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Rebeldes e marginais: Cultura nos anos de chumbo (1960-1970)
Rebeldes e marginais: Cultura nos anos de chumbo (1960-1970)
Rebeldes e marginais: Cultura nos anos de chumbo (1960-1970)
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Rebeldes e marginais: Cultura nos anos de chumbo (1960-1970)

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About this ebook

Um mix de ensaios de Heloisa Teixeira com fotografias e QR codes que exploram a cultura dos anos de chumbos.

Durante um longo período de sua vida, Heloisa Teixeira (ex-Buarque de Hollanda) estudou obstinadamente a produção cultural brasileira sob a mão pesada da ditadura militar e da censura. Sobre esse tema, ela escreveu uma tese de doutorado, quatro livros e inúmeros artigos examinando a cultura como resistência e afirmação da juventude rebelde da época. Agora, aos 84 anos, ela decide compartilhar essas fontes, reunir e reorganizar o material que produziu sobre esta época mágica, quando a cultura enfrentou estruturas, ditaduras e soube sonhar novos futuros. Este livro é, portanto, um precioso apanhado de décadas de pesquisa apresentado a partir de um olhar atual sobre o que aconteceu naqueles anos 1960/1970.

Em uma série de QR codes, a autora disponibiliza ainda documentos e entrevistas raras que fez pessoalmente com personagens chave dessa época, que mudou para sempre a cultura do país.
LanguagePortuguês
Release dateFeb 23, 2024
ISBN9786584515673
Rebeldes e marginais: Cultura nos anos de chumbo (1960-1970)

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    Rebeldes e marginais - Heloisa Teixeira

    APRESENTAÇÃO

    Durante um grande período, estudei a fundo nossa produção cultural sob a mão pesada da ditadura militar e da censura. E sobre as décadas de 1960 e 1970, escrevi minha tese de doutorado, quatro livros e inúmeros artigos examinando a cultura como resistência e afirmação da juventude rebelde. Para esses trabalhos, visitei arquivos, jornais e estive presente na maior parte dos festivais de músicas, shows, exposições, peças e filmes do período. Tudo isso resultou num acervo com textos, imagens, vídeos, áudios e documentos, além da minha memória pessoal, uma representante da geração dos anos 1960.

    Agora, na casa dos oitenta anos, me veio um desejo forte de compartilhar essas fontes, algumas bem raras, e abrir minhas gavetas para todos os que se interessam por essa época mágica quando a cultura tomou as rédeas e enfrentou estruturas, ditaduras e soube sonhar novos futuros. Peças desse acervo estão acessíveis em formato de QR code, no fim deste livro. Além de registros de acontecimentos fundamentais do período, realizei entrevistas que apresentam um olhar atual de protagonistas do que, afinal, aconteceu naqueles incríveis anos 1960 e 1970.

    A primeira parte, Rebeldes, é um desdobramento, uma versão bastante ampliada do livro Cultura e participação nos anos 60 (1982), que escrevi com Marcos Augusto Gonçalves para a coleção Tudo é História. O texto original carrega todas as vantagens e desvantagens de ter sido escrito no calor da hora, alimentado pelo espírito e pelas paixões de uma época, com todas as simplificações e os subtextos que a paixão provoca.

    A segunda parte, intitulada Marginais, percorreu o mesmo caminho de leitura expandida de trabalhos como Impressões de viagem (1980) e Política como literatura: a ficção da realidade brasileira (1979), também em coautoria com Marcos Augusto Gonçalves, além de diversas antologias, artigos e conferências que fiz no período.

    Ao compartilhar esses textos, materiais e perspectivas, sinto como se estivesse dividindo também uma grande parte da minha vida, que se mistura às experiências e pesquisas em torno desse tempo de medos e sonhos.

    Heloisa Teixeira

    Rio de Janeiro, 2024

    Estudante após protesto, Rio de Janeiro, 1968. Foto de Evandro Teixeira.

    O triunfo da beleza e da justiça: Paulo Martins (Jardel Filho) e Sara (Glauce Rocha), Terra em transe, 1967.

    Sara (off): O que prova a sua morte?

    Paulo Martins (erguendo a cabeça para o céu): A beleza… O triunfo da beleza e da justiça!

    O travelling recua enquadrando Paulo Martins, de longe, cambaleante, com a metralhadora nas mãos, enquanto Sara corre em sua direção. (Tiros de metralhadora off.)

    Paulo cai, levanta-se e cai novamente.

    Esse filme, segundo o autor, não comporta a palavra fim.

    Terra em transe (1967), de Glauber Rocha: a dialética trágica da palavra e da violência; o mito e a consciência; a crise de uma ilusão política.

