ou ñas pracas, capaz de tocar as almas e de
acender nos coracfies o fogo do amor de Deus. E depois — está íora
de dúvida — urna é a Iinguagem que os tradutores devem utilizar para
as passagens tiradas da Sagrada Escritura, que contém a Palavra de
Deus, e outra a Iinguagem que devem usar para as oracSes e os
hinos. Os que fazem éste trabalho, devem possuir a fundo tanto o
latim cristáo como a lingua para a qual traduzem. Os tradutores
devem igualmente levar em conta as regras musicais; as palavras
destinadas a ser cantadas háo de ser suscetiveis de ser postas em
música, segundo as particularidades e o caráter de cada povo, de
modo que o canto ajude as almas a se unir melhor a Deus.
Por isto devem-se empregar todos os esforcos para que a comu-
nidade litúrgica se possa exprimir mima bela Iinguagem, que conve-
nha a todos e que possa 'exprimir todo um conjunto de coisas intrín
secamente belas' (S. Jerónimo). Sem dúvida, razóes pastorais pediram
que renunciemos parcialmente á beleza e á riqueza da lingua romana,
na qual ao longo dos sáculos o povo orou a Deus e Lhe rendeu na
Igreja latina os louvores e a acáo de gracas que Lhe sao devidos.
O vosso trabalho, sabio e diligente, deve conseguir que a beleza da
oraejio e a gravidade do texto nao brilhem com menor fulgor ñas tra-
ducSes dos textos litúrgicos».

Estas palavras de S. Santidade e as do «Consilium» ex-


plicam que os tradutores, no Brasil e em Portugal, tenham,
nao raro, procurado mais transmitir o sentido e o valor in
trínseco dos textos litúrgicos do que reproduzir própriamente
a forma literaria dos mesmos.

Ademáis deve-se levar em conta outro fator influente na


confeceáo das atuais fórmulas vernáculas da Liturgia.

— 159 —
20 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 124/1970, qu. 3

3. Acordó Brasil-Portugal

É desejo da Santa Sé que países cuja lingua materna é


a mesma (Inglaterra e E. U. A., por exemplo, Espanha e
nacóes hispano-americanas) adotem a mesma tradugáo ver
nácula; «evitem multiplicar as traducóes, porque teso prejudi-
caria a seriedade e a dignidade do culto», como dizia S. San-
tidade na alocugáo ácima referida.
Esta norma induziu os bispos do Brasil e de Portugal a
entrar em acordó sobre a traducáo, ao menos, dos textos que
sao dialogados pelo sacerdote e os fiéis. Em vista disto, reu-
niram-se em Lisboa, de 22 a 31 de agosto de 1969, tres bispos
e tres peritos, a representar Portugal, e D. Clemente Isnard,
bispo de Nova Friburgo (Brasil) e Secretario Nacional de Li
turgia, com o P. Busch, por parte do Brasil.
Nesse encontró foram examinadas algumas formulacóes
da nova Liturgia. Como se compreende, os representantes do
Brasil tiveram que fazer concessóes a'O gósto e ao estilo dos
vernaculistas de Portugal. Désse acordó mutuo resultaram,
por exemplo,
— a resposta á saudacáo «O Senhor esteja convosco».
A resposta anterior «E contigo também» nao agradava nem no
Brasil nem em Portugal, por ser pobre e pouco eufónica. A
exclamacáo «Ele está no meio de nos!», embora nao seja pró-
priamente urna resposta, deve ser entendida como um ato de
fé na presenca de Cristo na assembléia litúrgica; pode servir
para tornar a comunidade mais consciente do valor dessa
presenca;

— a resposta «Gragas a Deus!» as primeiras leituras


bíblicas da Missa, nítida concessáo dos brasileiros aos repre
sentantes de Portugal;
— a aclamacáo «Gloria a Vos, Senhor!» dita após o
Evangelho, visto que em Portugal nao soava bem a fórmula
antiga «Louvor a Vos, ó Cristo !»
— a fórmula dita «enxuta» (breve) da confissáo de
pecados no inicio da Missa. A comissáo mista procurou ela
borar urna fórmula que se pudesse memorizar com facilidade,
reduzindo-se ao mínimo as palavras, sem detrimento do con-
teúdo. Note-se que a nova confissáo menciona também os
pecados de omissao, completando assim a fórmula anterior;
o texto do Símbolo Apostólico (Credo mais bre
ve)... Havia urna traducáo no Brasil, e outra em Portugal,

— 160 —
NOVA TRADUCAO DA LITURGIA 21

sendo a redagáo portuguesa melhor do que a brasileira. A


frase «desceu á mansáo dos mortos» substituiu o «desceu aos
infernos» a pedido explícito do episcopado portugués (pedido,
alias, que alguns biblistas do Brasil também haviam formu
lado).

O hiño angélico (Le 2,14) foi assim traduzido: «Gloria a


Deus ñas alturas e paz na térra aos honiens por ftlc amados*.
O texto latino da Liturgia soa: "... pax hominibus bonae volun-
tatis», o que tem sido traduzido por paz aos homens de boa vontade».
Esta traducáo, porém, é ambigua. Com efeito, o texto do Evangelho
donde se deriva o hiño, dá a ler no seu original grogo: «eirénc en
anthrópois eudokias» (Le 2, 14).
Ora «en anthrópois cudokias; pode sor duplamente entendido:
— ou em sentido subjetivo; designa entáo os homens que tém
boa vontade, que tém boa disposigáo para com Deus e a própria sal-
vacáo (cí. Rom 10, 1; Flp 1, 15; 2,13);
ou em sentido objetivo: significa entáo os homens que sao
objeta da boa vontade divina ou da benevolencia de Deus (cf. Eí
1,5.9).
Conforme o texto do Evangelho, é certo que se deve preferir a
segunda acepeáo de eiidokias. Éste substantivo nao quer exprimir, no
caso, urna atitude do homem, mas, sim, a maneira como Deus se rela
ciona com os homens: Ele Ihes quer hein.
Em conseqüéncia, os tradutores brasileiros haviam proposto a
traducáo: «Paz na térra aos homens que Ele tanto ama!» Esta tradu-
cao corresponde exatamente ao sentido do texto do Evangelho e serla
talvez a traducáo ideal da fórmula litúrgica; Deus ama todos os
homens, e tem seu beneplácito em cada um (ainda que algum seja
rebelde).
Todavía os peritos de Portugal preferiram a fórmula: «aos ho
mens por Ele amados». Invocaram razoes que a comissáo mista julgou
válidas. Mesmo esta outra tradueao — que está vigente — é muito
melhor, muito mais expressiva do sentido original do que a antiga
construcáo: «aos homens de boa vontade». Por isto nao se deve ter
«saudades» da antiga tradueao do «Gloria»; a reforma litúrgica repre
senta um progresso, no caso.

A expressáo «Vos que tiráis o pecado do mundo», em vez


de «os pecados do mundo», também tem seu significado valioso. Ela
quer lembrar que Cristo nao veio tirar os pecados do mundo ñas
pessoas concretas (pois todo homem ainda é pecador), mas Cristo
veio eliminar o estado de pecado em que o mundo vivía; veio derrotar
a íórca do mal, libertándonos do estado de escravidáo (cf. Col 2, 14).
O Redentor nao veio tirar ao homem a sua liberdade. cujo uso desre-
grado é sempre a causa ¡mediata de um pecado concreto.

O fato de que algumas expressóes da nova tradugáo foram


concebidas em Portugal, concorrerá para esclarecer os fiéis do
Brasil.

— 161 —
22 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 124/1970, qu. 3

Por último, deve-se sublinhar que os formularios ver


náculos atualmente em uso estáo sujeitos a sofrer retoques
e emendas, caso estes se evidenciem necessários. Por conse-
guinte, é para desejar que os interessados enviem suas obser-
vagóes e sugestóes ao Secretariado Nacional de Liturgia (Con
ferencia Nacional dos Bispos do Brasil, Caixa Postal 85, Rio
de Janeiro, Guanabara).

4. O uso do vernáculo

Há fiéis católicos que lamentam, vá caindo em desuso o


latim na celebragáo da S. Eucaristía. Esta lingua se acha
intimamente associada a tesouros do pensamento e da litera
tura cristáos. Sobre éste criterio vai prevalecendo o desejo de
tornar a Liturgia cada vez mais participada pelo povo de Deus.
A propósito nao há melhor elucidagáo e fator de encoraja-
mento do que a palavra do S. Padre Paulo VI proferida na
audiencia pública de 26/11/1969:

«Vem agora a maior das inovacóes: a que se refere á lingua.


O idioma principal da Missa já nao será o latim, mas, sim, o ver
náculo. Para quem apreende a beleza, a torca e a sacralidade expres-
siva do latim, a sua substituicáo por urna lingua viva representará,
sem dúvida, um grande sacrificio. Vamos perder a linguagem dos
sáculos cristáos. Vamo-nos tornar intrusos e profanos no recinto lite
rario da expressáo sagrada. Vamos ficar privados de grande parte
daquele estupendo e incomparável íatp artístico e espiritual que é o
canto gregoriano. Sim; temos razáo" para nos entristecer e quase
mesmo para nos desorientar. Com que poderemos substituir essa lin
gua angélica? O sacrificio que vamos fazer, é um sacrificio de inesti-
mável valor. E por que razáo? Haverá algo que valha mais do que
estes altissimos bens da nossa Igreja?