    Quem é Paulo Martins? E a que Eldorado ele pertence?

    Terra em transe é o retrato mais fiel que me ocorre do ethos de um momento em que toda uma geração se dividia, assim como Paulo Martins (Jardel Filho), o protagonista do filme, entre a poesia e a política, provocando uma implosão afetiva, política e cultural sem precedentes.

    Esse momento é a primeira metade dos anos 1960, os incríveis anos 1960 ou a era de ouro de nossa cultura. O filme foi realizado um ano antes do desastre do Ato Institucional n.º 5 e foi considerado por muitos o estopim do Movimento Tropicalista.

    Quem, como eu, assistiu aos 115 minutos de Terra em transe, na ponta da poltrona, naquela noite de lançamento no Cine Veneza, em frente à baía de Guanabara, em Botafogo, no Rio de Janeiro, e permaneceu, noite adentro, participando do debate caloroso e infindável que se seguiu à primeira projeção do filme de Glauber Rocha, sabia que alguma coisa muito forte havia acontecido ali. Todos os presentes pareciam experimentar, no personagem de Paulo Martins, a intensidade conflituosa de um projeto radical de transformação social em que, segundo a personagem Sara (Glauce Rocha), numa passagem dramática, a política e a poesia são demais pra um só homem. E no fim, quando Sara pergunta a Paulo, já baleado, O que prova a sua morte?, a resposta do poeta, O triunfo da beleza e da justiça, ecoou, por muito tempo ainda, no silêncio pesado da sala escura do Cine Veneza lotado.

    O discurso de Porfírio Diaz (Paulo Autran), Terra em transe, 1967.

    Fortes ventos

    Primeira página da edição do Jornal do Brasil de 14 de dezembro de 1968, dia seguinte à promulgação do AI-5.

    Como teria sido o futuro do Brasil sem o Ato Institucional n.º 5? Naquele dia 14 de dezembro de 1968, o Jornal do Brasil, já pisando em ovos, inseriu na primeira página duas mensagens ambíguas, mas de alta precisão para o que vinha com o AI-5 – o golpe dentro do golpe. Num canto à esquerda, perto do nome do jornal, lia-se: Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos. Máx.: 38°, em Brasília. Mín.: 5°, nas Laranjeiras. Do lado oposto, lia-se: Ontem foi o Dia dos Cegos (Página 12), mas na referida página havia apenas uma pequena parte sobre a data, todo o restante tratava dos detalhes do novo golpe, o AI-5. Os anos de chumbo haviam chegado sem aviso prévio.

    Para pensar o que significou o fim heroico de Paulo Martins, protagonista de Terra em transe e de tudo aquilo que configurou a atmosfera dos nossos anos 1960, é necessário voltar um pouco no tempo e citar uma frase histórica de Roberto Schwarz. Dizia ele, com a precisão irônica de sempre, que o país estava irreconhecivelmente inteligente. Um novo vocabulário invadia as conversas e reuniões e ouvia-se, em situações casuais, termos como reformas estruturais, libertação nacional, combate ao imperialismo e ao latifúndio. Um léxico novo que expressava a voltagem política e cultural da vida brasileira antes mesmo do golpe.

    Nas grandes cidades, o movimento operário crescia e liderava um vigoroso processo de lutas, enfrentando velhos pelegos do Estado Novo e avançando com novos mecanismos de reivindicação econômica e pressão política. Surgiam articulações que terminavam em pactos sindicais, revelando como os trabalhadores estavam dispostos a unificar suas forças. O resultado foi o surgimento de organizações como o Pacto de Unidade e Ação (PUA) e a Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT), que ameaçavam os limites institucionais estabelecidos na negociação salarial.

    Em paralelo, as ligas camponesas avançavam especialmente em Pernambuco e na Paraíba com repercussão por todo o país. A urgência de uma reforma agrária de tabu vira bandeira, agregando camponeses, estudantes e lideranças políticas, ampliando a sindicalização rural e, em dezembro de 1963, dando origem à Confederação Nacional dos Trabalhadores Agrícolas (Contag), um dos polos revolucionários de luta.

    A classe média, por sua vez, sofria a instabilidade econômica na pele e, ainda que com certo temor, aderia aos movimentos sociais de pautas políticas.