A resposta parece banal e prosaica. Mas é válida, porque humana,


porque apostólica. A compreensao da oracáo vale mais do que as
antigás roupagens de seda de que ela se revestiu regiamente. Vale
mais a partieipacáo do povo, déste povo moderno, táo habituado a
expressóes claras, inteligiveis e traduziveis no seu modo profano de
íalar. Se o divino latim separasse de nos a infancia, a juventude, o
mundo do trabalho e dos negocios, se fósse um diafragma opaco, em
vez de ser um cristal transparente, nos, pescadores de almas, farlamos
bem em conservar-lhe o dominio exclusivo da oracáo e dos ritos reli
giosos? Que dizia Sao Paulo a ésse respeito? Leia-se, por exemplo, o
capitulo 14 da primeira carta aos Corintios: 'Prefiro falar na assem-
bléia cinco palavras que compreendo, para instruir também os outros,
a falar dez mil palavras em virtude do dom das linguas' (v. 19). O novo
rito da Missa estabelece, alias, que os fiéis 'saibam cantar juntos em
latim ao menos as partes do Ordinario da Missa e, especialmente, o
Símbolo da Fé e a Oragáo do Senhor, o Pai-Nosso' (n« 19). Contudo,
para nossa tranqüilidade e conforto, tenhamos presente o seguinte:

— 162 —
NOVA TRADUCAO DA LITURGIA 23

nem por isso o latim desaparecerá na nossa Igreja. Continuará a ser


a nobre lingua dos atos oficiáis da Sé Apostólica. Permanecerá como
instrumento de ensino nos estudos eclesiásticos e como meio de acesso
ao patrimonio da nossa cultura religiosa, histórica e humanística;
e, se fdr possivel, aínda há de reflorescer em todo o seu esplendor».

Continua o S. Padre realgando o que de positivo há na


nova liturgia e, de modo especial, a nocáo teológica de
S. Missa, que, através das novas fórmulas de celebracáo, se
conserva intata:

«Finalmente, observando bem, veremos que a idéia fundamental


da Missa será sempre a tradicional, nao só no seu significado teoló
gico, mas também no seu significado espiritual. Mais aínda: se o rito
fdr celebrado como deve ser, éste significado espiritual manifestará
urna riqueza maior, evidenciada pela grande simplicidade das ceri-
mónias, pela variedade e abundancia dos textos bíblicos, pela acáo
cadenciada dos ministros, pelos intervalos de silencio que dividem o
rito em momentos diversamente profundos e, sobretudo, pela exigencia
de dois requisitos: íntima participacáo de cada pessoa que assiste, e
fusao dos espirites na caridade comunitaria — requisitos estes que
devem fazer da Missa, hoje mais do que nunca, urna escola de pro-
fundidade espiritual e um campo de treino tranquilo e operoso de
sociología crista. As relacóes da alma com Cristo e com os irmáos
atingem assim urna nova intensldade vital. Cristo, Vitima e Sacerdote,
renova e oferece, mediante o ministerio da Igreja, o seu sacrificio
redentor no rito simbólico da sua última ceia, que nos deixa, sob as
aparéncias do pao e do vinho, o seu Corpo e o seu Sangue para o nosso
alimento pessoal e espiritual e para a nossa íusáo na unidade do seu
amor redentor e da sua vida ¡mortal» («L'Osservatore Romano,
ed. portuguesa, 30/11/969, p. 3).

Possam as palavras de S. Santidade, serenamente medi


tadas, suscitar paz e alegría nos cristáos inquietos! Os fiéis
católicos créem com firmeza que o magisterio da Igreja é
assistido pelo Espirito Santo para ser o fiel transmissor da
doutrina revelada; as diretivas formuladas, promulgadas ou
aprovadas pela Santa Sé merecem plena reverencia. Por causa
da maneira de orar, por causa da celebragáo da S. Eucaristía,
sacramento da unidade, nao se dividam os discípulos de Cristo!

BIBUOtEM CEBiEiL **"

— 163 —
24 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 124/1970, qu. 4

III. FAMOSO SEGRÉDO

4) «O padre que wive urna confissáo sacramental, está


tobrigado ao segrédo.?
Essa ©brigacao é grave ? Admite excecóes ?»

Resumo da resposta: O sigilo sacramental é a obrigagáo que


toca ao sacerdote, de guardar segrédo absoluto a respeito de tudo que
tenha ouvido em coníissáo sacramental, desde que a revelacáo dessa
materia redunde em prejuizo ou desagrado do penitente.
Essa obrigagáo é grave, pois é condicáo indispensável para que o
sacramento da Penitencia seja respeitado e possa ser dignamente
administrado. A Igreja nao tem o direito de dispensar a propósito em
caso algum. O sacerdote deve estar pronto a correr tribulac5es e
mesmo perigo de vida para nao violar o sigilo sacramental. Ap6s a
confissSo, lora do foro sacramental, o sacerdote nao pode fazer uso
do que ouviu sob sigilo; nao mudará seu modo de tratar o penitente,
nao lhe lembrará faltas acusadas ou conselhos dados, a menos que
o penitente lhe dé autorizacáo formal de tocar nos assuntos da con
íissáo.
Est&o obrigadas ao sigilo sacramental todas as pessoas que de
algum modo se tornem cientes da materia acusada: o intérprete, o
teólogo ou perito consultado para resolver um caso difícil, aqueles que
voluntaria ou involuntariamente na igreja percebam algo do que é
dito no confessionário. — O penitente mesmo pode manifestar suas
faltas a quem queira; guarde, porém, o segrédo natural a respeito do
que o sacerdote lhe disse em confissáo, pois um mal-entendido no pú
blico prejudicaria o padre, que nao se poderia defender.
A violacao direta do sigilo (manifestacáo do pecado e do nome
do penitente) é punida com excomunháo no momento mesmo em que
é cometida (excomunháo «latae sententiae»). A violacáo indireta (si-
nais dos quais se pode depreender a materia da confissáo) admite
graus de gravidade; é punida com penas canónicas que o juiz ecle
siástico estipula após o devido processo (penas «ferendae sententiae»).

Resposta: O sigilo da confissáo sacramental tornou-se


algo de famoso na historia da Igreja. Principalmente notorio
é o caso de Sao Joáo Nepomuceno (também dito Joáo de
Pomuk ou Nepomuk), cónego da arquidiocese de Praga
(Boémia); em 1393, foi torturado e precipitado no rio Mol
davia por ordem do Rei Venceslau da Boémia. O motivo ofi
cial désse morticinio foi o seguinte: o cónego Joáo teria con
firmado, contra a vontade do rei, a eleigáo do novo abade do
mosteiro de Kladrau. Na verdade, porém, como ensinam as
auténticas atas da historia, o sacerdote sofreu o martirio por
ter recusado revelar o que ouvira em confissáo da rainha. Sao

— 164 —
SEGRÉDO DA CONFISSAO 25

Joáo Nepomuceno foi, conseqüentemente, chamado «o proto-


mártir do sacramento da confissáo».
O tema «sigilo da confissáo» tem interessado historiado
res e romancistas; sabe-se que é algo de muito rigoroso, mas
nao se sabe bem até que ponto... Em vista disto, vamos
abaixo propor as grandes normas que o definem e regula-
mentam.

1. Que é o sigilo sacramental ?

1. Por «sigilo sacramental» entende-se a obrigacáo que


incumbe ao sacerdote, de guardar segrédo absoluto a respeito
de tudo que tenha ouvido em confissáo sacramental, desde
que a revelagáo dessa materia redunde em prejuízo ou desa
grado do penitente. O nome de «sigilo» é dado a éste tipo de
segrédo por analogía com as cartas que sao lacradas com um
seto («sigillum»).

2. Os fundamentos désse rigoroso sigilo sao:

a) justiga: entre o sacerdote e o penitente há como que


um contrato implícito de segrédo, pois o penitente confia algo
de particular e íntimo ao sacerdote;

b) religiao. É preciso que haja reverencia ao sacra


mento da Penitencia, reverencia da qual o segrédo é condigáo
indispensável.
É necessário também que o sacramento nao se torne odioso
para os fiéis que o freqüentam. Já que a acusagáo dos pecados
é de instituigáo divina (cf. Jo 20, 22s), tudo que se torne
obstáculo á recepgáo do sacramento, pode ser tido como proi-
bido por direito divino; ora a revelaeáo — direta ou indireta —
da materia da confissáo tornaría odioso o sacramento e afas-
taria os fiéis da confissáo.

3. Assim fundamentado, o segrédo sacramental nao to


lera excecáo alguma. A menos que tenha autorizagáo explí
cita e espontánea do penitente, ao confessor nao é licito dizer
o que tenha ouvido no sagrado tribunal, mesmo que o segrédo
acarrete para ele risco de morte, .. . mesmo que se trate de
graves males públicos a evitar. — A dignidade do sacramento
e a invrolabilidade do sigilo interessam de mancira excelente
ao bem comum.
Ademáis o sacerdote, administrando o sacramento da con*
fissáo, nao age como homem, mas, sim, como instrumento de

— 165 —
26 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 124/1970, qu. 4

Deus. Compreende-se entáo que, urna vez terminada a sagrada


fungáo, o homem sacerdote nada possa saber daquilo que com
petía estritamente ao instrumento de Deus. O Papa Inocen
cio III (f 1216) sugere esta verdade ao dizer: «O padre, a
quem o penitente se confessa nao como, a um homem, mas
como a Deus, deve evitar qualquer palavra ou qualquer sinal
que faga crer que ele conhece o pecado» (PL 217, 652).

A Igreja mesma julga nao ter o poder de reconhecer


excecóes nessa materia; Ela apenas verifica e proclama urna
ordem de coisas divina. Em suma, nao há autoridade sobre
a térra que esteja habilitada a dispensar do sigilo sacramental.

Desde os primeiros séculos, encontram-se na tradicáo crista teste-


munhos de escritores e bispos que incutem o segrédo a ser mantido
em torno da materia da confissao sacramental. Concilios regionais
foram promulgando leis a tal propósito; assim o Concilio de Tovina
na Armenia (em 527 aproximadamente) foi o primeiro a adotar me
didas contra o sacerdote violador do sigilo. Finalmente o Concilio do
Latrao IV em 1215 legislou pela primeira vez para a Igreja inteira
sobre o assunto. De entáo para cá as autoridades da Igreja só tém
íeito explicitar a lei do sigilo e suas aplicacoes.

2. Objeto do sigilo sacramental

1. O objeto do sigilo sacramental é tudo aquilo de que


o penitente se acuse ao sacerdote a fim de receber a absol-
vigáo. Mesmo que a confissao seja inválida, sacrilega ou ina
cabada, há obrigagáo de sigilo, como também a há quando a
absolvigáo é diferida ou negada.
Nao existe, porém, o dever de sigilo quando alguém se
confessa conscientemente a um leigo ou a um sacerdote que
nao tenha jurisdicáo, ou se apenas pede conselho, ou aínda se
vai procurar um sacerdote no intuito de engañar ou zombe-
tear o padre ou se se confessa a um padre que lhe tenha dito
claramente nao intencionar ouvir confissao.

A expressáo nao rara: «Digo-lhe isto em segrédo de con


fissao» nao é suficiente; o sigilo sacramental só pode ser im
posto a um padre em virtude do sacramento da confissao.

2. Urna das conseqüéncias imediatas da lei do sigilo sa


cramental é a seguinte:
O sacerdote, nao pode usar dos conhecimentos adquiridos
na confissao sacramental para fazer o que quer que se torne

— 166 —
SEGREDO DA CONFISSÁO 27

nocivo ou «dioso ao penitente, ou o que quer que venha abalar


a confianca dos fiéis no silencio inviolável do confessor».
Por conseguinte, o padre nao tem o direito de falar ao
penitente dos pecados déste fora da confissáo sem o expresso
consentimento do penitente. Nao tem, pois, o direito de, fora
da confissáo, lembrar ao penitente, por palavras ou gestos,
pecados acusados; também nao tem o direito de recordar ao
penitente obrigacóes contraidas na confissáo, a menos que o
penitente lhe permita voltar aos assuntos da acusagáo.
Também é licito ao confessor, após a confissáo, dirigir
censuras ao penitente, censuras que o penitente perceba sejam
inspiradas pela confissáo. O padre, depois da confissáo, nao
se deve mostrar menos acolhedor para com o penitente, nem
há de tomar atitudes mais severas do que antes; em suma, é
obligado a evitar tudo que possa magoar o penitente ou sus
citar ñas outras pessoas urna suspeita fundamentada. O con
fessor, porém, pode valer-se dos conhecimentos adquiridos na
confissáo para orar pelo penitente, agir com mais circunspeccáo
e corrigir seus costones. Quem ouve confissóes, é continua
mente estimulado a se emendar de suas próprias faltas.

Caso, porém, o penitente mesmo tome a iniciativa de falar


das suas faltas, o confessor pode responder-lhe. Em ulterior
confissáo, o sacerdote pode voltar a pecados já acusados pelo
penitente.

3. No decorrer da confissáo, o penitente pode manifes


tar, além de suas faltas, também defeitos naturais, civis, nas-
cimento ilegítimo, escrúpulos... Tais dados caem também sob
o sigilo sacramental? — Deve-se responder afirmativamente,
caso a declaracáo désses elementos seja necessária ou ao
menos útil & manifestacáo completa da consciéncia do peni
tente. A resposta, porém, será negativa, se tais elementos só
se relacionaren! de longe e acidentalmente com a confissáo.

Assim, quando um jovcm declara que teve odio a seu pai por
causa da intemperanca déste, ou quando diz que nada fez para corri
gir seu irmáo depreendido em flagrante de roubo, as faltas do pai e
do irmáo estáo incluidas no objeto do sigilo. Todavía, se o penitente
declara que se regozijou por causa de um morticinio cometido em
praca pública, o sacerdote nao viola o sigilo se fala désse assassinio.

i Confessor, neste conte'xto, é o sacerdote quo ouve confissSes


sacramentáis.

— 167 —
28 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 124/1970, qu. 4

4. Os pecados dos cúmplices estáo igualmente recobertos


pela lei do sigilo. Há pessoas que julgam nao fazer urna con-
fissáo completa se nao indicam o nome e as faltas do res
pectivo cúmplice. Ora em caso algum é lícito ao confessor re
velar estes dados, mesmo que o silencio acarrete graves danos
para a sociedade. Neste último caso, o confessor pode pedir
ao penitente que faga, por si mesmo ou por outrem, as decla-
ragóes exigidas pelo bem comum. Caso, por um motivo qual-
quer, o penitente nao as possa prestar, o sacerdote pode pedir
ao penitente que o autorize a falar ou repita suas declaragóes
ao confessor fora da confissáo sacramental.

5. Eis mais algumas conseqüéncias práticas da lei do


sigilo sacramental:

Um sacerdote que conhega o despreparo espiritual de urna


pessoa através da confissáo sacramental apenas, nao lhe pode
recusar a S. Comunháo nem em público nem em particular,
desde que essa pessoa se lhe aprésente para receber a S. Eu
caristía.
Um sacerdote nao se pode furtar a abengoar o casamento
de cónjuges entre os quais haja impedimento dirimente, desde
que ele só conhega ésse impedimento através da confissáo
sacramental.

Um bispo nao tem o direito de recusar as Ordens sacras


a um candidato que ele saiba (sómente através da confissáo)
ser irregular.

Todavía as reservas feitas ao comportamento do ministro


cessam, se ele conhece os mesmos impedimentos tanto por via
sacramental como por vozerio público.

O sacerdote que recuse a absolvigáo a um penitente mal


disposto, caso venha a ser ele mesmo acusado do crime come
tido pelo penitente, nao tem o direito de se defender traindo
o segrédo da confissáo, aínda que, em conseqüéncia, corra pe-
rigo de vida.

O sacerdote que, pela confissáo, fica sabendo que o vinho


de Missa contém veneno ou que salteadores o espreitam na
estrada que ele deve seguir, pode deixar de celebrar ou pode
tomar outro caminho? .

— A resposta há de ser negativa, dado que o sacerdote,


deixando de celebrar ou mudando de rumo, dé a entender que

— 168 —
SEGRSPO DA CONFISSÁO 29

está aproveitando dos conhecimentos adquiridos em confissáo,


ou dado que cause um prejuízo ao penitente. O sacerdote teria
entáo que arcar com o perigo de vida, a fim de nao violar o
segrédo sacramental.

Caso, porém, o sacerdote pudesse agir com tal prudencia


que afastasse a suspeita de estar usando conhecimentos adqui
ridos em confissáo, teria o direito de abster-se da celebracáo
da Missa e seguir outro caminho. O sigilo sacramental nao
estaría comprometido.

Um sacerdote que tenha ouvido alguém em confissáo,


geralmente nao pode recusar-lhe um atestado de conflssáo,
ainda que nao tenha conferido a absolvicáo sacramental. Com
efeito, denegando o atestado, o sacerdote comprometería indi-
retamente o sigilo e ocasionaría o surto de suspeitas contra
o penitente. Alias, em tais casos, o confessor apenas atesta
que N. N. se apresentou ao sacramento da confissáo. — Caso,
porém, o sacerdote possa negar o atestado sem violar, nem
indiretamente, o sigilo, deve negá-lo a fim de evitar abusos.

Um sacerdote nao pode recusar seu sufragio em favor


de alguém numa eleieáo, se, depois de ter tido boas informa-
Cóes a respeito do candidato, ele venha a saber, por confissáo
sacramental, que tal pessoa é indigna ou incapaz.

O sacerdote também nao pode fazer uso dos conheci


mentos adquiridos em confissáo, para encerrar no respectivo
quarto urna pessoa que esteja disposta a sair para roubar ou
matar; nao pode despedir um funcionario ladráo, nem lhe pode
tirar as chaves da casa ou trancar os armarios dos quais o
funcionario rouba.

6. Em contraparte, nao constituem materia de sigilo


sacramental as virtudes do penitente, os dons especiáis que
tenha recebido de Deus, os seus bons propositas, desde que
estes elementos sejam revelados ao confessor a titulo de ma-
nifestacáo geral de alma ou em vista de direcáo espiritual.
Neste caso, mesmo que nao naja obrigagáo de sigilo sacra
mental, fica sempre a obrigacáo de diseñe»» devida a urna
confidencia íntima. Dado, porém. que os mesmos elementos
sejam revelados ao confessor para que avalie melhor a frieza,
a ingratidáo e a inconstancia do penitente, tornam-se indire
tamente objeto de sigilo, pois fazem parte da acusagáo sacra
mental.

— 169 —
30 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 124/1970, qu. 4

3. Quem está obrigado ao sigilo ?

O sigilo onera a consciénda de todas as pessoas que, de


um modo qualquer, tenham tomado conhecimento de declara-
cóes feitas no tribunal da oonfissáo.

1) O primeiro sujeito onerado, no caso, é o sacerdote


que ouviu a confissáo. Deve silenciar de tal modo que oponha
a negacáo mais formal, até com juramento, a qualquer per-
gunta que o induziria a violar o segrédo da confissáo.

Se durante a celebragáo da S. Missa um coroínha viesse


a perguntar ao padre se é preciso preparar urna hostia para
a comunháo de urna pessoa que se tenha confessado sem ter
sido absolvida, o sacerdote pode mandar o menino perguntar
á pessoa se ela quer comungar.

O confessor nao depóe em inquéritos ou processos (nem


mesmo em processos de beatificacáo e canonizacáo) a respeito
dos seus penitentes.

Se o sacerdote nao pode acusar suas faltas pessoais sem


comprometer o sigilo, omita a acusacáo evitando expor-se á
ruptura do segrédo.

2) Também é onerada a pessoa que sirva de intérprete


ou cicerone entre o penitente e o confessor. Verdade é que
a confissáo mediante o recurso a intérprete nao é obrigatória,
nem mesmo em artigo de morte (segundo a sentenca mais
provável); como quer que seja, desde que se chame um intér
prete, éste deve guardar sigilo sacramental.

Estáo igualmente sujeitos á mesma lei

3) o superior eclesiástico ao qual o confessor tenha que


pedir autorizacáo para absolver em casos reservados a urna
autoridade superior;

4) o teólogo ou canonista, sacerdote ou leigo, ou ainda


quem quer que seja consultado pelo confessor, com a licenca
do penitente, a fim de colaborar na solucáo de um problema
de consciénda;

5) todos aqueles que, voluntaria ou involuntariamente,


por malicia ou por acaso, venham a conhecer a materia da
confissáo. Quem está perto de um confessionário onde o peni
tente se acusa em voz elevada, afaste-se e guarde o sigilo a
respeito do que tenha ouvdo.

— 170 —
SEGRÉPO DA CONFISSAO 31

Todavía se alguém, por humildade ou penitencia, faz urna


confissáo pública, aqueles que o ouvem nao estáo obrigados
ao sigilo sacramental.