    Muita coisa ao mesmo tempo esquentava a cena política, intelectual e sindical. Nesse quadro, a União Nacional dos Estudantes (UNE), em plena legalidade, se fazia presente como grande interlocutora das demandas e perspectivas de transformação que mobilizavam todo país. Na própria UNE surge, com força, em 1961, o primeiro Centro Popular de Cultura (CPC), que sonhava instrumentalizar a cultura como agente da revolução social que se aproximava, segundo crença geral. Os CPCs se organizavam por todo o país procurando levar, por meio das artes, a consciência de si mesmo às classes populares. Nascia a figura do novo artista revolucionário, personagem decisivo no ideário do início da década de 1960. Foram encenadas, por artistas e intelectuais, peças em portas de fábricas, favelas e sindicatos. Cadernos de poesia eram vendidos a preços populares e iniciavam a produção e realização pioneira de filmes autofinanciados.

    De dezembro de 1961 a dezembro de 1962, o CPC do Rio de Janeiro produziu as peças Eles não usam black-tie e A vez da recusa; o filme Cinco vezes favela; a coleção Cadernos do povo e a série Violão de rua. O Centro oferecia ainda cursos de teatro, cinema, artes visuais e filosofia, e a UNE-Volante, uma excursão que, durante três meses, percorreu diversas capitais do Brasil para articular contatos com bases universitárias, operárias e camponesas. O clima estava quente, e o sonho parecia ao alcances das mãos.

    Detalhe da primeira página do Jornal do Brasil no dia 14 de dezembro de 1968, logo após a promulgação do AI-5.

    Forças progressistas

    Tomava forma e ganhava visibilidade um movimento cultural que apostava no poder revolucionário da arte e da cultura, que transbordava por toda parte. Formavam-se grupos e instituições vinculadas aos governos ou, mais diretamente, ao movimento estudantil. Em Recife, com o apoio do governo de Miguel Arraes, então prefeito da capital pernambucana, o Movimento de Cultura Popular (MCP) marcava sua diferença com os demais CPCs e tinha como foco núcleos de alfabetização em favelas e outras comunidades. Surgia um método pedagógico pioneiro, criado por Paulo Freire, que causou fortíssimo impacto local e viajou o mundo. Contra as cartilhas tradicionais, Paulo Freire sistematizou um método pedagógioco que colocava o letramento político como deflagador do processo de alfabetização, com resultados inigualáveis e de imediata repercussão na tomada de consciência da situação social vivida pelas populações analfabetas e marginalizadas.

    Na política, a presença no poder de forças nacionalistas filiadas à tradição de Getúlio Vargas e sensíveis às demandas populares favorecia a emergência das esquerdas, notadamente do Partido Comunista Brasileiro (PCB) que, na semilegalidade, desempenhava um papel de crescente importância na articulação dos setores progressistas. Exercendo influência no meio sindical, estudantil e intelectual, o PCB era uma peça estratégica do jogo de alianças do governo de João Goulart, Jango, que assumira a presidência do país em 1961. Sua proximidade em relação ao Estado e ao acesso a alguns aparelhos de poder permitia que seu ideal da revolução democrática e anti-imperialista circulasse abertamente no debate nacional.

    Brasil, primeiros anos da década de 1960: talvez em poucos momentos da nossa história o que poderíamos chamar de forças progressistas tivessem se visto tão próximas do poder político. Ilusão desfeita, de forma e rapidez inesperada.

    O que fazer?

    João Goulart discursa na Central do Brasil, Rio de Janeiro, 13 de março de 1964.

    no início de março de 1964, Luís Carlos Prestes, secretário-geral do PCB, declarou que não estamos no governo, mas estamos no poder. Já no fim daquele mês, em uma articulação golpista à revelia de qualquer otimismo ou ilusão, os militares tomam o poder e depõem João Goulart. Poucos dias após o golpe, mais precisamente no dia 11 de abril de 1964, o general Humberto de Alencar Castello Branco assume a Presidência da República, declarando-se síndico de uma massa falida.

    Nas ruas, via-se o novo quadro da direita com sua Marcha da família com Deus pela liberdade, em março e junho de 1964. Vivendo as dificuldades da crise econômica, descontente com a corrupção e a incompetência administrativa que se espalhavam na vida pública e assolada pelo fantasma do comunismo no país – espalhafatosamente alardeado pelos mais conservadores – a classe média silenciosa finalmente se manifestava: a casa saía à rua.

    Além de moralizar e defender o país do perigo vermelho, o movimento militar propagava que viera para iniciar um processo de modernização. O que não se esperava era que seus efeitos ideológicos encenassem um espetáculo tragicômico de provincianismo patético. De repente, o Brasil inteligente foi tomado por um turbilhão de preciosidades do pensamento doméstico: o zelo cívico-religioso vendo por todos os cantos a ameaça de padres comunistas e professores ateus; a vigilância moral contra o indecoroso comportamento moderno que, certamente incentivado por comunistas, corrompia a família; o ufanismo patriótico – o céu anil e as matas verdejantes – enfim, todo o repertório ideológico que a classe média é capaz de ostentar.