Quem se torne conhecedor dos pecados de alguém por


revelacáo, criminosa ou nao, de um confessor, está ligado pelo
sigilo.

O próprio penitente, é claro, nao está sujeito á lei do


segrédo; pode autorizar o confessor a falar das faltas acusa
das. É para desejar, porém, que o penitente guarde o segrédo
natural em relacáo as palavras e aos conselhos dados pelo
confessor. O silencio da parte do penitente é penhor de mais
fácil desempenho da missáo do confessor; é preciso levar em
canta que, no caso de mal-entendido a respeito do que o con
fessor tenha dito na confissáo, o sacerdote nao se pode de
fender nem justificar (pois está ligado pelo sigilo). O Direito
Canónico, porém, prevé casos em que t> penitente pode e deve
manifestar o que tenha ocorrido na confissáo (cf. can. 904).

4. As sangoes da lei

1. A violagáo do sigilo sacramental, por parte do con


fessor, é urna falta grave, condenável sob tres aspectos:
— é um sacrilegio, pois vilipendia um sacramento
cuja dispensacáo deve ser secreta para o bem espiritual dos
fiéis;
— é urna injustiQa, pois viola um contrato ou quase-
-contrato estipulado entre o penitente e o confessor;
— é urna detragáo, pois revela faltas que o público
nao conhece.

2. Distinguem-se violacáo direta e violáceo indireta do


sigilo.
A violacáo direta ocorre quando sao manifestados, explí
cita ou implícitamente, o pecado e o pecador. É sempre falta
grave.

A violacáo indireta se dá quando, das palavras ou dos


gestos do confessor, se origina o perigo de se tornarem conhe-
cidas a materia do sacramento ou a pessoa do penitente. Nem
todas as faltas, neste setor, sao tidas como graves.
Além das violacóes do segrédo, o Direito Canónico, con
dena também o uso de noticias adquiridas na confissáo, desde

— 171 —
32 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 124/1970. qu. 5

que tal uso seja molesto ao penitente (cf. can. 890 § 1»); nao
rejeita, porém, o uso de noticias que nao desagrade nem pre-
judique av> penitente.

3. O confessor que ouse violar diretamente o sigilo sa


cramental, incorre em excomunháo iatae sententiae (estipu
lada pelo próprio Direito Canónico, sem espera de sentenca
judiciária), excomunháo reservada spccialissimo, modo á Santa
Sé, isto é, que nao pode ser absolvida senáo por recurso ao
Sumo Pontífice (cf. can. 2369).
A violáceo indireta da parte do confessor e a violagáo,
direta ou indireta, da parte de outrem, como também o uso
de conhecimentos adquiridos em confissáo, sao faltas sujeitas
a penas ferendae sententiae (penas a ser estipuladas após pro-
oesso judiciário); cf. can. 2369.
Como se vé, a lei do sigilo sacramental é das mais seve
ras que o Direito Canónico conheca. Bem mostra com que
seriedade a Igreja trata o sacramento da confissáo, inefável
testemunho da misericordia divina.

Bibliografía:

B. Dolhagaray, «Confession (science acquise en)», em «Dictionnaire


de Théologie Catholique», III 1. París 1938, cois. 960-974.
A. Criscito, «Segreto», em «Enciclopedia Cattolica», XI. Cittá del
Vaticano, cois. 256-260.

P. Galtier, «Pénitence» (Apéndice), em «Dictionnaire Apologétique


de la Foi Catholique», ni. París 1916, cois. 1861-65.

IV. CONTESTACÁC

5) «Que é a 'Igreja subterránea' (Unterground Church)?


Que dizer de tanta contestacáo na Igreja de nossos días?»

Resumo da resposta: A «Igreja subterránea» ou «paralela» é


urna expressáo da contestacáo que se vem registrando dentro do Cato
licismo contemporáneo. Consta de pequeñas comunidades de vinte ou
trinta membros cada urna, que pretendem viver o espirito de frater-
nidade e espontaneidade que a Igreja Católica parece sufocar por seu
juridismo. Os membros dessas comunidades se alheiam á hierarquia e
ñs instituic6es da Igreja Católica, embora nao tencionem constituir
um cisma.

— 172 —
«IGREJA SUBTERRÁNEA» _33

A propósito, devese dizer que nao é possivel aderir plenamente


a Cristo, sem aderir também a Igreja que se deriva de Cristo através
dos Apostólos e se prolonga até nossos dias. Na verdade, a Igreja
nao é simplesmente a soma de seus membros humanos, mas é o Corpo
Místico de Cristo, de modo que é na Igreja e mediante a Igreja que
os homens podem e devem apreender o Cristo. Éste nao é sómente um
Mestre que nos deixou urna mensagem, posteriormente redigida por
seus discípulos, mas é urna roalidade viva, presente através dos séculos
no sacramento da Igreja.
De resto, a Igreja Católica tem consciéncia de que traz as marcas
das deficiencias de seus membros e nao recusa examinar-se e renovar
le segundo as necessidades dos tempos e o espirito de Cristo.

Resposta: Talvez nunca se tenha falado tanto de Igreja


como em nossos dias. O Concilio do Vaticano II quis preci
samente concentrar seus estudos em tomo déste tema, visto
que o Vaticano I comecara a explanar o assunto, mas o dei-
xara inacabado (por causa da irrupcáo da guerra franco-
-prussiana em 1870). Numerosos escritos tém posto em relevo
os belos aspectos da Igreja: «povo de Deus», «comunidade
de culto», «co-responsabilidade», «vocacáo universal a santi-
dade»... Todavía pode-se dizer que também nunca houve
tanta, contestacáo dentro da própria Igreja! Há muitos cató
licos que dizem aceitar Deus e Cristo, mas sao cétícos em
relacáo á Igreja, ou mesmo afastam-se déla (as vézes, clamo
rosamente).
É a essa problemática que daremos atengáo ñas páginas
que se seguem, focalizando de modo especial a questáo da dita
«Igreja subterránea». Após o que, proporemos algumas con-
sideracóes que parecem particularmente oportunas na hora
presente.

1. Contéstaselo dentro da Igreja

Os que se mostram descontentes com a Igreja hoje em


día, sao inspirados pelos mais variados motivos. Distinguire
mos dois grupos principáis:

1) «Religióo profanada»

Há quem julgue que, no afá de se adaptar á realidade


contemporánea, a Igreja tem ida longe demais; perdeu seus
valores religiosos propriamente ditos para se mundanizar, ce-
dendo a interésses meramente profanos. Com fadlidade sus-

— 173 —
34 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 124/1970, qu. 5

peitam a existencia de heresias ou desvíos da fé ñas declara-


cóes e nos escritos que se propalam dentro da Igreja.
Sem comentarios no momento, passamos á posicáo de ex
tremo oposto:

2) «Religióo p'ra tros»

Muitos pensam que a Igreja se imobilizou, conservando


até hoje formas de disciplina e doutrina que já deveriam ter
sido ultrapassadas. Em vez de viver a pureza e a simplicidade
do Evangelho, a Igreja se deixou envolver pelo juridismo, o
legalismo e o moralismo. Nao respeita a pessoa humana e
seus direitos de opcáo, mas pretende sufocá-la, impondo-lhe
obrigagóes insustentáveis. Traiu as esperanzas dos pobres e
pequeninos, fazendo causa comum com os ricos e poderosos do
mundo; por médo ou oportunismo é incapaz de tomar a si a
defesa dos oprimidos.

Tais católicos descontentes chegam a abandonar a Igreja,


asseverando que já nao é a Igreja que Cristo teve em mira
e que o homem de hoje esperaría encontrar. Com alarido saem
da Igreja Católica e pretendem viver um Cristianismo des
vinculado de qualquer sociedade religiosa. Haviam nutrido
grandes esperanzas no Concilio do Vaticano II; em dado mo
mento entusiasmaram-se..., mas verificaram posteriormente
que (segundo dizem) as estruturas vigentes na Igreja entra-
vam qualquer movimento de renovagáo! Alguns dáo um passo
ulterior: insatisfeitos, resolvem aderir a urna confíssáo crista
nao católica ou mesmo a urna religiáo nao crista; ao passo
que (como dizem) o Catolicismo nada mais tem a lhes ofere-
cer, outras denominacóes religiosas lhes aparecem cheias de
vitalidade ou riquezas espirituais; descobrindo ésses valores,
julgam dever converter-se a éles.

É preciso observar que, além do extremo conservativismo


e do progressismo desenfreado, um novo tipo de contestacáo
vem-se afirmando e alastrando nos últimos tempos: é o das
chamadas

2. «Igrejas subterráneas»

Entre os católicos descontentes, há nao poucos que nao


desejam romper explícitamente com a Igreja, mas adotam
frente as autoridades eclesiásticas urna atitude de indepen
dencia: mam pequeños grupos autónomos, indiferentes á hie-

— 174 —
* IGREJA SUBTERRÁNEA» 35

rarquia e as leis da Igreja. Tal é o fenómeno das «Igrejas


paralelas» ou «subterráneas» (Unterground Church), que vem
tomando vulto nos E.U.A. Colocando-se ao lado da Igreja
Católica oficial, constituem entidades de contornos incertos e
de matizes variegados. Embora seja difícil definir tais «Igrejas
paralelas», é possivel assim formular os seus traeos principáis:

A designacáo «Igreja (s) subterránea(s)» é um tanto


falaz, pois nao se trata de «Igreja das catacumbas». A palavra
«Unterground», no inglés dos Estados Unidos, pode significar
tanto «subterráneo» como «resistencia»; ora é como «Igreja
resistente» que a «Unterground Church» quer ser entendida.
Conta atualmente com cérea de 50.000 adeptos (dentre os 50
milhóes de católicos norte-americanos), repartidos em cérea
de 2.000 grupos, integrados cada um por 20 ou 30 membros.

Oriundos de maneira espontánea, destituidos de qualquer


organizacáo jurídica, ésses grupos se distinguem por sua litur
gia e seu modo de pensar próprios.

Liturgia... As «Igrejas paralelas» pretendem celebrar um


culto que seja expressáo de fraternidade e espontaneidade;
reunem-se em uma casa de familia; o presidente da assem-
bléia há de ser urna pessoa bem conhecida de todos os amigos
presentes: um sacerdote casado ou suspenso de ordens, um
ministro religioso náo-católico ou mesmo (excepcionalmente)
um leigo; a cerimónia litúrgica é, muitas. vézes, improvisada
ou adaptada as circunstancias; consta de leituras bíblicas,
cantos (por vézes, dancas) e recitacáo de um dos vinte ca-
nones eucarísticos que atualmente circulam na Europa e nos
E.U.A.

Em suas reunióes, os membros das Igrejas subterráneas


discuten! questóes de fé e de moral, procurando reformular
certas proposicóes tradicionais do Credo: a Divindade de Cris
to, a real presenga do Senhor na Eucaristía, a autoridade
papal. . . A disciplina e a moral católica, principalmente no
tocante a vida sexual, sao consideradas como expressóes da
intrusáo da Igreja na vida pessoal dos seus membros.

A «Unterground Church» se recruta numa élite de pessoas


de 25 a 45 anos de idade, de raga branca; sao geralmente
intelectuais, no exercício de profissóes liberáis; nao recusam,
porém, receber em seus grupos homens e mulheres de qual
quer condigáo social. Desejosos de abertura para o estran-
geiro, tém intercambio com católicos da Holanda, da Franca
e da Alemanha.

— 175 —
36 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 124/1970, qu. 5

O que impressiona ñas Igrejas subterráneas, é, de um


lado, a consciéncia de familia ou de fraternidade que une os
respectivos membros entre si. De outro lado, notam-se liber-
dade e espontaneidade, que excluem toda institucionalizagáo.
Alias, todo pequeño grupo pode, mais fácilmente do que as
grandes comunidades, desenvolver em seu seio o amor fra
terno, a solidariedade e a espontaneidade. As seitas — e assim
também as «Igrejas paralelas» — se beneficiam dessa van-
tagem do «pequeño número». Quando as comunidades se tor-
nam grandes, é mais patente no seu seio a existencia de joio
e trigo.

Após esta rápida alusáo a aspectos da contestagáo no


Catolicismo contemporáneo, impóe-se urna reflexáo serena
sobre o problema.

3. Que é a Igreja ?

1. A tendencia a ficar com Cristo e abandonar a Igreja


Católica, por mais sedutora que parega, é ilusoria e vá. Seria
oompreensível, sim, se a Igreja fósse apenas a soma de seus
membros ou urna realidade meramente humana. Na verdade,
porém, a Igreja é, conforme as Escrituras, o Corpo de Cristo
prolongado (cf. Col 1,24; 1 Cor 12)... Corpo de Cristo, nao
em sentido meramente metafórico, mas em sentido real e de
maneira sobrenatural ou mística. Em conseqüéncia, é na Igreja
que se deriva diretamente de Cristo e se prolonga até nossos
días, que o homem de hoje vai encontrar o Cristo. Por mais
humana que se aprésente, essa Igreja é a face encarnada do
Cristo em nossos dias. Por isto o Concilio do Vaticano II
chama a Igreja «sacramento», isto é, realidade visível por
tadora e comunicadora de realidade invisível, transcendental
e divina.

Vé-se, pois, que o criterio para se reconhecer a Igreja


em que Cristo vive nao é propriamente a santidade ou a sa-
bedoria ou a atividade cultural dos seus membros, mas, antes
do mais, a contínnidade que faz a Igreja proceder de Cristo
através dos Apostólos até nossos dias sem üiterrupcáo nein
hiato. Jesús disse aos seus Apostólos: «Eu estarcí convosco
até a consumacáo dos sáculos» (Mt 28,20); por conseguinte,
foi aos Apostólos, prolongados até o fim dos tempos na pessoa
de seus sucessores (os Bispos), que Cristo prometeu a sua
assisténcia infalivel. É de notar que o Senhor nao disse: «É
com os mais santos ou os mais sabios de meus discípulos que

— 176 —
«IGREJA SUBTERRÁNEA» 37

eu estarei», mas, sim, «com aqueles que constítuirem a Igreja


apostólica», ou a Igreja regida pelos Apostólos e seus suces-
sores. O criterio é, pois, objetivo, e nao meramente subjetivo:
a continuidade da Iinhagem ou da sucessáo apostólica. Nessa
linhagem pode haver deficiencia humana; todavía essa reali-
dade humana há de ser considerada involucro e canal trans-
missor da graga divina. Tais sao as conseqüéncias do dom da
Encarnacáo, objeto central da fé crista.

Compreende-se, pois, que, objetivamente falando, nao é


possível separar Cristo e Igreja por Cristo fundada.

2. A mesma doutrina pode ser expressa em outros


termos.

Coloquemos o dilema:
«Onde está Cristo, ai está a Igreja»
ou «Onde está a Igreja, ai está Cristo».
Qual das duas proposigóes será a correta?

— A primeira vista, a anterior. Quem a adota, procura


conhecer o Cristo lendo os Evangelhos; forma para si um
conceito (até que ponto, objetivo e fiel?) da mensagem de
Cristo, e vai procurar entre as diversas denominagóes cristas
aquela em que se vive auténticamente essa mensagem de
Cristo; acaba entáo por aderir a urna «Igreja» (batista, meto
dista, presbiteriana...) ou mesmo a nenhuma (caso julgue
que todas as comunidades cristas sao demasiado falhas); pode
aderir a Cristo sem ter a obrigagáo de aderir a alguma
Igreja. — Tal é a atitude dos crentes protestantes: póem a
Igreja em plano secundario ou acidental; importa-lhes apenas
o Cristo... e o Cristo apreendido através da Biblia. A pre-
cariedade desta posicáo é demonstrada pela própria historia
do protestantismo, que se vai esfacelando em centenas de
denominagóes e «igrejas», cujo Cristo varia sucessivamente
(algumas ramificagóes protestantes já nao aceitam a Divin-
dade de Cristo e a SS. Trindade).
Na verdade, a genuína posicáo crista é formulada pelo
axioma: «Onde está a Igreja, ai está Cristo». Isto quer dizer
que nao se encontra o Cristo em sua plenitude senáo através
da Igreja e dentro da Igreja. Cristo nao é apenas um Mestre
que nos deixou um livro, mas é urna Realidade que vive, fala
e age através dos tempos mediante sua presenga sacramental
na Igreja, no seu Corpo Místico. Por isto, para encontrar o
Cristo, basta olhar para a face da Igreja que em nossos dias

— 177 —
38____«PERGyNTE _ERESPONDEREMOS»_124/1970, _qu._5

se liga ininterruptamente com Cristo. Ora, no vasto panorama


das denominacóes cristas, só há urna Igreja que preencha tal
exigencia: a Igreja Católica. Só esta nao tem fundador pró-
prio após Cristo, um fundador antes do qual ela nao existia
(o luteranismo se deve a Lutero, o calvinismo e o presbite-
rianismo a Calvino, o metodismo a Wesley...). Poi1 conse-
guinte, é na Igreja Católica que o homem pode achar Cristo,
a Biblia e a agáo redentora de Cristo. Nessa Igreja Católica,
o homem encontra o dom de Deus apresentado por máos hu
manas (as vézes manchadas), sim, mas dom incontaminado,
garantido pela assisténcia infalível de Cristo.

3. Os antigos cristáos sempre demonstraran! ter cons-


déncia muito viva de que é impossível separar Cristo e a
Igreja, pois Cristo vive nesta. Exprimiam-no em termos que
hoje chocariam um pouco.

Tenham-se em vista, por exemplo, as palavras de S. Cipriano


(t258), bispo de Cartago, proferidas por ocasiáo de urna ameaca de
cisma entre Roma e Cartago: a Igreja, dizia ele, esposa incontaminada
de Cristo, é para nos, cristáos, «a Máe que nos guarda para Deus e
nos destina ao reino celeste. Por isto quem abandona a Igreja de
Cristo, nSo pode chegar aos premios de Cristo... NSo pode ter Deus
como Fai qnem nüo tem a Igreja como mué» («De catholicae Ecclesiae
unitate> 6).
S. Joáo Crisóstomo (t407) certa vez comentou o íato de que um
soldado, Eutrópio, perseguido pelos milicianos imperiais em Constan-
tinopla, obtivera asilo em urna igreja da ddade; todavía, tendo saldo
do templo, foi logo preso pelos guardas policiais. O episodio sugeriu
ao santo bispo as seguintes palavras: «Nao te afastes da Igreja, pois
nada é mais forte do que a Igreja. A Igreja é a tua esperanga, a Igreja
é o teu refugio. Ela é mais alta de que o céu e mais larga do que a
térra. Jamáis envelhece; a sua juventude é eterna» (homilía sobre
Eutrópio preso 6).

Através dos séculos subseqüentes, as mesmas idéias (em


tom sobrio, mas claro) ressóaram ñas obras e na pregagáo da
Igreja. O Concilio do Vaticano n retomou-as em sua Consti-
tuigáo «Lumen Gentium»:

«É, antes do mais, para os fiéis católicos que o Santo Concilio


dirige o seu pensamento. Apoiado na Sagrada Escritura e na Tradicáo,
ensina que esta Igreja peregrina na térra é necessária para a salva-
cao. Sámente Cristo é Mediador e caminho de salvacao; ora Ele se
nos torna presente no seu corpo, que é a Igreja. Ele mesmo, ao in
culcar expressamente a necessidade da fé e do batismo, corroborou
ao mesmo tempo a necessidade da Igreja, na qual os homens entram
pela porta do batismo. Por isto nao poderáo salvar-se aqueles que,
embora saibam que a Igreja Católica íoi fundada por Deus mediante
Jesús Cristo como necessária á salvagáo, se recusam a entrar ou a
perseverar nela» (n' 14>.