    São da década de 1960 os antológicos inventários Febeapá – Festival de besteira que assola o país, de Stanislaw Ponte Preta – pseudônimo do jornalista Sérgio Porto –, que reuniam, em livro, textos de sua coluna no jornal Última Hora e evidenciavam o clima e os ventos que sopraram depois do golpe. Veja pequenos exemplos da escrita bem-humorada e precisa do jornalista:

    Foi então que estreou no Teatro Municipal de São Paulo a peça clássica Electra, tendo comparecido ao local alguns agentes do DOPS para prender Sófocles, autor da peça e acusado de subversão, mas já falecido em 406 a.C.

    Em Campos ocorria um fato espantoso: a Associação Comercial da cidade organizou um júri simbólico de Adolf Hitler, sob o patrocínio do Diretório Acadêmico da Faculdade de Direito. Ao final do julgamento, Hitler foi absolvido.

    A minissaia era lançada no Rio e execrada em Belo Horizonte, onde o delegado de costumes (inclusive costumes femininos) declarava aos jornais que prenderia o costureiro francês Pierre Cardin […], caso aparecesse na capital mineira para dar espetáculos obscenos com seus vestidos decotados e saias curtas. E acrescentava furioso: A tradição de moral e pudor dos mineiros será preservada sempre. Toda essa cocorocada iria influenciar um deputado estadual de lá – Lourival Pereira da Silva – que fez discurso na câmara sobre o tema: Ninguém levantará a saia da mulher mineira. ¹

    Da ofensiva ao recuo

    De uma hora para outra, aparentememte sem aviso prévio, o sonho revolucionário se viu silenciado pela voz da ordem, da moralidade, da pátria, da família, das tradições mais caras ao nosso povo. A perplexidade tomava conta de intelectuais e militantes. Passava-se da euforia à dúvida, da ofensiva ao recuo.

    O fato de que os acontecimentos de março tenham pegado de surpresa os intelectuais e parte da base do governo do presidente João Goulart, além de comprovar a fragilidade em apresentar alguma capacidade de resistência, revela um sintoma importante da vida política e cultural brasileira durante os anos rebeldes.

    Afinal, o golpe militar de 1964 mostrou-se mais sério do que um simples episódio aleatório e passageiro, como foi avaliado nas primeiras horas. A insuspeita vocação para a longevidade do novo regime logo deixaria entrever a natureza profunda de suas determinações. Aquilo que a esquerda foi incapaz de levar em conta e que a deixou imersa em perplexidade, era, na realidade, o início de um novo e sombrio ciclo da história brasileira. A defasagem entre a expectativa da transformação social e a realidade do desmoronamento do governo Goulart poderia ter, no mínimo, servido de alerta para o reconhecimento de que alguma coisa andava mal nos cálculos da revolução planejada.

    Dessa forma, a necessidade de localizar e corrigir os possíveis enganos que permitiram o golpe de 1964 marcaria decisivamente os rumos da militância política e cultural de oposição ao golpe até o fim da década. Em 1966, um artigo sobre o livro recém-publicado de Caio Prado Júnior, assinado por Assis Tavares (pseudônimo de Marco Antônio Tavares Coelho), na Revista Civilização Brasileira – referencial obrigatório para o pensamento de esquerda no período 1964-1968 – dizia:

    A derrocada do governo Goulart foi fulminante. Quando se leva em conta que, à época do plebiscito sobre o parlamentarismo em fins de 1962, grande era o apoio gozado pelo governante deposto, fica-se sem entender como seu alicerce político deteriorou-se em tão pouco tempo, em menos de 15 meses. A explicação do fato é essencial ao movimento progressista brasileiro. Havendo perdido as posições que ocupava, resta-lhe melancolicamente o papel de recolher as lições de uma fase em que se anunciava uma transformação qualitativa na sociedade brasileira.²

    A revolução brasileira, de Caio Prado Júnior, foi a primeira grande crítica às origens do pensamento da esquerda partidária no período pré-1964. O livro, hoje um clássico de nossa literatura política, procurava demonstrar a insuficiência e a inadequação dos esquemas de análise utilizados pelo PCB para explicar a dinâmica do processo social no Brasil. Esses esquemas, um tanto ortodoxos, tomavam por base o Programa da Internacional Comunista aprovado no VI Congresso Mundial realizado em Moscou, em 1928. O documento, citado pelo autor, estabelecia duas categorias de países atrasados: os coloniais e semicoloniais,

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