— 178 —
UGREJA SUBTERRÁNEA:, 39

Verdade é que, com o decorrer dos tempos, os teólogos


foram tornando mais explícita urna posigáo complementar a
estas idéias: podem-se salvar as pessoas que estejam de boa
fé fora da Igreja Católica; caso em sá consciéncia, e scm hesi-
tacáo alguma, julguem que devem aderir a urna crenga ou
ideología nao católica, Deus as julgará segundo a sua since-
ridade. Tais pessoas nao pertencem visivelmente a Igreja Ca
tólica, mas, caso se salvem, so se salvam mediante a Igreja;
sao membros invisiveis da Igreja, sem que elas o saibam e sem
que a Igreja tampouco o saiba.
Sómente o Senhor Supremo vé o intimo das consciéncias
e avalia até que ponto alguém esteja de boa fé e sincera
mente fora da Igreja Católica. A nos, homens, porém, com
pete apregoar as vias de salvacáo objetivas e universais insti
tuidas por Cristo, e ajudar todos os nossos irmáos a que as
trilhem conscientemente. Por isto é que o Concilio do Vati
cano II quis chamar a atengáo para o erro que, objetivamente
falando, cometem aqueles que, sendo católicos, abandonam
conscientemente a Igreja «para ficar com o Cristo puro dos
Evangelhos».

4. Urna tentando de todos os tempos

Cristo mesmo predisse que a sua Igreja seria semelhante


a um campo onde crescem o trigo e o joio (cf. Mt 13, 24-30.
36-43); o joió ai nao deve ser arrancado até o dia da messe.
Propós também a imagem de urna rede que captura peixes
bons e maus; sómente no dia do juizo final é que se fará a
separaeá© de uns e outros (cf. Mt 13,47-50).
Nao obstante, no decorrer dos séculos, os cristáos sempre
foram tentados a admitir ou criar comunidades separadas,
constituidas de pessoas «carismáticas» e «santas».

Eis alguns dos casos mais significativos:


Os Montañistas, nos séc. n/HI, fundados por Montano na
Asia Menor, afirmavam que haviam recebido o Espirito Santo
e seus carismas; por isto deviam separar-se da Igreja que traz
pecadores em seu gremio.
Os Donatístas, nos séc. IV/V, sob a inspiracáo de Donato,
repeliam a «Católica» (universal), para constituir a facgáo
dos puros no Norte da África.

— 179 —
40 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 124/1970, qu. 5

Os Cataros (= puros, em grego), nos séc. XI/XII, im


buidos de dualismo ou de repulsa á materia, preconizavam
urna Igreja meramente espiritual na Europa meridional e
central.

Os «Fraticelli», nos séc. XIV/XV, discípulos remotos de


S. Francisco de Assis, o Patriarca da pobreza, queriam cons
tituir grupinhos seráficos, caracterizados exclusivamente por
valores místicos.

Joáo Wiclef (t 1384) e Jan Huss (f 1415), aquéle na In


glaterra, éste na Boémia, também pensaram em urna Igreja
desligada da tradicáo.

Lutero e os Reformadores subseqüentes até nossos días


tém dado origem a «Igrejas» e seitas inspiradas pela intuicáo
pessoal e subjetiva do respectivo fundador.

Na verdade, a Igreja de Cristo é universal, compreenden-


do em seu seio santos e pecadores. Ela é santa — e indefectl-
velmente santa — na medida em que Cristo nela vive e age.
Todavía é chagada pelos pecados de seus filhos — filhos que
ela procura maternalmente livrar do mal e salvar. Por ser
peregrina neste mundo de homens, a Igreja precisa de leis e
estruturas, pois estas sao os meios pelos quais normalmente
se estabelece e conserva a ordem ñas sociedades humanas; a
sociedade sem constituicóes se esfacela. Verdade é que as leis
e o juridismo sao mero instrumento, mas necessário instru
mento, para fomentar o amor; as leis sao roteiros para que
o amor nao se desvirtué. Caminhando há vinte sáculos pelas
estradas desta térra, a Igreja está sujeita a se ver recoberta
de poeira; acha-se bem envolvida na historia, sofrendo a re-
percussáo dos embates da historia universal. Ela traz as
marcas das máos de santos e pecadores, que lidaram com o
patrimonio sagrado de Cristo; carrega os vestigios de culturas
e expressóes dos homens que a ilustram, mas também a podem
desfigurar. Nem todas as marcas do passado a ornamentam;
todavía nao é sempre fácil cancelá-las, visto que as coisas
humanas sao, muitas vézes, morosas e «viscosas».

Todavía é nessa Igreja precisamente que se prolonga o


misterio da Encarnacáo; é nela que os homens encontram a
salvacáo. Nao sem razáo a tradicáo fala da Santa Mae Igreja;
é déla (integrada por tal Papa, tais bispos, tais sacerdotes,
tais fiéis) que o cristáo recebe a vida de Cristo, sem a qual
nao seria cristáo.

— 180 —
«IGREJA SUBTERRÁNEA» 41

Dizia muito bem Tertuliano, escritor cristáo do séc. IH:


«Nos, peixinhos segundo nosso ICHTHYS Jesús Cristo, nas-
cemos na agua, e nao nos podemos salvar a nao ser que per-
manecamos nagua» («De baptismo» 1) 1. — A agua na qual
nascemos e nos salvamos, é a agua do Batismo, cuja piscina
é a S. Igreja.

Alias, a própria Igreja tem consciénda de que precisa de


se renovar continuamente, sacudindo o pó da caminhada. O
Concilio do Vaticano n o afirmou na Constituicáo «Lumen
Gentium»: «A Igreja reúne em seu seio pecadores e, por isto,
ao mesmo tempo que é santa, precisa de purificagáo e sem
descanso prossegue no seu esfórgo de penitencia e renovagáo»
(n' 8).

Cada um dos filhos da Igreja, ao verificar as chagas dessa


Santa Máe, em vez de se deixar ficar perplexo e hesitante,
deve assumir a tarefa de contribuir para o saneamento dessas
chagas. Tal tarefa comeca pelo própria individuo (ele mesmo
já é Igreja); cada qual deve, antes do mais, contestar a si
mesmo e as suas falhas, aproximando-se assim do ideal do
amor perfeito a Deus e aos homens. Foi assim que procede-
ram todos aqueles que realmente reformaram ou abrilhanta-
ram a Igreja, isto é, os santos. Outros cristáos houve que
pretenderam reformar a Igreja sem ser santos ou, mais explí
citamente, sem ter caridade, humildade e paciencia em ele
vado grau. Conseqüentemente, deixaram a Igreja dilacerada e
ferida, á semelhanga do homem que, na parábola do bom
samaritano, caiu ñas máos dos ladrees.

Enquanto procura cumprir seus deveres para com a Igreja


na hora atual, o fiel católico permanece tranquilo e confiante
(embora os problemas tendam a impressioná-lo)... Tranquilo
e confiante, porque sabe que é Cristo o indefectível estelo da
sua Igreja. É Ele quem a salva e santifica «a fim de apre-
sentá-la a si mesmo em todo o esplendor, sem mancha nem
ruga ou qualquer imperfeicáo, mas santa e imaculada» (Ef
5, 27). Mesmo no momento tempestuoso que a Igreja atra-
vessa, o cristáo olha sereno para o futuro, certo de que o
Senhor ama a sua Igreja e vela por seus destinos.

i Alusáo ao peixe, que é clássicamente um símbolo deslgnativo


de Cristo. As letras da palavra grega ICHTHYS sao as iniciáis de urna
proíissáo de fé assim concebida: Iesous CHristós Tlleou Yiós Sooter,
Jesús Cristo, Filho de Deus, Salvador.

— 181 —
42 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 124/1970, qu. 6

A consciéncia destas verdades é apta a suscitar no dis


cípulo de Cristo nao sómente paz, mas também profunda
alegría e mesmo... o santo garbo de pertencer á Igreja
Católica!
As comunidades de base poderiam ser a realizagáo au
téntica daquilo a que as «Igrejas subterráneas» aspiram:
espirito de fraternidade consciente. Veja-se a propósito «P.R.»
117/1969, pp. 385-393.

Sobre o tema destas páginas em geral, vém ao caso:


«L'Église souterraine aux États-Unis», em «Études» 331 (1969)
119-127.
«Gioia e fierezza di appartenere alia Chiesa», em «La Civilta Catto-
lica» 120 (1969) 45-350.
H. de Lubac, «Méditations sur l'Église». Paris 1953.
«A Igreja do Vaticano II», sob a directo de G. Baraüna. Petrópolis
1965.

V. MORAL HOJE

6) «Diz-se classicamente que o fím nao justifica os


meios.
Será isto verdaJde mesmo em nossos días, fiando os ho-
mens enfrentam situacóes inéditas?»

Resumo da resposta: A moralidade do ato humano é aterida nao


sómente pela finalidade désse ato (intencáo do agente), mas também
pelo objeto ou a materia em tdrno da qual ésse ato versa. Há ates
cuja materia é em si má; tais sSo os que contradizem as leis da
natureza (nao matar, nao roubar, respeitar a dignidade do pró
ximo...).
Para chegar a determinado flm, o homem tem de recorrer a meios
adequados; quem quer o íim, quer os meios. Donde se segué que o
íim e os meios sao envolvidos no dinamismo de um só querer. Por
conseguinte, se alguém escolhe um meio moralmente mau para atin
gir um íim bom, cai em contradicao consigo mesmo ¡ quer o bem e
o mal ao mesmo tempo; assim destrol o valor bom de sua acáo. Nao
beneficia nem a si nem ao próximo.
Dal dizer-se que o íim bom nüo justifica os meios maus, nem na
era da técnica, quando tantas sao as seduc6es para justificar quats-
quer meios. Sempre que alguém recorre a meios maus, é degradado
por tal recurso, ainda que nutra a melhor das intencóes.

Bissposta: Todos os homens de bom senso foram, até os


últimos tempos, unánimes em afirmar que o fim nao justifica
os meios ou que, em consciéncia, nao se pode empregar qual-

— 182 —
FIM JUSTIFICA MEIOS? 43

quer recurso para atingir urna finalidade boa, por mais pura
ou útil que seja. Éste principio parece táo evidente que poucos
autores sentem a necessidade de o provar. Todavía há quem
julgue que, diante dos problemas totalmente novos dos nossos
dias, o axioma possa e deva sofrer excegóes, ... excecóes de
emergencia justificadas por necessidades extremas. — Em
conseqüéncia, vamos abaixo analisar sucintamente a proble
mática; após o que, tentaremos responder á dúvida suscitada.

1. A problemática

O mundo de hoje, com sua explosáo demográfica e os


problemas que ela abre, ... com os novos recursos da ciencia
e da técnica, tem inspirado aos homens certos comportamen-
tos em que o fim reto e honesto parece justificar meios que
os antigos reprovariam:

inseminagSo artificial para dar a cónjuges esteréis a alegría e a


estabilidade de um casal fecundo;
o uso de recursos anticoncepcionais para nao sobrecarregar urna
genitora ou um casal já muito onerados;
a esterilizacao de individuos tarados ou enfermos, a fim de que
nao propaguem males sociais;
o uso da tortura para se extorquirem segredos e assim por a salvo
a vida de milhOes de homens ameagados por terroristas;
o suicidio empreendido por um prisioneiro a fim de, no auge
da dor, nao vir a denunciar seus companheiros de luta ou calr na
desonra;
o aborto para evitar prole defeituosa ou indesejada;
o sacrificio de vidas humanas inocentes a fim de se obterem me-
lhores condigSes para as geragBes futuras.

Em tais casos, os fins ou objetivos sao sempre legitimos;


os meios eram reputados iniquos. Hoje em día, porém, per-
gunta-se se tais meios nao sao legitimados pela perspectiva de
urna finalidade boa. Os motivos para que se proponha a ques-
táo podem-se reunir em tres incisos:

1) a multiplicaga© de meios e recursos que aliviana e


facilitam a luta do homem, multiplica as tentagóes de se usa-
rem meios que, segundo os conceitos clássicos, seriam ilegíti
mos, em vista de metas legitimas. Assim, por exemplo, a
fecundagáo artificial, outrora empreendida no gado apenas,
hoje em día pode ser com éxito efetuada também no ser
humano, com «vantagens» altamente decantadas;

— 183 —
44 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 124/1970, qu. 6

2) a chilizagáo contemporánea gera urna mentalldade


que é cada vez menos propensa a aceitar a Moral e as exi
gencias da consciéncia. Mediante a técnica o homem moderno
se acostumou a ver paulatinamente cair os obstáculos ás suas
conquistas; barreiras outrora insuperáveis vém cedendo...
Daí sentir ele a difículdade de tolerar que a Moral refreie ou
detenha a execugáo de planos ousados ou grandiosos. O «prin
cipio da eficacia» leva a nao rejeitar meios censuráveis dos
quais se possam esperar resultados sedutores;

3) hoje em día acentua-se muito a «Moral da intencáo».


Segundo esta, tal ou tal nao é bom ou mau em si mesmo; é
a intengáo de quem o pratica que o torna lícito ou nao; a
Moral deixa de ser objetiva para se tornar meramente sub
jetiva; «nao se considere aquilo que alguém faz, mas a in
tengáo com que o faz». Em conseqüéncia, matar um inocente
por espirito de rancor ou vinganga seria condenável; todavía
matá-lo para salvar urna cidade seria louvável.

Para a Moral da intengáo, os meios nao precisam de jus


tificativa moral; tém fungáo meramente técnica; sao «amorais»
ou moraJmente neutros* Daí a ruptura, freqüente em nossos
dias, entre a Moral e a técnica. A Moral (intengáo, conscién
cia subjetiva) seria algo de estritamente pessoal, variável de
individuo a individuo, ao passo que a técnica (a eficacia, o
rendimento científico, o progresso) seria algo de objetivo ou
um problema da sociedade como tal. A Moral nada teria a
dizer no setor da técnica.

Eis como se coloca o problema de nossos dias: pode-se


aínda sustentar que o fim nao justifica os meios? ... ou que
a consciéncia moral tem direito a emitir julgamento sobre os
comportamentos que a civilizacáo sugere (ás vézes, imperiosa
mente) ao ddadáo moderno?

Procuremos a resposta para a questáo.

2. Bem e mal: o subjetivo e o objetivo

1. Antes do mais, note-se que dois sao os elementos


que tornam um ato moralmente bom ou mau, legítimo ou
ilegítimo:

— o objeto, désse ato ou a materia em torno da qual


versa o ato: assim ensinar ciencias e civismo a um ignorante

— 184 —
FIM JUSTIFICA MEIOS? 45

é ato, por seu objeto, bom. O ato de dar esmola a um indi


gente é, por seu objeto, bom;
— a finalidade ou a meta que se tem em vista ou que
se intenciona quando se pratica o dito ato. Esta também tera
que ser boa ou reta para que o ato seja moralmente bom.
Por conseguinte, quem ensina a um ignorante no intuito de
se furtar a imperiosas obrigagóes de seu oficio ou emprégo,
está procedendo mal (pois a finalidade é má). Quem dá ali
mento a um faminto, pretendendo furtar-se a lhe pagar o justo
salario, procede mal.
Ve-se, pois, que, para que um ato seja moralmente bom,
é preciso seja bom nao sómente pelo fim ou objetivo ao qual
se dirige, mas também pela materia em torno da qual versa.

2. Desenvolvendo tais idéias, pode-se dizer:

O que torna um ato moralmente bom ou mau, legítimo


ou ilegítimo, nao é sómente a intencáo de quem o pratica...
Também nao é simplesmente o julgamento ou a avaliasáo de
quem age. Além déstes elementos subjetivos, existe um crite
rio objetivo para se definir o agir humano. Tal criterio é a
materia ou o objeto désse agir.
Ora sao atos moralmente bons por sua materia ou por
seu objeto, os atos que atendem as exigencias da natureza
humana. Com efeito, a natureza humana impóe ao homem
certas normas para que o individuo se realize ou se torne
mais homem; burladas essas normas, o individuo se desfigura.
Tais normas sao válidas em todos os tempos (elas sao ante
riores a qualquer tipo de educacáo ou filosofía) :■ entre essas
exigencias, está a de respeitar os direitos do próximo, a de
amar os semelhantes, a de nao fazer a outrem o que ninguém
quer seja feito a si mesmo, a de nao matar um inocente...
Todo ato que se conforme a tais imperativos, é moralmente
bom; leva o homem a ser mais digno.
Ao contrario, moralmente mau por seu objeto é o ato
que desrespeite as leis da natureza, ato que, em vez de levar
o homem a adquirir a perfeigáo para a qual ele é natural
mente chamado, o desfigura e depaupera.

A titulo de complemento, nao se poderla delxar de dizer aquí que


o ser humano nao «se realiza» de maneira leiga ou sem Deus. Se-
guindo as normas de sua natureza, o sujeito segué as leis de Deus,
'Autor da natureza. Reaüzando-se a si mesmo, o individuo se torna
mais próximo de Deus, mais brilhante reflexo da perfeic&o do Cria-

— 185 —
46 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 124/1970, qu. 6

dor. Nestas páginas estamos propondo a doutrina de tal modo que


possa ser aceita também por quem nao queira encarar diretamente o
problema de Deus.

3. Fim e meros

Acontece freqüentemente que coloquemos certos atos nao


porque os intencionamos como tais, mas porque os subordina
mos, como meios oportunos, a determinada finalidade — fina-
lidade reconhecidamente boa.
É. entáo que se póe a pergunta: nao será lícito recorrer
a qualquer meio, contanto que se tenha em vista um objetivo
reto e digno?
A resposta há de ser negativa.
Por qué?
— Porque fim e meios constituem como que um só objeto
do querer mi da vontade de quem age. Sim; fim e meios estáo
Intimamente relacionados entre si, de tal modo que quem quer
tal fim, deve querer tal ou tal meio1. É, portento, com um
único ato de minha vontade que eu quero o fim e quero os
meios correspondentes. Em outros termos: o fim e os meios
estáo envolvidos no dinamismo de um só querer.
Ora, como já foi insinuado atrás, nem todos os meios tém
em si o mesmo valor moral. Assim como há meios que con-
tribuem para dignificar o homem, há outros que concorrem
para o destruir ou degradar; tais sao os roubos injustos, o
homicidio do inocente, a tortura que desrespeita as personali
dades. Por conseguinte, se tenho urna intengáo boa (a inten-
Cáo de obter algo de bom), só posso aplicar-me a querer meios
bons. Sei que o valor de tais meios nao é aferido por criterios
de técnica ou de rendimento económico ou de produtividade
e eficiencia profissional, mas, sim, pela aptidáo de tais meios
a promover a grandeza e a dignidade do homem, tornando-o
mais homem, mais voltado para o seu Fim Supremo (o Fim
que responde as aspiracóes mais características do^ ser hu
mano), e nao apenas mais eficiente no setor da industria, do
comercio, da arte ou da ciencia...

i Um dos correspondentes de Karl Marx, o pensador francés


Ferdinand Lasalle, escreveu a Marx:
«Nao mostres apenas a meta; mostra também o caminho. Pois
a meta e o caminho estáo de tal modo associados entre si que uro.
muda quando o outro muda... Um caminho novo indica urna finali
dade nova».

— 186 —
FIM JUSTIFICA MEIOS? 47

Em conseqüéncia, note-se: o homem que empregue um


meio mau ou indigno para atingir urna finaliadde boa ou
digna, cai em contradigáo consigo mesmo, comete urna inco-.
eréncia ou urna desdita, Eis, em última análise, por que nao
se justifica que alguém utilize meios em si maus para obter
objetivos bons: tal sujeito diz ao mesmo tempo SIM e NAO
a si mesmo ou la dignidade humana e aos valores que ele pre
tende alcangar. Empregando um meio mau, a pessoa se di-
minui ou renega quando precisamente intenciona dignificar a
si mesma e ao próximo. — Na verdade, a sociedade nao é
beneficiada quando um de seus membros se avilta, ainda que
éste intencione auxiliar a sociedade.
Para ilustrar tais afirmacóes, pode-se recorrer ao exem-
plo da tortura. O dever de salvar os compatriotas pode (e
deve) aparecer a alguém como urna tarefa sagrada; tal pessoa
nao se poderia furtar a ésse dever sem se sentir infiel a si
mesma, ao próximo e a Deus. Todavía, se, para obter a sal-
vafiáo dos seus semelhantes, o sujeito langa máo da tortura
(a qual, em si, é indigna ou imoral), ele se opóe a si mesmo
(á sua dignidade), ao próximo (a dignidade do semelhante)
e a Deus mesmo. Em conseqüéncia, ele nao beneficia nem a
si nem a outrem. Para atingir sua finalidade, tal pessoa em-
prega um meio que, na verdade, a afasta da dita finalidade.
Parece oportuno sublinhar que o valor moral dos meios
(como também o dos fins) é um dado que o homem nao cria
nem estipula, mas que ele recebe da ordem natural das coisas.
Ninguém se realiza de qualquer modo ou empregando quais-
quer meios; paralelamente, urna sementé nao dá qualquer
planta, mas está subordinada as leis da sua especie.
A propósito pode-se recomendar o artigo de V. de Couesnongle:
«La iin et les moyens>, em «Supplément de la Vie Spirltuello n» 65,
mal 1963, pp. 293-312.

Esteváo Bettenoourt O.S.B.

CORRESPONDENCIA MIÜDA

Liturgo (Minas Gerals): As perguntas íeitas por V. S. só se pode


dar resposta negativa, consoante a teología católica de todos os tempos.
Um cristao que nao tenha recebido o sacramento da Ordem, em-
bora possua o sacerdocio comum dos fiéis, nao pode concelebrar cora
os presbíteros ou sacerdotes ministeriais, nem rezar em voz alta o
Canon da Missa com estes. Também nao é de sua funcao ler sózinho
certas partes do Canon. Tenham-se em vista os dizeres da Constituicao
«Lumen Gentium» n» 10:

— 187 —
48 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 124/1970

<O sacerdocio comum dos fiéis e o sacerdocio ministerial ou hie-


rárquico ordenam-se um ao outro, embora se diferencien! na esséncla,
e nao apenas no grau. Pois ambos particlpam, cada qual a scu modo,
do único sacerdocio de Cristo. O sacerdocio ministerial, pelo poder
sagrado de que goza, forma e rege o povo sacerdotal, realiza o sacri
ficio eucarístico na pessoa de Cristo e o oferece a Deus em nome de
todo o povo. Os fiéis, no entanto, em virtude de seu sacerdocio regio,
concorrem na oblacáo da Eucaristía e o exercem na recepcáo dos
sacramentos, na oracáo e acao de gracas, pelo testemunho de urna
vida santa, pela abnegacao e pela caridade ativa».
O concurso dos fiéis na oblacáo da Eucaristía é a sua participacáo
nos diálogos, nos cantos, ñas leituras da S. Liturgia.
E. B.

RESENHA DE LIVRO8

Deus está morto? Religiao e ateísmo num mundo em mutacSo;


traducáo do italiano por A. de Araújo. IDO-C, Colecáo «Os grandes
temas do Cristianismo moderno» n« 1. — Editora Vozes, Petrópolis
1970, 140x210 mm, pp. 302.
IDO-C é um grupo de 140 pensadores (católicos e protestantes)
de 30 países diferentes, que refletem e escrevem sobre temas atuais
do Cristianismo: Catolicismo e liberdade de consciéncia, Direito do
sexo e do matrimonio, Diálogo entre católicos e náo-católicos...
O livro ácima é urna coletánea de artigos elaborados por católicos
e protestantes (Chenu, José-Maria González-Ruiz, Hamilton...) sobre
as questfies, muito debatidas, da «morte de Deus», do ateísmo, da
secularlzacao, dos valores terrestres, etc. Tais artigos propugnam urna
nova atitude da Igreja frente ao mundo de hoje, que em grande parte
é ateu ou «pós-cristáo», atitude que rejeita o triunfalismo e reconhece
as fraquezas humanas da historia do Cristianismo.
Quem lé as páginas dessa obra, tem a impressáo de que as obje-
c6es levantadas contra Deus e o Sagrado nao se dirigem própriamente
contra tais valores, mas, sim, contra caricaturas de Deus e do Reli
gioso: deve-se reconhecer, sem hesitacáo, que Deus nao é «Papal bona-
cháo», nem «tapa-buraco», nem concurrente ou rival do homem no
dominio déste mundo; nem os ritos sagrados sao ritos mágicos ou
teatrais. Na verdade, Deus é Aquéle a quem a razáo humana chega,
quando reflete sobre as grandezas déste mundo e as aspiracSes mais
profundas do ser humano. O testemunho dos cosmonautas que reve-
renciaram e cultuaram a Deus na Lúa e nos espacos cósmicos, é o
indicio mais flagrante de que a mentalidade científica e tecnológica
de nossos dias nao repele em absoluto a adesáo a Deus. O que se
tornou incompatível com a mentalidade da «Tecnópolis», sao os infan
tilismos religiosos e as crendices (mesmo assim, quanta crendice nao
há em horóscopos e supersticOes!). Aos cristáos, pois, no mundo de
hoje compete nao silenciar o nome de Deus (o que seria traicáo nao
só a Deus, mas também aos homens), mas ilustrar éste santo nome
mediante urna fé adulta e pura: «É preciso levar em conta que os
nao-cristaos nos julgam pelos fatos, pela densidade humana que a
nossa fé testemunha, pela dimensao concreta que damos a leí evan
gélica fundamental — a caridade» (p. 35).
A quem desoja eonhecer a mente da (teología da morte de Deus»,
o volume de IDO-C ppderá ser útil, pois é típico e bem documentado.
Aponta perspectivas que realmente merecem consideragáo, incitando
os cristáos a assumir seu papel neste mundo. Todavía também (e mais
ainda) apresenta problemas c criticas ao Cristianismo, de maneira
nem sempre objetiva e completa. Naturalismo e certo agnosticismo
inspiram boa parte do que é dito em tal livro.

Que a serpente nao decida por nos!, por Harvey Cox; traducáo de
José Laurénio de Meló. Colegáo «Perspectivas do Homem*, vol. 60. —
Editora Civilizaeáo Brasileira, Rio de Janeiro 1970, 140 x 210 mm,
201 pp.
Harvey Cox é um dos chamados «teólogos da morte de Deus, já
famoso no Brasil por seu livro -A Cidade do Homem* (tradugáo de
«The Secular City») e urna recente visita á nossa patria, ilustrada por
palestras (margo de 1970).

O autor retoma, de certo modo, as idéias de «A Cidade do Homem»


(cí. «P.R.» 103/1968, pp. 282-2911. Parte da premissa (que Cox julga
sugerida pela Biblia) de que o pecado fundamental do nomcm nao é
o orgulho, mas «a preguica, a pouca disposicao para ser tudo aquilo
que o homem foi destinado a ser, ... a relutáncia em assumir a res-
ponsabilidade pelo que fará no futuro.» (p. 3). A culpa de Adáo e Eva
nao consistiu em soberba, mas, sim, em renuncia ao dominio que éles
deviam exercer sobre os animáis ou sobre a serpente; permitiram que
esta lhes dissesse o que deviam fazer, e a seguiram. — Em conseqüen-
cia, é preciso que os homens e, om particular, os cristaos se libertem
de tal indolencia e se engajem decididamente na construgáo de urna
sociedade evoluída, emancipada de guerras, odios e injustigas. Em vez
de cultivar a luta entre comunistas c cristáos, estes preeisam de fo
mentar o diálogo eom seus antagonistas marxistas. Se assim nao íize-
rem, a serpente ou o reino do mal dará a tonalidade marcante a éste
mundo.

O novo livro de Harvey Cox comunica em cheio unía visao antro-


pocéntrica: o homem é o objeto de toda a atengáo, ao passo que Deus
é «subentendido»! O autor demonstra bom conlíecimento da historia do
Cristianismo, assim como da literatura religiosa e profana dos últimos
tempos. Infelizmente, porém, é mais deletério do que construtivo. Para
H. Cox, o Cristianismo nao tem esséncia determinada, mas apenas urna
funcáo precisa: a de libertar o homem todo, tanto no plano económico
e social como no plano da fé; para cumprir esta funcáo, o Cristianis
mo pode o deve adaptar sua esséncia as necessidades do momento; nao
se pergunte, pois, qual a esséncia do Cristianismo (e da Igreja, em
sentido largo), mas apenas qual a sua fungáo. Nisto se revela um
pragmatismo que já nao é cristáo (o agir supoe sempre o ser e déle se
deriva, principalmente quando se trata de fazer a obra de Deus); ma-
nifesta-se também o subjetivismo e o individualismo que ,1á nao reco-
nhecem na Igreja o sacramento primordial instituido por Cristo a íim
de prolongar a sua presenga o a sua acüo afravés dos séculos.
Quanto ao pecado dos primeiros país, pode ser tido como preguiga
ou indolencia, mas preguiga decorrente de insubordinagáo ao plano de
Deus (o que é soberba); foi Deus quem submeteu as criaturas infe
riores ao homem; todo pecado é sempre, direta ou indire;amente, um
Niio dito a Deus, Autor de toda ordem.
E. B.
''■■''

NO PRÓXIMO NÚMERO :

«A Pás'tfota de Sangue» de D. Nunes

Caím e Abel : episodio intrigante

«Igrejo, túmulo de Deus ?»

1970 : Ano Internacional da Educacao

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

Assinatura anual ' porte comum NCr$ 20'00


1970 I porte aéreo NCr$ 25,00
Numero avulso de qualquer xnés e ano NCr$ 2,00

Número especial de abril de 1968 NCr$ 3,00

Volumes encadernados: 1957 a 1968 (prego unitario). NCr$ 17,00

Índice Geral de 1957 a 1964 NCrS 10,00

Índice de qualquer ano anterior a 1969 NCrS 1,00

Índice de 1969 NCr$ 1,00

Encíclica «Populorum Progressio» NCrS 0,50

Encíclica «Humanae Vitae» (Regulacao da Natalidade) NCrS 0,70

EDITORA BETTENCOURT LTDA.

BEDAQAO ADMINISTRAg&O
Calxn postal 2.666 Búa Senador Dantas, 117, sala 1134
ZC-00 Tel.: 232-2628
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